COMPRA E VENDA
VENDA DE COISA DEFEITUOSA
ÓNUS DA PROVA
DEFEITOS
CONSUMIDOR
USO NÃO PROFISSIONAL
PRESUNÇÃO DE CONFORMIDADE
Sumário

I- No contrato de compra e venda a obrigação de entrega da coisa cabe ao vendedor e ,por isso, cabe-lhe provar o cumprimento dessa obrigação (artigo 342º/2 e 879º,alínea c) do Código Civil)
II- No entanto, pedido pelo comprador indemnização correspondente ao valor de bens que foram comprados alegadamente para substituição dos bens não entregues, o pedido improcede, por falta de nexo de causalidade, se o autor decidiu proceder a tais aquisições sem previamente solicitar ao vendedor o cumprimento da aludida obrigação.
III- Na compra e venda a presunção de conformidade consubstancia a ideia de que as mercadorias pela sua qualidade, quantidade e tipo correspondem às previstas no contrato
IV- Dessa presunção de conformidade decorre a desnecessidade de, uma vez provada a existência de defeito, se impor ainda ao comprador a prova acrescida de que tal defeito não ocorreu supervenientemente à compra e venda
V- Incumbe, assim, ao vendedor o ónus de provar ou que o comprador sabia, quando comprou, da não conformidade ou que foi ele quem deu causa ao defeito (artigo 342º/2 do Código Civil)
VI- A circunstância de o comprador de um determinado bem o ceder, transitoriamente e num dado momento, a terceiro, para uso profissional deste, não retira em princípio à compra e venda já celebrada a sua natureza de contrato de consumo; a destinação da coisa a uso pessoal, não profissional, não exclui que o adquirente possa tirar proveito económico, por via da cedência a terceiro, da coisa adquirida
VII - Releva para se considerar se o bem, fornecido é destinado a uso não profissional o uso que o adquirente pretende dar à coisa após a sua entrega, não relevando, assim, o uso que lhe foi dado em momento anterior à entrega posto que ulterior à transmissão da propriedade; por isso, continuando a coisa vendida em poder do vendedor que, por acordo com o comprador e por período determinado, transitoriamente, continuou ainda a utilizá-la comercialmente, uma tal situação não exclui o comprador da categoria de consumidor nos termos do artigo 2º da Lei de Defesa do Consumidor (Lei nº 24/96, de 31 de Julho)

Texto Integral

Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa:

I

Ax.[…] propôs acção declarativa com processo ordinário contra A.[…] Ldª pedindo a condenação da ré no pagamento da quantia de € 48.355,91, valor correspondente a incumprimento e prejuízos derivados de contrato de compra e venda de iate à vela pelo preço de € 13.,191,53 sendo o A. o comprador e a ré a vendedora, a saber: (…)

Face ao exposto anteriormente a acção foi julgada parcialmente procedente condenando-se a ré a pagar ao A. a quantia de € 21.961,39 (somatório das verbas acima indicadas em tom mais carregado) com juros de mora a contar da citação […]

A ré, nas suas alegações, defende que a sentença considerou aplicável ao contrato o regime jurídico de protecção do consumidor o que não se verifica visto que o vendedor afectou o bem a uma exploração comercial aceitando, assim, um risco acrescido.

Deve, por isso considerar-se, com base no regime geral da compra e venda, que o risco de dano se transfere para o comprador e que o vendedor não é responsável por danos que não sejam ocultos ou que não lhe sejam imputáveis.

Entende o recorrente que, afectado o veículo à exploração comercial imediatamente após a compra e venda, pois A. e réu celebraram um contrato de exploração de actividade de charter que vigorou desde 17-9-2001 do qual o A. auferiu a quantia de € 5799, não houve destinação do bem ao uso pessoal do autor, houve a sua afectação a uma actividade comercial lucrativa que comportava riscos acrescidos, não sendo, portanto, aplicável o regime de protecção do consumidor previsto na lei nº 24/96, de 31 de Julho.

Ora, assim sendo, a relação contratual em causa e o apuramento de qualquer eventual responsabilidade devem ser vistos à luz do regime geral da compra e venda e, nessa medida, não se verificam os pressupostos de responsabilidade da ré visto que não ficou provado em que momento se deu a fissura no casco da embarcação, não se justificando imputar o risco ao vendedor.

Afinal  o réu só seria responsável se o A. provasse a existência de um defeito oculto, anterior à venda e ainda que o vendedor tinha actuado de má fé.

II

Factos provados:


1- No dia 17 de Setembro de 2001, a Ré, na sua qualidade de comerciante, vendedora de barcos motorizados e à vela, celebrou com o A., mediante escrito particular, o “contrato de compra e venda” – cuja cópia consta a fls. 16-20 dos autos – tendo por objecto o iate à vela com motor auxiliar, usado, denominado OCEANO, modelo Bavaria 44, com motor Volvo MD22 e construído em 1996 (A).
2- O preço acordado foi de € 133.191,53, o qual foi pago pelo A. à R. mediante transferência bancária efectuada em 10 de Setembro de 2001 (B).
3- Na base da decisão de compra da embarcação por parte do A. esteve uma peritagem realizada, em 28 de Agosto de 2001, pela empresa I[…], através do seu perito Sr. W.[…] (C).
4- A referida peritagem foi efectuada a pedido do A., tendo-lhe sido facturado o custo respectivo (Q1).
5- Em Janeiro de 2002, a embarcação apresentava uma fissura no casco, na zona de encaixe das cavilhas da quilha, a qual permitia a entrada de água no interior da embarcação (Q4).
6- A referida fissura implica uma depreciação do respectivo valor de mercado (Q13).
7- Para identificar os defeitos da embarcação e proceder à elaboração do orçamento da respectiva reparação, foi necessário efectuar uma peritagem com diversos trabalhos de inspecção no referido barco, a qual importou para o A. o dispêndio da quantia de € 1.500,00 paga ao perito náutico John […] (Q6).
8- Durante a inspecção da embarcação, realizada em Fevereiro de 2002, apurou-se também que o hélice não funcionava e que tinha de ser substituído, reparação essa que importou para o A. o dispêndio da importância de € 320,99 (Q12).
9- Para suportar a embarcação em terra, no estaleiro, em posição de poder ser reparada, foi necessário construir um suporte em madeira, o qual foi construído pelo Sr. Brian […] (Q8).
10- O A. pagou a importância de € 9.000,00 a Sol.[…] pela reparação do casco do iate dos autos (Q9).
11- Para poderem ser efectuadas as diversas inspecções e consequente peritagem, a embarcação teve de ser içada para terra, o que foi feito na Marina de Vilamoura, o que originou as seguintes despesas suportadas pelo A. junto da “Marina de Vilamoura. S.A.”:
- estadia, subida e descida por guindaste (€ 3.350,12);
- amarração, subida e descida (€ 342,72);
- amarração (€ 110,67);
- amarração (€ 36,89) (Q7).
12- Durante o ano de 2002, o A. comprou os seguintes equipamentos e acessórios:
- duas baterias novas e cabos de ligação (€ 332,40);
-duas manivelas de guincho grandes (€ 57,90);
- equipamento de guincho completo (€ 463,07);
- vela grande (€ 6.560,00) (Q3).
13- A embarcação esteve parada na Marina de Vilamoura desde finais de Fevereiro de 2002 até Julho de 2002 (D).
14- Entretanto, a R. obteve dois orçamentos para reparação da avaria das empresas especializadas L.[…], LDA. e SOL.[…], os quais referem custos inferiores ao de € 9.000,00 (Q35).
15- Os referidos orçamentos foram elaborados em Fevereiro de 2002, com a quilha por remover, e não ultrapassavam o valor de € 5.000,00 (Q35).
16- O A., através do seu mandatário, remeteu à R. a carta, datada de 14 de Março de 2002, cuja cópia consta a fls. 82-86 dos autos e que aqui se dá por integralmente reproduzida (1) (E).
17- Após a aquisição da embarcação pelo A. à R., foi celebrado entre as mesmas partes um contrato de exploração da mesma na actividade de “charter”, o qual vigorou de 17 de Setembro de 2001 até 31 de Outubro de 2001 (Q18).
18- Ao adquirir a embarcação, o A. sabia que a mesma, desde sempre, fora utilizada na actividade de “charter” exclusivamente, sendo constantemente fretada a diversos utilizadores, por curtos períodos (Q19).
19- Esse tipo de utilização provoca necessários desgastes nas embarcações (Q20).
20- A embarcação dos autos foi sujeita a vistoria de manutenção durante o ano de 2001 (Q21).
21- Durante o período em que o A. cedeu à R. a exploração da embarcação, esta foi utilizada por diversos clientes, tendo o A. recebido, no âmbito de tal contrato, a quantia de € 5.799,39 (Q22).
22- O A. viu a embarcação que adquiriu, pela primeira vez, em Janeiro de 2002 (Q23).
23- Antes da venda, a R. informou o A. de que a embarcação, dois ou três anos antes, tinha embatido com o casco no fundo do mar (Q25).
24- Nessa ocasião, a embarcação foi objecto de reparações efectuadas pelo Sr. K.[…], pessoa experiente, que trabalhava então para a […], empresa construtora da embarcação (Q26).
25- Esta reparação foi efectuada de acordo com os níveis de qualidade impostos pela empresa construtora (Q27).
26- A R. enviou o relatório elaborado pelo perito Sr. John […] para a empresa construtora, tendo esta construtora considerado que “o parecer escrito à mão por John […] atesta essencialmente a existência de entrada de água na parte traseira da quilha e não na zona já reparada (...) não se podendo, por conseguinte, admitir qualquer relação no que diz respeito à entrada de água no outro extremo da quilha (Q28).
27- P.[…] INSURANCE foi a seguradora da embarcação durante o período em que a mesma foi propriedade da R. e durante o período em que a embarcação foi utilizada na actividade de “charter” na sequência do contrato celebrado entre as partes, após a aquisição pelo A. (Q29).
28- A R. também enviou o relatório elaborado pelo perito Sr. John […] à seguradora […] (Q30).
29- A seguradora […] solicitou, na sequência, a realização de vistoria à embarcação, a qual foi efectuada pelo perito Sr. M.[…], tendo este concluído que “apesar de existir a possibilidade de que os danos existentes sejam uma consequência do encalhamento do barco ocorrido em Agosto de 1999, não é possível atribuir claramente estes danos a esse facto, podendo igualmente supor-se que um tal dano tenha ocorrido em três anos de operação de fretamento (Q31).
30- Apesar das incertezas da seguradora […] sobre a origem da fissura, a mesma aceitou suportar o custo da reparação do casco, cujo montante lhe parecia nunca superior a € 5.000,00 (Q32).
31- Na sequência de negociações entre o A. e a seguradora […], o primeiro aceitou a quantia de € 6.000,00 para pagamento dos prejuízos decorrentes de tal fissura no casco da embarcação (Q32-A).
32- A seguradora […] efectuou o pagamento ao A. da quantia de € 6.000,00 (Q32-B).
33- Tendo o A. declarado que se encontrava totalmente compensado por todos os prejuízos decorrentes da alegada fissura no casco da embarcação (Q33-C).
34- O custo da vela grande, tal como consta do preçário da empresa fornecedora das velas que são vendidas com os iates […], é de € 3.493,00 (Q36).
35- O hélice que equipava a embarcação era de origem (Volvo Penta de três pás), não tendo merecido qualquer reparo do perito que vistoriou a embarcação antes da venda (Q38).

Apreciando:

Recurso de apelação do A.

III

- A questão da depreciação da embarcação […]

VI
Apelação da ré

Na decisão recorrida considerou-se que a compra e venda foi celebrada entre um profissional (a Ré) e um consumidor (o A.) que tem direito à qualidade dos bens e serviços que “ devem ser aptos a satisfazer os fins a que se destinam e produzir os efeitos que se lhes atribuem”:  ver artigo 3º,alínea a) e 4º/1 da Lei nº 24/96- Lei de Defesa do Consumidor (LDC)-, de 31 de Julho

Negando a ré que o contrato em causa seja uma compra e venda a consumidor, a sua responsabilidade deve então ser encarada à luz do regime geral de compra e venda de coisas defeituosas e, assim sendo, não se verificam os pressupostos que fundamentam a responsabilidade da ré visto que não ficou provado que a fissura do casco tenha ocorrido antes de efectivada a compra e venda.

Relembrem-se os factos relevantes: a compra e venda ocorreu no dia 17-9-2001; a fissura no casco foi detectada em Janeiro de 2002; o custo da reparação do casco foi de € 9.000 (o A. recebeu, como já vimos, 6.000 euros da seguradora por conta dessa reparação); a embarcação esteve parada na marina de Vilamoura de finais de Fev. de 2002 até Julho de 2002; depois da aquisição da embarcação pelo A. à Ré foi celebrado um contrato de exploração da mesma na actividade de “charter” que vigorou desde 17-9-2001 até 31-      -10-2001; o A. viu a embarcação que adquiriu pela primeira vez em Janeiro de 2002.

Considerou-se que se está em presença de uma compra e venda de coisa defeituosa estando assegurada por lei (artigo 4º/2 da LDC) a garantia do bom estado e funcionamento dos bens fornecidos por período não inferior a um ano, período não decorrido à data em que foi detectada a fissura do casco, idêntica solução se figurando no caso de se considerar período de 6 meses a contar da entrega a que alude o artigo 921º do Código Civil.

Considerou-se também, na decisão recorrida, que o A. preencheu o ónus da prova do facto constitutivo  da existência de defeito e respectiva denúncia, não provando a ré os factos impeditivos da sua responsabilidade, v.g. a demonstração  de que o aparecimento do defeito se ficou a dever a culpa do lesado, ou de que o defeito era aparente, conhecido da contraparte ou posterior à data da entrega, ou a demonstração de uma causa estranha que tenha estado na origem do defeito.

Assim se deve, com efeito, entender visto que a presunção de conformidade com o contrato, ou seja, a presunção - o pressuposto - de que as mercadorias pela sua qualidade, quantidade e tipo correspondem às previstas no contrato joga necessariamente a favor do comprador.

Quer isto dizer que quem compra terá o ónus de provar o defeito da coisa, nos termos e prazos definidos na lei, não se lhe impondo o acrescido ónus de provar o momento da desconformidade salvo, face ao disposto no artigo 12º/1 da Lei nº 24/96 (LDC), se, fornecida coisa com defeito, “ dele tivesse sido previamente informado e esclarecido antes da celebração do contrato”.

Esta presunção de conformidade “ não se apresenta, pois, revolucionária ou sequer inovadora...se confrontada com a disciplina da empreitada e mesmo da compra e venda no Código Civil e na lei nº 24/96 de defesa do consumidor: já em face destas regras o fornecedor  (vendedor e empreiteiro)  só cumpre bem (cumprimento exacto ou perfeito) a sua obrigação, se entregar uma coisa ou obra conforme ao contrato, de modo a que a coisa ou a obra recebida seja a devida...correspondente à vontade das partes vertida nas cláusulas ou presumida e integrada por aplicação de regras objectivas (artigo 913º/2. artigos 236º, 239º). Nem sequer a terminologia constitui novidade. Veja-se o artigo 1207º do Código Civil (‘ o empreiteiro deve executar a obra em conformidade com o que for convencionado e sem vícios...), veja-se o artigo 1043º,nº1 (“...o locatário é obrigado a manter e restituir a coisa em conformidade com os fins do contrato”); veja-se o artigo 469º do Código Comercial (“ cousa conforme à amostra); veja-se o artigo 908º, nº1 do Código de processo civil (“ falta de conformidade com o que foi anunciado...

Repare-se que mesmo o artigo 879º não elenca, nos efeitos essenciais das compra e venda, a obrigação de garantia dos defeitos...

Aspecto que não pode deixar de constituir argumento sistemático em prol da já antes existente obrigação de entrega da coisa conforme ao contrato, englobante da tradicional distinção, feita em Códigos como o francês e o italiano, entre obrigação de entrega e garantia legal por defeitos. Pelo que, já em face do direito comum português, o comprador tem direito ao exacto cumprimento do contrato, traduzido na recepção do bem devido ( o bem contratado) e não qualquer bem” (Venda de Bens de Consumo, João Calvão da Silva, Almedina, 2003, pág. 58).

Assim, prossegue o ilustre autor, “ o que está em causa não é propriamente a inexistência de falta de conformidade. Se, na conclusão do contrato, o comprador conhece ou não pode razoavelmente ignorar a não conformidade - defeitos aparentes, visíveis, ictu oculi - , no circunstancialismo do caso, do que se trata é da não responsabilização do vendedor por esse defeito. Em última instância, porque o consumidor aceita o produto tal qual é, a sua entrega será conforme ao contrato...pelo que o comprador não poderá prevalecer-se dos direitos resultantes da falta de conformidade” (loc. cit.,  pág. 69).

Já era, portanto, assim que se devia entender no direito comum (ver artigo 913º/2 do Código Civil) e, por isso, em sede e ónus da prova, atenta a referida presunção de conformidade, “ a prova de que o adquirente da coisa conhecia o seu defeito incumbe ao vendedor...enquanto a prova da existência do defeito cabe ao comprador” (Compra e Venda de Coisas Defeituosas, Calvão da Silva, Almedina 2001, pág. 48).

Do exposto resulta que a circunstância de o contrato de compra e venda se não subsumir ao disposto na lei de defesa do consumidor, acaba por não ter relevância visto que, de acordo com as regras do Código Civil, em sede de ónus da prova, o A. provou aquilo que tinha de provar: o defeito e a sua denúncia tempestiva não provando o vendedor que o comprador sabia da não conformidade da embarcação ou que esta se encontrava, na ocasião da venda, livre de defeitos e que a fissura no casco, ulteriormente detectada, também ulteriormente ocorrera.

VII

Prescreve o artigo 2º/1 da LDC que se “considera consumidor todo aquele a quem sejam fornecidos bens, prestados serviços  ou transmitidos quaisquer direitos, destinados a uso não profissional, por pessoa que exerça com carácter profissional uma actividade económica que vise a obtenção de benefícios”.

Assim, a dúvida que, no caso, se suscita, é a de saber se, apesar de se reconhecer que o autor não é profissional, pode concluir-se, face à matéria provada, que comprou a embarcação destinando-a uso não profissional.

Se o comprador, no momento da aquisição, negoceia a cedência do bem adquirido para utilização profissional de terceiro, o destino que ele visa com o produto é o uso profissional, posto que exercido por terceiro, não por ele próprio.

A afectação do bem a um uso profissional contraria a letra do artigo 2º/1 da LDC que “ considera consumidor todo aquele a quem sejam fornecidos bens, prestados serviços ou transmitidos quaisquer direitos, destinados a uso não profissional...

Se um bem é comprado para ser destinado a uso profissional, o adquirente visa obter desse bem proveito económico e, por conseguinte, fica afastada a ideia da fragilidade, de debilidade económica, da protecção de que carece o consumidor.

Numa tal situação  o comprador, precisamente porque tem em vista a rentabilização do bem, está necessariamente atento aos cuidados a observar com a coisa adquirida, cuidados que não terá, por desnecessidade, aquele que não tem tais propósitos.

Importa, no entanto, que no momento da aquisição se tenha em vista o destino não profissional;  se esse destino apenas se vier a exercer  em momento ulterior, não parece que o contrato se não deva qualificar de contrato de consumo.

Não se provando que, no momento da aquisição, se teve em vista destinar o bem adquirido a uso profissional e se o comprador não é um profissional e se o bem foi afectado apenas ulteriormente a actividade que não é actividade profissional do adquirente, parece que nada obsta a que se considere o adquirente consumidor.

Repare-se que, a não ser assim, impor-se-ia o entendimento de que ao comprador ficaria vedado, para efeito de exercer direitos contra o vendedor, tirar qualquer proveito da coisa adquirida, destinando-a, fosse qual fosse o momento, à utilização profissional a favor de outrem.

Não resulta dos termos do contrato, que o A. tenha adquirido a embarcação para a sua utilização profissional como embarcação “charter”, fazendo dessa utilização o seu modo de vida profissional ou pretendendo obter proveito contínuo, temporalmente não limitado, de aluguer com uma tal finalidade.

Mas ficou provado (17 supra) que após a aquisição da embarcação pelo A. à R., foi celebrado entre as mesmas partes um contrato de exploração da mesma na actividade de “charter”, o qual vigorou de 17 de Setembro de 2001 até 31 de Outubro de 2001 (Q18) e que  (21 supra) durante o período em que o A. cedeu à R. a exploração da embarcação, esta foi utilizada por diversos clientes, tendo o A. recebido, no âmbito de tal contrato, a quantia de € 5.799,39 (Q22).

Daqui se vê que o comprador, simultaneamente com a compra e venda, não quis alterar a afectação que vinha sendo dada à embarcação - uso profissional para “charter” - até ao momento em que esta lhe fosse entregue.

Ora não parece que se deva, para os efeitos a que alude o artigo 2º da LDC, considerar, transmitida a propriedade sobre o bem adquirido mas não efectivada, por acordo, a entrega, o destino que é dado ao bem antes da entrega.

Por outras palavras, o que releva é saber o destino que, com a entrega, o adquirente pretende dar à coisa adquirida e, no caso, tudo aponta no sentido de que esse destino era a mera utilização pessoal.

A lei, como vimos, no que respeita a prazos de garantia considera o momento da entrega, não o momento em que se transmite a propriedade que, no caso da lei portuguesa, se produz com a celebração da compra e venda.

Concluindo:

I- No contrato de compra e venda a obrigação de entrega da coisa cabe ao vendedor e ,por isso, cabe-lhe provar o cumprimento dessa obrigação (artigo 342º/2 e 879º,alínea c) do Código Civil)
II- No entanto, pedido pelo comprador indemnização correspondente ao valor de bens que foram comprados  alegadamente para substituição dos bens não entregues, o pedido improcede, por falta de nexo de causalidade, se o autor decidiu proceder a tais aquisições sem previamente solicitar ao vendedor o cumprimento da aludida obrigação.
III- Na compra e venda a presunção de conformidade consubstancia a ideia de que as mercadorias pela sua qualidade, quantidade e tipo correspondem às previstas no contrato
IV- Dessa presunção de conformidade decorre a desnecessidade de, uma vez provada a existência de defeito, se impor ainda ao comprador a prova acrescida de que tal defeito não ocorreu supervenientemente à compra e venda
V- Incumbe, assim, ao vendedor o ónus de provar ou que o comprador sabia, quando comprou, da não conformidade ou que foi ele quem deu causa ao defeito (artigo 342º/2 do Código Civil)
VI- A circunstância de o comprador de um determinado bem o ceder, transitoriamente e num dado momento, a terceiro, para uso profissional deste, não retira em princípio à compra e venda já celebrada a sua natureza de contrato de consumo; a destinação da coisa a uso pessoal, não profissional, não exclui que o adquirente possa tirar proveito económico, por via da cedência a terceiro, da coisa adquirida
VII - Releva para se considerar se o bem, fornecido é destinado a uso não profissional o uso que o adquirente pretende dar à coisa após a sua entrega, não relevando, assim, o uso que lhe foi dado em momento anterior à entrega posto que ulterior à transmissão da propriedade; por isso, continuando a coisa vendida em poder do vendedor que, por acordo com o comprador e por período determinado, transitoriamente, continuou ainda a utilizá-la comercialmente, uma tal situação não exclui o comprador da categoria de consumidor nos termos do artigo 2º da Lei de Defesa do Consumidor (Lei nº 24/96, de 31 de Julho)

Decisão: nega-se provimento a ambos os recursos confirmando-se a decisão recorrida.

Custas pelos recorrentes

Lisboa, 8 de Junho de 2006

(Salazar Casanova)
(Silva Santos)
(Bruto da Costa)