1. Em sentido amplo, o reconhecimento abrange, entre outras, três realidades essencialmente distintas: a) o reconhecimento fotográfico; b) o reconhecimento propriamente dito, regulados nos arts. 147º e 149º, CPP; c) a identificação do arguido em audiência.
2. O reconhecimento fotográfico não é, verdadeiramente, um meio de prova, mas um ponto de partida para a investigação propriamente dita: em si mesmo, o seu valor probatório é, em princípio, nulo.
3. As linhas de investigação abertas pelo reconhecimento fotográfico têm que conduzir, posteriormente, a verdadeiras provas, nomeadamente à prova por reconhecimento (em sentido técnico) – em estrita observância do formalismo descrito nos arts. 147º e 149º, CPP – e às declarações em audiência (agora sujeitas ao princípio do contraditório) daquele(s) que tenha(m) feito a identificação.
4. Não constituindo o reconhecimento fotográfico um meio de prova, propriamente dito, será, em princípio, insusceptível de inquinar – no plano da validade – os meios probatórios que nele radiquem.
5. Mas a força probatória das provas posteriormente produzidas não poderá deixar de considerar-se (fortemente) condicionada pelas circunstâncias – e pela forma – em que tenha decorrido a identificação fotográfica.
- Na sentença recorrida não se explica a razão pela qual, estando em causa compras efectuadas em cinco lojas, com alegada utilização de cartão de crédito alheio, a arguida foi condenada pela prática de um único crime de falsificação, pelo que também por isto se configura a nulidade da se tença, por falta de fundamentação, ou o vício previsto no art. 410º, nº 2, b), CPP.
3. A arguida também interpôs recurso do despacho de 10/10/2003, proferido no decurso da audiência, de indeferimento da requerida junção aos autos de todas as fotografias tiradas pela queixosa (a sete funcionários do hospital em que esta e a arguida trabalhavam), aquando do momento em que tirou as já constantes dos autos, e respectivos negativos.
4. Na sua resposta, a Digna Magistrada do Ministério Público pronuncia-se no sentido do improvimento do recurso.
5. Cumpre decidir.
9. O reconhecimento é, como se sabe, um meio de prova especialmente problemático e falível quando não sejam tomadas as devidas precauções.
Por isso mesmo, as respectivas formalidades são estabelecidas na lei sob pena de invalidade (nº 4 do art. 147º, CPP).
A este propósito, escreve-se, paradigmaticamente, no Ac. de 12/05/04 desta 3ª Secção da Relação de Lisboa (proc. 2691/2004-3):
A existência de um reconhecimento positivo é um dos meios de prova que, quer entre nós, quer em muitos países estrangeiros, mais influencia os tribunais no sentido de afirmar a culpabilidade da pessoa assim identificada, sobretudo quando a pessoa que efectuou o reconhecimento afirma a sua convicção sem margem para dúvidas.
Essa credibilidade tem sido, porém, contrariada pelos numerosos estudos empíricos que têm sido realizados, sobretudo nestes últimos 30 anos, e mesmo por relatórios elaborados por responsáveis de diversos países, podendo dizer-se que este é um dos meios de prova mais problemáticos e de resultados menos fiáveis. E isso mesmo que se tenham cumprido rigorosamente as formalidades estabelecidas na nossa ou noutras legislações e que mais não visam do que diminuir a margem de erro desse meio de prova.
É que, como os trabalhos empíricos têm revelado, a testemunha ocular tende a fazer um julgamento relativo, mesmo quando avisada de que o suspeito pode não se encontrar entre as pessoas que compõem o painel, procurando localizar a pessoa que mais semelhanças apresente com o agente do crime.
Para além disso, a identificação que faz pode facilmente ser influenciada por inúmeros factores, entre os quais o comportamento, consciente ou inconsciente, da pessoa que orienta a diligência (2). O próprio grau de confiança que a testemunha ocular tem na precisão da identificação efectuada dependente mais do comportamento, muitas vezes corroborante, do investigador que dirigiu as operações e da confirmação do seu veredicto por outras testemunhas do que da nitidez das suas próprias recordações do cenário do crime. Ao contrário do que muitas vezes se pensa, confiança e precisão não são vectores necessariamente relacionados. Mais importante do que conhecer o grau de confiança manifestado pela testemunha é averiguar as condições em que ela observou o agente do crime e o tempo de que ela dispôs para o fazer.
Por isso mesmo, muitos psicólogos aconselham que, para se incrementar a fiabilidade deste meio de prova, sobretudo quando ele for o único ou o decisivo elemento da identificação de um suspeito, se adoptem especiais cautelas, como sejam:
- O alargamento do número de pessoas que integram o painel de reconhecimento;
- A exigência de que a pessoa que conduz o reconhecimento pessoal não tenha conhecimento da identidade do suspeito;
- A exigência de que a testemunha ocular seja previamente informada de que o suspeito pode não se encontrar entre as pessoas que compõem o painel de reconhecimento;
- A exigência de que todas as pessoas que compõem o painel reúnam as características indicadas previamente pela testemunha, não devendo nenhuma delas apresentar, quanto a esses aspectos, nenhuma característica dissonante;
- A prévia apresentação à testemunha de um outro painel de reconhecimento em que o suspeito se não encontra para verificar se a mesma tem a propensão para efectuar um julgamento relativo.
Também López Barja de Quiroga, Tratado de Derecho Procesal Penal, Thomson – Aranzadi, p. 1041, chama a atenção para este problema:
Está empiricamente comprovado que um dos âmbitos que produz maior número de erros judiciários é o da identificação e, precisamente, devido ao número de erróneas identificações realizadas por testemunhas. Daí que devam ser utilizados todos os meios possíveis para o evitar ou, pelo menos, para reduzir “a margem de erro”. A forma de conseguir este resultado é colocando dificuldades à testemunha. Esta é a razão pela qual a LECrim (3) prevê normas relativas à forma como deve realizar-se a identificação por testemunhas, funcionado tais normas como garantias para a apreciação da prova, de tal maneira que só cumprindo-se estas normas o tribunal poderá apreciar tal prova.
10. Em sentido amplo, o reconhecimento abrange, entre outras, três realidades essencialmente distintas:
a) O reconhecimento fotográfico;
b) O reconhecimento propriamente dito, regulados nos arts. 147º e 149º, CPP (4);
c) A identificação do arguido em audiência.
11. A nossa lei processual penal não se refere ao reconhecimento fotográfico, enquanto meio de prova.
E bem, na medida em que este acto não é, verdadeiramente, um meio de prova, mas uma técnica inicial de investigação: é um ponto de partida para a investigação propriamente dita; mas, em si mesmo, o seu valor probatório é, em princípio, nulo.
Como nota López Barja de Quiroga, ob. cit., p. 1038:
A fotografia não é um meio absoluto de identificação, pelo que se afirma que ninguém pode ser condenado por ter sido identificado através de uma fotografia. (…) Isso não quer dizer que não seja um método adequado de investigação. De facto, pode servir para iniciar uma linha de investigação, mas não constitui uma prova. (…) Quando uma pessoa tenha sido identificada por meio de fotografia, deverá realizar-se sempre um “reconhecimento em painel” ( “en rueda”) posteriormente.
A LECrim não prevê o sistema da fotografia, mas é amplamente admitido pela jurisprudência como meio de investigação. Esta situação suscita o problema das garantias que devem rodear a prática de tal identificação. Afirma-se unânime e rotundamente que devem seguir-se os mesmos requisitos que se exigem para a validade do “reconhecimento em paine””. Assim, por exemplo, não é admissível que se mostre uma única fotografia do suspeito. É preciso que exiba a fotografia do suspeito em conjunto com uma ampla variedade de outras fotos de pessoas de características similares.
O problema que então se suscita é o da sua validade quando não sejam cumpridos os ditos requisitos. Evidentemente, a diligência é nula, mas também o será qualquer diligência de identificação posteriormente realizada? Noutros termos, tal identificação viciará as identificações posteriores que com todas as garantias se realizem depois? A esta pergunta a jurisprudência responde assinalando que efectivamente uma diligência pode viciar as posteriores, embora não caiba uma resposta apriorística que só é possível em face das circunstâncias do caso.
Mais incisivo é Jaime de Lamo Rubio, José Francisco Moratalla, António Villar e Joaquin Vallina, in El proceso penal, Bosch, p. 150, nota 26, para o qual o reconhecimento fotográfico que não se completa com a diligência de reconhecimento propriamente dito constitui uma corruptela inadmissível e desnecessária, pois nada impede que se proceda com total ortodoxia, com observância do formalismo legal.
Em suma: as linhas de investigação abertas pelo reconhecimento fotográfico têm que conduzir, posteriormente, a verdadeiras provas, nomeadamente à prova por reconhecimento (em sentido técnico) – em estrita observância do formalismo descrito nos arts. 147º e 149º, CPP – e às declarações em audiência (agora sujeitas ao princípio do contraditório) daquele(s) que tenha(m) feito a identificação.
Deste modo, não constituindo o reconhecimento fotográfico um meio de prova, propriamente dito, será, em princípio, insusceptível de inquinar – no plano da validade – os meios probatórios que nele radiquem (é este o sentido da jurisprudência do Supremo Tribunal espanhol, como noticia Francisco Alonso Pérez, Meios de investigación en el processo penal, Dykinson, 2003, 157 e 171 – “que a diligência de identificação fotográfica não tenha valor probatório por si mesma, não quer dizer que vicie as identificações posteriores, através das quais se confirme a firmeza e segurança do primeiro testemunho”).
Mas é apodíctico que a força probatória das provas posteriormente produzidas não poderá deixar de considerar-se (fortemente) condicionada pelas circunstâncias – e pela forma – em que tenha decorrido a identificação fotográfica.
Em sentido contrário se pronuncia, porém, entre outros, Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, II, 1993, p. 151: “é evidente que se a testemunha tiver tido indicações prévias de quem é a pessoa (…) a identificar, nomeadamente pela prévia indicação da suspeita, o reconhecimento carecerá de valor probatório. O reconhecimento só tem valia probatória desde que substancial e formalmente se respeitem as regras de procedimento estabelecidas na lei”.
12. Como se sabe, o nosso mais Alto Tribunal tem julgado que o reconhecimento do arguido, feito por uma testemunha no decurso da audiência, não tem de obedecer ao formalismo prescrito pelo art. 147º, CPP, por se entender que este preceito legal só se aplica nas fases de inquérito e de instrução.
No mesmo sentido se vem pronunciando a generalidade da jurisprudência espanhola – cfr. Luís Alfredo de Diego Díez, Identificación fotográfica y reconocimiento en rueda del inculpado, Bosch, 2003, p. 108.
Este entendimento não suscita qualquer dúvida nos casos em que – com observância do formalismo legal – o reconhecimento já tenha tido lugar no decurso da investigação.
Em rigor, não se estará, então, perante um reconhecimento propriamente dito, mas, antes, perante um depoimento de natureza testemunhal, sujeito ao contraditório.
Mais problemática é a questão nos casos de identificação ex novo, sendo certo que é muito frequente na prática judiciária perguntar aos ofendidos e testemunhas no decurso da audiência se “reconhecem” o arguido presente.
Entendem vários autores que uma cabal eficácia probatória do reconhecimento em audiência não dispensará a observância do formalismo exigido na lei - “esta prova pode ter muita importância quando negativa, mas não tem valor de reconhecimento quando positiva, isto é, quando a testemunha declara que sim, que reconhece o arguido” (Germano Marques da Silva, ob. cit., II, p. 150).
Tratando-se de uma diligência probatória atípica e distinta do reconhecimento em sentido técnico (mais adequado às fases do inquérito e da instrução e pouco consentâneo com o formalismo da audiência), que não é expressamente vedada pela lei processual penal, propendemos para considerar que não lhe é aplicável a sanção cominada no nº 4 do citado art. 147º.
Mas uma coisa é certa: a força probatória de tal diligência não pode deixar de considerar-se fortemente condicionada pelos termos – mais ou menos rigorosos – em que decorra.
13. In casu, o reconhecimento fotográfico foi posteriormente seguido de um verdadeiro reconhecimento, realizado com observância do formalismo descrito no art. 147º, CPP (cfr. “auto de reconhecimento” de fls. 310), pelo que, à luz do critério exposto, nenhum problema se suscita no plano da validade formal deste.
O mesmo acontece, pelas razões também já expostas, no tocante aos depoimentos das testemunhas que, em audiência, declararam “reconhecer” a recorrente.
(b) – Quanto à impugnação da matéria de facto.
14. Para além do constante de supra nº 7, em termos de elementos probatórios constantes dos autos, há a realçar, no fundamental, o seguinte:
Os factos em causa terão ocorrido no dia 23/10/2001.
Em data indeterminada, mas compreendida entre 31/10/2001 e 14/11/2001 (como decorre do documento de fls. 10-12, dirigido pela queixosa ao Comandante da 26ª Esquadra da PSP de Lisboa, e das transcritas declarações da mesma na audiência), a queixosa dirigiu-se às lojas mencionadas na factualidade dada como provada.
Em duas delas – na “Cenoura” e na “Mango” –, uma das empregadas (as testemunhas AAs…, respectivamente) descreveu-lhe terem sido efectuadas compras dias antes por uma senhora com as características da arguida.
Posteriormente (não se sabe quantos dias depois, mas antes do dia 14/11/2001), a queixosa voltou às mesmas lojas, com várias fotografias de funcionários do piso 7 do Hospital Egas Moniz, tendo aquelas lojistas identificado a arguida, através de tais fotografias, como sendo a pessoa que, nas circunstâncias descritas na factualidade dada como provada, aí efectuou compras.
Como consta do “auto de reconhecimento” de fls. 310, em 25/1/2002, as testemunhas A… e A… declararam reconhecer a arguida, “sem qualquer dúvida”, como autora dos factos em causa, nos termos constantes do mesmo auto (a arguida encontrava-se juntamente com três agentes da PSP, todas trajando à civil, e com “compleição física e fisionomia quase idêntica à da arguida”).
Na audiência, como decorre da transcrição da prova aí produzida, a queixosa relatou todas as diligências que fez no âmbito da “investigação” dos factos, tendo as referidas testemunhas relatado, por seu turno, os termos em que decorreram os seus contactos com a queixosa (cfr. fls. 524 – 538 e 507 – 523) e com a arguida (que também identificaram na audiência “sem dúvidas nenhumas” e com “certeza”).
Por sua vez, a arguida negou categoricamente a prática dos factos.
15. Antes do mais, refira-se que, apesar de se ter dado como provado que a arguida forçou a fechadura do cacifo da sua colega A… antes de se apoderar da quantia de 10 mil escudos, de cartão Multibanco, duma carteira no valor de 9 mil escudos e de diversa documentação pertencente aquela onde se incluía um cartão de crédito UNIBANCO, a verdade é que a própria queixosa admite ter-se esquecido de fechar a porta do cacifo (fls. 478).
Neste contexto, é patente, pois, que inexiste prova objectivamente suficiente para dar como provado que a arguida forçou a fechadura do cacifo da sua colega.
Por outro lado:
Como vimos, no plano da validade formal, nenhum problema se suscita quanto ao reconhecimento a que se refere o auto de fls. 310 ou no tocante aos depoimentos das testemunhas que, em audiência, declararam “reconhecer” a recorrente.
Todavia, é indiscutível que a força probatória de tais diligências não pode deixar de considerar-se fortemente diminuída pelos muito sui generis termos em que teve lugar o reconhecimento fotográfico e demais diligências particularmente levadas a cabo pela queixosa a título de investigação, em termos que em absoluto nos impedem de cabalmente aferir do grau de autenticidade, segurança, sugestividade, coerência e espontaneidade dos depoimentos prestados pelas testemunhas AAs… (e, bem assim, dos reconhecimentos que fizeram em 25/1/2002, cerca de três meses após os factos e já depois do grande movimento que todos ao anos caracteriza a época do Natal).
Na verdade: o reconhecimento fotográfico foi antecedido do pré-reconhecimento verbal de uma pessoa que corresponde ao perfil físico da arguida; como decorreram as conversas preliminares entre as testemunhas e a queixosa? Na condução dos interrogatórios, que método utilizou a queixosa? [Sugestivo? Insinuador? Expositivo? Exploratório?].
Também não se percebe, à luz dos depoimentos prestados na audiência pela queixosa e pelas testemunhas A… e A…, como é que – aquando do primeiro contacto entre estas e aquela, sem a exibição de qualquer fotografia da arguida – a conversa foi conduzida por forma a chegar a uma “senhora loira, alta, bem falante”. Vários dias depois das compras terem sido efectuadas, em lojas em que diariamente entrarão dezenas de pessoas, que elementos foram introduzidos nas conversas susceptíveis de levar a tal conclusão? Que elementos permitiram caracterizar tão diferenciadamente tais compras e, depois, estabelecer a ligação entre estas e a “senhora loira”? A queixosa refere no seu depoimento que tal elemento reside no facto de as compras terem sido efectuadas já à hora do fecho das lojas, mas não nos parece que se trate de uma circunstância especialmente anómala…
Decorre ainda do depoimento da queixosa (fls. 476 – 477) que a sua “investigação” terá sido, de alguma forma, estimulada pela directora do serviço, D…, pessoa que tinha relações problemáticas com a arguida (cfr. declarações da arguida a fls. 470 e da testemunha I…, a fls. 495 – 496).
Por fim, refira-se que o exame pericial à escrita da arguida se revelou inconclusivo e, por outra banda, que não pode subvalorizar-se o facto de a arguida ser uma médica com responsabilidades, com 43 anos à data dos factos (5), sem antecedentes criminais e sem que quem quer que fosse lhe apontasse qualquer distúrbio ao nível da personalidade, tudo a reforçar o défice de verosimilhança que nos factos e na prova se patenteia.
16. Neste contexto, afigura-se-nos, tendo em conta o princípio in dubio pro reo, não poder considerar-se suficientemente Ilidida a presunção de inocência da arguida.
Sem necessidade de mais considerações, e com prejuízo da apreciação das demais questões suscitadas (nomeadamente no recurso interlocutório), impõe-se, pois, a absolvição da recorrente.
Conceição Gomes
Teresa Féria
_________________
(1).-Como todos os demais que se citarem sem menção em contrário.
(2).-Todos os sublinhados e destaques são nossos.
(3).-Ley de enjuiciamento criminal.
(4).-Designado no direito espanhol por reconocimiento en rueda.
(5).-Consta dos autos que nasceu em 15/8/1958.