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CRIME DE ABUSO SEXUAL DE CRIANÇA
CRIME CONTINUADO
Sumário
I - Se apesar da existência de 3 actos ilícitos típicos do crime de abuso sexual de criança, praticados com a mesma pessoa, ocorre uma condição exterior ao arguido que facilitou a conduta e existe uma unidade resolutiva com conexão temporal e especial sendo o mesmo o modo de actuação, ocorre um único crime continuado. II - Numa situação de concorrência entre as penas de substituição dos artºs 45º e 58º CP, os critérios legais de adequação e suficiência, de acordo com as necessidades de prevenção especial positiva, impõem, face ao principio da proporcionalidade, que o tribunal escolha a pena de substituição menos grave.
Texto Integral
Rec. Penal 1779/13.5JAPRT.P1 Comarca do Porto Instância Central
Acordam, em Conferência, no Tribunal da Relação do Porto.
2ª Secção criminal.
I-Relatório.
No Processo Comum Coletivo n.º 1779/13.5JAPRT da Instância Central, 1ª secção criminal, juiz 4, foi submetido a julgamento o arguido B…, nascido a 18 de Agosto de 1993, melhor identificado na sentença a fls. 595.
O acórdão de 23 de Fevereiro de 2015, depositada no mesmo dia, tem o seguinte dispositivo:
«Em julgar a acusação procedente, nos moldes expostos, e, em consequência, condenar o arguido B… pelo cometimento, em autoria material, de um crime, agravado, de abuso sexual de criança, p. e p. pelos artigos 171º, nºs 1 e 2, e 177º, nº4, ambos do Código Penal, na pena de 3 (três) anos de prisão, todavia, suspensa na sua execução, por igual período de tempo, com regime de prova, assente num plano de readaptação social com incidência no acompanhamento psicológico ou, se necessário se revelar, psiquiátrico, e que deverá privilegiar uma intervenção atenta, direcionada para as questões relacionadas da sexualidade.
Mais condenam o arguido B… no pagamento das custas do processo, fixando-se em 4 (quatro) UC a taxa de justiça devida pelo mesmo.
(…)»
*
Inconformado com a decisão, o Ministério Público interpôs recurso apresentando a motivação de fls. 615 a 664, que remata com as seguintes conclusões:
«1- O arguido B… foi condenado na douta decisão recorrida pela prática de um crime de abuso sexual de criança agravado, p. e p. pelos artigos 171º, nºs 1 e 2, e 177º, nº4, ambos do Código Penal, na pena de 3 anos de prisão, suspensa na sua execução, com regime de prova.
2- Em aplicação das atenuações previstas nos artºs 73º e 74º do Código Penal, por força do regime penal especial para jovens previsto no Decreto-Lei nº401/82 de 23 de Setembro, passou-se para um limite máximo de pena aplicável reduzido de 1/3 e um limite mínimo reduzido a 1/5, obtendo-se, assim, uma moldura penal abstractamente aplicável de 10 meses e 24 dias de prisão a 10 anos de prisão.
Foi decidido suspender a execução da pena por igual período de tempo, “sujeita a regime de prova assente num plano de readaptação social com incidência no acompanhamento psicológico ou, se necessário se revelar, psiquiátrico e que deverá privilegiar uma intervenção atenta direcionada para as questões relacionais e da sexualidade.”
3- Não obstante a bem fundada decisão em matéria de facto constante da douta decisão recorrida, discorda-se da mesma, no seu ponto III, quanto ao enquadramento jurídico-penal, quando considera somente um crime de abuso sexual de criança e omite a consideração da pluralidade de crimes verificada de acordo com os factos provados;
4- Dos factos provados nos pontos j) e k); l) e m) e n) e o) da matéria de facto provada no douto acórdão, supra citados, decorre que o arguido cometeu os actos de abuso sexual sobre a menor C… – de relacionamento sexual vaginal – por três vezes, em dias diversos da segunda quinzena de Agosto de 2013, pelo que os mesmos não deveriam ter sido subsumidos numa unidade criminosa, o que não coincide com os exatos contornos da conduta do arguido, tal como resultante do julgamento.
5- Em casos similares de prática do crime de abuso sexual de crianças, vem a Jurisprudência fixando como o enquadramento jurídico-penal mais adequado a essa realidade criminosa muito específica a da pluralidade de crimes, ainda que referentes à mesma vítima, cfr. Ac. desse TRP de 15.05.2013 – Proc. 1209/10.4JAPRT.P1 (dgsi.pt);
6- Nesse quadro, é de defender que, no caso concreto, ocorreu uma renovação da vontade do arguido e da sua decisão de violar a lei penal e o bem jurídico tutelado no tipo em causa, pois em cada uma das três ocasiões narradas na decisão de facto, o arguido formulou a sua resolução criminosa de abusar da menor C…, e em cada vez ocorreu uma autónoma lesão do bem jurídico em causa.
7- Com efeito, a matéria de facto provada nem sequer apresenta dificuldades práticas na determinação do número de vezes que o arguido manteve relacionamento sexual com a menor – que foram indubitavelmente três – sendo certo que então bem sabia o arguido que a menor tinha 12 anos de idade e se determinou, de modo livre e consciente, sem usar preservativo, a manter com ela os comportamentos sexuais descritos, pelo que preencheu de cada vez os elementos objetivos e subjetivos de um crime de abuso sexual de criança.
8- A actuação do arguido, embora aproveitando o mesmo contexto situacional que lhe permitiu o fácil acesso à intimidade da menor, foi necessariamente comandado por uma diversa resolução e traduziu-se numa autónoma lesão do bem jurídico protegido.
9- Efectuado o correto enquadramento jurídico da conduta do arguido, impõe-se concluir que este cometeu, em concurso real, três crimes de abuso sexual de criança, agravado, previsto e punido, cada um deles, pelo disposto no nº1 e 2, do artigo 171º e pelo nº4 do artº177º, do Código Penal.
10- Para tanto, deveria o tribunal a quo ter cumprido a comunicação a que alude o artº 358º, nºs 1 e 3 do C.P.P., por alteração da qualificação jurídica dos factos descritos na acusação, de admitir em concreto, uma vez que o Ministério Público imputou expressamente ao arguido factos concretos que se repetiram por três ocasiões, como o arguido bem sabia, e tal como veio a ser julgado provado.
11- Deste modo, ao manter a aplicação da figura da unidade criminosa à actuação do arguido tal como provada, e nem equacionando a aplicação do concurso efectivo de crimes de abuso sexual de criança, a douta decisão recorrida violou o disposto nos artºs 30º, nº 1, 171º, nºs 1 e 2, e 177º, nº4, todos do Código Penal, bem como o disposto no artº 358º, nºs 1 a 3, do C.P.P.
12 – Discorda-se ainda, no momento da escolha e medida da pena, da aplicação em benefício do arguido da atenuação decorrente do regime penal especial para jovens previsto no Decreto-Lei nº401/82 de 23 de Setembro, atenta a sua idade à data da prática dos factos.
13- Com efeito, o arguido cometeu os factos aos 19-20 anos de idade, sobre uma criança de 12 anos de idade;
14- E visou o legislador, com o regime penal especial para jovens previsto no Decreto-Lei nº401/82 de 23 de Setembro, “consagrar um tratamento diferenciado que permita uma adequada individualização das reacções da sociedade” quanto aos jovens delinquentes daquela faixa etária.
15- Releva em concreto a previsão legal do artº 4º daquele diploma legal, segundo a qual: “Se for aplicável pena de prisão, deve o juiz atenuar especialmente a pena nos termos dos artigos 73.º e 74.º do Código Penal, quando tiver sérias razões para crer que da atenuação resultem vantagens para a reinserção social do jovem condenado.”
16- Mas, atentando-se no elenco dos factos provados, bem como na fundamentação da escolha e da medida da pena, temos que o tribunal a quo fez prevalecer a idade e desconsiderou a existência de antecedentes criminais do arguido, designadamente por crime de abuso sexual de criança antes praticado, e não valorou suficientemente quer as exigências de prevenção geral, negativa e positiva, quer a personalidade especialmente desvaliosa revelada pelo arguido através da prática dos factos criminosos abusivos em causa, a qual não se reduz nem se pode equacionar tão-só como sendo o típico perfil de um jovem delinquente, numa experimentação de desviância própria da idade.
17- De facto, a personalidade revelada nos factos, pela sua gravidade, modo de actuação sobre uma menina de 12 anos de idade, a que teve especial acesso íntimo em virtude da confiança da sua guardiã, a irmã mais velha, bem como a grave violação do bem juridico-penal eminentemente pessoal da autodeterminação sexual da criança, mostra-se “especialmente desvaliosa” e “vincadamente propensa” a um comportamento endogenamente abusivo ao nível sexual, concluindo-se necessariamente que não está o arguido permeável a colher o benefício ressocializador resultante de uma sanção mais benevolente por parte do sistema de justiça.
18- Antes se impõe, quanto a ele, uma penalização que implique a privação da liberdade e um claro juízo de censura e reprovação por parte da sociedade, que permita a tomada de consciência necessária à ressocialização neste caso, pois não demonstrou o arguido nem arrependimento, nem qualquer outro sinal de respeito ou afecto pela menor vítima dos seus actos.
19- O tribunal a quo não apreciou de forma rigorosa nem corretamente as elevadas exigências de prevenção geral em concreto verificadas, e mostrou-se muito pouco sensível às consequências dos factos para a vítima, que engravidou aos 12 anos em virtude dos actos perpetrados pelo arguido e foi sujeita a IVG, processo necessariamente traumático para uma criança.
20- De igual modo, desvalorizaram-se as exigências de prevenção especial, omitindo-se a análise dos factores concretos relacionados com as potencialidades de reinserção social e de reequilíbrio pessoal do arguido, sendo que a favor deste só a sua juventude milita – e nada mais.
21- O arguido tem já um percurso de condenações penais, uma delas em pena suspensa pela prática de crime da mesma natureza, com regime de prova em cumprimento, o que evidencia uma personalidade imune quer à pena, quer aos efeitos nocivos para os outros de uma conduta sexualmente abusiva repetida, como neste caso, sobre uma menina de 12 anos, a que teve um especial acesso na intimidade do lar desta e a quem causou a gravidez e a sujeição a interrupção voluntária da gravidez
22- Foi com base na sua juventude que o colectivo decidiu aplicar a atenuação especial referida, entendendo que desta resultariam vantagens para a reinserção social do arguido.
23- Faltou aqui ponderar melhor o tipo de crime em causa e o que este revela de uma personalidade jovem, que expressou a sua sexualidade do modo abusivo e lesivo descrito, sendo que a questão premente e prévia à sua ressocialização é a exigência de conformar e reconfigurar a sua personalidade a esse nível.
24- Tal juízo fundado permitiria afastar, de forma legítima, a aplicação do referido regime especial para jovens delinquentes, que não foi feito para que beneficie de atenuação quem, não obstante a idade, evidencia uma personalidade imune aos efeitos nocivos de conduta sexualmente abusiva repetida sobre uma criança, que engravidou, tal como demonstrado em concreto pelo arguido.
25- Também não se podem descurar, como se fez na decisão recorrida, as invocadas exigências de prevenção geral, atenta a gravidade do ilícito, a necessidade de reintegração e reafirmação do bem jurídico-penal violado, para garantir a satisfação das expectativas da comunidade no cumprimento da lei e tutela dos bens jurídicos, em especial quanto a crime tão grave contra uma criança de 12 anos imatura e na intimidade da sua casa.
26- Assim, afastando-se o referido regime penal especial, a moldura penal abstractamente aplicável a cada um dos crimes provados deveria pois manter-se a resultante dos artºs 171º, nº1 e 2, e 177º, nº1, al.b), do Código Penal – de pena de prisão de 4 anos e 6 meses a 15 anos.
27- Nesse quadro legal, mesmo que não se optando pela pluralidade de infracções cometidas em concurso real, não poderá a pena a final aplicada ao arguido, pela prática do crime de abuso sexual de criança agravado, ser inferior a 6 anos de prisão;
28- Nessa medida, não caberá a consideração da aplicação do regime da suspensão da execução da pena, por deixar de se verificar o pressuposto formal do artº50º, nº1, do Código Penal.
29- Mas ainda que se entenda ser de manter a aplicação daquele regime penal especial para jovens e consequente atenuação especial da moldura penal aplicável, defende-se que, em caso algum, deverá o arguido beneficiar ainda, ao contrário do que decidiu o tribunal a quo, do voto de confiança traduzido na convicção de que a mera ameaça da pena como medida com reflexos sobre o seu comportamento futuro evitará a repetição de comportamentos delituosos.
30- Não deveria, mesmo nessa hipótese, optar-se pela suspensão da execução da pena de prisão, nos termos do artº 50º, nº1, do Código Penal, não se podendo concordar com a conclusão de que a ameaça da pena de prisão e a simples censura dos factos são suficientes para realizar adequadamente as finalidades da punição, pois as elevadíssimas e prementes exigências de prevenção geral e integração se impõem e sobrelevam sobre o facto de o arguido ser jovem;
31- Carecendo a decisão recorrida, nesta parte, de fundamentação mínima, designadamente quanto às premissas factuais em que assenta aquela conclusão de prognose favorável à reinserção social do arguido em liberdade e quanto à consideração das conclusões do relatório pericial da perícia em psicologia forense a que o arguido foi submetido nos autos;
32- Não se pode perder de vista que o arguido agiu com dolo direto e intenso, que actuou sobre uma criança de 12 anos imatura, abusando da permissão para se acolher na residência de família dela, sendo que não demonstrou qualquer arrependimento sincero ou um verdadeiro juízo de auto-censura em julgamento.
33- Nesta perspectiva, somente a pena de prisão efectiva será proporcional aos factos e deve ser adoptada em concreto como a reacção justa face à conduta do arguido, à personalidade por si revelada, ao seu percurso anterior e posterior aos factos, atendendo ainda à moldura penal abstractamente aplicável.
34- Não se verificam, pois, em concreto, os pressupostos materiais de que a lei faz depender a suspensão da execução da pena, instituto que tem que traduzir um juízo de confiança do tribunal no potencial de mudança e de ressocialização do arguido – juízo este que o arguido recorrente não merece, nem nada permite fundá-lo concretamente de modo favorável ao arguido, no sentido de que bastará a censura do facto e a ameaça da prisão para o afastar da prática de novos crimes;
35- Acresce que, em termos de prevenção geral de integração, o tipo de crime em causa e a persistência e gravidade do mesmo na sociedade reclamam uma pena de prisão efectiva, sem o que a tutela dos bens jurídicos violados e as expectativas comunitárias em ver punidos tais crimes de forma veemente ficariam irremediavelmente postas em cheque.
36- Assim sendo, ao decidir como referido quanto à determinação concreta da pena e sua escolha, o tribunal a quo violou, antes do mais, o disposto no artº40º, nº1, do Código Penal, e no artº 4º do D/L nº401/82 de 23/09, bem como o disposto nos artºs 50º, nº1, 70º e 71º, todos do Código Penal.
37- Sendo certo que, por falta de fundamentação da decisão de aplicação da suspensão da execução da pena foi ainda violado o disposto no artº 374º, nº2, do C.P.P., pois que a exigência de fundamentação abrange os motivos de facto e de direito que fundamentam este segmento da decisão condenatória.
38- A falta de fundamentação, nesta parte, constitui uma nulidade do acórdão, nos termos do disposto no artº 379º, nº1, al. a), do C.P.P., a qual ora se invoca expressamente, nos termos do disposto no nº2 do mesmo normativo.
Termina pedindo a revogação parcial da decisão recorrida, de modo a
- condenar o arguido pela prática de três crimes de abuso sexual de criança agravado, em concurso real;
- não aplicar ao arguido o regime penal especial para jovens, com consequente atenuação especial;
- não suspender a execução da pena de prisão, proferindo-se decisão que determine a aplicação de pena efectiva de prisão ao arguido.»
*
O recurso foi admitido por despacho constante de fls. 665.
O arguido ofereceu resposta na qual pugnou pela negação de provimento ao recurso.
Nesta Relação, o Excelentíssimo Procurador-Geral Adjunto Público emitiu Parecer no sentido da procedência do recurso.
Foi cumprido o artigo 417º, n.º 2, do Código de Processo Penal.
Colhidos os vistos, e realizada a conferência, cumpre apreciar e decidir.
*
II- Fundamentação.
Como é jurisprudência assente, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso – vícios decisórios e nulidades referidas no artigo 410.º, n.º s 2 e 3, do Código de Processo Penal – é pelas conclusões que o recorrente extrai da motivação apresentada, em que sintetiza as razões do pedido (artigo 412.º, n.º 1, do CPP), que se delimita o objecto do recurso e os poderes de cognição do Tribunal Superior. 1.-Questões a decidir.
Face às conclusões extraídas pelo recorrente da motivação apresentada, pela ordem em que são enunciadas, são as seguintes as questões a apreciar e decidir:
- Averiguar se o arguido praticou um ou três crimes.
- Aplicação do regime especial para jovens.
- Medida concreta da pena de prisão.
- Suspensão da execução da pena de prisão.
*
2. Enumeração dos factos provados, não provados e respectiva motivação, tal como constam da sentença sob recurso.
«A) Factos provados:
Discutida a causa, resultaram provados os seguintes factos com relevo para a decisão a proferir:
a) A menor C…, nascida a 11 de Fevereiro de 2001 foi, por decisão de 3 de Dezembro de 2008, confiada à guarda e cuidados da sua irmã, D….
b) Reside, desde então, na Rua …, entrada .., casa ..., nesta cidade do Porto.
c) Em tal residência mora também a irmã E….
d) No verão de 2013 a menor conheceu o arguido, que era irmão do namorado da sua irmã B….
e) Por tal, o arguido passou a conviver com a menor com bastante frequência e a frequentar a casa.
f) Em Agosto de 2013 o arguido e o seu irmão, que até então habitavam numa pensão, passaram a residir na habitação da menor;
g) Em data não apurada desse mês de Agosto, o arguido e a menor iniciaram uma relação de namoro;
h) Na sequência de tal relação de namoro, o arguido manteve contactos de natureza íntima com a menor, por várias vezes, beijando-a na boca e apalpando-a no rabo e nas pernas.
i) Na segunda quinzena de Agosto de 2013, o arguido pediu à menor para manter consigo relações sexuais, ao que a mesma acedeu;
j) Assim, em data não concretamente apurada mas situada na segunda quinzena desse mês de Agosto de 2013, no interior da residência da menor, o arguido e esta deslocaram-se para o quarto da mesma, despiram-se da cinta para baixo e de seguida a menor deitou-se na cama, de barriga para cima, tendo o arguido se colocado sobre a mesma e introduzido o pénis erecto na sua vagina, sem ter previamente colocado preservativo;
k) Como a menor referiu que estava a sentir dores, o arguido retirou o pénis da vagina da menor, tendo ejaculado nos lençóis.
l) Decorridos dois dias, o arguido e a menor deslocaram-se novamente para o quarto desta, voltaram a despir-se da cinta para baixo e de seguida a menor deitou-se na cama, de barriga para cima, tendo o arguido se colocado sobre a mesma e introduzido o pénis erecto na sua vagina, sem ter previamente colocado preservativo;
m) Como a menor referiu que estava a sentir dores o arguido retirou o pénis da vagina da menor, tendo ejaculado nos lençóis;
n) No dia 22 de Agosto de 2013, mais uma vez, ao final da tarde, o arguido e a menor deslocaram-se novamente para o quarto desta, voltaram a despir-se da cinta para baixo e de seguida a menor deitou-se na cama, de barriga para cima, tendo o arguido se colocado sobre a mesma e introduzido o pénis erecto na sua vagina, sem ter previamente colocado preservativo, onde ejaculou;
o) Na sequência de tal a menor teve um sangramento;
p) Das relações mantidas com o arguido resultou gravidez para a menor C….
q) No dia 28.10.2013 a menor foi submetida a interrupção voluntária da gravidez medicamente assistida na F…;
r) Realizados exames comparativos de DNA entre os restos embrionários resultantes da interrupção voluntária da gravidez e as zaragotas bocais recolhidas ao arguido, concluiu-se por uma probabilidade de 99,993% pela paternidade por parte do arguido relativamente a tais restos embrionários;
s) O arguido manteve relações sexuais, de cópula completa, com a menor C… sabendo que a mesma tinha apenas 12 anos de idade;
t) O arguido praticou tais actos na ausência da irmã da menor, a quem a mesma estava confiada, aproveitando-se assim da sua ingenuidade e vulnerabilidade;
u) O arguido decidiu manter relações sexuais com a menor, sabendo que a mesma ainda não possuía a maturidade e os conhecimentos suficientes para iniciar a sua vida sexual e se auto-determinar nessa matéria, o que concretizou;
v) O arguido decidiu não usar preservativo bem sabendo que por via da sua conduta a menor poderia vir a engravidar, como efectivamente sucedeu;
w) Ao atuar da forma acabada de descrever nas antecedentes alíneas, fê-lo o arguido com o propósito de satisfazer os seus instintos libidinosos, sujeitando a menor, cuja idade bem conhecia, a atos que sabia serem ofensivos, humilhantes e prejudiciais para o seu normal crescimento e para o são desenvolvimento da sua personalidade;
x) O arguido agiu de forma livre, deliberada e consciente, sabendo que essas suas condutas eram proibidas e punidas por lei penal;
y) Sobre a história de vida e as condições pessoais do arguido B… apurou-se que:
- O seu desenvolvimento e do seu irmão gémeo (gémeos dizigóticos) decorreu associada a acontecimentos vivenciais fortemente desestruturantes. Os progenitores teriam problemática toxicodependente, tendo a progenitora vindo a falecer quando o arguido tinha apenas 5 anos, sendo que até esta idade B… e o irmão terão vivido condicionados pela vivência dos progenitores em torno dos consumos e suas dinâmicas, inclusive envolvendo a prática de prostituição por parte da progenitora. Após tal acontecimento o progenitor abandonou os menores, tendo estes ficado alegadamente junto de um casal que residia em instituição de apoio a toxicodependentes, L…, onde maioritariamente viviam adultos.
- Aos 10 anos de idade o arguido e o irmão foram acolhidos pelo avô materno (mecânico) e sua companheira, residentes …. No entanto, a vivência naquele núcleo familiar foi marcada por dificuldades de adaptação às regras e supervisão exercida, sendo utilizadas frequentemente estratégias punitivas físicas nomeadamente por parte da companheira do avô. Neste período, e por isso, era frequente o arguido dormir com o irmão na rua e passar fome porque a companheira do avô não lhes permitia entrar em casa quando estes chegavam fora dos horários determinados.
- O arguido frequentou o ensino regular, tendo concluído o 6º ano, com algumas retenções. Ao nível comportamental registou alguns processos disciplinares, nomeadamente por não respeitar as regras dentro e fora da sala de aula, envolvendo-se em condutas desajustadas, quer perturbando o funcionamento das aulas, quer revelando comportamentos desadequados no espaço de recreio junto dos colegas, envolvendo-se em distúrbios e brigas. Esta trajetória determinou a intervenção da Comissão de Proteção de Crianças e Jovens, vindo ambos irmãos a ser institucionalizados, com cerca de 14 anos de idade; no entanto, dadas as frequentes fugas e desrespeito pelas regras da instituição onde se encontravam, acabaram por abandonar definitivamente aquela instituição passado alguns meses, reintegrando o agregado do avô materno. Neste período, assim como já anteriormente, acompanhava com grupos de pares desviantes, com elementos mais velhos, envolvendo-se em condutas desviantes e criminais juntamente com estes indivíduos, a partir de cerca dos 16 anos de idade.
- Depois de abandonar a escola, manteve atividade como padeiro, durante cerca de 2 ou 3 anos, em estabelecimento de amigos do avô, sem qualquer vínculo laboral formal, vindo a abandonar o posto de trabalho quando saiu de casa do avô. Desde então não teve outras experiências profissionais de relevo. O relacionamento com o avô e companheira deste foi-se deteriorando progressivamente, atendendo à dificuldade do avô em controlar e supervisionar os comportamentos do arguido e do irmão, bem como face à resistência do arguido em aceitar e acatar as regras impostas, situação que frequentemente levava a conflitos no seio deste núcleo.
- O B… e o irmão passaram a gerir o seu quotidiano de forma autónoma e desestruturada, sem qualquer tipo de ocupação formativa ou profissional, pernoitando em casa de amigos e subsistindo de expedientes, por vezes ilegais. Viveu alguns meses em Tomar, em casa de uma prima, decidindo deslocar-se para o Porto, com o irmão, por considerar que naquela zona “já estava muito referenciado pelas pessoas e polícia” (sic). Vieram viver para a cidade do Porto no início de 2013 porque tinha um relacionamento afetivo com uma pessoa que residia nesta cidade e que o auxiliava financeiramente.
- À data dos factos em apreço nos autos, o arguido estava na cidade do Porto, vivendo maioritariamente em pensões e quartos arrendados com o irmão, com quem mantém um vínculo afetivo forte, registando também vivência como sem-abrigo, sem exercer qualquer tipo de atividade profissional ou semelhante desde então. Beneficiava de apoio alimentar, fazendo as refeições na instituição “K…”, onde entretanto deixou de comparecer.
- Encontra-se inscrito no Centro de Emprego e viu deferido em Abril de 2015 o pedido da prestação social de rendimento social de inserção, tendo recebido dois meses de retroativos, passando a dispor de um valor mensal de € 178,15. É acompanhado pela J… no âmbito do Plano Nacional de Apoio aos Sem-abrigo, desde Julho de 2013, e apoiado ao nível da ação social da Segurança Social.
- Teve a sua primeira relação sexual aos 10 anos de idade, com uma mulher adulta, que então vivia com ele na instituição L…, não evidenciando qualquer constrangimento face a esta situação, nem percecionando ter sido vítima de um crime de cariz sexual, encarando este acontecimento como algo “normal”. Ao nível relacional, assume preferência por jovens, do sexo feminino, com menos de 18 anos, referindo ter tido vários relacionamentos heterossexuais, alguns dos quais com menores de idade
- Manteve em 2013/2014 um relacionamento de namoro com uma jovem, então com cerca de 14 anos, tendo residido com esta e os pais da mesma, cerca de um ano. Desta relação tem uma filha, nascida em setembro de 2014, presentemente institucionalizada. Posteriormente terá mantido outro relacionamento afetivo de namoro com outra jovem, de 14 anos, por si descrito como afetivamente gratificante.
- No que refere ao funcionamento individual, B… revela indicadores de imaturidade emocional, impulsividade, incapacidade de antecipar consequências e colocar-se no lugar do outro. z) Do Certificado de Registo Criminal do mesmo, junto aos autos, constam averbadas as seguintes condenações:
- por sentença datada de 7.3.2013, transitada em julgado em 30.4.2013, proferida no processo comum singular nº 849/11.9PBCLD do entretanto extinto 2º Juízo do Tribunal Judicial de Caldas da Rainha, pela prática, em 2 de Novembro de 2011, de um crime de furto qualificado, p. e p. pelo artº 204º do Cód. Penal, na pena de 450 dias de multa, à razão diária de € 5,00;
- por sentença datada de 7.7.2014, transitada em julgado em 19.2.2015, proferida no processo comum singular nº 980/12.3PAMAI do Tribunal Judicial da comarca da Aveiro - Instância Local (Ovar) - Secção Criminal (J1), pela prática, em 13 de Novembro de 2012, de um crime de ofensa à integridade física simples, p. e p. pelo artº 143º, nº 1, do Cód. Penal, na pena de 190 dias de multa, à razão diária de 6,00, substituída por decisão de 2.6.2015, transitada em julgado em 9.7.2015, por 190 horas de trabalho a favor da comunidade;
- por sentença datada de 30.4.2015, transitada em julgado em 1.6.2015, proferida no processo comum singular nº 418/11.3JALRA do Tribunal Judicial da comarca de Leiria – Instância Local (Caldas da Rainha) – Secção Criminal (J1), pela prática, em 27 de Outubro de 2011, de um crime de abuso sexual de crianças, p. e p. pelo artº 171º, nº 1, do Cód. Penal, na pena de 1 ano e 8 meses de prisão, suspensa na sua execução pelo mesmo período com regime de prova, assente num plano individual de reinserção social, o qual deverá incidir, entre o mais, nas suas competências pessoais e sociais e laborais e numa avaliação especializada na área das relações e sexualidade e eventual intervenção que venha a ser estipulada;
- por sentença datada de 28.6.2015, transitada em julgado em 8.7.2015, proferida no processo comum singular nº 16/11.1PFCLD do Tribunal Judicial da comarca de Leiria – Instância Local (Caldas da Rainha) – Secção Criminal (J1), pela prática, em 9 de Maio de 2011, de um crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelo artº 86º, nº 1, alínea d), por referência aos artºs 2º, nº 1, alínea m), e 3º, nº 2, alínea d), todos da Lei nº 5/2006, de 23 de Fevereiro, na pena de 140 dias de multa, à razão diária de € 5,00.»
*
B) Factos não provados.
Com relevo para a decisão da causa não resultaram provados quaisquer outros factos dentre os alegados ou outros que estejam em contradição com os acima dados como provados, constituam repetição, matéria instrumental, conclusiva ou de direito.
*
C) Motivação.
A convicção do Tribunal quanto aos factos que deu como provados, com a extensão em que o fez, baseou-se na análise crítica e valoração conjunta de toda a prova produzida em sede de audiência de julgamento, a qual foi suficiente para, para além da dúvida razoável, sustentar a respetiva afirmação como tal, com exclusão de quaisquer outros, designadamente que os contrariem.
Levou, assim, o Tribunal em linha de conta desde logo o depoimento prestado pela própria menor C… antecipadamente à realização da audiência de julgamento e nesta reproduzido, onde a mesma relata quando e em que circunstâncias conheceu o arguido, o porquê de o mesmo ter a dado passo passado a morar para sua casa e os termos do relacionamento de intimidade que entretanto se estabeleceu entre ambos, designadamente de cariz sexual, por três vezes - sempre às escondidas das suas irmãs, mormente da D…, à guarda de quem se encontrava -, e na sequência do que ficou grávida, tendo posteriormente ido à maternidade, onde ficou internada e abortou.
Paralelamente, atentou-se no depoimento que com coerência e de molde que ao Tribunal não mereceu qualquer reparo em termos de isenção, prestou em sede de audiência de julgamento a testemunha G…, companheiro que disse ter sido da irmã da menor C…, D…, com quem viveu em união de facto durante cerca de onze anos, até cerca de um ano antes da ocorrência dos factos dos autos. Deixou bem patente a sua afeição pela menor C… e, bem assim, também pela E…, irmã da mesma, sendo certo que no contexto da sua convivência próxima com a D…, as criou como se suas filhas fossem na verdade, ao ponto de por elas ser chamado de "pai". E por referência a esse contexto relatou como, alertado por um vizinho de que "se passavam coisas estranhas, abusos, em casa das meninas", se sentiu compelido a deslocar-se, e efetivamente se deslocou, em finais do mês de Agosto de 2013 a casa da menor, de como nela entrou e o que viu na ocasião estar a acontecer e que o fez suspeitar seriamente de que a menor pudesse estar a ser abusada sexualmente pelo arguido, tão nervoso tendo então ficado que pretendeu expulsar à força o arguido e o irmão dali de casa. E mais relatou sobre o ter levado a menor e a E… ao Centro de Saúde para serem observadas pela médica de família, que depois, corroborado pela própria menor, valeu a confirmação desse relacionamento sexual.
Entretanto, também o arguido B… prestou declarações. E o que disse serviu para confirmar que efetivamente se relacionou sexualmente com a menor C… no interior da residência da mesma, onde na ocasião transitoriamente fora acolhido e por isso também residia. Confirmou que de todas as vezes não usou preservativo. De todo o modo, disse que "foi tudo falado com a C…, que quis ..." e que "ela tinha corpo para 16 anos", assim pretendendo fazer crer que se tratou de um ato de vontade dos dois e que em momento algum prefigurou que a mesma pudesse ser menor de 16 anos. Mas o mais que disse, e a forma como o fez, em resposta às subsequentes instâncias que o Tribunal lhe dirigiu acabou por trair a fidedignidade dessas afirmações. Reconheceu, nomeadamente, ser do seu conhecimento que a E…, à data namorada do seu irmão H…, tinha 16 anos de idade, e bem assim saber que a C… era mais nova do que ela. Disse ainda que em conversa com o irmão se questionou na ocasião sobre a idade que ela teria por comparação com a E…, namorada daquele. E fugindo-lhe a boca para a verdade, embora emendando logo de seguida, disse que "andava desconfiado desde o início que ela não teria a idade". Mais, negando embora a princípio, confirmou a existência antes disto de outros relacionamentos de namoro com menores, confirmando designadamente um com uma menor de 14 anos de que resultou o nascimento de uma filha, entretanto dada para adoção.
Foi, de resto, em sentido confirmativo disso mesmo o depoimento prestado pela testemunha D…, irmã da menor C… e à guarda de quem esta se encontrava então, tal como ainda no presente, judicialmente confiada. Referiu a mesma o contexto em que aceitou acolher temporariamente o arguido e o irmão, ao tempo namorado da E…, em sua casa e as condições que impôs para tal, designadamente quanto ao facto de dormirem num outro quarto, separados das raparigas. Nomeadamente, mencionou o facto de, ao toque que a dado passo lhe deu a E… de que o arguido e a menor "andavam muito juntos", ter falado com um e outra, alertando o arguido para o facto de a C… ter apenas 12 anos de idade e por isso ser muito nova para ele, e desde logo tendo avisado ambos de que não permitia nada entre os dois. Ao encontro do que relatou a testemunha G…, disse ter sido alertada por este sobre os rumores que corriam na vizinhança sobre o relacionamento entre o menor e a C…, referindo que o mesmo, preocupado com a situação, foi lá a casa três dias seguidos, tendo pretendido expulsar os dois irmãos lá de casa.
Num relato emotivo e auto penalizante por, segundo disse, não se ter apercebido da exata dimensão do que estava a acontecer, a testemunha E…, também ela irmã da menor C…, à data namorada do irmão do arguido e ao tempo com 16 anos de idade, referiu o seu próprio relacionamento de namoro com o irmão do arguido, como e quando começou e em que se traduziu, com ambos a manterem relações sexuais, e descreveu aquilo de que se apercebeu do relacionamento próximo da C… com o arguido, no interior da residência que era ao tempo a de todos, chamando a atenção dos dois e alertando o arguido de que a menor tinha 12 anos de idade e por isso era muito nova para ele. Confirmou os termos da intervenção do G…, o facto de por ele ter sido levada, tal como também a C…, ao Centro de Saúde para ser vista pela médica de família, e o mais que se seguiu, designadamente a confirmação entretanto da gravidez da C… e a interrupção voluntária dessa mesma gravidez.
O que esclareceu por sua vez a testemunha I…, técnica de acompanhamento social na J…, no exercício de cujas funções vem acompanhando o arguido (e inicialmente também o irmão gémeo do mesmo) desde o verão de 2013, por terem sido detetados a pernoitar na rua, além do mais que referiu, fez luz sobre o percurso errante do arguido e do irmão, ao sabor dos relacionamentos que vai estabelecendo, e da sua tendência para se envolver em relacionamentos de intimidade e sexuais com menores.
Além do mais que acima se referiu já, a corroborar e confirmar os aludidos depoimentos e sendo por estes por sua vez complementados no que respeita ao contexto circunstancial e à história de vida que os dita, teve o Tribunal ainda em consideração os documentos juntos aos presentes autos a fls. 34 a 39 (auto de noticia), a fls. 130 a 132 (relatório de perícia de natureza sexual), a fls. 245 a 248 (relatório pericial de investigação de parentesco biológico), a fls. 374 a 376 (relatório de perícia médico legal de psicologia), a fls. 387 a 389 (certidão de nascimento da menor C…, com averbamento sobre a atribuição da respetiva guarda à sua irmã D…), bem assim como o CRC de fls. 514 a 519 e, quanto às condições pessoais e situação económica do arguido, o relatório elaborado pela DGRS e junto a fls. 505 a 511.»
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3.- Apreciação do recurso. 31.- - Averiguar se o arguido praticou um ou três crimes.
Sustenta o recorrente nas suas conclusões 4 a 9, que dos factos provados nos pontos j) e k); l) e m) e n) e o) da matéria de facto provada no acórdão sob escrutínio decorre que o arguido cometeu os actos de abuso sexual sobre a menor C… – de relacionamento sexual vaginal – por três vezes, em dias diversos da segunda quinzena de Agosto de 2013, pelo que os mesmos não deveriam ter sido subsumidos numa unidade criminosa, o que não coincide com os exatos contornos da conduta do arguido.
Argumenta que em casos similares de prática do crime de abuso sexual de crianças, vem a Jurisprudência fixando como o enquadramento jurídico-penal mais adequado a essa realidade criminosa muito específica a da pluralidade de crimes, ainda que referentes à mesma vítima e cita para tanto o Ac. do TRP de 15.05.2013 – Proc. 1209/10.4JAPRT.P1 (dgsi.pt).
Defende que ocorreu uma renovação da vontade do arguido, pois em cada uma das três ocasiões narradas na decisão de facto o arguido formulou a sua resolução criminosa de abusar da menor C…, e em cada vez ocorreu uma autónoma lesão do bem jurídico em causa. Em abono desta sua posição, argumenta que a matéria de facto provada nem sequer apresenta dificuldades práticas na determinação do número de vezes que o arguido manteve relacionamento sexual com a menor – que foram indubitavelmente três –, sendo certo que, então, bem sabia o arguido que a menor tinha 12 anos de idade e se determinou, de modo livre e consciente, sem usar preservativo, a manter com ela os comportamentos sexuais descritos, pelo que preencheu de cada vez os elementos objetivos e subjetivos de um crime de abuso sexual de criança. Entende que a actuação do arguido, embora aproveitando o mesmo contexto situacional que lhe permitiu o fácil acesso à intimidade da menor, foi necessariamente comandado por uma diversa resolução e traduziu-se numa autónoma lesão do bem jurídico protegido. E, remata entendendo que para um correto enquadramento jurídico da conduta do arguido se impõe concluir que este cometeu, em concurso real, três crimes de abuso sexual de criança, agravado, previsto e punido, cada um deles, pelo disposto no nº1 e 2, do art. 171º e pelo nº4 do art. 177º, do Código Penal.
Vejamos.
Entende, portanto, o Ministério Público, aqui recorrente, que o arguido deve ser punido em concurso efectivo, pela prática de três crimes de abuso sexual de criança, agravado, previsto e punido, cada um deles, pelo disposto no nº1 e 2, do art. 171º e pelo nº4 do art. 177º, do Código Penal.
Em consequência é tempo de analisar a questão da unidade ou pluralidade de crimes colocada.
O acórdão da primeira instância, partindo da qualificação jurídica vertida na acusação, que imputava ao arguido a prática, apenas, de um crime de abuso sexual de criança, agravado, previsto e punido pelo disposto no nº1 e 2, do art. 171º e pelo nº4 do art. 177º, do Código Penal, acolheu essa qualificação, nos seguintes termos:
«Nos presentes autos, vem o arguido acusado pelo indiciado cometimento, em autoria material e na forma consumada, de um crime de abuso sexual de crianças, agravado, p. e p. nos termos dos art°s 171°, n°s 1 e 2, e 177°, n° 4, do Cód. Penal.
Dispõe o artigo 171º, o seguinte:
«1 - Quem praticar ato sexual de relevo com ou em menor de 14 anos, ou o levar a praticá-lo com outra pessoa, é punido com pena de prisão de um a oito anos.
2 - Se o ato sexual de relevo consistir em cópula, coito anal, coito oral ou introdução vaginal ou anal de partes do corpo ou objetos, o agente é punido com pena de prisão de três a dez anos.
(...).»
O bem jurídico protegido é o da liberdade e autodeterminação sexual, mas enquanto ligado a um outro bem jurídico, o do livre desenvolvimento da personalidade do menor na esfera sexual (cfr. Prof. Figueiredo Dias, in Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo I, pág. 442; e o Ac. da Relação do Porto, 15.12.2010, Rel. Desemb. Joaquim Gomes, in dgsi.pt).
O tipo objetivo do crime do n° 1 consiste na prática de ato sexual de relevo com criança, ou seja menor de 14 anos de idade.
Por outro lado, ato sexual de relevo será toda aquela ação que afete o adequado desenvolvimento sexual de uma criança ou jovem menor de 14 anos, e que, por isso mesmo, seja suscetível de vir a condicionar a sua liberdade e autonomia sexual, que tem todo o direito a ver preservada e a ser desenvolvida. Para o efeito é necessário que esses atos tenham uma conotação sexual e sejam suficientemente relevantes para ofender o livre desenvolvimento sexual da vítima, o que implica um contacto corporal com conotações sexuais (Cfr. o Ac. da Relação do Porto, de 15.12.2010, relatado pelo Exmo. Desemb. Joaquim Gomes, in www.dgsi.pt).
Para preenchimento do tipo de ilícito do n.º 2 do citado artigo o ato sexual de relevo terá de consistir em cópula, coito anal, coito oral ou introdução vaginal ou anal de partes do corpo ou objetos.
O tipo subjetivo exige o dolo, em qualquer das suas formas.
Por outro lado, o artigo 177º, nº 4, prevê uma agravação de um terço, nos seus limites mínimo e máximo, para as penas previstas nos artigos 163° a 165° e 167° a 176°, se, nomeadamente, "dos comportamentos aí descritos resultar gravidez".
Ora, o que no caso dos autos se provou ter sucedido foi a manutenção pelo arguido, a partir de dada altura do verão de 2013, e por várias vezes, de contactos de natureza íntima com a menor, beijando-a na boca, apalpando-lhe o rabo e as pernas, avançando na segunda quinzena de Agosto de 2013, a seu pedido, e no que consentiu a mesma, para a manutenção de relações sexuais, as quais ocorreram no interior da residência da menor, e para o que o arguido e esta, em três ocasiões distintas, se deslocaram para o quarto da mesma, se despiram da cinta para baixo, deitando-se a menor na cama, de barriga para cima, colocando-se o arguido sobre a mesma e introduzido o pénis ereto na sua vagina, sempre sem previamente colocar preservativo, sendo que das duas primeiras vezes, porque a menor referiu que estava a sentir dores, o arguido retirou o pénis da vagina da menor, ejaculando nos lençóis, e da última vez, em 22 desse mês de Agosto, ejaculando no interior da vagina, nessa sequência tendo a menor tido um sangramento.
Mais se verifica que o arguido atuou sobre a ofendida C… com a intenção concretizada de satisfazer os seus instintos libidinosos e ter contactos de natureza sexual com a ofendida, cuja idade conhecia, aproveitando-se da ingenuidade e vulnerabilidade da mesma, sujeitando-a a atos que sabia serem ofensivos, humilhantes e prejudiciais para o seu crescimento e o são desenvolvimento da sua personalidade, ainda em formação, mais tendo agido de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e penalmente punida por lei.
E tanto basta para que o arguido, com o seu comportamento, tenha preenchido todos os elementos do tipo de ilícito do abuso sexual de crianças previsto no artigo 171°, n°s 1 e 2, do Cód. Penal. Mais do que isso, porque de tal relacionamento sexual resultou gravidez, entretanto voluntariamente interrompida, medicamente assistida, inegável é que se verifica a agravante do art. 177°, n° 4, do mesmo diploma legal.»
Vejamos, com brevidade, uma vez que olhando o facto global em causa nos autos se nos apresenta como correcta a qualificação jurídica encontrada no acórdão sob escrutínio.
Não se suscitam dúvidas, o que também não foi posto em causa, que os factos apurados nos autos integram o crime p. e p. pelos art.s. 171º, nºs 1 e 2, e 177º, n.º4 do Cód. Penal, pois, os actos praticados pelo arguido na pessoa da ofendida, menor, com 12 anos de idade à data dos factos, consistiram na penetração do pénis erecto na vagina da menor [cópula], por três vezes, na segunda quinzena de Agosto de 2013, tendo da última penetração, única com sangramento, onde o arguido ejaculou dentro da vagina da menor, resultado a gravidez desta, que entretanto foi voluntariamente interrompida.
Estaremos, então, face apenas a um crime subsumível às disposições mencionadas ou face a três crimes, como pretende o Ministério Público, por entender que estão vertidas nos factos três resoluções criminosas.
Segundo o n.º1, do artigo 30º, do Código Penal: «O número de crimes determina-se pelo número de tipos de crime efectivamente cometidos, ou pelo número de vezes que o mesmo de crime for preenchido pela conduta do agente.»
Para Eduardo Correia o “número de vezes” que o mesmo tipo foi preenchido pela conduta deveria contar-se pelo número de juízos de censura da culpa de que o agente se tivesse tornado passível. O que, por sua vez, deveria ser reconduzido à pluralidade de processos resolutivos, de resoluções ou de decisões criminosas, ou à renovação do mesmo processo, que no caso se houvessem verificado [Correia, Eduardo, Unidade e Pluralidade de Infracções, 1945, pp. 114 e ss., 351 e ss.].
Esta pluralidade seria excluída, em regra, pela continuidade temporal das várias condutas do agente, sempre que, de acordo com as circunstâncias do caso, devesse aceitar-se que “o agente executou toda a sua actividade sem ter que renovar o respectivo processo de motivação (…).»
«para afirmar a existência de uma unidade resolutiva é necessária uma conexão temporal, que, em regra e de harmonia com os dados da experiência psicológica, leva a aceitar que o agente executou toda a sua actividade sem ter de renovar o respectivo processo de motivação» vide Eduardo Correia, 1968: 201 e 202, citado no “Comentário do Código Penal” de P. P. de Albuquerque.
Para Figueiredo Dias, in Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, págs. 986 e ss. «Sendo o tipo legal de crime a fonte de conhecimento da unidade ou pluralidade de factos puníveis, tem em todo o caso de levar-se na devida conta que (…) o tipo de ilícito, o verdadeiro portador da ilicitude material, é sempre formado pelo tipo objectivo e pelo tipo subjectivo de ilícito; o que permite porventura ainda manter a problemática essencial do concurso – também, em especial, a do concurso homogéneo - dentro da categoria do tipo de ilícito e tornar dispensável, ao menos em princípio, o apelo à categoria da culpa. …o tipo objectivo tem sempre como seus elementos constitutivos o autor, a conduta e o bem jurídico, só da conjugação destes elementos – e também da sua ligação ao tipo subjectivo de ilícito – resultando o sentido jurídico-social da ilicitude material do facto que o tipo abrange. O que vale por dizer que todos estes elementos parece deverem ser tidos em conta e valorados – e não apenas em si mesmos, mais ainda no sentido que da sua consideração global resulta – na determinação da unidade ou pluralidade de tipos violados.»
«O “crime” por cuja unidade ou pluralidade se pergunta é o facto punível e, por conseguinte, uma violação de bens jurídico-penais que integra um tipo legal ao caso efectivamente aplicável. A essência de uma tal violação não reside pois nem por um lado na mera “acção”, nem por outro na norma ou no tipo legal que integra aquela acção: reside no substrato de vida dotado de um sentido negativo de valor jurídico-penal, reside – numa palavra que vimos usando e progressivamente concretizando… - no ilícito-típico; é a unidade ou pluralidade de sentidos de ilicitude típica, existente no comportamento global do agente submetido à cognição do tribunal, que decide em definitivo da unidade ou pluralidade de factos puníveis e, nesta acepção, de crimes.»
Posto isto, atendendo a qualquer das construções em confronto sempre se concluirá que os factos e as suas circunstâncias não nos permitem concluir que foi praticado mais que uma vez o mesmo crime.
Por isso se anota, também e desde já, que a hipótese fáctica no caso em apreço é diversíssima da apreciada no Acórdão deste TRP de 15.05.2013 – Proc. 1209/10.4JAPRT.P1 (dgsi.pt), de que é Rel. a Srª Desembargadora Manuela Paupério e que tal diversidade de factos é bastante para não ser tido em conta o referido Ac. no presente caso.
Com efeito, os factos, não nos permitem concluir que houve mais que uma resolução criminosa.
Não é pelo facto de haver várias acções [três] naturalisticamente falando, que podemos integrar a conduta do arguido no mesmo tipo legal, por três vezes, como pretende o M.P.
Sabido como é que a realidade da vida a que nos referimos é uma realidade resultante da referência, no caso, negação, de valores jurídico-penais, bens jurídicos.
Os 3 actos inseriram-se, em primeiro lugar, debaixo de uma condição exterior ao arguido que lhe facilitou toda a conduta: “em Agosto de 2013 o arguido e o seu irmão…passaram a residir na habitação da menor”, sem que esteja provado que para tanto [e não obstante o perigo saltar aos olhos dos mais precavidos] os adultos que deviam supervisionar as menores tivessem estado devidamente vigilantes. E depois, inseriram-se debaixo da mesma decisão (o pedido e anuência referidos em i) que alargou o conteúdo da relação de namoro, que começou por ser só "beijos" e "apalpões" (g, h) e depois passou a relacionamento sexual. Mesmo os factos provados sob K) e M) quando confrontados com os factos provado em N) e O) inculcam a ideia de que houve uma só decisão para os 3 actos.
A “unidade resolutiva”, no caso, parece-nos inequívoca, com efeito, atentos os factos e as circunstâncias que os rodearam, decorre que tomada, pelo arguido, a decisão de ter relação sexual com a menor, a que esta anuiu, repetiu-a, com a anuência da vítima, quando tal se proporcionou. A conexão temporal entre os factos é evidente, os factos ocorreram no mês de Agosto, as relações sexuais, entre data não determinada da segunda quinzena de Agosto e o dia 22 de Agosto, do mesmo ano, portanto, no máximo terão decorrido sete dias entre a prática da primeira relação sexual e prática da última.
É também clara a conexão espacial, os factos ocorreram todos na casa onde ambos habitavam. E onde os irmãos de um e outro dos sujeitos [o rapaz, irmão gémeo do arguido, a rapariga, E… com 16 anos à data, irmã da ofendida C…,] mantinham também uma relação de namoro, com relação sexuais no mesmo espaço, atento o relato da E…. O modo de actuação é idêntico em todos os actos. A vítima a mesma.
Por outro lado, decorre dos factos que se criou através do relacionamento sexual criminoso um certo entendimento ou acordo entre os sujeitos, arguido e ofendida (ao que decorre dos factos, sem violência, resistência da ofendida, sem abuso de poder, medo ou ameaças), que explica o aproveitamento das oportunidades favoráveis à repetição do acto.
Portanto, a provada factualidade não permite estabelecer que houve três resoluções criminosas, como pretende o MP. Outros elementos teriam de ser dados por provados para que se pudesse concluir no sentido pretendido.
Cada uma das condutas do arguido – cada relação sexual – não é autónoma em relação às outras, sujeita a um juízo de censura único, a uma unidade de resolução, constituindo, assim, um único crime, previsto e punível pelo artigo 171º, nº 1 e 2 e 177º, n.º4, do C.P.
Pelo exposto improcede, nesta parte o recurso.
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3.2.- Aplicação do regime especial para jovens do D/L nº401/82 de 23/09.
Sustenta o MP, nas suas conclusões 14 a 25, que não obstante o arguido ter cometido os factos aos 19-20 anos de idade, sobre uma criança de 12 anos de idade, o tribunal a quo para aplicar, no caso, o regime penal especial para jovens previsto no Decreto-Lei nº401/82 de 23 de Setembro, fez prevalecer a idade e desconsiderou a existência dos antecedentes criminais do arguido, designadamente por crime de abuso sexual de criança antes praticado, e não valorou suficientemente quer as exigências de prevenção geral, negativa e positiva, quer a personalidade especialmente desvaliosa revelada pelo arguido através da prática dos factos criminosos abusivos em causa, a qual não se reduz nem se pode equacionar tão-só como sendo o típico perfil de um jovem delinquente, numa experimentação de desviância própria da idade.
Mais argumenta que faltou ponderar melhor o tipo de crime em causa e o que este revela de uma personalidade jovem, que expressou a sua sexualidade do modo abusivo e lesivo descrito, sendo que a questão premente e prévia à sua ressocialização é a exigência de conformar e reconfigurar a sua personalidade a esse nível.
O tribunal a quo fundamentou a aplicação do regime especial para jovens, no caso, do modo que segue.
«(…)
Milita, porém, a favor do arguido a sua juventude. Ao tempo contava apenas 19 ou 20 anos. A necessidade da tutela dos bens e valores jurídicos - cuja medida ótima não tem de coincidir sempre com a medida da culpa - não é dada como ponto exato da pena, mas como uma espécie de moldura de prevenção, moldura cujo máximo é constituído pelo ponto mais alto consentido pela culpa no caso, e cujo mínimo, resulta do "quantum" da pena imprescindível, também no caso concreto, à tutela dos bens e valores jurídicos e das expectativas sociais.
E por essas ordens de razões, está o Coletivo em crer que da atenuação da moldura penal prevista para o crime sob análise resultarão vantagens para a reinserção do arguido, nessa medida decidindo fazer apelo ao Regime Especial Para Jovens previsto no Dec.-Lei n° 401/82, de 23 de Setembro. Esta aludida atenuação não é inteiramente similar, nem na previsão nem na ratio, à atenuação especial prevista no art.° 72, do CP, já que não se radica tanto na diminuição acentuada da ilicitude ou da necessidade da pena, mas no fator idade, o que por si só pressupõe, desde logo, uma perspetiva diferente, não devendo com ela ser confundida.
Assim, aplicando no caso os critérios previstos nos art°s 73° e 74° do Cód. Penal, o limite máximo da pena prevista para o crime (agravado) em apreço sofre uma redução de 1/3 e o limite mínimo, por sua vez, uma redução a 1/5. Obtemos, assim, uma moldura penal abstrata de 10 meses e 24 dias a 10 anos de prisão.
(…)
Vejamos.
Pese embora o tribunal a quo não tenha dedicado especial atenção aos critérios de aplicação do regime especial para jovens, nem o tenha feito na ordem que se impunha, vejamos se é de manter ou revogar a sua decisão de aplicação do questionado regime.
O artigo 9.º do Código Penal estatui que aos maiores de 16 anos e menores de 21 são aplicáveis normas fixadas em legislação especial.
O legislador aceita que os imputáveis maiores de 16 anos e menores de 21 são merecedores de legislação especial, cuja justificação consta do preâmbulo do Código Penal nos termos que seguem:
«Esta ideia corresponde, por um lado, à consciencialização do que há de arbitrário – mas não intrinsecamente injusto – na determinação de certa idade como limite formal para distinguir o imputável do inimputável. É justamente para atenuar os efeitos deste corte dogmático e praticamente imprescindível que se vê com bons olhos um direito de jovens imputáveis que vise paredes meias, nos princípios e nas medidas protectivas e reeducadoras, os fins do direito de menores. Mas, se esta seria, já por si, uma razão que levaria ao acatamento legislativo daquele direito para jovens imputáveis, outras motivações e razões mais arreigam a nossa convicção. Salientem-se não só as que decorrem dos efeitos menos estigmatizantes que este direito acarreta como também – em conexão com aquelas sequelas e no seio deste ramo do direito – a maior capacidade de ressocialização do jovem que se abre ainda para zonas não traumatizadas, como tal perfeitamente lúcido e compreensivo às solicitações justas e adequadas da ordem jurídica.»
O regime aplicável em matéria penal aos jovens com idade compreendida entre os 16 e os 21 anos foi instituído através do Decreto-lei n.º 401/82, de 23 de Setembro.
Como expressamente resulta do preâmbulo do Decreto-Lei n.º 401/82, os objectivos do regime aí instituído compreendem o intuito de, sempre que possível e adequado às exigências concretas de prevenção especial e geral, se optar, relativamente aos jovens imputáveis, por medidas ou sanções que, tendo em conta o processo real de desenvolvimento do jovem, promovam a sua responsabilização e socialização, sem os riscos evitáveis de efeitos de estigmatização e de marginalização (sempre empobrecedores para o indivíduo e a comunidade) frequentemente ligados às medidas institucionais, designadamente às penas de prisão.
No caso concreto o recorrente tinha 19-20 anos de idade quando praticou os factos em causa nos autos, estando, por isso, abrangido pelo Decreto-Lei n.º 401/82, conforme o disposto no artigo artigo 1.º, n.º 2, do diploma, sobre o seu âmbito de aplicação.
Dispõe o artigo 4.º, do diploma, que «se for aplicável pena de prisão deve o juiz atenuar especialmente a pena nos termos dos artigos 73.º e 74.º do CP – actualmente, após a revisão do C.P. operada pelo Decreto-Lei n.º 48/95, de 15 de Março, a remissão é para os artigos 72.º e 73.º do Código Penal - quando tiver sérias razões para crer que da atenuação resultem vantagens para a reinserção social do jovem condenado».
É incontroverso que a aplicação do regime instituído no Decreto-Lei n.º 401/82, não se impõe como obrigatória. Decorrendo do preâmbulo do diploma que as medidas previstas não afastam a aplicação – como ultima ratio – da pena de prisão aos imputáveis maiores de 16 anos, quando isso se torne necessário, para uma adequada e firme defesa da sociedade e prevenção da criminalidade.
A atenuação especial da pena prevista no artigo 4.º também não opera automaticamente, sendo ainda necessário que se conclua que há sérias razões para crer que da atenuação especial resultam vantagens para a reinserção social do jovem condenado.
O juízo sobre as sérias vantagens para a reinserção social do jovem delinquente tem de se fundar em factos concretos que apontem num ou noutro sentido.
Para tanto não basta a idade, há que levar em conta as circunstâncias do crime, a personalidade do jovem delinquente, a sua conduta anterior e posterior ao crime, as suas condições de vida onde se incluem condições pessoais, familiares, e profissionais (se estuda, trabalha ou nem trabalha nem estuda, se tem ou não uma profissão, se tem ou não autonomia financeira) com vista a avaliar se vinha desempenhando papel social de jovem dependente do meio parental ou se pelo contrário desempenhava à data um papel social que caracteriza a idade adulta, para se poder aferir, além do mais, se é ou não sensível à aceitação dos valores tutelados pelo direito penal.
Ora, perante os factos provados afigura-se-nos legítimo concluir que a situação em causa comunga das características fundamentais que estiveram na base do regime sancionador especial do DL 401/82 de 23.09 ou, como melhor se poderá dizer, as circunstâncias em que foi cometido o crime ainda se incluem numa tradicional categorização da delinquência juvenil.
Com efeito, a actuação do arguido decorre dentro duma habitação, num contexto de convivência de jovens de sexos opostos, sem vínculos familiares, com idades não muito díspares, sem supervisão ou com deficiente supervisão de adultos, onde o jovem normalmente actua em função do comportamento dos seus pares e onde o seu irmão gémeo e a irmã da ofendida, E… com 16 anos de idade, mantinham um relacionamento amoroso que incluía relacionamento sexual.
Acresce que à data dos factos em apreço nos autos, o arguido vivia na cidade do Porto, maioritariamente em pensões e quartos arrendados com o irmão, registando também vivência como sem-abrigo, sem exercer qualquer tipo de atividade profissional ou semelhante desde então. Beneficiava de apoio alimentar, fazendo as refeições na instituição “K…”.
Por outro lado, como decorre dos factos provados, ao tempo da prática dos factos destes autos, em Agosto de 2013, o arguido apenas contava com uma condenação por crime de furto qualificado, punido com pena de multa, embora tivesse já praticado [em 27.10.2011] os factos que estão na origem da condenação, por sentença datada de 30.4.2015, transitada em julgado em 1.6.2015, por um crime de abuso sexual de crianças, p. e p. pelo artº 171º, nº 1, do Cód. Penal, na pena de 1 ano e 8 meses de prisão, suspensa na sua execução pelo mesmo período com regime de prova.
Devem ainda ter-se em conta as condições de vida do arguido desde tenra idade, nomeadamente o facto de ele próprio ter sido abusado sexualmente sem que disso, inclusivamente, tenha consciência.
Nesta ponderação global dos factos e da personalidade do recorrente, concluímos positivamente que há sérias razões para crer que da atenuação especial resultam vantagens para a reinserção social do jovem e, por contraposição, que não emergem especiais exigências concretas de prevenção especial impeditivas da aplicação do instituto.
Por outro lado, no conflito concreto entre exigências de prevenção geral e especial só em caso de absoluta incompatibilidade, o que não é o caso, as exigências (mínimas) de prevenção geral, funcionam como limite ao que, de uma perspectiva de prevenção especial, podia ser aconselhável.
A conduta delituosa é grave, mas idade do arguido à data dos factos conjugada com a sua vida pretérita e as circunstâncias contemporâneas da prática do crime possibilitam a aplicação do regime especial para jovens.
Posto isto, entendemos que bem andou o tribunal no caso ao proceder à aplicação do referido regime com a consequente atenuação especial da pena.
Improcede, assim a questão posta.
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3.3.- Medida concreta da pena de prisão.
Sustenta o Ministério Público nas suas conclusões 26 a 28 e na pressuposição da procedência da questão anterior que, assim, afastando-se o referido regime penal especial, a moldura penal abstractamente aplicável a cada um dos crimes provados deveria pois manter-se a resultante dos artºs 171º, nº1 e 2, e 177º, nº1, al. b), do Código Penal – pena de prisão de 4 anos e 6 meses a 15 anos. Nesse quadro legal, mesmo que não se optando pela pluralidade de infracções cometidas em concurso real, não poderá a pena a final aplicada ao arguido, pela prática do crime de abuso sexual de criança agravado, ser inferior a 6 anos de prisão.
Ora, como vimos a questão da não aplicação ao arguido do regime de jovens delinquentes não obteve provimento, pelo que, nestes termos, e não tendo o recorrente questionado a medida da pena, na hipótese que ora se verifica, ficou a concreta questão esvaziada de qualquer conteúdo.
Pelo exposto, improcede a questão.
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3.4.- Suspensão da execução da pena de prisão.
Sustenta o recorrente que em qualquer caso ainda que se entenda ser de manter a aplicação daquele regime penal especial para jovens e consequente atenuação especial da moldura penal aplicável, não deveria, optar-se pela suspensão da execução da pena de prisão, nos termos do artº 50º, nº1, do Código Penal, pois as elevadíssimas e prementes exigências de prevenção geral e integração se impõem e sobrelevam sobre o facto de o arguido ser jovem; não se pode perder de vista que o arguido agiu com dolo direto e intenso, que actuou sobre uma criança de 12 anos imatura, abusando da permissão para se acolher na residência de família dela, sendo que não demonstrou qualquer arrependimento sincero ou um verdadeiro juízo de auto-censura em julgamento.
O tribunal colectivo fundamentou assim a suspensão da execução da pena:
«Dispõe o artigo 50° do Código Penal no seu n.º 1 que «o tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a 5 anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.»
É certo que as necessidades de prevenção geral nos crimes de abuso sexual de crianças assumem elevada intensidade. Mas sendo embora também não desprezíveis, pelas razões que acima melhor se expuseram, as necessidades de intervenção também ao nível da prevenção especial, a verdade é que as condenações sofridas, inclusive pela prática de um crime de abuso sexual de crianças, o foram, ressalvada uma situação apenas, referente a um crime de furto qualificado, posteriormente aos factos dos autos, entretanto não havendo notícia da prática posterior de ilícitos de qualquer natureza. Inclusive, neste momento, por força da condenação proferida pelo aludido crime de abuso sexual de crianças, transitada em julgado em Junho do corrente ano de 2015, o arguido se encontra sujeito a regime de prova, incidente no desenvolvimento das suas competências pessoais, sociais e laborais, e na avaliação especializada na área das relações e sexualidade, sem incidentes perturbadores conhecidos.
Tudo visto, afigura-se que a pena poderá ser suspensa na sua execução, ao abrigo do disposto no artigo 50°, porquanto se crê que a simples censura do facto e ameaça da sanção, contanto que acompanhada de regime de prova, nos termos do artigo 53°, realiza de forma adequada as finalidades preventivas presentes no caso.
E não se diga que a prevenção geral positiva - a manutenção da confiança dos cidadãos nas normas, neste caso das que protegem a autodeterminação sexual - não ficará satisfeita com a suspensão da execução da pena. E para assim concluir, apelamos a Figueiredo Dias, quando, no Comentário Conimbricense Tomo I, p. 553, enfatiza uma alegação frequente da ciência criminológica: a de que a "histeria de massas" contra abusadores sexuais de crianças é tão ou (por vezes) mais responsável por perigos (ou danos) para o desenvolvimento harmonioso da personalidade da criança na esfera sexual do que os próprios agentes do crime.
O regime de prova, a elaborar pela DGRS nos termos do artigo 494º. n.º 3 do Código de Processo Penal, deverá, assim, assentar num plano individual de readaptação com incidência na promoção de acompanhamento psicológico ou, se necessário se revelar, psiquiátrico, o qual deverá privilegiar uma intervenção atenta direcionada para as questões relacionais e da sexualidade.»
Vejamos.
Resulta do disposto no art. 50º, nº 1, do C. Penal que o pressuposto material da aplicação do instituto da suspensão da execução da pena de prisão é a possibilidade de o tribunal concluir pela formulação de um juízo de prognose favorável ao agente, no sentido de que, atenta a sua personalidade, as condições da sua vida, a sua conduta anterior e posterior ao crime e as circunstâncias deste, a simples censura do facto e a ameaça da prisão – acompanhadas ou não da imposição de deveres, regras de conduta ou regime de prova – realizarão de forma adequada e suficiente, as finalidades da punição.
Quanto aos fins visados pelo instituto, ensina o Prof. Figueiredo Dias que, “A finalidade político-criminal que a lei visa com o instituto da suspensão é clara e terminante: o afastamento do delinquente, no futuro, da prática de novos crimes (…). Ou, como porventura será preferível dizer, decisivo é aqui o «conteúdo mínimo» da ideia de socialização, traduzida na «prevenção da reincidência».” (Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, pág. 343).
As finalidades da pena são, a tutela dos bens jurídicos e, na medida possível, a reinserção do agente na comunidade (art. 40º, nº 1, do C. Penal).
Fundamentam o instituto da suspensão da execução da pena de prisão razões de prevenção, geral e especial, e não considerações relativas à culpa (como sucede aliás, com todas as operações de escolha das penas de substituição). Mas os objectivos de prevenção especial, de reinserção social do agente, têm sempre como limite o conteúdo mínimo da prevenção geral de integração. Ensina o Prof. Figueiredo Dias, quanto a este aspecto e relativamente à prevenção geral que, “Ela deve surgir aqui unicamente sob a forma do conteúdo mínimo de prevenção de integração indispensável à defesa do ordenamento jurídico, como limite à actuação das exigências de prevenção especial de socialização. Quer dizer: desde que impostas ou aconselhadas à luz das exigências de socialização, a pena alternativa ou a pena de substituição só não serão aplicadas se a execução da pena de prisão se mostrar indispensável para que não sejam postas irremediavelmente em causa a necessária tutela dos bens jurídicos e estabilização contrafáctica das expectativas comunitárias.” (ob. cit., pág. 333).
O juízo de prognose a realizar pelo tribunal, elemento fundamental do funcionamento do instituto, parte da análise das circunstâncias do caso concreto – das condições de vida e conduta anterior e posterior do agente, conjugadas e relacionadas com a sua revelada personalidade –, operação da qual resultará como provável, ou não, que o agente sentirá a condenação como uma solene advertência, ficando a sua eventual reincidência prevenida com a simples ameaça da prisão (com ou sem imposição de deveres, regras de conduta ou regime de prova), para concluir ou não, pela viabilidade da sua socialização em liberdade.
Na formulação do juízo de prognose o tribunal deverá correr um risco prudente pois que esta é apenas uma previsão, uma conjectura e não uma certeza. Por isso, se tem dúvidas sérias sobre a capacidade do agente para interiorizar a oportunidade de ressocialização que a suspensão é, a prognose deve ser negativa (Leal Henriques e Simas Santos, C. Penal Anotado, I Vol., 2ª Ed., 444).
Ponderemos.
O arguido tinha à data dos factos 19-20 anos, tem actualmente 23 anos de idade; à data dos factos havia sido condenado tão só num crime de furto qualificado; mas havia já anteriormente praticado os factos que estão na origem da condenação por um crime de abuso sexual de crianças, transitada em julgado em Junho do ano de 2015; por outro lado, pese embora o arguido tenha sido vítima ele próprio de um abuso sexual por mulher adulta aos dez anos [sem que evidencie qualquer constrangimento]; o certo é que dos factos provados sobre a sua personalidade resulta que ao nível relacional, assume preferência por jovens, do sexo feminino, com menos de 18 anos, referindo ter tido vários relacionamentos heterossexuais, alguns dos quais com menores de idade; mais resulta que manteve em 2013/2014 um relacionamento de namoro com uma jovem, então com cerca de 14 anos, tendo residido com esta e os pais da mesma, cerca de um ano; desta relação tem uma filha, nascida em setembro de 2014, presentemente institucionalizada; posteriormente terá mantido outro relacionamento afetivo de namoro com outra jovem, de 14 anos, por si descrito como afetivamente gratificante; no que respeita ao funcionamento individual, B… revela indicadores de imaturidade emocional, impulsividade, incapacidade de antecipar consequências e colocar-se no lugar do outro.
Ora, tendo em atenção as referidas características já desvaliosas da sua personalidade, a sua conduta anterior aos factos destes autos, os seus antecedentes criminais, fazem prever que uma suspensão da execução da pena, ainda que com deveres ou regras de conduta, levaria o tribunal a correr um risco desproporcionado face à alta probabilidade de [face ao que ressalta da sua personalidade] voltar a delinquir nos mesmos termos, visto que o arguido “continua a achar normal relacionar-se sexualmente com crianças”, revelando dificuldades em colocar-se no lugar do outro.
Pelo exposto, entendemos que não é possível fazer um juízo positivo de que as finalidades da punição serão alcançadas com a simples ameaça de prisão e a censura do facto. A prisão, a penosidade que ela implica, a introspecção que lhe imporá e o choque que lhe acarretará, mostram-se neste momento imperiosos para fazer o arguido repensar toda a sua vida, toda a sua sexualidade, e alcançar a sempre almejada ressocialização.
Do exposto resulta que o juízo de prognose efectuado não é favorável ao arguido, pois não é provável que o arguido sinta uma condenação com suspensão da execução da pena, como uma solene advertência e a reincidência fique prevenida com a simples ameaça da pena prisão.
A pena de prisão aplicada deve, portanto, ser efectiva.
Procede, esta última questão e parcialmente o recurso.
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III- Decisão.
Pelo exposto, acordam os juízes desta secção criminal do Tribunal da Relação do Porto em dar parcial provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público, alterando-se a decisão do tribunal colectivo relativamente à suspensão da execução da pena de prisão que passará a ser pena de prisão efectiva.
No mais mantém-se a decisão.
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Custas pelo arguido, nos termos dos artigos 513.º e 514º do Código de Processo Penal (e artigo 8º, n.º 9 do regulamento das custas processuais e, bem assim, tabela anexa n.º III), fixando-se a taxa em 3 [três] UC.
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Notifique.
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Elaborado e revisto pela relatora – artigo 94º, n.º 2, do CP.P.
Porto, 12 de Outubro de 2016
Maria Dolores Silva e Sousa
Manuel Soares