No regime jurídico anterior à Lei nº5/06, de 23Fev., a detenção de pistola adaptada para munições de calibre 6,35 mm, com cano de comprimento não superior a 8 cm, não manifestada ou registada, ou sem a necessária licença, constituía crime de detenção ilegal de arma, p.p., pelo art.6, nº1, da Lei nº22/97, de 22Jun., na redacção da Lei nº98/01, de 25Ago.
“......
Julgo provada e procedente a acusação, condenando o arguido A..., pela prática de um crime de detenção ilegal de arma proibida p.p. pelo art.6, nº1, da Lei nº22/97, de 27/6, na pena de 120 dias de multa ao quantitativo diário de 2 euros e, subsidiariamente, na pena de 80 dias de prisão.
.....”.
2. Desta decisão recorre o Ministério Público, motivando o recurso com as seguintes conclusões (transcrição):
2.1 A douta sentença proferida a 10 de Março de 2006, de fls.107-109, perante designadamente a seguinte matéria de facto, que julgou provada:
«No dia 10 de Maio de 2003, no interior do estabelecimento denominado P…, sito na R…, o arguido [A…] trazia consigo uma pistola semi-automática de marca "Reck", transformada em arma de fogo de calibre 6,35mm Browning, por adaptação a partir da arma original que era pistola de alarme ou gás lacrimogéneo [...]
O arguido não possuía licença de uso e porte de arma.
A arma não se encontrava manifestada, nem registada.
A arma em causa não podia ser legalizada, atenta a sua transformação artesanal.
O arguido conhecia as características, uso e modo de funcionamento da referida arma e agiu voluntária e conscientemente, ciente de que a sua detenção e/ou uso lhe estavam legalmente vedados.
O arguido pretendia a arma para se defender, dado por vezes transportar valores elevados, lhe ter sido negada a licença de uso e porte de arma e ter receio de ser assaltado. [..]
condenou o arguido numa pena, pela prática do crime de detenção ilegal de arma (será de defesa, mas não proibida, como dito na douta sentença), previsto e punido no art.6°nº1 da Lei 22/97, de 27 de Junho, na redacção introduzida pela Lei 98/2001 de 25 de Agosto;
2.2 Concorda-se, tal como na sentença se reflecte doutamente, com o afastamento da qualificação jurídica originária, de acordo com a jurisprudência obrigatória firmada ali seguida, assente no Acórdão para Fixação de Jurisprudência nº1/02 [DR I s. A nº255 de 5 de Novembro], que fixou - aliás em alteração da jurisprudência anterior daquele Tribunal Superior, expressa pelo Acórdão para Fixação de Jurisprudência nº2/98 [DR I s. nº290 de 17 de Dezembro de 1998] – a renovada afirmação de que uma arma como a detida pelo arguido não se inscreve na previsão do art.275°nº3 do Código Penal;
2.3 A argumentação, em síntese, contida daquele douto aresto nº1/02 pode sintetizar-se na falta de correspondência de uma tal conduta, do prisma dos requisitos objectivos, para subsunção no tipo objectivo de ilícito típico, por ausência de tipicidade da arma detida/usada, de acordo com os critérios legais vigentes que categorizam as diferentes armas;
2.4 Mas, se assim é, não se enxerga como pôde concluir-se na douta sentença ora posta em crise que a detenção/uso da arma adaptada se reconduz à previsão do art.6°nº1 da Lei 22/97 de 27 de Junho [rectificada pela Lei 93-A/97 de 22 de Agosto, alterada pela Lei 29/98 de 26 de Junho, na sua redacção introduzida pela Lei 98/2001 de 25 de Agosto], aliás em sequência lógica e argumentativa inversa à do excurso argumentativo naquele douto Acórdão para Fixação de Jurisprudência nº1/02 sufragado;
2.5 Está assente que uma arma de génese ilegal, cujas características técnicas que ora detém a fazem aproximar-se, grosso modo, das características técnicas actuais de uma dada categoria de armas de defesa, tal como elencado no art.1º, nº1 da citada Lei 22/97 de 27 de Junho, maxime art.1º, nº1 corpo e alínea b), do mesmo passo não correspondendo a nenhuma das categorias das armas de fogo proibidas elencadas no art.3° do Decreto-Lei 207-A/75 de 17 de Abril, não se insere no âmbito de previsão do art.275°nº[ºs1 ou] 3 do Código Penal;
2.6 A jurisprudência obrigatória que nos últimos anos versou sobre a matéria em causa, ou próxima dela, maxime a dos dois Acórdãos nºs2/98 e 1/02, centrou-se em torno da definição/delimitação do conceito de «arma proibida» utilizado no tipo legal do citado articulado, isto é, em volta da tipicidade/atipicidade dos comportamentos e condutas próximos ou mesmo coincidentes com a do objecto do processo, decorrentemente, convocando o princípio da legalidade aqui sob a precipitação expressa no brocardo latino
nullum crimen sine lege certa nulla poena sine lege, cfr.arts.1, nº1 e 2, nº1 do Código Penal e 29°n[ºs] 1 [e 3 e 4] da Constituição da República, tendo por pano de fundo, et pour cause, a enunciação legal, nos diplomas apropriados, da categorização das armas;
2.7 Ora, é na Lei 22/97 de 27 de Junho, como no Decreto-Lei 207-A/75 de 17 de Abril, que são as normas positivadas no Ordenamento, por isso mesmo convocadas à aplicação, para integração do(s) tipo(s) legal(ais) de crime em apreço, que se encontra a indicação do que sejam armas proibidas ("absolutamente") e proibidas em menor medida ("relativamente"), é aí que o Ordenamento descreve as diferentes categorias de armas consideradas para tanto;
2.8 Assim, resulta cogente que é a partir desses elencos legais de armas que o intérprete logrará concluir estar integrado, ou não, nos seus pressupostos objectivos, um dado tipo legal de crime que tem como um desses elementos uma dada categoria de armas, pois que tais tipos legais de crime se acham estruturados pressupondo aquela legislação anterior, que categoriza as diversas armas tidas em atenção pelo Legislador;
2.9 Percorrendo esses elencos legais referidos em 7ª, verifica-se que o Legislador segue um critério taxativo e jamais meramente exemplificativo, enunciativo das diferentes categorias de armas passíveis de permissão de usos e porte, ou proibidas, categorias essas que se definem pela referência a certos parâmetros técnicos estabelecidos, normal e universalmente usados na classificação das armas, tendo por fonte a sua origem e fidedignidade técnica;
2.10 Naqueles elencos de armas, não se acham enunciadas, sob uma ou outra categoria, ou numa categoria à parte, armas como aquela em causa nos autos, e isto não obstante o Legislador de tido presente, nessa categorização, entre as armas "absolutamente" proibidas, armas transformadas ou dissimuladas, como fez sob o art.3°nº1 corpo e alíneas d) e f) do Decreto-Lei 207-A/75 de 17 de Abril, armas essas que, pelas características apontadas, não correspondem, ou não correspondem já, a qualquer categoria «normal» de armamento;
2.11 Cumpre considerar que o Legislador, ao editar tais normas, teve presentes todas as armas existentes - e, quanto às armas transformadas de modo anómalo, cumpre outrossim considerar que são tão antigas quanto o controlo público sobre o fabrico, comércio e detenção de armas «normais» no seio da comunidade e ele teve-as presentes ao enunciar as duas categorias referidas na conclusão anterior - e, no seu esclarecido critério, soube exprimir-se da melhor forma e consagrou as soluções mais acertadas no momento em que editou tais conteúdos preceptivos, maxime as incriminações e, no entanto, não incluiu em categoria alguma armas como as dos autos, nem criou uma categoria à parte sobre elas versando, art.9° do Código Civil;
2.12 Por isso, forçoso é concluir que ao inserir numa ou noutra categoria uma arma transformada, como a dos autos, não obstante ela actualmente se aproximar, grosso modo, das características abrangidas por um dos tipos legais, o intérprete/aplicador do Direito está implicitamente a socorrer-se, na integração do tipo legal, de uma categoria outra de armas inexistente e não contemplada nas leis penais, ou naquelas que as integram, como sucede em matéria de armas: eis o que ocorre na aplicação do Direito à matéria de facto fixada na douta sentença;
2.13 Assim - e na esteira da argumentação do douto Acórdão para Fixação de Jurisprudência n°1/02, citado e invocado na douta sentença - será de concluir para o caso, também, que a qualificação de uma arma como proibida, por ter sido adaptada ou transformada fora das condições legais, não pode inferir-se de preceitos que se lhe não referem, tanto mais que as previsões das normas incriminadoras não especificam, sequer, as hipóteses da adaptação ou de transformação «Pelo que, tratando-se de pistola de calibre 6,35mm, sem disfarce e sem que tenha sido cortado o cano, não se inclui no elenco das armas proibidas constantes do 3° do Decreto-Lei 207-A/75 de 17 de Abril.» nem, outrossim, essa tipologia de armas adaptadas se insere no elenco das armas de defesa do art.1°nº1 da Lei 22/97 de 27 de Junho, ou no tipo objectivo de ilícito do art.6°, não podendo por isso ser tida como uma arma de defesa das referidas no art.1°nº1 corpo e alínea b) desta Lei;
2.14 Diversa interpretação que aprisione armas daquela natureza sob a previsão legal do art.6° da Lei 22/97 de 27 de Junho é incompatível com os critérios de interpretação, do Direito em geral e do Direito Penal em particular, pois que aquela arma, não se integrando em categoria alguma das legalmente previstas, não pode integrar crime algum e, ao defender a posição inversa, a douta sentença implicitamente alcançou um resultado interpretativo, por via da recondução da concreta arma a uma das categorias dentre as previstas na Lei, segundo um critério de analogia ou semelhança (proximidade das características da arma a um dada categoria dentre aquelas a que se referem os tipos legais incriminadores), com o disposto nos arts.1º nº1 corpo e alínea b) e 6°nº1 da Lei 22/97 de 27 de Junho (com que tem maiores semelhanças), em violação directa do art.1º, nº3 do Código Penal;
2.15 Na douta sentença entendeu-se assim, implicitamente embora, procederem no caso as mesmas razões justificativas que estão na base da incriminação legalmente prevista no art.6°nº1 daquela Lei, colmatando lacuna legal nos termos do art.10° do Código Civil, o que lhe está expressamente vedado pelos arts.1°nº[ºsl e] 3 do Código Penal e 29° nº1 da Constituição da República e, orientando-se por critérios interpretativos além dos consentidos no art.9° do Código Civil, como de critérios radicalmente proibidos pelo preceituado no art.1º nº3 do Código Penal, chegou a resultado incriminador que é de repudiar por manifestamente inconstitucional e ilegal, violando do mesmo passo, indirectamente, o disposto no art.3°nº1 corpo e alíneas do Decreto-Lei 207-A/75 de 17 de Abril e art.1 nº1 corpo e alíneas da Lei nº22/97 de 27 de Junho e, directamente, o disposto nos arts.6°nº1 desta Lei e o art.1° nºs1 e 3 do Código Penal e, além da norma da Constituição citada, acabando por aplicar regime sancionatório penal para crime inexistente no Ordenamento;
2.16 Por todo o exposto, deve a douta sentença ser revogada, absolvendo-se o arguido do crime que lhe é imputado, afigurando-se-nos, contudo, que quanto ao decidido sobre o destino dos objectos deverá a douta sentença ser mantida, atentas as características da arma apreendida e a detenção a legal que da mesma houve, pelo menos, pelo arguido, ao abrigo do disposto no art.109°nº2 do Código Penal.
3. Admitido o recurso, a subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito suspensivo, não foi apresentada resposta.
4. Neste Tribunal, a Exma. Srª. Procurador Geral Adjunta, apôs visto.
5. No exame preliminar afigurou-se ao relator que o recurso se apresentava como manifestamente improcedente, motivo para a sua rejeição, razão por que os autos foram remetidos aos vistos e, em seguida, à conferência.
6. O objecto do recurso, tal como se mostra delimitado pelas respectivas conclusões, reconduz-se à qualificação jurídica dos factos, defendendo o recorrente que a conduta do arguido não preenche os elementos típicos de qualquer crime.
Pelo exposto, os juizes do Tribunal da Relação de Lisboa, após conferência, acordam em rejeitar o recurso.
Sem tributação.
Lisboa, 19 de Setembro de 2006