CARTÃO DE CRÉDITO
LEVANTAMENTO DE DINHEIRO DEPOSITADO
CULPA
CLÁUSULA
INTERPELAÇÃO
DEVER DE INFORMAR
ESTRANGEIRO
CONFISSÃO
REPRESENTAÇÃO
CASO JULGADO
Sumário

I- A cláusula 4ª referente aos cartões ATM e de crédito, incluída nas Condições Gerais de Utilização dos Cartões, segundo a qual “ no que respeita aos levantamentos no estrangeiro de dinheiro, junto de estabelecimentos bancários e caixas automáticas, o titular do cartão será mantido informado, em tempo oportuno, do limite em vigor fixado para este efeito pelo Banco de Portugal e constante das suas instruções” impõe um dever de informação se forem fixados limites, mas da aludida cláusula não se infere que existia previamente um limite diário para levantamento de dinheiro no estrangeiro à semelhança do que acontece com os levantamentos em território nacional com os cartões multibanco e outros.
II- Não houve, assim, por parte da Ré, omissão de informação da existência de faculdade ilimitada de levantamentos sucessivos, até ao valor disponível, na conta bancária, nem tão pouco se conexiona com a aludida cláusula a questão de saber se à A. foi dado conhecimento de que, associado ao cartão, estava atribuído crédito até ao limite de 250.000$00.
III- A ausência de comunicação impunha ao declaratário normal, a que alude o artigo 236.º do Código Civil, considerar que o Banco de Portugal não tinha estabelecido quaisquer limites à utilização diária do cartão.
IV- Importa, no entanto, salientar que a causa do prejuízo sofrido pela A. com os levantamentos efectuados com o cartão que lhe foi furtado, e com a sua utilização até ao limite de crédito de 250.000$00, não se funda na omissão da referida informação, mas na circunstância de a A. ter anotado no verso de fotografia, que se encontrava juntamente com o cartão na carteira furtada, o respectivo PIN, o que permitiu aos autores do furto acesso imediato às disponibilidades bancárias da A., ou seja, foi o risco por ela próprio criado que levou a que num curtíssimo período de tempo entre as 20.19h e as 20.42 h fosse retirada a totalidade da quantia que a A. tinha depositada na sua conta bancária.
V- A especificação e o questionário não fazem caso julgado formal e, por isso, podem ser alterados conquanto processualmente a alteração seja admissível, o que efectivamente sucede quando se considera confessado pela Ré em documento dela proveniente a hora em que o furto foi comunicado e que leva, portanto, a excluir a responsabilidade da A., no que respeita aos levantamentos verificados depois da comunicação (20.40h).
VI- A circunstância de o documento se mostrar assinado por dois elementos da Direcção de Coordenação da ré que, no entanto, não são legais representantes da instituição de crédito, não obsta a que se considere o Banco vinculado pois, de acordo com a praxis bancária, aliás do interesse das próprias instituições de crédito, Não é necessária a assinatura dos representantes legais dos bancos para estes se vincularem nos contratos correntes pelos mesmos celebrados ao balcão das suas agências, prática móvel e comum, via única possível, por via da tutela da aparência, de proceder às incontáveis operações que têm lugar nas agências bancárias, criando-se assim, na opinião comum, uma relevante e fundada convicção de que os contratos celebrados ao balcão ou assinados pelo chefe do departamento são vinculativos para a instituição de crédito por estarem aqueles que os subscrevem devidamente mandatados para o efeito.
VII- Ora um tal entendimento vale igualmente para aqueles documentos em que, como o referenciado, a instituição de crédito reconhece e declara o momento em que lhe foi comunicado o furto do cartão de crédito atribuído ao cliente; as declarações que dele constam não podem deixar de se considerar vinculativos para a instituição de crédito, traduzindo-se, assim, em válida declaração confessória (artigos 352.º, 353.º, 358.º todos do Código Civil).

(SC)

Texto Integral

Acordam na Relação de Lisboa

I. Processo n.º 3258/06
7ª Secção

[…]

Pedido: Condenação do réu em reembolsar os autores na quantia de 800.972$00 e a pagar juros de mora sobre a mesma, à taxa legal, desde 19/09/94, até integral pagamento e, subsidiariamente, juros de mora desde da citação até integral pagamento, reconhecimento por parte do réu em que não tem direito a exigir dos autores o pagamento da importância de 250.000$00 que foi levantada a titulo de crédito, por desconhecidos que furtaram o cartão de crédito da autora, reconhecimento igualmente que não tem o direito de exigir dos autores o pagamento de qualquer importância a titulo de cash advance pelos levantamentos efectuados e reconhecer ainda que não tem direito a exigir dos autores o pagamento de qualquer importância a titulo de juros moratórios legais acréscimos sobre as quantias atrás referidas.

Alegam, em síntese, que são titulares de uma conta depósito à ordem do Banco […] tendo a autora celebrado um contrato de emissão e utilização do Cartão Visa Classic […], o qual lhe foi furtado em 19/09/94, em Nova Iorque (EUA), cerca das 14h35 locais (20h35 de Lisboa) por desconhecidos - que lhe furtaram a carteira de mão onde estava o referido cartão, acontecendo que no verso de uma fotografia que também lá se encontrava a autora tinha anotado o pin para movimentação do referido cartão; esse furto foi comunicado a um funcionário do réu cerca das 20h45/20h50 (hora de Lisboa) desse mesmo dia, o qual assegurou de que o sistema ficara bloqueado; no regresso a Lisboa, a autora foi informada que haviam sido feitos catorze levantamentos de dinheiro, em ATM, em Nova Iorque, sendo doze deles no montante de 500,00 USD (80.844$00), um de 300,00 USD (48.506$60) e outro de 200,00 USD (32.338$00), a que acrescem 250.000$00 retirados a titulo de crédito, não tendo o réu avisado os autores que o cartão em causa permitia que fossem feitos levantamentos de dinheiro no estrangeiro até ao limite da quantia existente na conta bancária, acrescido ainda de 250.000$00 a crédito; ora, os autores estavam convencidos de que, à semelhança do que acontece com os cartões multibanco e outros existia um limite diário para os levantamentos em ATM, em montante não superior a 50.000$00 e só por isso é que a autora levou o referido cartão na sua viagem, tendo-se o réu não só recusado a proceder ao reembolso das quantias em causa, como exigindo ainda o pagamento dos 250.000$00 levantados a crédito e de encargos de cash advance pelos levantamentos efectuados em dólares americanos no total de 34.373$00; concluem assim que o réu deveria ter informado a autora de que era possível fazer levantamentos sucessivos até esgotar a quantia em depósito, fora o crédito e ao não fazê-lo agiu culposamente devendo pois indemnizar os autores.

O Réu contestou, refutando que tenha violado as obrigações contratuais emergentes das Condições Gerais de Utilização dos Cartões, para particulares, designadamente a cláusula n.º 4, relativa aos levantamentos no estrangeiro, pois esta apenas impõe a informação de limites fixados pelo Banco de Portugal; para mais, todos os levantamentos ocorreram antes das 20h45, pelo que nenhuma responsabilidade cabe ao réu que accionou o bloqueamento do sistema; ao contrário, cabia à autora usar de cautelas para guardar de terceiros o seu pin, pelo que só os autores deverão responder pelos levantamentos abusivos da sua conta, nos termos dos art.s 405º e 406º do CC.

Conclui pela improcedência dos pedidos dos autores.

Foi proferida sentença, a qual julgou a acção improcedente, por não provada e, em consequência, absolveu o réu de todos os pedidos contra ele formulados.

Inconformados com tal decisão vêem apelar os autores, formulando as seguintes conclusões:

1 - O Banco réu não informou os autores, mormente a autora, nem no momento em que a incentivou a aderir ao cartão, nem no momento em que lho atribui, nem posteriormente até ao dia 25 de Outubro de 1994, que aquele cartão permitia que, no estrangeiro, fossem efectuados levantamentos até ao limite do saldo disponível na conta de depósitos à ordem e ainda do limite disponível do plafond de crédito associado e atribuído ao cartão.

2 - A autora estava convencida, em função da informação que dispunha e que lhe havia sido dada pelo proprietário do cartão, o Banco Réu, que aquele cartão, à semelhança do que se passava então em Portugal, só permitiria diariamente e por débito da conta a que estava afecto, o levantamento de quantia não superior a Esc. 50.000$00.

3 - A autora correu o risco de viajar com o cartão em causa e de colocar na mesma carteira, embora não junto, fotografia no verso da qual havia anotado o PIN do referido cartão, por estar convencida que, em caso de furto ou extravio, só lhe poderia ser sacado da conta DO, em limite e caso não avisasse tempestivamente o Banco R., a quantia de Esc. 50.000$00.

4 - Caso o Banco R. a tivesse informado que tal cartão permitia o saque da integralidade do saldo disponível da conta DO e ainda o limite disponível do crédito associado e atribuído ao cartão, a autora não teria corrido o risco de viajar com esse cartão e muito menos de colocar a fotografia com anotação do pin no verso na carteira.

5 - Só a conduta omissiva do Banco R., ao não prestar as informações que deveria ter prestado sobre as condições essenciais de utilização do cartão de que é proprietário, determinou o prejuízo que os autores sofreram.

6 - O Banco R. violou a cláusula 4ª das condições ao não informar os Autores que o limite de levantamentos no estrangeiro era confinado ao saldo disponível na conta DO e ao crédito disponível no plafond de crédito do cartão.  

7 - E ao contrário do afirmado pelo Tribunal a quo, qualquer pessoa média colocada perante a cláusula 4ª das condições gerais do cartão de crédito a interpreta no sentido de que, tal como existe em território nacional, no estrangeiro existiriam limites de levantamentos.

8 - Aliás e conforme vem demonstrado, no estrangeiro, também existiam limites de levantamento com aquele cartão: até ao limite do que se encontre disponível na conta DO e se encontre disponível no plafond de crédito do cartão.

9 - Ao não informar o utilizador do cartão, quer no momento da subscrição das condições gerais, quer posteriormente, que esse cartão permite no estrangeiro efectuar levantamentos que têm como limite o saldo disponível na DO, acrescido do saldo disponível do cartão crédito, o Banco R. violou a cláusula 4ª do contrato e colocou os Autores na situação de prejuízo patrimonial a que se reportam os autos.

10 - Alegaram os Autores nos artigos 21º e 22º da p.i. os factos que o Tribunal a quo veio a acusá-los de não terem logrado demonstrar.

11 - Pese embora a reclamação dos autores para que, pelo menos, o facto 21º viesse a ser levado ao Questionário, assim não o entendeu o Tribunal a quo que indeferiu a sua reclamação nessa parte.

12 - Não foram pois provados pelos autores os factos constantes dos artigos 21º e 22º da p.i., porquanto pese embora alegados foi o próprio Tribunal “a quo" quem entendeu que, segundo as várias e plausíveis soluções de direito, tais factos eram despiciendos.

13 - Não pode pois o Tribunal a quo julgar improcedente a presente acção e absolver o Banco R. do pedido com fundamento em que os autores não lograram demonstrar que só a convicção expressa na resposta dada ao quesito 5º determinou que a autora levasse consigo o cartão para a viagem aos E.U.A, quando tal facto está expressamente invocado pela positiva e pela negativa nos artigos 21º e 22º da p.i.

14 - As cláusulas 16ª e 17ª das condições gerais de utilização do cartão em apreço são manifestamente nulas, atento o disposto nas alíneas c) e d) do Art. 18º do DL. nº 446/85, de 25 de Outubro.

15 - Não podem essas cláusulas, sem mais, ser invocadas para afastar toda e qualquer responsabilidade do proprietário do cartão, o Banco R., no prejuízo sofrido pelos autores.

16 - O incumprimento do Banco Réu do seu dever de informação constante da cláusula 4ª das condições gerais do cartão determina a inversão do risco, passando a correr por sua conta os danos sofridos pelos autores.

17 - Só assim não seria se o Banco R. tivesse demonstrado em Juízo, que mesmo que tivesse cumprido a sua obrigação para com os autores, os factos lesivos teriam ocorrido, o que manifestamente não fez.

18 - Incumbia ao Banco R. actuar de acordo com a solicitação dos Autores no sentido de obter as listagens das caixas automáticas Nova Iorquinas onde foram efectuados os levantamentos, com forma a demonstrar que a informação prestada por carta, em 25 de Outubro de 1994, era fundamentada e que os débitos efectuados em conta eram todos eles devidos.

19 - Ao não obter essas listagens, ao não demonstrar que tentou recolhê-las junto dos Bancos Nova Iorquinos e ao nem sequer responder aos sucessivos pedidos que os autores lhe dirigiram nesse justo sentido, o Banco Réu violou deveres fundamentais na sua relação complexa e atípica com os Autores e que subjaz a uma abertura de conta de depósitos à ordem.

20 - Incumbia ao Banco R., sem precedência de pedido expresso dos Autores nesse sentido, actuar diligentemente no sentido de demonstrar inequivocamente que os movimentos a débito efectuados na conta DO dos autores decorriam do uso abusivo do cartão em causa, por terceiros, em momento anterior ao da recepção pelo Banco da comunicação de furto.

21 - A comunicação por carta de uma listagem de movimentos sem documento suporte não é documento idóneo e que faça prova da existência desses movimentos.

22 - A mera junção aos autos, já em sede de audiência de discussão e julgamento, de uma listagem informática impressa em suporte papel elaborada pelos serviços informáticos de cartões do Banco R. não constitui documento bastante para fazer prova suficiente da existência desses movimentos, colocados em causa pelos autores.

23 - Só as listagens das caixas de atendimento automático dos Bancos Nova Iorquinos, com a menção aos local, à data, à hora, minuto e segundo locais é que constituiriam a prova bastante desses mesmos factos, listagens essas que só o Banco R. dispunha de meios para obter e que nunca exibiu quer aos Autores, quer nos autos, nem sequer demonstrou ter efectuado as diligências necessárias no sentido de as recolher.

24 - Os autores duvidam da fidedignidade dos elementos respeitantes aos alegados levantamentos, por não se lhes afigurar sequer como plausível ser possível proceder à realização de 14 movimentos de levantamento de quantias em dinheiro, com a digitalização do código secreto em cada uma delas, em duas caixas automáticas distantes uma da outra, em cerca de 16 minutos.

25 - Tendo o Banco R. confessado através de carta de 4 de Outubro de 1994, junta aos autos pelos autores na audiência de discussão e julgamento, que a comunicação de furto de cartão foi recebida às 20h40m não pode deixar de se considerar essa confissão expressa do Banco R. e consequentemente corrigir o menção constante da alínea G) da matéria assente.

26 - Da conjugação desse facto que resulta da confissão do Banco R. com a informação prestada pelo Sr. F. […] de que o cancelamento era imediato (alínea H)), não deveriam, nem poderiam ter ocorrido os movimentos registados pelo Banco R. a partir desse minuto 40.

27 - Esses 4 últimos movimentos, processados todos depois das 20h40 (hora de Lisboa), têm um espaço temporal entre cada um deles de cerca de 2 a 4 minutos o que se afigura plausível para este tipo de movimento de cartão; o mesmo não sucede com os alegados anteriores 10 movimentos que foram efectuados em cerca de 5 minutos, mediando entre cada um deles um mínimo de 10 segundos e um máximo de 40 segundos, tempos que mal possibilitam a entrada e saída do cartão do caixa automático.  

28 - É a conduta do Banco R. que não obtém e não entrega aos Autores as listagens dos 2 Bancos Nova Iorquinos, que não responde a qualquer uma das suas cartas em que solicitavam essas mesmas listagens, que não reconhece a sua culpa na violação expressa no disposto na cláusula 4ª das condições gerais do cartão e que ainda não satisfeito com o prejuízo sofridos pelos autores que viram desaparecer a integralidade do saldo da sua conta DO, ainda os interpela sucessiva e insistentemente no sentido de o reembolsarem dos montantes de cash advance, acrescido de despesas e juros remuneratórios e moratórios que determina a pendência da presente acção.

29 - Deve pois o Banco R. ser julgado o único e exclusivo culpado pelos danos sofridos pelos autores, tendo em consideração a sua conduta omissiva quer na informação sobre a forma de movimentação e utilização do cartão no estrangeiro, quer na obtenção da documentação comprovativa de que o saque dos cerca 1050 contos foram efectuados nos 14 movimentos, em 16 minutos, nos locais, datas, horas indicadas pelo Banco.

Concluem, dizendo que a sentença recorrida ao decidir como decidiu violou o disposto nos Art.s 342º, 405º, 406º,  798º, 799º, alíneas a), b), c) e d) do Art. 1161º  ex vi do Art. 1156º do Código Civil e alíneas c) e d) do Art. 18º do DL. n.º 446/85, de 25 de Outubro, devendo, em consequência, ser a presente acção julgada procedente, por provada, e o Banco R. condenando na integralidade do pedido.


O R., ora apelado, contra-alegou, dizendo:

1. Não merece reparo a douta sentença recorrida, pois, no âmbito da relação estabelecida com o Banco, a autora foi a única culpada do ocorrido, ou seja, dos levantamentos efectuados após o furto do cartão mencionado nos autos.

2. Tem sido entendido, no que respeita a este tipo de ocorrências com cartões de crédito ou de débito, que a responsabilidade deverá ser repartida entre o emissor do cartão e o seu titular, tomando-se como decisivo o momento em que o titular do cartão cumpre o seu dever de comunicar ao banco a perda ou furto, de tal forma que o titular será responsável na medida do seu incumprimento das suas obrigações relativas à segurança desse cartão e do código de acesso secreto que lhe foi atribuído, estendendo-se tal responsabilidade até ao momento em que comunicar ao emissor do cartão o seu extravio.

3. No caso em apreço, é manifesto que a titular do cartão incumpriu de forma grave a sua obrigação de guarda e sigilo relativamente ao código de acesso secreto que lhe foi atribuído, mantendo-o anotado no verso de uma fotografia que transportava na carteira em que se encontrava o próprio cartão.

4. Esta é que é a questão essencial no caso sub judice, sendo irrelevante que o apelado devesse ou não ter avisado a titular do cartão de que não existia limite para os levantamentos no estrangeiro.

5. Desde logo, não ficou provado que a autora teria deixado de anotar o código pin no verso da fotografia se soubesse que não existia aquele limite. Não pode deixar de improceder, por conseguinte, a conclusão, formulada pelos apelantes, de que a autora correu o risco de anotar o pin no verso da fotografia por estar convencida de que, em caso de furto ou extravio, só lhe poderia ser retirada da conta a quantia de Esc: 50.000$00.

6. Depois, não é admissível dizer-se que a causa do prejuízo decorrente dos levantamentos abusivos foi a omissão de informação quanto ao limite dos mesmos. Com tal informação ou sem ela, a autora nunca deveria ter assumido qualquer risco quanto à possibilidade de acesso por terceiros ao seu código pessoal, sendo-lhe imputável toda a responsabilidade daí decorrente.

7. Este argumento dos apelantes seria equivalente a dizer-se que, se determinado condutor de um veiculo automóvel estiver convencido, por falta de informação da seguradora, de que não existe limite para o seguro de responsabilidade civil e passar num cruzamento com o sinal vermelho e em excesso de velocidade, atropelando e provocando a morte de um peão, não haverá qualquer responsabilidade desse condutor, pois o mesmo não teria infringido as regras do Código da Estrada se soubesse que, além do limite da responsabilidade da seguradora, seria ele o responsável pelos danos causados a terceiros. Ninguém aceitará como legítimo que esse condutor se defenda com a afirmação de que apenas correu o risco de violar determinados deveres de cautela e segurança por pensar que não seria responsável pelo pagamento de qualquer indemnização a terceiros e que, portanto, a culpa é exclusivamente da seguradora, que não o avisou da existência de um limite de capital no seguro de responsabilidade civil.

8. Em qualquer caso, nem sequer é correcta a conclusão dos apelantes de que o Banco deveria ter prestado informação quanto à inexistência de limite.

9. A cláusula contratual respeitante a esta obrigação estabelecia apenas que "o titular do cartão será mantido informado, em tempo oportuno, do limite em vigor fixado para este efeito pelo Banco de Portugal e constante das suas instruções". O objectivo desta cláusula é, exclusivamente, o de permitir ao titular do cartão o conhecimento de eventuais restrições que sejam impostas pelo Banco de Portugal em relação ao seu direito de efectuar levantamentos em dinheiro no estrangeiro, nada tendo a ver com informação quanto ao risco que o titular pode correr em caso de furto ou extravio do cartão.

10. Assim, o Banco apenas teria a obrigação de informar o titular do cartão dos limites que, porventura, fossem estabelecidos pelo Banco de Portugal, não havendo necessidade de prestar informação quanto à inexistência de tais limites, pois tal inexistência é de presumir.

11. De resto, a informação que devesse ser prestada pelo Banco dependeria sempre de pedido do titular nesse sentido, o que não se provou que tenha ocorrido no caso dos autos.

12. No que respeita ao momento exacto dos levantamentos abusivos, também são improcedentes as conclusões dos apelantes, pois, neste aspecto, vale o princípio da livre convicção do juiz, que deve decidir com base nos diversos meios probatórios, designadamente testemunhais e documentais, que forem apresentados. Produzida a prova, o tribunal respondeu à matéria de facto de acordo com a convicção firmada, não podendo ser postas em causa as respostas dadas.

13. Por outro lado, a carta em que, de acordo com os apelantes, o apelado confessou que a comunicação do extravio do cartão ocorreu às 20h40m, nunca poderia ser considerada como mais do que um simples meio de prova, que o tribunal podia valorizar em conjugação com os demais meios probatórios. Só poderia existir confissão se a afirmação proviesse de representante legal do Banco ou de procurador com poderes bastantes para confessar, o que não foi o caso.

14. De tudo o exposto, decorre que foi justa e bem fundamentada a decisão recorrida, que deve ser assim mantida, sendo a apelação julgada improcedente.

II. 1. Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir, à luz do disposto nos art.s 684º, n.º 3, e 690º, n.º 1, do CPC (sem prejuízo, é claro do disposto no art. 660º do CPC, aplicável por via do disposto no art. 713º, n.º 2 do CPC)  as seguintes questões: (a) a alegada conduta omissiva do réu ao não prestar as informações sobre as condições de utilização do cartão da autora, designadamente sobre os levantamentos no estrangeiro, violando assim a cláusula 4ª referente ao cartão Visa […], incluído nas Condições Gerais de Utilização dos Cartões (para particulares); (b) a não inclusão dos factos constantes dos artigos 21º e 22º da P.I. no questionário; (c) a nulidade das clausulas 16ª e 17ª das Condições Gerais de Utilização dos Cartões, face ao disposto no art. 18º alíneas c) e d) do DL 446/85 de 25.10; (d) a não demonstração, por parte do réu de que os levantamentos abusivamente feitos após o furto do cartão ocorreram em momento anterior ao da recepção pelo réu da comunicação do furto, por insuficiência da prova documental apresentada nesse sentido; (e) se deve alterar-se a matéria de facto assente sob o n.º 7 da sentença proferida em 14/11/05 (correspondente à alínea G) da especificação do despacho saneador constante de fls. 119 e ss.), face à confissão do réu através da carta enviada aos autores em 04/10/94 (e por estes junta na audiência de discussão e julgamento - cfr. fls. 192), na qual se reconhece que a comunicação do furto do cartão foi feita às 20h40m (hora de Lisboa), tendo sido de imediato desencadeados os mecanismos de segurança inerentes ao cancelamento do cartão.

II. 2. 1. Fundamentos de facto:

1.º - Os AA são titulares da conta de depósito à ordem com o n.º […] do Banco […]em Lisboa.

2.º - Em Março de 1994, o R. após várias e sucessivas insistências da sua parte, celebrou com a A. um contrato de emissão e utilização do Cartão Visa Classic […], com o n.º […], cujas cláusula foram por ele elaboradas de antemão, e constam preenchidas em impressos que são apresentados aos candidatos à obtenção do referido cartão, os quais se limitam a indicar, em espaços em branco a isso destinados, diversos elementos respeitantes à sua identificação e da conta a cuja movimentação o cartão de destina.

3.º - Das condições de utilização desse cartão, que constam do verso desse impresso do pedido de adesão, destaca-se a seguinte, relativa ao Cartão Visa Nova Rede:

« 4. - No que respeita aos levantamentos no estrangeiro de dinheiro, junto de estabelecimentos bancários e caixas automáticas, o titular do cartão será mantido informado, em tempo oportuno, do limite em vigor fixado para este efeito pelo Banco de Portugal e constante das suas instruções.».

4.º - Durante imenso tempo a A. não utilizou esse cartão tendo, por isso, recebido vários telefonemas dos serviços do R, surpreendidos por tal facto; inclusivamente, da primeira vez que o fez foi felicitada pelo R.

5.º - Em 19/4/94, na cidade de Nova Iorque, cerca das 14H35 (hora loca), 20H35 em Lisboa, a A foi assaltada por indivíduos desconhecidos que lhe furtaram a carteira de mão, onde tinha guardado, entre outras coisas, o Cartão Visa […] emitido pelo R..

6.º - Esse furto foi imediatamente comunicado pela A ao seu marido, que se encontrava em Lisboa.

7.º - Por sua vez o A marido transmitiu a ocorrência de referido furto ao funcionário do R que se encontrava, nessa altura, no serviço de cartões, F.[…], cerca das 20H45/20H50 (hora de Lisboa) desse mesmo dia.

8.º - O mencionado funcionário do R informou o A de que podia ficar descansado, pois os mecanismos de segurança haviam sido accionados e, a partir daquele momento, não havia risco de o cartão ser utilizado pelo autor do furto, uma vez que o sistema for bloqueado.

9.º - O referido funcionário do R apenas pediu que a A, aquando do seu regresso a Lisboa, confirmasse por escrito, em impresso próprio, a participação do furto e solicitasse o cancelamento do cartão, o que esta fez.

10.º - Já após o seu regresso a Lisboa, a A foi informada pelo R de que haviam sido feitos com esse cartão, em Nova Iorque, no próprio dia 19/9/94, os levantamentos de dinheiro, em máquinas de pagamento (ATM) e nas horas (de Lisboa) seguintes:

a) 20H26’42’’ 500,00 USD/80.844$00 PTE Chase Bank
b) 20H27’18’’ 500,00 USD/80.844$00 PTE Chase Bank
c) 20H27’57’’ 500,00 USD/80.844$00 PTE Chase Bank
d) 20H28’57’’ 500,00 USD/80.844$00 PTE Chase Bank
e) 20H19’17’’ 500,00 USD/80.844$00 PTE Chase Bank
f) 20H29’56’’ 500,00 USD/80.844 PTE Chase Bank
g) 20H30’06’’ 300 USD/48.506$00 PTE
h) 20H30’32’’ 500,00 USD/80.844$00 PTE Chase bank
i) 20H31’50’’ 500,00 USD/80.844$00 PTE Chase Bank
j) 20H31’50’’ 500,00 USD/80844$00 PTE
   l) 20H36’44’’ 500,00 USD/80.844$00 349 Fifth Avenue
   m) 20H40’41’ 500,00 USD/80.844$00 349 Fifth Avenue
     n) 20H42’40’’ 200,00 USD/32.338$00 349 Fifth Avenue.

11.º - Com tais levantamentos foi retirada a totalidade da quantia que os RR tinha depositada na conta mencionada em 1.º.

12.º - E foram retirados ainda 250.000$00 a crédito.

13.º - Os AA escreveram e enviaram ao R as cartas reproduzidas de fls. 21 a 25 que foram por este recebidas.

14.º - Os AA comunicaram ao R o seu desejo de serem reembolsados das quantias que foram levantadas com o cartão em Nova Iorque, no dia 19/4/94, após o mesmo ter sido furtado à A, mas o R recusou-se a proceder ao pretendido reembolso.

15.º - Para além disso o R exige aos AA o pagamento de 250.000$00 que foram levantados a crédito com o cartão nas circunstâncias descritas, acrescidos de juros de mora.

16.º - E também o pagamento das quantias a título de encargos de cash advance pelos levantamentos que foram efectuados em dólares USA, num total de 34.373$00.

17.º - No verso de uma fotografia de familiares seus, que trazia guardada num outro local da carteira entre vários documentos, a A tinha o seu número pessoal (PIN) para movimentação da referida conta.

18.º - O R não respondeu à solicitação feita pelos AA nas suas cartas de 14/10/94 e de 17/11/94, onde se lamentam do facto de o Banco negar a sua responsabilidade e não os haver informado da faculdade ilimitada do cartão em levantamentos.

19.º - Até a A ter sofrido o assalto o R não havia informado os AA de que o cartão Visa de que a A era portadora permitia que, no estrangeiro, fossem feitos levantamentos sucessivos em dinheiro até ao limite da quantia existente na conta bancária, acrescida ainda de 250.000$00 a crédito.

20.º - A A estava convencida de que existia um limite máximo diário para efectuar com o aludido cartão levantamentos em máquinas automáticas, em Portugal e no estrangeiro, de montante não superior a 50.000$00.

21.º - Logo que o R recebeu a comunicação sobre o alegado furto do cartão, foi accionado o bloqueamento do sistema, tal como o prometido por F.[…].

22.º - Foi também efectuado um 14.º levantamento no dia 19/9/94, às 20H40 (hora portuguesa), no montante de 78.450$00.

23.º - Os levantamentos indicados em 10.º foram todos efectuados no dia, hora. Local e nos montantes ali descriminados, mediante a digitação do código pessoal da A (PIN).

II. 2. 2. Apreciando:

1. Quanto à alegada conduta omissiva do réu ao não prestar as informações sobre as condições de utilização do cartão da autora, designadamente sobre os levantamentos no estrangeiro, violando assim a cláusula 4ª referente ao cartão Visa […], incluído nas Condições Gerais de Utilização dos Cartões

Entende-se, salvo melhor opinião, que não houve qualquer violação do dever de comunicação por parte do réu, designadamente no que respeita à mencionada clausula nº4 relativa aos levantamentos feitos no estrangeiro.

Com efeito, na referida cláusula diz-se apenas que: No que respeita aos levantamentos no estrangeiro de dinheiro, junto de estabelecimentos bancários e caixas automáticas, o titular do cartão será mantido informado, em tempo oportuno, do limite em vigor fixado para este efeito pelo Banco de Portugal e constante das suas instruções.

Ou seja, apenas e se o Banco de Portugal houvesse fixado limites para os levantamentos no estrangeiro por titulares de cartões visa ou similares é que, então sim, estaria o Banco réu obrigado a informar a autora desses mesmos limites. E compreende-se que assim seja, uma vez que estando o titular do cartão naturalmente interessado na maior mobilidade possível do seu cartão quando se desloca ao estrangeiro, tal medida tem por objectivo precavê-lo quanto aos levantamentos que fizer no estrangeiro, de modo a evitar que, inadvertidamente, esgote o seu limite diário, ficando assim impossibilitado de acorrer a uma qualquer situação de emergência, após ter gasto todo o dinheiro na aquisição de bens de consumo, por exemplo.

Portanto, e uma vez que não houve qualquer comunicação por parte do réu o sentido só pode ser um: o de que o Banco de Portugal não estabeleceu, à altura, quaisquer limites, os quais, note-se, nada têm a ver com os riscos que o titular do cartão poderá ter com o furto ou o extravio deste.

Diga-se ainda que não é razoável a argumentação dos autores neste aspecto uma vez que a própria autora sempre fez questão de realçar que apenas havia levado o cartão para o estrangeiro por estar plenamente convencida de que existia um limite máximo diário de 50.000$00 para os levantamentos em ATM’s, à semelhança do que acontecia com os cartões multibanco em Portugal (art.º 20º, 21º e 22º da PI e 20º dos factos dados como provados). Ora, nada autorizava ou legitimava a autora para tal “convicção”. Antes pelo contrário, não tendo recebido qualquer comunicação a autora, como qualquer declaratário normal (art.º 236º CC) , só poderia interpretar tal situação como a ausência de limites, e não no sentido pugnado pelos autores na conclusão 7ª das suas alegações. No mínimo a autora poderia e deveria ter-se informado junto do Banco réu, caso se lhe suscitassem quaisquer dúvidas. Acontece que, por um lado, não se provou que a autora se tenha procurado informar e, por outro, partiu para o estrangeiro auto-convencida (mas sem qualquer fundamento) de que haveria um determinado limite e, ainda por cima, violando ela própria regras elementares de segurança quanto à utilização do cartão [designadamente a constante da clausula 6º, alínea b) das Condições Gerais  de Utilização dos Cartões, ao não tomar os devidos cuidados com o seu pin que havia aposto no verso de uma fotografia que trazia na mesma carteira onde tinha o cartão ( cfr. o facto provado sob o n.º 17)].

Em resumo, não houve qualquer violação do dever de informação por parte do Banco réu.

2. Tendo ficado assim decidida esta primeira questão, a segunda (sobre a não inclusão dos factos constantes dos artigos 21º e 22º da P.I. no questionário), fica também, desde já, resolvida.

Com efeito, torna-se perfeitamente irrelevante a questão da não inclusão no questionário dos factos alegados nos art.º 21º e 22º da PI.
 
Em primeiro lugar, deve notar-se que os autores nunca reclamaram da não inclusão da factualidade contida no referido art.º 22, mas apenas da relativa ao art.º 21º, conforme se pode constatar do seu requerimento de folhas 102 a 105 dos autos, pelo que não existe qualquer fundamento legal para vir agora fazê-lo ( cfr. art.º 511º CPC), sendo também  evidente que seria manifestamente absurda a quesitação simultânea das versões positiva e negativa do mesmo facto...  

Já no que toca à não inclusão da factualidade constante do art.º 21º da PI (...E só por isso a A. levou o referido cartão consigo nessa viagem...) a mesma perde agora qualquer interesse, já que se trata de um mero complemento do quesito n.º 5 que, justamente, veio demonstrar que a autora estava convencida da existência do tal limite máximo diário de 50.000$00 para os levantamentos no estrangeiro, convencimento esse que, como já se viu, não é legitimo nem tem qualquer fundamento, não isentando a autora do risco que ela própria criou.

As restantes três questões estão intimamente relacionadas entre si, já que dizem respeito à questão da repartição da responsabilidade entre os AA e o Banco R. pelos levantamentos efectuados após o furto do cartão.

3. Quanto à nulidade das clausulas 16ª e 17ª das Condições Gerais de Utilização dos Cartões, face ao disposto no art. 18º alíneas c) e d) do DL 446/85 de 25.10

Seria intolerável que a responsabilidade recaísse apenas sobre o titular do cartão extraviado ou furtado, tanto mais que estão previstos mecanismos de bloqueio em caso de ocorrer extravio ou furto, como aliás resulta claramente das próprias Condições Gerais de Utilização dos Cartões (cfr. Cláusulas n.ºs 14 e 16).

Assim, quaisquer cláusulas tendentes a alterar as regras respeitantes à distribuição do risco (imputando-o apenas ao titular do cartão, por exemplo) são absolutamente proibidas e, como tal, nulas, atento o disposto nos arts. 21º, al. f) e 12.º do DL 446/85 de 25.10 (Cláusulas Contratuais Gerais), sendo aliás este o entendimento unânime da Jurisprudência (cfr. a Jurisprudência citada no Ac. do STJ acima referido, a págs. 137), já que ao não se facultar ao titular do cartão a prova da ausência de culpa na respectiva utilização, o Banco estaria a subverter o regime respeitante à distribuição do risco, constante do art. 796º, n.º 1 do CC. Tudo se passa, pois, como se essas cláusulas não constassem das Condições Gerais de Utilização do Cartão. Ora, se quanto à cláusula 16ª nenhum problema se coloca, uma vez que nada estabelece sobre a repartição do risco, já o mesmo não se poderá dizer da cláusula 17ª que, efectivamente, atento os moldes em que está redigida, se deve considerar como absolutamente proibida e, consequentemente, nula, não podendo servir de fundamento para afastar a responsabilidade do Banco Réu, ao contrário do que é dito na sentença ora recorrida (cfr. fls. 295).

De qualquer modo, e no caso presente, não parece sequer que o próprio Banco R. esteja a afastar de si qualquer responsabilidade escudando-se na cláusula 17ª, já que, como se retira quer da própria contestação (art.s 28º e ss.) quer das próprias contra - alegações (cfr. fls. 351 e ss.) o réu não exclui, antes admite a repartição da responsabilidade, tal como a entendem a Doutrina e a Jurisprudência: o que é decisivo é saber-se o momento em que o respectivo titular do cartão comunica ao Banco o furto ou extravio, de modo a que aquele possa accionar os mecanismos de bloqueio afim de evitar mais levantamentos. Ou seja, ... o titular do cartão será responsável na medida do incumprimento das suas obrigações relativas à segurança do mesmo e do código de acesso [pin] que lhe foi atribuído, estendendo-se tal responsabilidade até ao momento em que comunicar ao Banco o extravio ou furto do cartão ..., ao passo que o Banco, ... por sua vez, responde pelos prejuízos causados posteriormente, quando já podia e devia ter accionado todos os mecanismos necessários de modo a evitar novas utilizações ...(1). E a responsabilidade do titular do cartão, nos termos atrás definidos, será patente quando se verificar que é da sua inteira responsabilidade o facto de terceiros terem tido acesso ao pin, designadamente por incúria, desleixo ou negligência daquele, ao expô-lo, por exemplo, num local acessível e junto ao cartão, como sucedeu nos presentes autos. Aliás, o próprio Ac. do STJ atrás referido vai mais longe, ao referir que ainda que o titular do cartão não tenha qualquer culpa no furto, roubo ou extravio do mesmo, ainda assim serão da sua responsabilidade os prejuízos causados até à comunicação ao Banco dessas ocorrências, devendo pois actuar com prontidão nesse sentido.  

Ora, o Banco R. aceita perfeitamente tal entendimento na repartição de responsabilidades (veja-se, aliás, o teor da carta enviada pelo Banco aos AA. a fls. 192, no seu parágrafo 3º) e, se apenas a imputa, na totalidade, à Autora, tal deve-se ao facto de todos os levantamentos terem ocorrido antes da comunicação que lhe foi feita pelo Autor entre as 20h45 e as 20h50 (hora de Lisboa) do dia em que ocorreu o furto (factos provados sob os n.ºs 10.º, 11.º e 22.º da sentença ora recorrida), problema este que, como veremos, se prende com as duas últimas questões a decidir.

4. Quanto à alegada insuficiência de prova documental (arts. 17.º a 24.º das Conclusões), entendo, salvo o devido respeito, afigura-se-nos que aos recorrentes não assiste qualquer razão.

Efectivamente, a questão já se havia colocado aquando da interposição do primeiro recurso (cfr. fls. 227 e ss) e foi objecto de apreciação por parte do douto Acórdão então proferido (cfr. fls. 263 a 273), o qual ordenou que se aditasse um quesito novo para, precisamente, se averiguar da veracidade da informação prestada pelo Banco R. quanto ao tempo e local em que ocorreram treze dos catorze levantamentos, questão nuclear para se determinar a repartição do risco nos termos já expostos. Além disso, e ao mesmo tempo que se ordenava o aditamento de um quesito, considerou-se que nada se podia fazer quanto ao apurado relativamente ao décimo quarto levantamento, que a sentença então proferida (cfr. fls. 214 a 222), deu como provado ter o mesmo ocorrido às 20h40 (hora portuguesa) do dia 19/09/94, embora quanto a este mesmo levantamento se colocassem exactamente as mesmas objecções quanto à insuficiência da prova documental apresentada pelo Banco R.. É que, como doutamente se observa, ... Sobre esse quesito, além da prova documental, foram ainda inquiridas duas testemunhas do R., como se alcança da acta (...), cujos depoimentos não foram sequer objecto de gravação. Nem constam dos autos elementos que imponham decisão diversa da resposta dada no âmbito daquele quesito ....

Ora, passa-se exactamente o mesmo quanto à questão novamente levantada pelos recorrentes sobre a insuficiência da prova. Na verdade, nada há a fazer quanto à resposta dada ao quesito oitavo (relativo ao 14.º levantamento), já que o próprio douto Acórdão de 28/09/04 decidiu manter a resposta dada aquele quesito, sendo que relativamente aos restantes treze levantamentos, e sobre os quais foi aditado o quesito nono, tendo os autos baixado à 1ª Instância apenas para julgamento dessa matéria, também foi produzida prova testemunhal (cfr. a acta fls. 286 a 287), pelo que a convicção do Mmo. Juiz a quo assentou não só na prova documental, mas também, e sobretudo, nessa prova testemunhal, como se alcança da fundamentação da resposta ao quesito (cfr. fls. 289). Assim, e uma vez que a matéria do quesito nono foi submetida a instrução em audiência de discussão e julgamento, sobre a mesma ouvida uma testemunha cujo depoimento não foi objecto de gravação, e não constam dos autos elementos que imponham decisão diversa, vedado está a este Tribunal de recurso sindicar eventual erro de julgamento quanto à resposta a esse quesito, atento o disposto no art. 712º, n.º1 als. a) e b) do CPC a contrario sensu.

5. Resta, por fim, a última questão colocada pelos ora recorrentes, respeitante à alegada confissão por parte do Banco R. de que a comunicação do furto teria então ocorrido às 20h40 (hora de Lisboa) de 19-9-94, conforme a carta assinada por dois elementos da Direcção de Coordenação da […] e constante de fls. 194 a 195, com a consequente alteração do facto assente sob o n.º7 da sentença ora recorrida.

A factualidade em causa (Por sua vez o A marido transmitiu a ocorrência de referido furto ao funcionário do R que se encontrava, nessa altura, no serviço de cartões, F. […], cerca das 20H45/20H50 (hora de Lisboa) desse mesmo dia.) foi desde logo dada como assente aquando da elaboração do Despacho Saneador, correspondendo à al. G) da Especificação, e, por sua vez, resultante do artigo 9º da P.I..

Ora, tal circunstância em nada obsta a que este Tribunal de recurso possa alterar tal factualidade, pois tal cabe no âmbito dos seus poderes e é legalmente admissível.

Com efeito, é hoje unanimemente aceite, quer pela Doutrina quer pela Jurisprudência que a selecção, quer dos factos assentes, quer dos que integram a base instrutória, pode vir a ser modificada, ainda que não haja reclamação, não constituindo tal selecção caso julgado formal, atenta a sua  natureza  puramente instrumental, não sendo, pois, uma decisão no sentido próprio do termo, mas uma simples organização de um elenco de factos para a boa disciplina das fases ulteriores do processo. É este o entendimento, entre outros, de Carlos Lopes do Rego (2). Quanto à vasta Jurisprudência existente, pode-se citar (3):...A fixação da especificação e do questionário, com ou sem reclamação, não conduz a caso julgado formal impeditivo da sua posterior modificação... e no mesmo sentido que (4):... O disposto no n.º5 do art. 511º do CPC [...] veio reforçar a orientação que considerava que a fixação da especificação e do questionário, com ou sem reclamação, não conduzia a caso julgado formal que obstasse à sua posterior modificação, conclusão a que se chegava através da consideração do disposto nos art.s 650º, n.º2, al. f), 659º, n.º 2, 712º, n.º2, 722º, n.º2, 729º e 730º todos daquele mesmo diploma...”). Mas sobretudo, também o Assento do STJ n.º 14/94 (5):... No domínio de vigência dos Códigos de Processo Civil de 1939 e 1961 [considerando este último antes e depois da reforma nele introduzida pelo DL n.º 242/85, de 9 de Julho], a especificação, tenha ou não havido reclamações, tenha ou não havido impugnação do despacho que as decidiu, pode ser sempre alterada, mesmo na ausência de causas supervenientes, até ao trânsito em julgado da decisão final do litígio...”), cuja doutrina (hoje com o valor de acórdão de uniformização de jurisprudência) permanece inteiramente válida (6).

E se assim é, pode e deve o Tribunal de recurso ter em conta toda a prova constante dos autos, designadamente a documental, como ensina o Ac. RE, de 17-7-86 (7): ... A especificação e o questionário não constituem caso julgado, podendo, na sentença, o Juiz tomar em conta os factos constantes de documento ainda que não inseridos em qualquer daquelas peças processuais; o n.º 3, do art. 659º do CPC não apenas permite, mas obriga o Juiz a tomar em consideração os factos admitidos por acordo e provados por documentos ou por confissão reduzida a escrito; ainda que a primeira instância não tenha usado daquela faculdade/ obrigação, pode usá-la o Tribunal da Relação, deliberando com base no conteúdo dos documentos juntos aos autos....

Assente, pois, que é possível modificar os factos dados como assentes na especificação, resta apenas saber se o documento em causa tem a força probatória de uma verdadeira confissão por parte do Banco R., nos termos dos art.s 352º e ss. do CC.

Ora, o documento em causa foi apresentado pelos autores no inicio da audiência de discussão e julgamento, não se tendo o Banco R. oposto à sua junção aos autos (prescindindo, aliás, do prazo legal de vista para exame do mesmo), nem o tendo impugnado por qualquer forma (cfr. art.s 373º e ss., do CC), pelo que, inegavelmente, tem força probatória (cfr. art. 376º do CC).

É certo que o Banco R., nas suas contra - alegações, vem sustentar que tal documento não pode ser considerado como mais do que um simples meio de prova que o Tribunal poderia valorizar em conjugação com os demais meios probatórios, não tendo havido qualquer confissão, uma vez que para que tal sucedesse, seria necessário que proviesse de representante legal do Banco ou de procurador com poderes bastantes para confessar.

Contudo, não tem o R. razão.     

Efectivamente, e segundo a praxis bancária, não é necessária a assinatura dos representantes legais dos bancos para os vincularem nos contratos correntes pelos mesmos celebrados ao balcão das suas agências. Assim, e a titulo de exemplo, os funcionários do Banco, de um serviço de atendimento de clientes são, em inúmeros contratos, o “rosto” desse mesmo banco, informando sobre as condições e termos dos contratos, e apondo as suas assinaturas nesses mesmos contratos, vinculando desse modo o Banco onde trabalham.

É uma prática móvel (Ost) e comum, via única passível de operacionalizar as incontáveis operações que tem de ter lugar nas agências bancárias. Trata-se, pois, de uma prática que gera na opinião comum a convicção de que os contratos celebrados ao balcão ou assinados por chefe de departamento são válidos do ponto de vista do banco, criando uma obrigatoriedade de cumprimento do clausulado para ambas as partes. Não fora assim e se se exigisse dos representantes legais, seria incontavelmente menor o número de negócios que cada banco poderia materialmente aspirar a fazer. É nessa linha que, por exemplo, Brito Correia se pronuncia ao questionar que, neste domínio, o Costume (neste caso o Costume Comercial) não constitua fonte de Direito (8).

No caso sub judice, dá-se até a particularidade de o documento em causa estar até assinado não por um qualquer funcionário mas antes por dois elementos da Direcção de Coordenação da […], com responsabilidades, obviamente, mais vastas, não oferecendo qualquer dúvida que as suas declarações vinculam o Banco R. e têm assim o valor de uma confissão por parte deste, de que ... Foi este Banco informado em 19 de Setembro p.p. às 20h40’, do furto do seu Cartão Visa Classic […], tendo sido desencadeados de imediatos mecanismos de segurança inerentes ao seu cancelamento, com vista ao impedimento da sua utilização por terceiros....

Deste modo, o facto assente sob o n.º 7 da sentença ora recorrida deve ser alterado, passando a constar: Por sua vez, o A marido transmitiu a ocorrência de referido furto ao funcionário do R que se encontrava, nessa altura, no serviço de cartões, F.[…], às 20H40 (hora de Lisboa) desse mesmo dia”, com as inevitáveis consequências ao nível da responsabilidade, dado que, face a tudo o que atrás se disse, passa a ser o Banco R. o responsável pelos prejuízos resultantes dos dois levantamentos ocorridos às 20h40’41’’ e 20h42’40’’, nos montantes de 500,00 USD (80.844$00) e de 200,00 USD (32.338$00), respectivamente, bem assim como pela retirada de 250.000$00 a crédito, pois embora não esteja apurada a hora a que esta ocorreu, ela é, inquestionavelmente, posterior ao último daqueles levantamentos, o que tem como consequência que este valor não lhes poderá ser exigido pelo Banco e apenas isso (trata-se de um crédito, não de um débito).
O demais peticionado mostra-se prejudicado, face à posição tomada quanto às questões de que se conheceu.

III. Pelo exposto, e decidindo de harmonia com as disposições legais citadas, decide-se conceder parcial provimento à apelação e consequentemente:

1. Condena-se o Banco R. a reembolsar os autores da quantia de 564.055 euros (113.182$00), acrescida de juros moratórios à taxa legal desde a data do levantamento até efectivo e integral pagamento;

2. Declara-se que o R. não lhes poderá exigir o montante levantado a título de crédito no valor de 250.000$00 (1.246,99 euros) e bem assim as importâncias correspondentes aos valores acima referidos (pontos 1 e 2 desta decisão), relativas à prestação desse mesmo serviço.

Confirma-se, quanto ao restante, a decisão recorrida.

Custas pelos AA e pelo R., na proporção dos respectivos decaimentos, em ambas as instâncias.  

Lisboa, 19 de Setembro de 2006

(Maria Amélia Ribeiro)
(Arnaldo Silva)
(Graça Amaral)



__________________________
1.-Ac. do STJ de 19/11/2002, CJ/STJ, Ano X, Tomo III - 2002, Págs. 135 a 139.

2.-Comentários ao Código de Processo Civil, Almedina, 1999, págs. 354- 355), António Abrantes Geraldes (Temas da Reforma do Processo Civil, II Volume, Almedina, 2000, 3ª Edição Revista e Ampliada, págs. 156-157), ou de José Lebre de Freitas (Código de Processo Civil Anotado, Volume 2.º, Coimbra Editora, 2001, págs. 382 a 384).

3.-c. RP, de 4-12-80, BMJ n.º 302, pág. 317.

4.-o Ac. RE, de 6-12-90, BMJ n.º 402, pág. 689.

5.-26-5-94, DR, I-A, de 4-10-94 e BMJ n.º 486, pág. 38.

6.-Entre outros, o Ac. do STJ, de 23-1-2001, P. n.º 3781/00-1ª: Sumários, 47º, e o Ac. do STJ, de 9-4-2002, Rev. N.º 4139/01-1ª: Sumários, 4/2002.

7.-BMJ n.º 372, pág. 380.

8.-Luis Brito Correia (1991/1992) Direito Comercial, I Volume, AAFDL, pág. 130 e ss.