QUEIXA
DESISTÊNCIA EM CASO DE COMPARTICIPAÇÃO
DIFAMAÇÃO PRODUZIDA EM JUÍZO
Sumário

A afirmação em articulado processual ou é da autoria exclusiva do advogado ou deste e do mandante; se for exercido o respectivo procedimento criminal apenas contra o mandante, dado o disposto no n.º 3 do art.º 114.º do Cód. Penal de 1982 – actualmente n.º 2 do art.º 115.º – é de concluir pela desistência da queixa se excedido o prazo da queixa contra o mandatário.

Texto Integral

(…)
6.O objecto do recurso versa a questão de saber se a queixa-crime deveria ter sido posta contra a arguida e o seu mandatário, por ter sido este a escrever as expressões susceptíveis de integrar o crime supra mencionado e em folhas com o seu timbre, o que implicaria uma comparticipação criminal.

7. Apreciando:
7.1. Observemos o que consta da decisão recorrida:

“O crime imputado à arguida A. é o crime de difamação, p.p. pela interpretação conjugada dos artigos 180.º, 182.º e 183.º, n.º 1, al. b), todos do Cód. Penal, e assenta, como acima já se referiu, em expressões/imputações insertas em peças processuais, mas subscritas pelo mandatário da arguida e em papel timbrado do mesmo.
Estaríamos, assim, neste âmbito, perante um caso de comparticipação, ou seja, duma acção conjunta do mandante e mandatário na realização de um tipo legal de crime.
Ora, de acordo com o ensinamento de Manuel Lopes Maia Gonçalves, nas suas anotações aos artigos 115.º a 117.º do Cód. Penal Anotado e Comentado, Almedina, 13.ª Ed., 2001, pp. 390 e ss., “consagrou-se e generalizou-se o princípio da indivisibilidade das consequências do não exercício tempestivo do direito de queixa relativamente a um dos comparticipantes do crime. Em matéria criminal não se pode escolher quem deve ser perseguido no caso de comparticipação; o que está em causa é o crime”.
No mesmo sentido pronunciam-se Manuel de Oliveira Leal – Henriques e Manuel José Carrilho de Simas Santos – Código Penal Anotado, Vol. I, Editora Rei dos Livros, 1996, 2.ª Ed., pp. 812 e ss.
Assim sendo, a renúncia de queixa e a falta de acusação contra o advogado subscritor da peça processual implica, nos termos das disposições legais citadas, dos arts. 115.º a 117.º do Cód. Penal, a desistência da queixa contra a arguida Ana Maria Porfírio.
Neste sentido, cfr., por todos, Ac. Tr. Rel. Coimbra, de 01/03/1989, onde se afirma que “a afirmação em articulado processual ou é da autoria exclusiva do advogado ou deste e do mandante; se for exercido o respectivo procedimento criminal apenas contra o mandante, dado o disposto no n.º 3 do art.º 114.º do Cód. Penal de 1982 – actualmente n.º 2 do art.º 115.º – é de concluir pela desistência da queixa se excedido o prazo da queixa contra o mandatário” – publicado in CJ, Ano XIV, tomo II, pp. 76.
Ora, é esta a situação dos autos, em que os assistentes apenas apresentaram queixa contra a mandante, cliente, a ora arguida A., e não, também, contra o advogado, mandatário, sendo que está, em muito, precludido o prazo para apresentar a respectiva queixa.
A este respeito, e como se refere no Ac. RC, de 01/03/1989, já referido, é possível configurar três situações distintas:
- Uma em que o advogado transfere para a peça processual aquilo que o cliente lhe disse depois de o advertir expressamente das consequências que daí poderão advir;
- Outra em que o autor do escrito é apenas o advogado, sem qualquer interferência do cliente, que, inclusive, é surpreendido por aquilo que é vertido na peça processual;
- Finalmente, aquela em que o cliente relata factos que sabe não serem verdadeiros, com o propósito de que o advogado os verta para o articulado, no convencimento de que correspondem à verdade.
Nesta última hipótese, ao agir no convencimento de que os factos que lhe foram relatados pelo cliente correspondem à verdade, o advogado não tem a intenção, e nem sequer configura a possibilidade, de preencher o tipo de ilícito do art. 180.º do Cód. Penal, faltando-lhe, pelo exposto, o dolo deste tipo legal. O cliente será, então, autor mediato do crime de difamação (art. 26.º do Cód. Penal) e o advogado um seu instrumento.
Unicamente nesta hipótese, se admite a possibilidade de o agente ser o único agente do ilícito.
Com efeito, mesmo na primeira hipótese, está-se perante um caso de comparticipação criminosa – cfr. Ac. RL, 17/01/96, in INTERNET http//www.dgsi.ptl/.
E, na segunda, perante um ilícito cometido apenas pelo advogado.
A responsabilidade exclusiva do cliente deve, pois, ser liminarmente excluída quando na peça processual seja relatado um facto ofensivo da honra de outrem. Isto porque o advogado, profissional forense com a responsabilidade de conduzir técnica e processualmente a lide, em nome e em representação dos seus constituintes, está vinculado por um dever geral de urbanidade (art. 89.º do Estatuto da Ordem dos Advogados), devendo, no exercício da sua actividade, evitar a prolação de factos susceptíveis de ofender a honra e a consideração de outrem.
Ora, dando de barato que os factos referidos na acusação particular são ofensivos da honra dos assistentes, nenhuma prova, nem sequer alegação, foi feita nos autos, no sentido de se concluir que a arguida Ana ... relatou factos que sabia não serem verdadeiros, para que o advogado os vertesse para o articulado, no convencimento de que correspondiam à verdade.
E, de resto, nem sequer tal consta da dita acusação particular, como deveria constar, por forma a afastar a responsabilidade do Ilustre Mandatário.
O que vale por dizer que os factos da acusação, tal como dela constam, são de imputar à arguida e ao seu Mandatário, Exm.º Sr. Dr. M. .
Consequentemente, estamos perante um caso de comparticipação criminosa.
Na realidade, o art. 26.º do Cód. Penal, sob a epígrafe de autoria, estatui que “É punível como autor quem executar o facto, por si mesmo ou por intermédio de outrem, ou tomar parte directa na sua execução, por acordo ou juntamente com outro ou outros, e ainda quem, dolosamente, determinar outra pessoa à prática do facto, desde que haja execução ou começo de execução”.
Este normativo engloba, indubitavelmente, a figura da comparticipação criminosa.
A este propósito, escreveu Faria Costa, que “para definir uma decisão conjunta parece bastar a existência da consciência e vontade de colaboração de várias pessoas na realização de um tipo legal de crime juntamente com outro ou outros. É evidente que na sua forma mais nítida tem de existir um verdadeiro acordo prévio, podendo mesmo ser tácito, que tem igualmente de se traduzir numa contribuição objectiva conjunta para a realização típica. Do mesmo modo que, em princípio, cada co-autor é responsável como se fosse autor singular da respectiva realização típica (...) ” – Formas do Crime, Jornadas de Direito Criminal, Centro de Estudos Judiciários, Livraria Almedina, pp. 169 e ss.
No caso vertente, dúvidas não há de que os articulados em referência, que se encontram reproduzidos a fls. 25 a 28, e a fls. 29 a 56 dos autos, respectivamente, foram elaborados pelo Ex.mº Mandatário da ora arguida A., de acordo com informações por esta prestadas, sendo o respectivo teor resultado da laboração intelectual do Ex.mº Advogado, em conformidade com as ditas informações.
De facto, o advogado é livre de discernir, de acordo com as instruções que tem e o objectivo conferido através do mandato, quais os factos relevantes para a procedência da sua pretensão processual, carreando para os autos, por seu mote próprio, o que considera relevante para o bom exercício da defesa do respectivo constituinte.
Não sendo, in casu, a arguida uma técnica de direito, terá transmitido ao seu mandatário os factos que, na sua perspectiva das coisas, sucederam, e que poderiam ser pertinentes em relação à litigância em que se mostrava envolvida, sendo provável que desconheça as regras próprias da tramitação processual, dos seus limites e consequências específicas, bem assim como a possibilidade concreta de incorrer na responsabilidade criminal que ora se lhe imputa.
Assim, se tais articulados se afiguram ofensivos da honra dos assistentes, não tendo sido alegado, mesmo na peça acusatória, que o Exm.º Advogado agiu no convencimento de que os factos que lhe foram relatados pela cliente, ora arguida, correspondiam à verdade, a responsabilidade criminal será de imputar a ambos.
Na realidade, presumindo-se que entre Advogado e Mandatário existe uma relação de lealdade, e afirmando-se que o teor dos articulados em apreço e as imputações que neles se fazem são falsos e ofensivos da honra e consideração dos assistentes, a arguida assim o teria comunicado àquele.
E, se assim não era, tal deveria constar da acusação particular, e não consta.
Estamos, pois, in casu, perante uma situação de comparticipação criminosa.
Como se infere da interpretação conjugada dos artigos 180.º e 188.º, n.º 1, ambos do Cód. Penal, o crime de difamação é de natureza particular, o que vale por dizer que, para instauração do procedimento criminal, é necessária a apresentação de queixa, e, posteriormente, a dedução de acusação particular – cfr. Art.º 50.º, n.º 1 do Cód. Processo Penal.
A queixa deveria ter sido apresentada contra todos os comparticipantes.
Na realidade, e como acima já se adiantou, o sistema processual penal português consagrou o chamado princípio da indivisibilidade, quando, no art. 115.º, n.º 2 do Cód. Penal, estipula “O não exercício tempestivo do direito de queixa relativamente a um dos comparticipantes no crime aproveita aos restantes, nos casos em que também estes não puderem ser perseguidos sem queixa”.
Também a acusação particular foi deduzida apenas contra a arguida Ana ..., olvidando o Ilustre Mandatário.
Assim, e porque os assistentes não apresentaram queixa, nem deduziram acusação particular contra ambos os participantes, falta nos autos uma condição legal de procedibilidade, imposta pelos arts. 115.º, n.º 2 e 117.º, ambos do Cód. Penal, o que importa a declaração de extinção do procedimento criminal.
Ponderados todos estes elementos, impõe-se, pois, proferir despacho de não pronúncia da arguida Ana Maria Porfírio.”


7.2. A questão decorre de um facto que não é controvertido e por tal se tem por assente. As expressões em que se funda o procedimento criminal, intentado em Julho de 2004 nos presentes autos, foram produzidas em articulado processual (requerimento) apresentado em Janeiro de 2004 no processo de falência, sendo tal peça subscrita pelo advogado da arguida, actuando na qualidade de mandatário constituído.
Ora qualquer afirmação em articulado processual ou é da autoria exclusiva do advogado ou deste e do mandante, e pressupõe necessariamente a articulação de factos donde resulte a responsabilidade exclusiva de um deles e as causas de exclusão do outro, caso seja intentada acção crime apenas contra um deles, como o pretendido pelo assistente.
Ora, na verdade, nenhuma prova, nem sequer alegação, foi feita nos autos, no sentido de se concluir que a arguida A relatou factos que sabia não serem verdadeiros, para que o advogado os vertesse para o articulado, no convencimento de que correspondiam à verdade, pelo que o procedimento criminal deveria ter sido intentado contra ambos.
Como muito bem observado na acertada, e bem fundamentada, decisão recorrida:
“Na realidade, presumindo-se que entre Advogado e Mandatário existe uma relação de lealdade, e afirmando-se que o teor dos articulados em apreço e as imputações que neles se fazem são falsos e ofensivos da honra e consideração dos assistentes, a arguida assim o teria comunicado àquele.
E, se assim não era, tal deveria constar da acusação particular, e não consta.
Estamos, pois, in casu, perante uma situação de comparticipação criminosa.”
Assim sendo, a renúncia de queixa, por falta de acusação contra o advogado subscritor da peça processual, implica, nos termos dos arts. 115.ºnºs 1 e 2,116º nº 1 e 117.º ambos do Código Penal, a desistência da queixa contra a arguida A..
Neste sentido, e conforme entendimento unânime da jurisprudência, verbi gratia o Ac. Tr. Rel. Coimbra, de 01/03/1989, onde se afirma que “a afirmação em articulado processual ou é da autoria exclusiva do advogado ou deste e do mandante; se for exercido o respectivo procedimento criminal apenas contra o mandante, dado o disposto no n.º 3 do art.º 114.º do Cód. Penal de 1982 – actualmente n.º 2 do art.º 115.º – é de concluir pela desistência da queixa se excedido o prazo da queixa contra o mandatário” – publicado in Col. Jur, Ano XIV, Tomo II, pp. 76, cumpre concluir pela improcedência do recurso e confirmação da muito acertada e fundamentada decisão recorrida


Concluindo:
Em conformidade com o exposto acordam os juízes desta 5ª Secção em julgar improcedente o recurso e confirmar a muito acertada decisão recorrida.
Custas pelo recorrente fixando-se em 5 (cinco) UCs a taxa de justiça e 1/3 a procuradoria devidas.

Lisboa, 3 de Outubro de 2006