USUCAPIÃO
Sumário

1. A usucapião faculta o possuidor a constituição do direito real correspondente à sua posse, desde que reunidos determinados pressupostos. Assentando a usucapião na posse, torna-se necessário que seja mantida dentro dos prazos que a lei fixa e, obviamente, que o direito a constituir seja usucapível.
2. Não obsta à pretensão, a circunstância de o prédio em causa se encontrar registralmente inscrito a favor da Ré, já que a usucapião inutiliza por si todas as situações registrais existentes, em nada sendo prejudicada pelas vicissitudes registrais

Texto Integral

ACORDAM NA 6ª SECÇÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA
I – RELATÓRIO
T, falecido na pendência da acção, tendo sido habilitada como sua sucessora a mulher, F e outros, intentaram acção declarativa, com processo ordinário, contra, J, falecido na pendência da acção, tendo sido habilitados como seus sucessores as suas irmãs e sobrinhos, respectivamente, L e outros, pedindo que:
a) Sejam os RR. condenados a reconhecerem que os AA. e seus pais, sogros e avós adquiriram por usucapião o direito de propriedade sobre o prédio urbano descrito na Conservatória do Registo Predial de Sesimbra sob o n°. 04408/091090, da freguesia do Castelo;
b) Seja ordenado o cancelamento da inscrição em nome da R. L sobre o prédio identificado em a) e se inscreva o mesmo em nome dos AA. ou, em alternativa, caso não se prove a aquisição do direito de propriedade por usucapião, pelos AA e seus antecessores sobre o aludido prédio urbano, que se declare nula a escritura de partilha da herança aberta por óbito de J e A, bem como inexistente, ineficaz e inoponível, relativamente aos AA. e se declarem estes legítimos herdeiros daqueles e se condenem os RR a reconhecerem os AA como proprietários do direito a metade indivisa dos prédios actualmente inscritos na matriz urbana sob os arts. 1794º e 1622º, da freguesia do Castelo, Sesimbra e descritos na Conservatória do Registo Predial sob os arts. 04408/091092, ordenando-se o cancelamento da inscrição em nome da R. L e a inscrição do direito a metade indivisa, sem determinação de parte ou direito dos mesmos prédios em nome dos AA.
c) Se julgue nula a referida partilha da herança aberta por óbito de J e A, bem como inexistente, ineficaz e inoponível, relativamente aos AA. e se declarem estes legítimos herdeiros daqueles e se condenem os RR. a reconhecerem os AA. como proprietários do direito a metade indivisa dos prédios actualmente inscritos na matriz predial urbana sob os artigos 1.794º e 1.622º, da freguesia do Castelo, concelho de Sesimbra e descritos na Conservatória do Registo Predial sob os n°s. 04408/091090 e 04409/091092, ordenando-se o cancelamento da inscrição em nome da R. L e a inscrição do direito a metade indivisa, sem determinação de parte ou direito dos mesmos prédios em nome dos AA.;
d) Sejam os RR. condenados a reconhecerem a constituição por usucapião de uma servidão de passagem, com 15 metros de comprimento e 1,5 metros de largura, sobre o identificado prédio descrito sob 04409/091092, a favor do prédio descrito sob o n°. 04408/091090 da freguesia do Castelo, da Cons. Reg. Predial de Sesimbra, ordenando-se se proceda ao respectivo registo predial; e
e) Sejam, ainda, os RR. condenados a demolirem o muro que construíram sobre o caminho de passagem e que impede a sua utilização.
Para tanto os AA. alegam, em síntese, que:
Por escritura pública outorgada no dia 20/4/64, procedeu-se à partilha dos bens da herança de E, na qual para pagamento do quinhão legitimário do filho da falecida, A foi adjudicado a este e à mulher, H, o direito a metade indivisa do prédio urbano composto de casas térreas para habitação e pequeno terreno destinado a logradouro, sito no lugar do Zambujal, freguesia do Castelo, concelho de Sesimbra, inscrito na matriz predial urbana sob os artigos números 570 e 572 (actualmente respectivamente artigos urbanos 1.794 e 1.622), omisso na respectiva Conservatória do Registo Predial; a outra metade indivisa do aludido prédio urbano atrás identificado foi adjudicada a J e mulher A, para pagamento do seu quinhão legitimário.
A e mulher, imediatamente a seguir à outorga da referida escritura de partilha, demarcaram e ocuparam a parte do prédio cuja metade indivisa lhes foi adjudicada, parte essa respeitante ao rés-do-chão com duas divisões, para habitação, com área de 26 m2 e logradouro, com área de 1058 m2, que possuíram, como proprietários plenos, ininterruptamente, até à sua morte, à vista de toda a gente e sem oposição de ninguém, designadamente dos ora RR. e de seus pais, J e A.
Por morte de A e mulher, o aludido prédio veio à posse dos seus filhos, ora AA., e F, esta falecida em 19/6/87, tendo-lhe sucedido o seu marido, J e filho, ora AA.
J e a mulher, A faleceram respectivamente, em 09/09/74 e 15/8/81, tendo sido requerido Inventário Facultativo para partilha da herança aberta por óbito dos mesmos, no qual foram indicados como herdeiros daqueles, os ora RR, sendo as funções de cabeça-de-casal desempenhadas por J, o qual inseriu na relação de bens, o prédio urbano (com 26 m2 de área coberta e logradouro com 1058 m2), correspondente à metade do prédio que desde 24/4/64, sempre esteve na posse de A e mulher, pais dos AA. e após a morte daqueles, na posse dos AA., pelo que estes, o tinham adquirido por usucapião, factos estes de que os RR. tinham conhecimento.
No âmbito do mencionado inventário aberto por óbito de J e a mulher, A, a totalidade do prédio (incluindo 1/2 indiviso que coube a A. B.) foi adjudicado à ora R. L, tendo esta vindo a proceder ao respectivo registo em seu nome.
Os RR. serviram-se do mencionado processo de inventário, onde prestaram falsas declarações, para criarem uma situação fraudulenta e lesiva dos interesses patrimoniais dos AA., sendo a partilha efectuada, nula em relação aos AA., tal como são nulos o registo do(s) prédios a favor de qualquer dos RR.
Acresce que o acesso ao prédio que os AA. detêm comunica com a via pública, através de um caminho, há mais de 40 anos, não dispondo o prédio de mais nenhum acesso à via pública, tendo os RR., em 5/3/93, construído, no logradouro do prédio, um muro, sobre o dito caminho, que determinou a completa obstrução do mesmo.

Os RR. foram sido devidamente citados, mas apenas a R. Maria contestou e deduziu reconvenção, alegando, em resumo, que:
Apesar de na escritura de partilha aberta por óbito de E constar que o prédio urbano, sito no lugar do Zambujal, inscrito na matriz predial urbana sob os artigos números 570 e 572, era adjudicado na proporção de metade a cada um dos interessados A e mulher e J e mulher, a realidade foi diversa, tendo A recebido tornas do aludido prédio e ficando acordado, verbalmente, que este ficaria na totalidade para o irmão J. A. R. B. sempre viveu no prédio, por mero favor do irmão J, sendo este o proprietário.
Após a morte de A e mulher, continuou a morar no prédio, o seu filho, A, ora A., e nunca nenhum dos demais AA. teve a posse ou detenção sobre o prédio, sendo que somente alguns anos após a morte da mãe, o A. J veio ocupar, contra a vontade dos RR., um anexo do prédio inscrito na matriz sob o artigo 1622.
Não existe qualquer caminho ou servidão de passagem nos prédios destes autos.
Em reconvenção e invocando a ocupação abusiva pelo A. J, de um anexo do prédio inscrito na matriz sob o artigo 1622, pede a R. M que os AA. sejam condenados a restituir aos RR. tal anexo.
Os AA. apresentaram réplica, impugnando os factos alegados pela R. M, designadamente, para fundamentar o pedido reconvencional, reiterando o que alegaram na p.i. Sustentam, ainda, os AA. que a R./reconvinte, na contestação/reconvenção nega factos da p.i., que sabe serem verdadeiros e invoca factos que sabe serem falsos, pelo que deve ser condenada por litigância de má fé.
Houve lugar a audiência preliminar, com vista a tentar a conciliação das partes, sem êxito.
Foi proferido despacho saneador, com a selecção da matéria de facto assente e organização da base instrutória, que não foram objecto de reclamação.

Realizou-se a audiência de discussão e julgamento com observância das formalidades legais. A fls. 284/287 foi decidida a matéria da base instrutória do que não houve reclamação.
Foi proferida sentença que julgou a acção parcialmente procedente e improcedente a reconvenção e, em consequência, decidiu:
a) Condenar os RR. a reconhecerem o direito de propriedade dos AA. sobre o rés-do-chão, com duas divisões, destinado a habitação, com área coberta de 26 m2 e sobre área não especificada do logradouro que compõem o prédio urbano sito em Zambujal, inscrito na matriz predial urbana da freguesia do Castelo sob o artigo 1794 e descrito na Conservatória do Registo Predial de Sesimbra sob o n°. 04408/091090;
b) Ordenar o cancelamento do registo de aquisição a favor da R. L do prédio identificados na al. a) do dispositivo;
c) Absolver os RR. do demais pedido pelos AA.;
d) Absolver os AA./reconvindos do pedido reconvencional deduzido pela R./reconvinte M;
e) Condenar a R. M como litigante de má fé, em 6 (seis) Ucs de multa e no pagamento de indemnização aos AA., em montante a fixar ulteriormente;

Inconformados, os AA. vieram apelar da sentença, tendo, no essencial formulado as seguintes conclusões:
1. Atendendo ao depoimento de parte da Ré L e das testemunhas, F e V, arroladas pelos Autores, deve ser dado como provado o referido artigo 1.° da base instrutória;
2. Também só por manifesto e evidente erro na apreciação da prova produzida o Meritíssimo Juiz "a quo" deu como parcialmente provados os artigos 2.°, 1°, 6.0, 7.º, 9.° e 10.° da base instrutória;
3. Atendendo ao depoimento de parte da Ré L e das testemunhas arroladas pelos Autores, F, V e A, devem ser dados como integralmente provados os referidos artigos 2.°, 1°, 6.°, 7.0, 9.° e 10.° da base instrutória;
4. A, desde 20 de Abril de 1964 até à data da sua morte, ocorrida em 10 de Junho de 1984, ininterruptamente, habitou o rés-do-chão do prédio actualmente inscrito na matriz sob o artigo urbano 1794 da freguesia do Castelo e descrito na Conservatória do Registo Predial de Sesimbra sob o n.° 04408/091090 da freguesia do Castelo, realizando todas as obras que ia necessitando e cultivou a totalidade do logradouro do mesmo prédio, arroteando-o, cultivando nele cevada, batatas, cenouras e couves, na convicção de ser o seu dono e praticando tais actos à vista de toda a gente e sem oposição de ninguém, designadamente, dos ora RR. e de seus pais;
6. Após a morte de A, o seu filho A continuou a habitar, de forma exclusiva, o rés-do-chão referido, na convicção de ser o seu dono, realizando as obras necessárias à sua conservação e manutenção, bem como continuou a cultivar a totalidade do mencionado logradouro, à vista de toda a gente e sem oposição de ninguém, nomeadamente, dos ora Réus e de seus pais;
7. A, depois seu filho A e depois os Autores exerceram e exercem poderes de facto sobre o aludido prédio, comportando-se sempre como titulares do direito de propriedade respectiva, sendo que A, a partir da data da outorga da partilha, 20 de Abril de 1964, demarcou, imediatamente, o prédio em causa e passou a habitar o seu rés-do-chão, realizando todas as obras que ia necessitando, e cultivou a totalidade do logradouro e, posteriormente, seu filho, A, bem como os herdeiros, praticaram também os mesmos actos, na convicção de serem donos do prédio em causa, composto de rés-do-chão e logradouro, descrito na Conservatória do Registo Predial de Sesimbra sob o n.° 04408/091090 da freguesia do Castelo e inscrito na matriz respectiva sob o artigo urbano 1794;
8. A posse atrás referida é de boa fé, pública e pacífica, uma vez que A, depois seu filho A e depois os Autores actuaram, na convicção de não violarem os direitos de ninguém, praticando tais actos à vista de toda a gente e sem oposição de ninguém, nomeadamente, dos Réus e de seus pais, J e A;
9. Completou-se o lapso temporal da posse do direito, que conduz à aquisição originária daquele último por usucapião, uma vez que a posse exercida primeiro por A. R. B., depois pelo seu filho A. R. R. e por último pelos Autores iniciou-se em 20 de Abril de 1964 e tem sido ininterrupta até hoje;
10. Deve ser reconhecido que os Autores adquiriram, através da usucapião, o direito de propriedade sobre a totalidade do prédio em causa, composto de rés-do-chão, com a área coberta de 26 m2, e logradouro, com a área de 1058 m2, descrito na Conservatória do Registo Predial de Sesimbra sob o n.° 04408/091090 da freguesia do Castelo e inscrito na matriz respectiva sob o artigo urbano 1794;
11. E ordenado o cancelamento do registo efectuado a favor da Ré L;
12. A partilha efectuada no Inventário Facultativo para partilha da herança aberta por óbito de J e mulher, que sob o n.° 374/87 correu termos pela 2.a Secção do Tribunal Judicial da Comarca de Sesimbra, na parte em que recaiu sobre o prédio urbano descrito na Conservatória do Registo Predial de Sesimbra sob o n.° 04409/091090 da freguesia do Castelo e inscrito na respectiva matriz sob o artigo urbano 1622, é nula;
13. Em consequência, está ilidida a presunção, decorrente do registo, de que o prédio em causa é propriedade da Ré L;
14. Os Autores adquiriram, por sucessão por morte, o direito a metade indivisa do prédio urbano descrito na Conservatória do Registo Predial de Sesimbra sob o n.° 04409/091090 da freguesia do Castelo e inscrito na respectiva matriz sob o artigo urbano 1622, anteriormente propriedade de A. R. B. e H. C. R.;
15. E, em consequência, deve ser ordenado o cancelamento da inscrição em nome de L, casada com R, no regime de comunhão geral de bens;
16. A douta sentença recorrida violou o disposto nos artigos 1251.°, 1260.°, n.° 2, 1261.°, n.° 1, 1262.°, 1287.°, 1296.°, 1316.°, 2123.°, n.° 1, 2132.° e 2133.°, n.° 1, alínea a) do Código Civil e artigos 7.° e 8.°, n.1 do Código do Registo Predial.


Corridos os Vistos legais,
Cumpre apreciar e decidir.
São as conclusões das alegações que delimitam o objecto dos recursos e o âmbito do conhecimento deste Tribunal (arts. 684º, nº 3 e 690º, nº 1 do CPC), pelo que, no essencial, cabe decidir se há fundamento para alterar a matéria dada por assente e se, de acordo com a matéria provada, se verificam os pressupostos da usucapião, tal como os Apelantes defendem.

III – FACTOS PROVADOS
1. Por escritura pública outorgada no dia 20 de Abril de 1964, lavrada a fls. 49 v°. a fls. 53 do Livro 684 do Cartório Notarial de Sesimbra procedeu-se à partilha dos bens que compunham a herança aberta por óbito de E — al. A) dos factos assentes;
2. Na dita escritura para pagamento do quinhão legitimário do filho da falecida E, A e mulher, H, foi-lhes adjudicado o direito a metade indivisa do prédio urbano composto de casas térreas para habitação e pequeno terreno destinado a logradouro, sito no lugar do Zambujal. freguesia do Castelo, concelho de Sesimbra. que confronta a norte com herdeiros de D, ao sul com Dunas Lopes ao nascente com herdeiros de S e ao poente com A, inscrito na matriz predial urbana sob os artigos números 570 e 572 (actualmente respectivamente artigos urbanos 1.794 e 1.622), omisso na respectiva Conservatória do Registo Predial – al. B) dos factos assentes;
3. A outra metade indivisa do prédio urbano atrás identificado foi adjudicada a J e mulher, para pagamento do quinhão legitimário – al. C) dos factos assentes;
4. A e mulher H, faleceram respectivamente, em 10 de Junho de 1984 e 31 de Outubro de 1977 – al. D) dos factos assentes;
5. Por morte dos ditos A e mulher, sucederam-lhe como únicos herdeiros, seus filhos T, D, A, M, ora AA., e F — al. E) dos factos assentes;
6. F faleceu em 19 de Junho de 1987, tendo-lhe sucedido como seus únicos herdeiros, seu marido, J e filho – al. F) dos factos assentes;
7. J e a mulher, A faleceram respectivamente, em 9 de Setembro de 1974 e 15 de Agosto de 1981 – al. G) dos factos assentes;
8. Foi requerido o Inventário Facultativo para partilha da herança aberta por óbito dos ditos J e A, que correu termos pela 2a Secção do Tribunal Judicial desta Comarca sob o n.° 374/87 — al. H) dos factos assentes;
9. Foram indicados como herdeiros dos falecidos, os ora RR. J, M, L e M, em representação de seu marido H, falecido em 1 de Abril de 1977 — a1.I) dos factos assentes;
10. O cabeça-de-casal J no dito Inventário facultativo, inseriu na relação de bens, como verbas n.° 10 e 11, respectivamente, os seguintes prédios:
I - Prédio urbano sito no Zambujal. com 54.50 m2 de área coberta e logradouro com 188.70 m2, composto de rés-do-chão com 4 divisões destinadas a habitação e logradouro, confronta do Norte com herdeiros de D, sul com terrenos do proprietário, Nascente com L e Poente com herdeiros de C, inscrito na matriz predial urbana da freguesia do Castelo sob o artigo 1622, com o valor matricial de 24.200$00;
II - Prédio urbano, sito no Zambujal, com 26 m2 de área coberta e logradouro com 1058 m2, composto de rés-do-chão com duas divisões destinadas a habitação e logradouro, confronta do Norte com herdeiros de D, Sul e Poente com terrenos do próprio e Nascente com S, inscrito na matriz predial urbana da freguesia do Castelo sob o artigo 1794, com o valor matricial de 15.560$00 — al. J) dos factos assentes;
11 - As verbas n.°s 10 e 11, na descrição de bens a fls. 45 do dito Inventário Facultativo, passaram respectivamente a ser as verbas n.°s 7 e 8 e foram adjudicadas à herdeira L – al. L) dos factos assentes;
12. Pela inscrição G-1, a dita L registou em seu nome o prédio urbano, a que correspondia a verba n.° 7 do Inventário, que ficou descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.° 04409/091092 da freguesia do Castelo e está inscrito na matriz respectiva sob o artigo 1.622 – a1. M) dos factos assentes;
13. A L, pela inscrição G-1, registou em seu nome o prédio urbano, a que correspondia a verba n.° 8 do Inventário, que ficou descrito na Conservatória do Registo Predial de Sesimbra sob o n.° 04408/091090 da freguesia do Castelo e está inscrito na respectiva matriz sob o artigo 1794 – al. N) dos factos assentes;
14. O A viveu no prédio que actualmente está inscrito sob o artigo urbano 1794, desde a data da outorga da escritura partilhas até à sua morte — al. O) dos factos assentes;
15. A partir de 26 de Abril de 1964 e ininterruptamente, A e mulher habitaram o rés-do-chão e cultivaram uma área não especificada do logradouro, que compõem o prédio referido na al. N) - resposta ao ponto 2° da base instrutória;
16. Sempre fruíram como proprietários, exercendo os direitos próprios de donos e sem prejuízo para ninguém, a casa de habitação e a área do logradouro mencionados na al. n) - resposta ao ponto 3° da base instrutória.
17. De forma pacífica, ostensiva e à luz do dia, com conhecimento geral do público e nomeadamente dos ora RR. e de seus pais, J e A - resposta ao ponto 4° da base instrutória;
18. Habitando, de forma exclusiva, o referido rés-do-chão, na convicção de serem os seus donos, sem qualquer oposição e realizando todas as obras que ia necessitando - resposta ao ponto 5° da base instrutória;
19. Arrotearam área não especificada do referido logradouro, cultivando nele cevada, batatas, cenouras e couves, de forma exclusiva, pacífica, ostensiva e à luz do dia, com conhecimento geral do público e sem oposição de ninguém, nomeadamente, dos ora RR. e de seus pais - resposta ao ponto 6° da base instrutória;
20. A casa de habitação e a área não especificada do logradouro do prédio em causa, sempre foram reconhecidos pela vizinhança, como propriedade de A e mulher, H, desde 20/04/64, até à data dos seus falecimentos - resposta ao ponto 7° da base instrutória;
21. O Autor A, como o seus pais, continuou a usar e a habitar, de forma exclusiva, o rés-do-chão, na convicção de ser o seu dono, designadamente, realizando as obras necessárias à sua conservação e melhoramento - resposta ao ponto 8° da base instrutória;
22. O Autor A continuou a cultivar, de forma exclusiva, área não especificada do aludido logradouro, semeando nele, designadamente, cevada, batatas, cenouras e couves - resposta ao ponto 9° da base instrutória;
23. Desde então, o A. A passou a reter e a fruir exclusivamente e de modo permanente o rés-do-chão e uma área não especificada do logradouro do prédio a que corresponde o artigo urbano 1794 da freguesia do Castelo, concelho de Sesimbra, como o faz qualquer legítimo proprietário de um prédio - resposta ao ponto 10° da base instrutória;
24. Os mencionados actos praticados por A e mulher, H e, posteriormente, pelo A. A, foram-no à vista de toda a gente e sem oposição de ninguém, nomeadamente dos ora RR. e de seus pais, e na convicção de que lhes assistia o direito de praticar tais actos, em nome próprio - resposta ao ponto 11° da base instrutória;
25. Após a morte da mãe, o A. J veio habitar num anexo existente na área do logradouro que foi objecto dos actos descritos nas ais. n), o), p), q) s) e v) - resposta ao ponto 20° da base instrutória;
26. Tal ocorreu contra a vontade dos RR. - resposta ao ponto 21° da base instrutória.

III – O DIREITO

1. Da modificabilidade da matéria de facto
Pese embora seja genericamente facultado às partes peticionarem a modificação da decisão da matéria de facto, mostra-se necessário que seja observado o ónus da discriminação fáctica e probatória – art. 690º-A do CPC e o ónus conclusivo – arts. 684º, 3 e 690º, 4 do CPC.
Cabe assim ao recorrente especificar, sob pena de rejeição, os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados e bem assim os concretos meios probatórios constantes do processo ou do registo ou gravação nele realizada, que imponham decisão diversa da recorrida.
Por outro lado, sendo certo que este Tribunal só pode apreciar as questões que se mostrem vertidas nas conclusões, qualquer lacuna conclusiva pode vir a inviabilizar a sindicância deste Tribunal sobre a respectiva decisão.
A audiência de julgamento foi objecto de gravação sendo assim possível o acesso às declarações que foram prestadas, quer pela Ré, quer pelas testemunhas inquiridas.
Contudo, na análise a efectuar por este tribunal da prova produzida em audiência há que ter presente os limites, nesta sede, do poder de reapreciação da matéria de facto. Efectivamente, o uso dos poderes conferidos à Relação, não importando a postergação dos princípios da imediação, da oralidade, da concentração e da livre apreciação das provas, deve restringir-se aos casos de flagrante desconformidade entre os elementos de prova disponíveis e a decisão couber a matéria de facto, nomeadamente nos concretos pontos impugnados, conforme vem sendo entendimento reiterado da jurisprudência (1).
Em causa estão as respostas aos seguintes artigos da base instrutória: 1º, 2º, 3º, 6º, 7º. 9º e 10º.

1.1. Art. 1º: A e mulher, H, após 26 de Abril de 1964, demarcaram o prédio identificado em O)?
Dizem os AA. que o quesito 1.° deveria ter sido dado como provado, atendendo ao depoimento de parte da Ré L e das testemunhas, F e V, residentes há longos anos no lugar de Zambujal de Baixo, junto ao prédio em causa.
Efectivamente, quer a Ré L, quer as testemunhas arroladas, mesmo as indicadas pela Ré, afirmaram, ainda que de forma mais ou menos vaga, como é natural face ao lapso de tempo entretanto decorrido sobre a data em que ocorreram os factos, que existiam uns marcos a demarcar o prédio inscrito sob o artigo urbano 1794, já no tempo do falecido A. B. e que esses marcos separavam os terrenos do A. e do J. B..
Assim, sem menosprezar os princípios da imediação, da oralidade e da livre apreciação da prova, face aos depoimentos atrás referidos, justifica-se que a matéria do art. 1º da base instrutória seja considerada provada.
Artigo 1º: A e mulher, após 26 de Abril de 1964, demarcaram o prédio identificado em O).

1.2. Defendem os Apelantes que a matéria constante dos arts. 2º, 3º, 6°, 7°, 9.° e 10.° da base instrutória deveria ter sido considerada integralmente provada e não, apenas, parcialmente, tendo em atenção os depoimentos de parte da Ré L e das testemunhas arroladas pelos Autores, F, V e A, residentes há muitos anos no local onde se situa o prédio dos autos.
Ora, os depoimentos das testemunhas supra identificadas, vão no sentido de os AA e os seus antecessores ocuparem e usufruírem quer da casa, quer do terreno adjacente, que cultivavam, sem qualquer oposição e à vista de todos.
É verdade que nenhuma das testemunhas disse, exactamente, a área do logradouro, referindo, umas, que a área desse terreno tem cerca de 1000 m2, outras, mil e tal metros. Porém, face aos depoimentos atrás referidos - nomeadamente o depoimento de parte da Ré L que afirmou que o terreno foi demarcado e que o logradouro que os AA. ocupam e sempre ocuparam tem “mil e tal metros" - bem como à certidão de descrição predial junta aos autos, afigura-se ser de alterar, no sentido preconizado pelos AA., as respostas aos arts. 2º, 3º, 4º, 7º., 9º e 10º da base instrutória, eliminando a restrição referente à ocupação limitada a uma à parte não especificada do logradouro.
Dos depoimentos retira-se que os AA e os seus antecessores exerceram a posse sobre a totalidade do logradouro correspondente ao terreno que faz parte integrante do prédio inscrito na matriz predial urbana da freguesia do Castelo sob o artigo 1794 e descrito na Conservatória do Registo Predial de Sesimbra sob o n.° 04408/091090 da freguesia do Castelo, tem 1058 m2.
Face as tudo quanto exposto fica, alteram-se as respostas aos arts. 2º, 3º, 6º, 7º, 9º e 10º, passando a ter-se como provado que:
Artigo 2.°: A partir de 26 de Abril de 1964 e ininterruptamente, A e mulher, H habitaram o rés-do-chão e cultivaram o logradouro, que compõem o prédio referido na al. n).
Artigo 3º: Sempre fruíram como proprietários, exercendo os direitos próprios de donos e sem prejuízo para ninguém, a casa de habitação e o logradouro.
Artigo 6º: Arrotearam o referido logradouro, cultivando nele cevada, batatas, cenouras e couves, de forma exclusiva, pacífica, ostensiva e à luz do dia, com conhecimento geral do público e sem oposição de ninguém, nomeadamente, dos ora RR. e de seus pais.
Artigo 7º: A casa de habitação e o logradouro do prédio em causa sempre foram reconhecidos pela vizinhança, como propriedade de A. R. B. e mulher, H. C. R.s, desde 20/06/64, até à data dos seus falecimentos.
Artigo 9º: O Autor A continuou a cultivar, de forma exclusiva, o aludido logradouro, semeando nele, designadamente, cevada, batatas, cenouras e couves.
Artigo 10º: Desde então, o A. A passou a reter e a fruir exclusivamente e de modo permanente o rés-do-chão e o logradouro do prédio a que corresponde o artigo urbano 1794 da freguesia do Castelo, concelho de Sesimbra, corno o faz qualquer legítimo proprietário de um prédio.

2. Da usucapião
A posse do direito de propriedade ou de outros direitos reais de gozo, mantida por certo lapso de tempo, faculta ao possuidor, salvo disposição em contrário, a aquisição do direito a cujo exercício corresponde a sua actuação (artigo 1287º do C. Civil).
A usucapião faculta, assim, ao possuidor a constituição do direito real correspondente à sua posse, desde que reunidos determinados pressupostos. Assentando a usucapião na posse, torna-se necessário que esta assuma certas características, que seja mantida dentro dos prazos que a lei fixa e, obviamente, que o direito a constituir seja usucapível.
Não obsta à pretensão, a circunstância de o prédio em causa se encontrar registralmente inscrito a favor da Ré, já que a usucapião inutiliza por si todas as situações registrais existentes, em nada sendo prejudicada pelas vicissitudes registrais (2).
Atendendo à matéria de facto provada, supra referida, temos como assente que A, desde 20 de Abril de 1964 até à data da sua morte, ocorrida em 10 de Junho de 1984, ininterruptamente, habitou o rés-do-chão do prédio identificado nos autos, realizando todas as obras necessárias e cultivando no logradouro cevada, batatas, cenouras e couves, na convicção de ser o seu dono e praticando tais actos à vista de toda a gente e sem oposição de ninguém, designadamente, dos RR. e de seus pais, J e A.
Também não sofre contestação que, após a morte de A, o seu filho A continuou a habitar, de forma exclusiva, o rés-do-chão referido, na convicção de ser o seu dono, realizando as obras necessárias à sua conservação e manutenção, bem como continuou a cultivar, nos mesmos moldes, o logradouro, à vista de toda a gente e sem oposição de ninguém, nomeadamente, dos ora Réus e de seus pais.
Não se discute, portanto, que estão reunidos os pressupostos que permitem seja reconhecida a aquisição do direito de propriedade sobre o prédio em causa, aqui englobando, face à alteração da matéria de facto supra referido, todo o logradouro que faz parte do identificado prédio.
Efectivamente, a sentença recorrida, em relação ao aludido prédio urbano, na parte correspondente ao rés-do-chão, para habitação e uma área não especificada do logradouro, já reconhecia que não eram propriedade dos inventariados, mas dos sucessores de A, que tinham adquirido, por usucapião e, como tal, foi o mesmo prédio indevidamente incluindo naquela relação de bens, sendo, uma parte dele, coisa alheia.
Também conclui, a sentença recorrida, que a partilha efectuada no inventário em questão, na parte em que recaiu sobre o prédio de que se trata, é nula, nos termos do art. 2123°, n°. 1 do CCivil e que ficou ilidida a presunção de propriedade decorrente do registo a favor da R. L do prédio identificado.
Ora, face à alteração da matéria dada por provada, estas considerações valem para todo logradouro com a área de 1058 m2 e não apenas, para uma área não especificada do mesmo.
Ou seja, está adquirido que os AA. ocupam o prédio em causa, incluindo o seu logradouro, à vista de toda a gente, de forma exclusiva, pacífica, sem oposição de quem quer que seja, nomeadamente dos RR e de seus pais.
Valem, assim, para a totalidade do prédio inscrito na matriz com o art. nº 570 (actual art. 1794), as considerações que a este respeito são feitas na sentença recorrida para justificar a aquisição originária, por usucapião, quer sobre a parte urbana, quer sobre a totalidade do logradouro, uma vez que se completou o lapso temporal da posse do direito, que conduz à aquisição originária por usucapião, posse essa exercida inicialmente por A, depois pelo seu filho e por último pelos Autores, com início em 20 de Abril de 1964.
Estamos assim, perante uma posse de boa fé (1260°), pública (1262°), porque exercida à vista de toda a gente e pacífica (1261°), porque, tal como ficou provado, feita de comum acordo entre J e A, antecessores dos RR e AA., respectivamente.
Em suma, os AA. e os seus antecessores desde 1964 agiram com a convicção de serem os verdadeiros titulares do terreno e da casa identificada, de modo pacífico, público e reiterado e actuaram de acordo com essa convicção.
Consequentemente, nos termos do disposto nos arts. 1294° e segs., 1316°, 1317° c), 1258° e 1251°, os Autores adquiriram, através da usucapião, o direito de propriedade sobre o prédio em causa, composto de rés-do-chão, com a área coberta de 26 m2 e logradouro, com a área de 1058 m2, descrito na Conservatória do Registo Predial de Sesimbra sob o n.° 04408/091090 da freguesia do Castelo e inscrito na matriz respectiva sob o artigo urbano 1794.
Donde também e por consequência, é nulo o registo de aquisição que foi efectuado pela Ré L, o que implica o seu cancelamento, nos termos do disposto do artigo 8.°, n.° 1 do Código do Registo Predial.

3. Quanto à nulidade da partilha
Os Autores recorrem da sentença, também, na parte em que absolve os Réus, relativamente ao pedido formulado na alínea c), em que pedem que se julgue nula a partilha da herança aberta por óbito de J e A e, em consequência, se condenem os Réus a reconhecerem o direito de propriedade dos Autores sobre metade indivisa do prédio urbano sito no Zambujal, inscrito na respectiva matriz predial da freguesia do Castelo sob o artigo 1622 e descrito na Conservatória do Registo Predial de Sesimbra sob o n.° 04409/091090 da freguesia do Castelo, ordenando-se o cancelamento da inscrição em nome da Ré.
A sentença recorrida, decidiu que, em face da procedência do pedido de reconhecimento do direito de propriedade dos AA. sobre o prédio descrito com o nº 04408/091090, ficava prejudicado o pedido formulado respeitante à declaração de nulidade da escritura de partilha aberta por óbito de J. R. B. e mulher e efeitos consequentes.
Vejamos.
Para melhor perceber o peticionado importa apreender o que, na verdade ocorreu, após a outorga da escritura publica de partilha de bens por óbito de E.
Assim, por escritura de 20/4/1964, procedeu-se à partilha dos bens que compunham a herança aberta por óbito de E, no âmbito da qual foi adjudicado o direito a metade indivisa do prédio inscrito na matriz sob os arts. 570 e 572 (actualmente 1792 e 1622), a A, sendo que o direito à outra metade indivisa do mesmo prédio, foi adjudicado a J.
Sucede que, a partir da data de celebração da referida escritura, pese embora tenha sido adjudicado a cada um dos interessados, A e J, o direito a ½ indiviso sobre os prédios em causa, o A logo tomou posse do prédio com o artigo matricial 570/1794, assim “partilhando”, entre ambos, os prédios sobre os quais detinham o direito a ½ não individualizado.
Foi sobre o prédio com o art. 1794 que foi reconhecido, na presente acção, o direito de propriedade dos AA., propriedade essa adquirida por usucapião, exactamente porque se considerou provado que desde a data da escritura (1964) os AA., por si e através dos antepossuidores detinham o animus e o corpus em relação às casas e logradouro que compõem o referido prédio descrito com o artigo matricial nº 1794, agindo como proprietários do mesmo.
Mas, tendo em conta, ainda, a matéria tal como se encontra articulada, não se percebe a que título se arrogam com direito a ½ sobre o prédio, com o art. 572/1622, que, por exclusão de partes, terá passado a integrar o património do J. B., de quem os AA., ora Apelantes, não são herdeiros.
Seja como for, não poderia, no âmbito desta acção, ser julgada nula a partilha que é objecto do processo de inventário, em que, aliás, segundo consta, não são parte os aqui AA., desconhecendo-se, por outro lado, se todos os interessados naquele inventários são partes na presente acção, pelo que se afigura que este pedido não pode ser aqui apreciado.
Ademais, tão pouco estão articulados e provados factos que possam conduzir a uma eventual procedência deste pedido.
Afigura-se, aliás, que a admissão do peticionado na alínea c) - até por se mostrar ininteligível face ao constante da alínea b) do petitório, em que se formula, subsidiariamente, pedido com redacção semelhante, bem como tendo em atenção a causa de pedir - deveria ter sido devidamente ponderado em audiência preliminar.
Em conclusão, a apreciação dos factos que possam conduzir à declaração da nulidade da partilha há-de ser efectuada, eventualmente, no âmbito do referido processo de inventário, sem prejuízo da relevância e efeitos que o aqui decidido tenha na partilha a que se procedeu no âmbito do mencionado processo de inventário.
Assim, nesta parte, não podem proceder as conclusões do recurso dos Apelantes.

IV – DECISÃO
Termos em que se julga parcialmente procedente a presente Apelação e em consequência revoga-se parcialmente a sentença.
Nesta medida, condenam-se os RR a reconhecerem o direito de propriedade dos AA. sobre o rés-do-chão, com duas divisões, destinado a habitação, com área coberta de 26 m2 e sobre o logradouro com a área de 1058 m2, que compõem o prédio urbano sito em Zambujal, inscrito na matriz predial urbana da freguesia do Castelo sob o artigo 1794 e descrito na Conservatória do Registo Predial de Sesimbra sob o n°. 04408/091090.
Em tudo o mais mantém-se a sentença recorrida.
Custas por Apelantes e Apelados na proporção de 50%.
Lisboa, 12 de Outubro de 2006.

(Fátima Galante)
(Ferreira Lopes)
(Manuel Gonçalves)



______________________________
1.-Cf. entre outros o Ac. RP de 19.9.2000, CJ, ano XXV, 4º-186.

2.-Oliveira Ascensão, “Direito Civil - Reais" 5ª ed., págs. 358 e 382.