INSOLVÊNCIA
APREENSÃO
BENS PRÓPRIOS
RESTITUIÇÃO DE BENS
EMBARGOS DE TERCEIRO
IMPOSSIBILIDADE SUPERVENIENTE
Sumário

I- Todo aquele que se sinta lesado na sua posse ou propriedade pela apreensão de bens efectivada pelo administrador da insolvência na sequência de sentença declaratória de insolvência que decretou a apreensão dos bens do insolvente (artigo 36.º/1, alínea g) do C.I.R.E.) terá de recorrer aos procedimentos para restituição e separação de bens previstos no artigo 141.º e seguintes do mesmo diploma.

II- Quando se utilizam meios procedimentais que visam o mesmo objectivo que seria atingido com a oposição mediante embargos de terceiro, que a lei expressamente proíbe relativamente à apreensão de bens realizada no processo especial de recuperação de empresa e de falência, hoje insolvência, (artigo 351.º/2 do C.P.C.), pretende-se alcançar uma finalidade proibida por lei.

III- Por isso, uma tal pretensão deve ser liminarmente indeferida por impossibilidade originária da lide, admitindo-se que o reconhecimento dessa impossibilidade possa ser efectivado, ainda antes da fase de produção de prova, se ocorrer situação superveniente que justifique pronúncia do tribunal.

Texto Integral

Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa:

1. Z.[…] instaurou no dia 15-12-2005 procedimento cautelar comum para decretamento de providência conservatória como preliminar da acção prevista no artigo 125.º do Código da Insolvência contra a massa insolvente de S.[…] Lda. representada pelo seu administrador pedindo, sem audiência do requerido, que se profira sentença reconhecendo o direito do requerente explorar o estabelecimento, a coberto do contrato outorgado em 21-4-2005, até à prolação de decisão judicial que reconheça definitivamente o seu direito, notificando-se o Exmo. Administrador para até lá se abster de proceder à apreensão do estabelecimento e abster-se de praticar quaisquer actos que ponham em causa o seu direito.

2. Alega o requerente dispor a seu favor de posse do estabelecimento com base em contrato de cessão de exploração que foi outorgado entre ele e as herdeiras de Armando […], arrendatário desde 7-12-1978  do R/C ou loja onde se situa o estabelecimento.

3. Ora a sociedade insolvente não é, nem nunca foi, arrendatária do local onde se situa o estabelecimento e, por isso, não pode o administrador da insolvência exigir ao requerente, como exigiu por carta de 27-10-2005, que, “ no prazo de 10 dias […] seja entregue livre e devoluto o referido estabelecimento, acto esse que evitará que tenha de recorrer à medida de apreensão com recurso, se necessário, à autoridade policial”.

4. E porque o requerente tem direito à manutenção do contrato de exploração e, por conseguinte, direito à não resolução de tal contrato em benefício da massa insolvente, não pode igualmente o administrador declarar, como fez pela aludida carta, que “ […] a não ser nulo o contrato, haveria motivos para a sua resolução, nos termos nomeadamente do artigo 121º,nº1, alínea b) do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas” e, assim, “ conforme o disposto no artigo 123º do mesmo diploma comunicamos-lhe, por cautela e para a hipótese de ter existido qualquer contrato válido, que é resolvido esse mesmo contrato ao abrigo da norma já citada”

5. Por sua vez a requerida, embora reconhecendo que o contrato de arrendamento foi celebrado com Armando […], salientou que este, pouco tempo depois, cedeu a posição contratual de locatário à sociedade […], que passou desde então e sem qualquer interrupção a ser titular do estabelecimento comercial ali exercendo actividade comercial, pagando renda e sendo emitido em seu nome recibos, ali trabalhando vários empregados de comércio pagos pela ora insolvente, ou seja, a sociedade foi locatária do local durante mais de 20 anos, reconhecida como tal pela senhoria.

6. O referido Armando era único sócio-gerente da insolvente e faleceu em Janeiro de 2005, pouco tempo antes da insolvência ser declarada por sentença de 16-5-2005.

7. O estabelecimento em causa encontra-se apreendido desde 12-12-2005 ( a presente providência foi instaurada no dia 15-12-2005) ocorrendo efectivamente a apreensão naquela data do “ direito ao trespasse e arrendamento de um estabelecimento sito na Av. […] constando do respectivo contrato de arrendamento como senhorias […] ao qual foi atribuído pelo Sr. louvado o valor de[…]”.

8. Veio entretanto a insolvente requerer em 23-5-2006 a extinção da instância alegando que “ na sequência da apreensão do estabelecimento há muito tempo feita (antes da instauração da providência) tomou posse efectiva do estabelecimento, pelo que a instância se tornou, supervenientemente, inútil”.

9. A pretensão da requerida foi indeferida  com o fundamento de que “ o que o requerente pretende é que seja sustada a apreensão, apreensão que efectivamente já ocorreu, como ambas as partes concordam, mas também que o Sr. administrador se abstenha de praticar quaisquer actos que ponham em causa o seu direito. Ora relativamente a esse pedido não se verifica claramente a inutilidade superveniente, com a tomada de posse efectiva por parte do Sr. administrador do bem; pelo contrário, a necessidade de acautelar o alegado direito do requerente tornou-se mais premente, face à disponibilidade pelo Sr. administrador do bem.

10. Importa, assim, que os autos prossigam os seus termos com a realização da audiência final, já agendada, improcedendo a pretensão do requerente massa insolvente da extinção do procedimento cautelar, por inutilidade superveniente”.

11. Interposto recurso de agravo, a insolvente alegou que ao ser intentada a providência cautelar já havia sido executada a apreensão do estabelecimento nos termos do artigo 149º/1 do Decreto-Lei nº 53/2004, de 18 de Março e, porque os bens apreendidos não foram entregues, o administrador, posteriormente à acção, tomou conta do estabelecimento nos termos do artigo 150º do mesmo diploma. A providência cautelar, prossegue a recorrente, que já era, de certo modo, inepta pelo facto de o bem estar apreendido, tornou-se, depois, supervenientemente inútil quando o administrador tomou posse efectiva do bem.

12. Foi também interposto recurso de agravo da decisão de fls. 111 que indeferiu  o pedido de alteração do rol apresentado no dia 31-3-2006 considerando a recorrente que o artigo 303.º do C.P.C. não proíbe que se altere o rol nas condições definidas no artigo 512º-A do C.P.C.

13. Prosseguiram os autos e veio a ser proferida decisão que julgou procedente a providência cautelar determinando que o liquidatário dê imediatamente acesso ao estabelecimento comercial apreendido nos autos sito […] Setúbal, permitindo que aquele exerça actividade, no mesmo, nos termos do contrato junto como documento nº1 aos autos, com Maria.[…] e Maria […], abstendo-se de praticar quaisquer actos que ponham em causa os direitos concedidos ao requerente no contrato referido até que seja decidida, com trânsito em julgado, a acção interposta pelo requerente e que corre os seus termos como apenso G), P. 611/05.

14. Foi impugnada a matéria de facto considerando o recorrente que deviam ter sido dados como provados os seguintes factos:

a) A Sociedade […] passou sem qualquer interrupção a ser titular do estabelecimento comercial sito […] em Setúbal

b) O senhorio aceitou como inquilina a Sociedade […].

c) Armando […] e mulher sempre consideraram a sociedade  […] como dona do estabelecimento

15. Sustenta ainda a recorrente nas suas conclusões que a posse efectiva era uma consequência lógica da apreensão do estabelecimento, carecendo de fundamento jurídico a instauração de providência cautelar para impedir uma conduta do administrador prevista na lei, impondo-se ao possuidor do bem apreendido a reacção através do meio processual contemplado no artigo 141º/1 e 3 e 145º do CIRE que impõe litisconsórcio necessário passivo; não resultou provado que o arrendamento de 1978 estivesse ainda em vigor, provando-se que era a insolvente a arrendatária só ela podendo ceder exploração; a providência decretada  foi diferente da solicitada, os prejuízos da insolvente são muito superiores  aos alegados pelo requerente, a entrega do estabelecimento ao requerente devia ser caucionada.

16. Factos provados:

1- No dia 21-4-2005  Maria […] e Maria […], na qualidade de únicas herdeiras de Armando […], por um lado, e Z.[…], por outro, outorgaram contrato de cessão de exploração do estabelecimento em causa nos autos.

2- Do contrato ficou, para além do mais, estipulado que a cessão teria início no dia 1-5-2005 vigorando pelo prazo de um ano, automaticamente renovável por iguais períodos.

3- No dia 27-10-2005 o administrador da insolvência  enviou à requerente carta a que se alude em 3.

4- No dia 7-12-1978  o R/C ou loja em causa nos autos foi arrendado a Armando […]

5- Ficou estipulado na cláusula quarta que “ o arrendatário fica com a faculdade de subarrendar a casa a qualquer sociedade de que ele seja sócio”.

6- Foi efectuada no dia 12-12-2005 a apreensão a que se alude em 7.

7- Mais tarde, já na pendência do presente procedimento, foi efectivada a posse do estabelecimento por parte da administração da insolvente.

8- Todos os bens e mercadorias existentes no estabelecimento ficaram dentro do mesmo.

9- O requerente não tem possibilidade de adquirir novos estoques para iniciar actividade noutro local.

10- A sociedade […] comprou e vendeu no estabelecimento supra referido mercadoria, designadamente cortinados, carpetes e tapetes.

11- No estabelecimento referido em 10 trabalhavam vários empregados de comércio, pagos pela sociedade […].

12- Durante vários anos as rendas no locado referido foram emitidas em nome da sociedade […] Lda.

Apreciando:


17. A pretensão do requerente, com base na posse que lhe advém do contrato de cessão de exploração,  outra não é senão a de impedir que seja efectivada a apreensão do estabelecimento que explorava desde 1-5-2005.

18. Anteriormente (12-12-2005) à instauração da presente providência (15-12-2005), houve um auto de apreensão do direito ao trespasse e arrendamento, mas não houve efectivo desapossamento.

19. O requerente jamais sustentou que fosse arrendatário do aludido estabelecimento e, por isso, a apreensão do direito ao arrendamento e trespasse apenas afectaria a sua posse se o administrador da insolvência pretendesse tomar conta do estabelecimento, pois, a partir desse momento, é que ficaria inviabilizada a sua exploração.

20. Por isso, a título preventivo, o requerente pretende com a presente providência impedir que se efective a apreensão do estabelecimento e que sejam praticados actos que ponham em causa o seu direito de exploração com base no aludido contrato de cessão de exploração.

21. No entanto, antes de ser proferida qualquer decisão por parte do tribunal, dá-se a prevista apreensão do estabelecimento, enquanto realidade física,  local onde o requerente procedia à sua actividade comercial que, assim, ficou impossibilitada.

22. O procedimento cautelar instaurado não prevê, contrariamente ao que sucede com a oposição mediante embargos de terceiro, uma fase introdutória onde, reconhecida a sua viabilidade e determinado o seu prosseguimento, se considere suspensa a execução da diligência (artigo 359.º/2 do C.P.C.).

23. No entanto, utilizado este meio processual e pressupondo-se que era ele o meio adequado, a referida alteração de facto não implica a inutilidade superveniente da lide, pois, embora efectivada a lesão do direito do requerente, o Tribunal, reconhecendo a validade da sua pretensão, deverá obviamente proferir a decisão adequada.

24. Essa adequação é admitida por lei (artigo 392.º/3 do C.P.C.)  e pode traduzir-se precisamente na decisão que reponha as coisas, tanto quanto possível, na mesma situação em que se encontravam quando o procedimento foi instaurado.

25. Não ocorre, portanto, uma inutilidade superveniente da lide, decisão que premiaria um abuso do direito por parte do administrador que, na pendência da acção e com conhecimento da pretensão do requerente, decidiu avançar com a efectiva apreensão do estabelecimento onde o requerente efectuava o seu giro comercial.

26. Certo é que a apreensão de bens em processo de insolvência resulta de decisão judicial visto que na sentença que declara a insolvência o juiz decreta a apreensão, para imediata entrega ao administrador, de todos os bens do devedor, ainda que arrestados, penhorados ou por qualquer forma apreendidos ou detidos e sem prejuízo do disposto no n.º 1 do artigo 150º (artigo 36.º/1, alínea g)  do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas).

27. Cabe ao administrador a concretização dos bens a apreender, podendo dar-se o caso de o administrador apreender indevidamente bens, designadamente por não serem da titularidade do insolvente.

28. Ainda assim, a apreensão não deixa de constituir execução de uma decisão judicial.

29. Por isso, no caso  de a diligência ofender a posse ou  qualquer direito incompatível com a realização ou o âmbito da diligência - e isso acontece quando são apreendidos bens cuja posse não pertence ao insolvente - o lesado tem ao seu dispor, em regra, a oposição mediante embargos de terceiro.

30. Sucede que a lei expressamente proíbe a dedução de embargos relativamente à apreensão de bens realizada no processo especial de recuperação de empresa e de falência, hoje processo de insolvência (artigo 351.º/2 do C.P.C.).

31. Está, assim, vedado ao lesado o recurso a esse meio processual ou a outro procedimento que tenha por objectivo, atenta a pretensão concretamente formulada, a restituição provisória da posse dos bens apreendidos com base em sentença declaratória de insolvência (artigos 351.º/2 e 356.º do C.P.C.).

32. Qualquer procedimento que tenha em vista a mesma finalidade dos embargos de terceiro visa um fim proibido por lei e, por conseguinte, está votado ao insucesso.

33. A lei permite àqueles que pela apreensão se sintam lesados na sua posse ou propriedade  obter a restituição ou a separação de bens que tenham sido indevidamente apreendidos para a massa insolvente por via do procedimento a que aludem os artigos 141.º e seguintes do C.I.R.E.

34. É este o procedimento que o lesado deve utilizar, não os embargos de terceiro ou procedimentos cautelares que visem igual finalidade.

35. A pretensão do requerente podia ter sido liminarmente indeferida (artigos 234.º/4, alínea b) e 234.º-A/1 do C.P.C.).

36. Não tendo ocorrido indeferimento liminar, o processo em princípio seguiria para julgamento e, então, a razão de ser da improcedência deveria ser conhecida quando da prolação da decisão final.

37. O Tribunal, porém, chamado a decidir a questão da extinção da instância por inutilidade superveniente da lide, podia, a nosso ver, nesse momento decidir no sentido da extinção da instância por impossibilidade da lide (artigo 287.º, alínea e) do C.P.C.) visto que a situação a apreciar encerrava um conteúdo fáctico diverso daquele que se apresentara ao tribunal com o requerimento inicial.

38. Naquele momento estava em causa a pretensão correspondente aos embargos deduzidos com função preventiva (artigo 359.º do C.P.C.); agora, a oposição face à diligência efectivamente lesiva da posse.

39. É certo que a solução - impossibilidade da lide -  é igual num e noutro caso.

40. Mas, face a diverso enquadramento circunstancial, o Tribunal podia agora emendar a mão, permita-se a expressão, sem ter de aguardar o momento ulterior à produção de prova.

41. Por este motivo, afigura-se-nos correcto do ponto de vista processual o provimento do agravo interposto da decisão que indeferiu o pedido de extinção de instância por inutilidade superveniente da lide, considerando-se haver lugar à extinção da instância por impossibilidade da lide, que era já originária, mas que podia ser constatada e declarada face à verificação da mencionada ocorrência superveniente: veja-se o Ac. do S.T.J. de 20-10-2005 (Oliveira Barros) (P. 2288/2005-7ª secção) in www.dgsi.pt que não exclui o entendimento anteriormente exposto de a impossibilidade originária da lide ser conhecida, depois do liminar, mas antes do julgamento, se ocorrer uma situação superveniente que permita ao tribunal pronunciar-se sobre a questão.

42. O provimento do agravo prejudica o conhecimento das questões que foram suscitadas a propósito da decisão final.

43. Refira-se que, no caso em apreço, ainda que a impossibilidade originária da lide não pudesse ser declarada a propósito do agravo interposto, esta seria sempre questão a tratar com precedência face às demais, prejudicando o seu conhecimento e, por isso, o interesse da nuance que indicámos relevaria para a situação que se depararia ao juiz se, face ao requerimento do administrador da insolvência pedindo a extinção da lide por superveniência objectiva, quisesse logo aí julgar findos os autos declarando a sua impossibilidade originária.

Concluindo:

I- Todo aquele que se sinta lesado na sua posse ou propriedade pela apreensão de bens efectivada pelo administrador da insolvência na sequência de sentença declaratória de insolvência que decretou a apreensão dos bens do insolvente (artigo 36.º/1, alínea g) do C.I.R.E.) terá de recorrer aos procedimentos para restituição e separação de bens previstos no artigo 141.º e seguintes do mesmo diploma.

II- Quando se utilizam meios procedimentais que visam o mesmo objectivo que seria atingido com a oposição mediante embargos de terceiro, que a lei expressamente proíbe relativamente à apreensão de bens realizada no processo especial de recuperação de empresa e de falência, hoje insolvência, (artigo 351.º/2 do C.P.C.), pretende-se alcançar uma finalidade proibida por lei.

III- Por isso, uma tal pretensão deve ser liminarmente indeferida por impossibilidade originária da lide, admitindo-se que o reconhecimento dessa impossibilidade possa ser efectivado, ainda antes da fase de produção de prova, se ocorrer situação superveniente que justifique pronúncia do tribunal.

Decisão: concede-se provimento ao agravo julgando-se finda a instância por impossibilidade originária da lide.

Custas pelo agravado

Lisboa, 19 de Outubro de 2006

(Salazar Casanova)
(Silva Santos)
(Bruto da Costa)