JULGADO DE PAZ
COMPETÊNCIA
Sumário

I – São da exclusiva a competência material dos julgados de paz relativamente as acções tipificadas no citado DL 78/2001, de 13 de Julho, (artigo 9º), as quais só podem transitar para os tribunais comuns nos casos ali expressamente previstos (artigos 41º e 59º nº3).
II - Respeitando a acção declarativa à responsabilidade civil extracontratual e não excedendo o seu valor a alçada do tribunal de 1ª instância, tem de concluir-se, face ao disposto nos artigos 9º nº 1, al. h), e 8º do DL 78/2001, que cabe aos julgados de paz, já instalados à data em que foi proposta, a competência material para dela conhecer.
(FG)

Texto Integral

Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa
Relatório.
1. Companhia de Seguros, SA, instaurou, no dia 14 de Fevereiro de 2006, no Tribunal de Pequena Instância Cível de Lisboa acção declarativa de condenação, sob a forma de processo sumaríssimo, contra a J e M, pedindo a condenação solidária deles no pagamento da quantia de € 3 533,10, acrescida de juros à taxa legal, desde a data da citação até integral pagamento, fundando esse pedido na circunstância de, indevidamente e por culpa dos réus que subscreveram a respectiva declaração amigável, ter pago uma indemnização por acidente em que teria intervindo o veículo 92-91-BD, quando tal não terá acontecido, o que justificava o reembolso da quantia despendida.
Citados os réus, apenas o réu J veio contestar, deduzindo, para além do mais, a excepção da incompetência do Tribunal, em razão do território, defendendo ser competente o Tribunal de Vila nova de Gaia (local da ocorrência do acidente) ou o de Gondomar (local da participação do sinistro).
A autora respondeu à matéria da excepção deduzida, conforme consta de fls. 58 e 59, concluindo pela competência territorial do Tribunal de Pequena Instância de Lisboa.
Ouvidas as partes sobre a eventual incompetência material do Tribunal, com data de 12.05.2006, foi proferida decisão a julgar o Tribunal de Pequena Instância Cível de Lisboa incompetente em razão da matéria, considerando que a acção em causa é da competência exclusiva dos julgados de paz e, consequentemente, absolveu os réus da instância.

Inconformado com tal decisão, dela agravou o Ministério Público, ressaltando das conclusões da respectiva alegação, em essência, que a questão nuclear a apreciar e decidir consiste em saber se a competência dos julgados de paz para dirimir litígios como o da presente acção, que visa a concretização de responsabilidade civil extracontratual, é exclusiva ou alternativa relativamente à dos tribunais judiciais.

2. Fundamentos:
O artigo 211º nº 1 da Constituição da República Portuguesa comete aos tribunais comuns jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais. Estes “…constituem a regra dentro da organização judiciária e, por isso, gozam de competência não discriminada (competência genérica), enquanto os restantes tribunais, constituindo excepção, têm a sua competência limitada às matérias que lhes são especialmente atribuídas”, o que determina que “todas as acções, que exorbitem das matérias especificamente conferidas aos tribunais especiais (hoc sensu), cabem na esfera (geral) da competência indiscriminada dos tribunais judiciais” (1).
Nas palavras de Alberto dos Reis, que mantêm actualidade, “todas as causas que por lei não são da competência dalgum tribunal especial pertencem ao foro comum. De modo que a competência dos tribunais especiais determina-se por investigação directa: vai-se ver qual é, segundo a lei orgânica do tribunal, a espécie ou espécies de acções que podem ser submetidas ao seu conhecimento.
Pelo contrário, a competência do foro comum determina-se por exclusão: apurado que a causa de que se trata não entra na compe­tência de nenhum tribunal especial, conclui-se que para ela é competente o tribunal ou juízo comum.
Portanto, a competência do foro comum só pode afirmar-se com segu­rança depois de se ter percorrido o quadro dos tribunais espe­ciais e de se ter verificado que nenhuma disposição da lei submete a acção em vista à jurisdição de qualquer tribunal especial” (2).
A competência dos tribunais judiciais é, assim, residual, pressupondo a inexistência de norma específica que atribua essa competência a outra jurisdição para dirimir determinado litígio, tal como o autor o configura, ou seja, em função dos termos em que a acção é configurada pelo autor, quanto ao pedido e seus fundamentos (3) (artigo 66º do Código de Processo Civil e artigo 18º nº 1 da Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais – Lei nº 3/99, de 13 de Janeiro).
Resulta claro, à luz do texto constitucional (artigo 209º nº 2), que os julgados de paz não estão integrados na categoria dos tribunais comuns, constituindo uma categoria de tribunais autónoma face a outras categorias ou ordens de tribunais.
Não sendo o DL 78/2001, de 13 de Julho, que regula a organização, competência e funcionamento dos julgados de paz, expresso quanto à exclusividade da sua competência material, há que averiguar se o mesmo concede (ou não) à parte a faculdade de escolher para a propositura da respectiva acção entre os julgados de paz e os tribunais judiciais, questão que constitui, como se referiu, o cerne deste recurso.
Ao contrário do que é sustentado pelo recorrente e do que foi já decidido no Acórdão proferido pela 8ª secção desta Relação em 18.05.2006 (4), aderimos à tese que considera ser exclusiva a competência material dos julgados de paz relativamente às acções tipificadas no citado DL 78/2001, de 13 de Julho, (artigo 9º), as quais só podem transitar para os tribunais comuns nos casos ali expressamente previstos (artigos 41º e 59º nº 3).
Isto porque, como se refere no Acórdão desta mesma Relação e proferido nesta secção, também em 18.05.2006, (5) só assim se cumprirá cabalmente a finalidade última da sua criação: o alívio da excessiva sobrecarga dos tribunais judiciais através de uma nova categoria de tribunais destinados, essencialmente, a causas de menor valor e grau de dificuldade, exclusivos a acções declarativas e concebidos para permitir a participação cívica dos interessados, estimulando a justa composição dos litígios, mediante procedimentos orientados por princípios de simplicidade, adequação, informalidade, oralidade e absoluta economia processual (artigos 1°, 2° e 6° do DL 78/2001).
Aliás, constituindo a competência alternativa um desvio, na repartição da competência entre os vários tribunais, à regra de atribuição da mesma a um só deles para conhecer de determinada categoria de litígios, justificava-se e seria razoável que o legislador, em matéria inovadora como são os julgados de paz, o tivesse dito expressamente.
E não deixou de o fazer em relação aos processos pendentes à data da criação e instalação dos julgados de paz através da norma transitória inserta no artigo 67º do DL 78/2001, onde se estabeleceu que "as acções pendentes à data da criação e instalação dos julgados de paz seguem os seus termos nos tribunais onde foram propostas".
Como se escreveu no citado Ac. de 18.05.2006, proferido no processo 4081/2006-6, neste preceito “…admite-se concretamente a competência material exclusiva dos julgados de paz, inclusivamente para acções pendentes noutros tribunais à data da sua criação, apenas se excluindo a possibilidade da remessa destas para esses tribunais e daí que, a contrario, a norma em referência não possa ter outro sentido que não seja o de que, uma vez instalados os julgados de paz, é aí e não nos tribunais judiciais que devem ser propostas as acções que àqueles compete julgar, sob pena da inutilidade ou do esvaziamento completo desta norma e, logo, de interpretação que não se coaduna com a trave mestra da disciplina interpretativa das normas jurídicas - "na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados" (n° 3 do art° 9° do CC)”.
Assim, respeitando a presente acção declarativa à responsabilidade civil extracontratual e não excedendo o seu valor a alçada do tribunal de 1ª instância, tem de concluir-se, face ao disposto nos artigos 9º nº 1, al. h), e 8º do DL 78/200, que cabe aos julgados de paz, já instados à data em que foi proposta, a competência material para dela conhecer, pelo que não merece censura o despacho recorrido.

3. Decisão:
Nesta conformidade, acorda-se em negar provimento ao agravo e confirmar o despacho recorrido.
Sem custas, por delas estar isento o agravante (artigo 2º al. b) do Código das Custas Judiciais).

Lisboa, 26 de Outubro de 2006
(Maria Manuela B. Santos G. Gomes)
(Olindo Geraldes)
(Ana Luísa Passos G.)
_______________________________
1 A. Varela, J.M. Bezerra e Sampaio e Nora in Manual de Processo Civil, 2ª edição, Coimbra Editora 1985, págs. 208 e 209.
2 in Código de Processo Civil Anotado, I, 201.
3 Vd., por todos, Acs do STJ de 9.2.94 in BMJ 434/564 e de 12.1.94 in CJ/STJ, 1994, I, 38.
4 Acessível em www.dgsi.pt/jtrl, processo nº 3896/2006-8.
5 Disponível em www.dgsi.pt/jtrl, processo nº 4081/2006-6. No mesmo sentido se pronunciou, igualmente, o Acórdão proferido em 12.10.2006 no Agravo nº 8251/06-6 desta Relação e secção, subscrito pela ora relatora, ao que se crê ainda inédito, cuja doutrina se seguiu de perto. Também na doutrina Cardona Ferreira in Julgados de Paz, Organização, Competência e Funcionamento, pág. 29, Joel Timóteo Ramos Pereira in Julgados de Paz, Organização, Trâmites e Formulário, págs. 56 e sgs. e João Miguel Galhardo Coelho in Julgados de Paz e Mediação de Conflitos, Ancora Editora, pág. 27.