REMOÇÃO DE TUTOR
PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO
CONSELHO DA REVOLUÇÃO
INTERDIÇÃO POR ANOMALIA PSÍQUICA
Sumário

I- Não prevê o artigo 1949.º do Código Civil que o tutor, cuja remoção se pretende, seja ouvido, impondo-se o contraditório no que respeita ao conselho de família, o que se compreende considerando que o tutor não é parte no processo, sendo os membros do conselho de família quem se encontra em condições de zelar pelo interesse e bem-estar do interdito.

II- A lei, ao não impor a audição do tutor, pretende alcançar um ponto de equilíbrio entre o interesse e bem- -estar do interdito e o direito de defesa do tutor, exprimindo-se este último no processo através do próprio juiz enquanto guardião dos direitos individuais e garantia contra incidente injusto, cabendo-lhe, assim, ponderar, em cada caso, da necessidade (ou total desaconselhamento) de proceder à audição do tutor.

(SC)

Texto Integral

Acordam na 7ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa,

I – Relatório

1. A.[…] veio recorrer do despacho que a removeu do cargo de tutora do seu filho J.[…], declarado interditado por sentença de 17.07.1993.

2.Conclui a Agravante nas suas alegações:
1. Pelas razões invocadas nos pontos 01,02 e 03, da parte II das presentes alegações, o incidente de remoção da tutora deve ser processado por apenso – arts.º 944 e 958, do CPC.
2. Pelas razões invocadas no ponto 04 da parte II, a decisão proferida sem que fosse ordenada a notificação da agravante violou o art.º 3º do CPC, pelo que é nula – art.º 194, a) e art.º 668, n.º1, d), do CPC.
3. Pelas razões invocadas no ponto 05 da parte II, a decisão não específica os fundamentos de facto a servir-lhes de base, pelo que é nula – art.º 668, n.º1, b) do CPC.
4. Pelas razões invocadas em 06 da parte II, a decisão não observou o disposto nos art.ºs 1933, n.º1, do CC, não cumprindo, assim, o disposto no n.º2 do citado art.º 659.
5. Pelas razões invocadas em 09 e 10 da parte II, deve o recurso subir nos autos do incidente e ter efeito suspensivo – art.º 736, n.º1, 1ª parte, 739, n.º1, 1ª parte e n.º2 e art.º 740, n.º1, do CPC.

3. Em contra alegações o MP pronuncia-se pela manutenção da decisão recorrida.  

II – Enquadramento fáctico

Com relevância para a apreciação do recurso registam-se as seguintes ocorrências:
Ø Por sentença de 17.07.1993 foi decretada a interdição definitiva de J.[…], tendo sido nomeada tutora, sua mãe […].
Ø Integraram o conselho de família J.[…], como protutor e M.[…], como vogal.
Ø M.[…] mãe da Recorrente e avó do interdito J.[…], participou à PSP de […] a situação deplorável em que o mesmo vivia, em virtude da total incapacidade da mãe/tutora para prover à satisfação das suas necessidades básicas.
Ø Ouvida em declarações foi pela mesma referido que o neto ficava dias inteiros fechado, sem poder ir à casa de banho, enquanto a mãe se ausentava e que, sempre que o mesmo conseguia saltar pela janela, ia ter consigo e dava-lhe dinheiro para comer e para cigarros, dinheiro que, por vezes, a própria mãe lho tirava.
Ø As condições em que o interdito vivia e o estado de abandono a que a mãe o votava foram confirmadas pela PSP, através da deslocação de um agente à casa onde aquele se encontrava, pela testemunha J.[…] (que possui um armazém a cerca de 30 metros da casa onde o interdito se encontrava), pelo irmão do interdito, N.[…], que se deslocou à casa que aquele habitava e pelos técnicos de Serviço Social e de Saúde Ambiental, que igualmente se deslocaram à referida casa, fazendo constar no relatório elaborado que o interdito se encontrava encarcerado dentro de casa, sem qualquer luz natural e com alguns cães por companhia; existindo um cheiro nauseabundo, concluindo estar em causa uma situação de Saúde Pública e de Saúde Mental da mãe do interdito e que este estava numa situação de risco.
Ø Tais elementos, acompanhados de pedido de remoção da tutora, foram enviados pelos serviços do Ministério Público no Tribunal Judicial […] para a Procuradoria de Lisboa junto das Varas e Juízos Cíveis.
Ø Ouvido em declarações, o pai do interdito […], afirmou ter conhecimento da situação do filho através da avó […] e manifestou disponibilidade para exercer o cargo de tutor.
Ø Foi informado pela irmã de M.[…]  que esta, pela idade avançada e face aos problemas de saúde (que a impediram mesmo de comparecer em tribunal) já não podia exercer as funções de vogal do conselho de família.  
Ø Em 30.01.2006 foi requerida a remoção da tutora a sua substituição pelo pai do interdito assim como a recomposição do conselho de família, indicando para dele fazerem parte os irmãos do interdito, N.[…] (protutor) e S.[…] (como vogal).
Ø Por despacho de 06.02.2006 foi ordenada a notificação do conselho de família, para em cinco dias se pronunciarem, não tendo sido deduzida qualquer oposição, não tendo o então protutor […] sido localizado
Ø .Por despacho de fls. 69 (objecto do presente recurso), datado de 07.03.2006, foi removida das suas funções a tutora, o protutor e o vogal do conselho de família e designados, em sua substituição, respectivamente, J.[…] e os irmãos do interdito, N.[…] (protutor) e S.[…] (como vogal).

III – Enquadramento jurídico

De acordo com as conclusões das alegações, na ausência de aspectos de conhecimento oficioso que cumpra decidir, impõe–se a este tribunal apreciar o despacho recorrido (que removeu a agravante das funções de tutora e procedeu à substituição dos elementos que compunham o conselho de família ) quanto aos seguintes aspectos:

- estar em causa um incidente a processar por apenso
- nulidade do despacho por falta de notificação da tutora
- nulidade do despacho por falta de especificação dos fundamentos de facto
- inobservância dos requisitos legais (exigidos pelo art.º1933, do C.Civil) na nomeação do tutor e dos elementos que compõem o conselho de família

1.Do processamento do incidente  

Defende a Agravante que o incidente de remoção do tutor e dos vogais do conselho de família não se encontra especialmente previsto nas normas reguladoras dos processos interdição e inabilitação, pelo que se deverá entender como incidente inominado a processar por apenso.

Não podemos concordar com a Recorrente.

Efectivamente a remoção do tutor e dos elementos que compõem o conselho de família não se encontra especialmente prevista nas normas relativas ao processamento das acções de interdição e de inabilitação.

Desta forma e uma vez que o incidente de remoção não tem qualquer paralelo com o incidente de levantamento da interdição ou inabilitação (este sim, a processar por apenso, conforme prescreve o art.º 958, do CPC) (1), constituindo antes uma questão complementar relativa à idoneidade do tutor, assume-se plenamente justificada, em termos processuais, a distinção quanto à forma de processar o incidente, que redunda na inaplicabilidade do citado art.º 958, do CPC, ao caso.

Carece por isso de fundamento legal a pretensão quanto ao processamento (por apenso) do incidente de remoção.

Consequentemente e visto o disposto nos art.ºs 737 e 740, ambos do CPC, quer o regime de subida do recurso quer o efeito atribuído não poderia deixar de ser o fixado pelo tribunal a quo, como aliás se decidiu no exame preliminar efectuado pelo despacho proferido ao abrigo do disposto no art.º 701, do CPC.


2. Da nulidade da decisão

2.1- não cumprimento do art.º 3 do CPC

Defende a Agravante que se impunha a sua notificação a fim de ser ouvida na pretensão de remoção requerida pelo MP. Considera, por isso, ter sido violado o art.º 3, do CPC.

Vejamos.

No que para aqui assume relevância dispõe o art.º 1949, do C. Civil, que a remoção do tutor é decretada (…), ouvido o conselho de família, a requerimento do Ministério Público …   
Por sua vez o n.º 1 do art.º3, do CPC, impõe ao juiz a audição da parte contra a qual é deduzida uma pretensão, estatuindo o n.º2 do mesmo preceito que só nos casos excepcionais previstos na lei se podem tomar providência contra determinada pessoa sem que esta seja previamente ouvida. 

Preceitua ainda o n.º3 do mesmo artigo que O juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem.

Encontra-se pois consignado na lei o princípio do contraditório que se assume desde logo, na sua essencialidade, como proibição de situações de indefesa ou de limitação do direito defesa do particular.

A questão que aqui se coloca é a de saber se nos casos de remoção do tutor, uma vez que a lei não contempla a audição deste (tão só o conselho de família), a mesma se impõe em cumprimento do princípio do contraditório ínsito no art.º 3º do CPC.

Como defende o MP nas contra alegações, consideramos que a lei ao não prever a audição do tutor no processo tendente à remoção do cargo que ocupa entendeu-a por dispensável tendo em conta o próprio estatuto funcional que a lei imprime à figura em causa.

Na verdade, o tutor não é parte no processo, sendo os membros do conselho de família quem se encontram (2) em condições de zelar pelo interesse e bem-estar do interdito que constitui afinal o sentido último (e único) do próprio incidente (cf. art.º 1948, do C. Civil).

Nesta medida não podemos deixar de entender que neste tipo de incidente a lei, ao não contemplar a audição do tutor, considerou-a dispensável (não a exigindo, nem a proibindo) pretendendo com isso encontrar um ponto de equilíbrio entre o interesse e bem-estar do interdito e o direito de defesa do tutor, exprimindo-se este último no processo fundamentalmente através do papel do juiz enquanto guardião dos direitos individuais e para garantia perante incidente injusto, cabendo-lhe ponderar, em cada caso, da necessidade (ou total desaconselhamento) de proceder à respectiva audição.

Ciente pois desta realidade a nossa lei não assevera tal direito ao tutor (impondo a sua audição) permitindo (não proibindo) porém a sua intervenção.

No caso sub judice, estando em causa o quadro que se desenhava pela constatação de uma situação deplorável (de saúde pública) do interdito por efeito da incapacidade absoluta da tutora (que tem a ver com a própria saúde mental da mesma) para prover as suas necessidades básicas, independentemente de se (des)conhecer o seu paradeiro, carecia de qualquer sentido a audição da tutora, desde logo por poder comprometer a necessária urgência que a situação do interdito impunha.

Não foi pois cometida qualquer nulidade processual, sendo certo que, a ocorrer, sempre se colocaria a questão da tempestividade da respectiva arguição através do meio utilizado pela Agravante (nas alegações de recurso), atento ao que dispõe o artigo 205º, ambos do CPC.  

2.2 – falta de especificação dos fundamentos de facto

Considera ainda a Recorrente que o despacho padece de nulidade por falta de especificação dos fundamentos de facto, carece, porém, de razão.

Conforme se verifica do teor do despacho recorrido, o tribunal a quo aderiu, no seu todo, aos fundamentos fácticos constantes do requerimento de remoção da tutora apresentado pelo MP, pelo que remeteu para os mesmos, conforme expressamente fez consignar – “Pelo exposto e nos fundamentos constantes da douta promoção de fls. 158, removo das suas funções a tutora, o protutor e a vogal do conselho de família nomeados ao interdito […]”.

Ainda que se considere falta de perfeição na fundamentação levada a cabo, a mesma não gera a nulidade da decisão pois que esta só se verifica quando falte, em absoluto, a indicação dos fundamentos de facto. Acresce que, no caso, a forma como o requerimento de remoção de tutor formulado pelo MP se encontrava fundamentado (designadamente perante o apoio das diligências probatórias que lhe estavam por subjacentes) e a celeridade que a situação impunha justificavam a simplificação do próprio acto judicial.

Improcedem, por isso, nesta parte, as conclusões das alegações.

3. Da existência de impedimento legal à designação do tutor e dos elementos que compõem o conselho de família

Defende a Agravante que a nomeação do pai do interdito para tutor e bem assim a do protutor e do vogal (irmãos do interdito) não obedeceu aos critérios legais estabelecidos nos art.ºs 1933, n.º 1, alíneas c), g) e i), 1935 e 1953, n.º1, do C. Civil, aduzindo os seguintes argumentos:

- Relativamente ao pai do interdito, pela pendência de uma acção de alimentos (acção de alimentos e respectiva execução, esta ainda em recurso) e por revelar desinteresse por ele e não ser seu amigo (das declarações do mesmo ao tribunal evidenciou conhecer as condições deploráveis em que o filho viva e nada fez para o socorrer).

- Relativamente aos elementos do conselho de família, por estarem em causa pessoas ausentes da vida do interdito e no caso do protutor, não ter o mesmo qualquer modo de vida definido.

Ainda quanto a este aspecto não podem deixar de improceder as conclusões das alegações pois que as mesmas fundamentam-se em factualismo que não se encontra demonstrado nos autos e não serviu de suporte à decisão recorrida, sendo certo que a função do recurso ordinário consiste na reapreciação da decisão proferida pelo tribunal a quo e não alcançar uma nova decisão baseada em elementos que não foram tidos em conta na decisão sob censura (3).

Por outro lado não pode deixar de se fazer referência ao facto da Recorrente não ter invocado no agravo argumentos tendentes a contrariar a situação subjacente à decisão recorrida, isto é, a mesma não se insurge perante a situação fáctica que esteve subjacente à remoção do cargo para que havia sido nomeada, situação que se prende com as condições de vida do interdito as quais ditavam urgente intervenção.

Verifica-se pois dos elementos de prova constantes dos autos que a Agravante não só não cumpriu os deveres próprios do cargo, negligenciando de todo a tutela sobre o filho, incluindo as necessidades básicas deste, pondo em risco a sua saúde, como revelou inaptidão para o exercício do mesmo (encarcerava o filho em casa, com deploráveis condições de higiene, não lhe dando comida nem dinheiro para comer).

Por outro lado, tendo em linha de conta as diligências possíveis de efectuar atenta a urgência na solução da situação do interdito, tal como se encontra salientado pelo MP nas suas alegações, não foi evidenciado qualquer impedimento legal para a designação do tutor e dos elementos do conselho de família, nada permitindo concluir (ainda que em termos de presunção de facto) que o pai do interdito seja inimigo deste (alínea i) do n.º1 do art.º 1933 do C. Civil) e, bem assim, que o protutor não tenha modo de vida.

Quanto aos demais impedimentos invocados pela Agravante estão em causa, como vimos, aspectos que não têm a menor expressão no processo (4) e dizem respeito a factualismo que apenas se encontra referenciado em sede de recurso, pelo que, ainda que fosse demonstrado, nunca poderia ser levado em conta, neste âmbito, para efeitos de reapreciação da decisão recorrida.

Não decorre pois dos autos nenhum impedimento legal (nomeadamente os referidos no art.º 1933, alíneas c), g) e i), do C. Civil) relativamente à designação, como tutor, do pai do interdito, e à substituição levada a cabo dos elementos que compõem o conselho de família.

Improcedem, por isso, na sua totalidade, as conclusões das alegações.

IV – Decisão

Nestes termos, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação de Lisboa em negar provimento ao agravo, mantendo o despacho recorrido.

Custas pela Agravante.

Lisboa, 7 de  Novembro de 2006

Graça Amaral
Orlando Nascimento
Ana Maria Resende  



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1.-No levantamento está em causa manter ou não a providência de interdição ou inabilitação (é no fundo apurar se é ou não justificada a própria providência), sendo que na remoção do tutor, não é posta em causa a própria interdição ou inabilitação, havendo apenas que se apreciar se o tutor nomeado continua ou não a reunir os requisitos necessários para se manter no exercício das funções para que havia sido nomeado.

2.-De forma que se supõe mais isenta e objectiva.

3.-os recursos ordinários previstos na lei processual civil são, mesmo depois da reforma de 1995, recursos de reponderação, salvo tratando-se de questões de conhecimento oficioso

4.-Não podemos deixar de sublinhar o que se encontra referido pelo MP nas contra alegações e que se prende com a condicionante “máxima urgência” que o caso impunha. “a urgência decorrente das péssimas condições de vida do Jorge, e perante a ausência de notícia de circunstâncias impeditivas, se não justificava o aprofundamento de diligências com vista a apurar a idoneidade para o exercício do cargo por parte do actual tutor, que é o próprio pai do interdito, com modo de vida regular e, naturalmente, a alternativa mais adequada ao exercício do cargo pela mãe, à semelhança do que se passa com a configuração legal relativa ao menores, da qual o instituto de tutela de interditos é tributário (art. 139° do C. Civil)”.