JULGAMENTO SEM A PRESENÇA DO RÉU
NOTIFICAÇÃO POR VIA POSTAL
Sumário

1. Não é obrigatória a presença de defensor no momento em que o arguido presta TIR mesmo que o arguido seja analfabeto, se este não informa dessa condição e se assina o seu nome.
2. O normativo do art.º 333ºCPC tem como pressuposto que o arguido tenha sido regularmente notificado.
3. A via postal simples, por meio de carta está expressamente previsto para o caso em que o arguido prestou termo de identidade e residência (TIR), momento em que deve indicar a sua residência, o local de trabalho ou outro domicílio à sua escolha (art. 196.º, n.º 2, do CPP), devendo constar daquele termo que lhe foi dado conhecimento de que “as posteriores notificações serão feitas por via postal simples, para a morada indicada, excepto se o arguido comunicar uma outra” e que “o incumprimento do disposto nas alíneas anteriores legitima a sua representação por defensor em todos os actos processuais nos quais tenha o direito ou o dever de estar presente e bem assim a realização da audiência na sua ausência, nos termos do art. 333.º” – alíneas c) e d) do n.º 3 do mencionado art. 196.º, o que pressupõe que o arguido tenha sido efectivamente notificado, por via postal simples, para a morada que consta do termo de identidade e residência, ainda que ele já lá não more, desde que não tenha comunicado a alteração de morada.
Ou seja, primordial neste tipo de notificação, para além dos actos do funcionário judicial, é a conduta do distribuidor do serviço postal, que tem de proceder ao depósito da carta na caixa do correio do notificando, lavrando uma declaração na qual confirma aquele depósito, o local em que ocorreu e a respectiva data, declaração que tem de ser remetida ao tribunal. Só se forem cumpridas todas estas formalidades é que se considera que a notificação foi efectuada no 5.º dia posterior à data indicada com sendo a do depósito.
Não havendo depósito da carta, esta nunca pode chegar ao conhecimento do notificando, é impossível que este tome conhecimento do seu conteúdo, não podendo ficcionar-se qualquer presunção de notificação. Na impossibilidade de depósito da carta na caixa do correio, manda o n.º 4 do citado art. 113.º que o distribuidor do serviço postal lavre nota do incidente, apondo a respectiva data, devolvendo-a de imediato ao tribunal. Não estabelece esse n.º 4 qualquer presunção de notificação quando a carta é devolvida, ao contrário do que se prevê no n.º 3. Não se pode, por isso, estender a cominação neste prevista para o depósito, à situação em que tal depósito não ocorre.

Texto Integral

Acordam, em conferência, na 5.ª Secção (Criminal) da Relação de Lisboa:


I. Relatório:
1. O arguido M. foi submetido a julgamento perante o Tribunal Colectivo da 7.ª Vara Criminal de Lisboa, tendo, a final, sido condenado, como co-autor material de um crime de tráfico de estupefacientes, p. p. pelo art. 21.º, n.º 1, do DL n.º 15/93, de 22/01, na pena de quatro (4) anos de prisão.

2. Não se conformou o mesmo com tal decisão, pelo que dela interpôs o presente recurso.

(…)

O recorrente limitou, porém, o respectivo recurso às seguintes questões:
- O termo de identidade e residência (TIR) prestado pelo arguido nos autos é nulo, por nesse acto não ter sido assistido por defensor?
- Inexistem provas de que o arguido cometeu os factos provados?
- A factualidade provada integra a prática de um crime de tráfico de menor gravidade, do art. 25.º, al. a), do DL 15/93, de 22/01?
- Devendo a pena a aplicar ao recorrente ser encontrada tendo em conta esse novo enquadramento jurídico?
(…)

C) Apreciemos, pois, começando pela nulidade invocada pelo recorrente.
1. O termo de identidade e residência (TIR) prestado pelo arguido nos autos é nulo, por nesse acto não ter sido assistido por defensor?
O argumento do recorrente é o de que é analfabeto, pelo que se impunha a presença de defensor no acto de prestação de termo de identidade e residência.
O MP, na respectiva resposta ao recurso, argumenta que:
- consta do processo que, quando foi constituído arguido em 7-10-03, foi informado dos inerentes direitos e deveres, tendo assinado o auto de que recebeu cópia;
- Mais consta que, sujeito seguidamente a termo de identidade e residência, leu o termo, ficou ciente das obrigações previstas no n° 3 do art. 196° do C.P.P., assinou-o e recebeu cópia.
- Finalmente, interrogado na qualidade de arguido em 4-11-03, prescindiu da presença de defensor e assinou o respectivo auto depois de lido e achado conforme.
- Perante esta factualidade documentada não vislumbramos que ilegalidade haja sido cometida.
- A ser o recorrente realmente, o que não está comprovado, analfabeto podia e devia, uma vez que tal facto não é manifesto nem sequer perceptível, já há muito tê-lo comunicado; ora não o fez, nunca exibiu qualquer documento de que tal constasse, o que é, porém, compreensível pois encontra-se ilegalmente em Portugal como resulta da informação prestada pelo SEF em 29-11-03 segundo a qual o seu nome não consta dos seus registos, e sempre se comportou como se o não fosse.
Ora, na verdade, como salienta o MP, o recorrente foi interrogado pela PSP em 4/11/03, no acto prescindiu expressamente da presença de defensor e assinou o respectivo auto após ter prestado declarações. Assim como assinou o auto de constituição de arguido e o termo de identidade e residência (fls. 127 e 128), de que recebeu cópia, do qual consta que ficou ciente das respectivas obrigações previstas no art. 196.º, n.º 3, do CPP.
Em momento algum informou o arguido que era analfabeto – devendo considerar-se como tal, aquele que não sabe ler nem escrever –, nem tal se pode deduzir de nenhum outro elemento dos autos. Antes pelo contrário, ao assinar o seu nome nos mencionados autos sem nada mais esclarecer, terá de partir-se do pressuposto que não é analfabeto.
Pelo que a presença de defensor no momento em que foi prestado aquele TIR não era obrigatória, não se verificando a invocada nulidade, com referência ao art. 64.º, n.º 1, al. c), do CPP.

2. Verifica-se, porém, a nulidade insanável prevista no art. 119.º, al. c), que afecta a validade do julgamento efectuado, já que este decorreu na ausência do arguido sem que estejam verificadas as condições legais que permitam a sua realização nessas condições.
Dispõe aquele normativo que:
«Constituem nulidades insanáveis, que devem ser oficiosamente declaradas em qualquer fase do procedimento, além das que como tal forem cominadas em outras disposições legais:
a) …
b) …
c) A ausência do arguido ou do seu defensor, nos casos em que a lei exigir a respectiva comparência;
d) …
e) …
f) …».

Por outro lado, determina o art. 332.º, n.º 1, do mesmo Código (1), que:
«É obrigatória a presença do arguido na audiência, sem prejuízo do disposto nos artigos 333.º, n.ºs 1 e 2 e 334.º, n.ºs 1 e 2».
Não se verifica nenhuma das situações previstas no art. 334.º, n.ºs 1 e 2, que não foi sequer invocado.
A audiência de julgamento destes autos teve lugar na ausência do arguido M. ao abrigo do art. 333.º, o qual dispõe:
«1 — Se o arguido regularmente notificado não estiver presente na hora designada para o início da audiência, o presidente toma as medidas necessárias e legalmente admissíveis para obter a sua comparência, e a audiência só é adiada se o tribunal considerar que é absolutamente indispensável para a descoberta da verdade material a sua presença desde o início da audiência.

2 — Se o tribunal considerar que a audiência pode começar sem a presença do arguido, ou se a falta de arguido tiver como causa os impedimentos enunciados nos n.os 2 a 4 do artigo 117.º, a audiência não é adiada, sendo inquiridas ou ouvidas as pessoas presentes pela ordem referida nas alíneas b) e c) do artigo 341.º, sem prejuízo da alteração que seja necessária efectuar no rol apresentado, e as suas declarações documentadas, aplicando-se sempre que necessário o disposto no n.º 6 do artigo 117.º

3 — No caso referido no número anterior, o arguido mantém o direito de prestar declarações até ao encerramento da audiência, e se ocorrer na primeira data marcada, o advogado constituído ou o defensor nomeado ao arguido pode requerer que este seja ouvido na segunda data designada pelo juiz ao abrigo do artigo 312.º, n.º 2.

4 — O disposto nos números anteriores não prejudica que a audiência tenha lugar na ausência do arguido com o seu consentimento, nos termos do artigo 334.º, n.º 2.

5 — No caso previsto nos n.os 2 e 3, havendo lugar a audiência na ausência do arguido, a sentença é notificada ao arguido logo que seja detido ou se apresente voluntariamente. O prazo para a interposição de recurso pelo arguido conta-se a partir da notificação da sentença.

6 — É correspondentemente aplicável o disposto nos artigos 116.º, n.os 1 e 2, e 254.º e nos n.os 4 e 5 do artigo seguinte.»


Tem tal normativo como pressuposto que o arguido tenha sido regularmente notificado. O que se compreende, pois só se tiver conhecimento da data designada para julgamento é que lhe é dada a faculdade de estar presente, para se defender, garantindo o respectivo contraditório. Estando notificado mas não comparecendo, não deixou de ter aquela possibilidade de se defender, só não a aproveitou porque não quis. Não haverá ofensa de qualquer direito, desde que cumpridas as demais condições do art. 333.º do CPP.
Diferentemente se passam as coisas se o arguido não foi notificado. Nesse caso, não pode o tribunal socorrer-se de tal normativo, não podendo ter lugar o julgamento na ausência do arguido.
O tribunal justificou no presente caso o seu procedimento, nos seguintes termos (2):
«Vai-se proceder ao julgamento do arguido M. que não se encontra presente, nos termos do art. 333.º, n.º 2 do CPP. O mesmo prestou Termo de Identidade e Residência a fls. 128, tendo sido enviada carta para notificação, nos termos do art. 196.º do CPP a qual veio devolvida, sendo certo que o arguido nunca comunicou outra morada que sendo aquela, devendo-se considerar regularmente notificado.
Assim determina-se o início da audiência verificando-se a final necessidade da inquirição do arguido ausente».

Só que o aludido arguido não estava efectivamente notificado da data designada para julgamento, apesar de na respectiva acta constar, quando se mencionam os ausentes: «O arguido M., notificado a fls. 615».

É o art. 113.º, do CPP, que fixa as regras sobre notificações. Dele resulta que as notificações se efectuam mediante:
- contacto pessoal com o notificando;
- via postal registada, por meio de carta ou aviso registados;
- via postal simples, por meio de carta ou aviso, nos casos expressamente previstos; ou
- por editais e anúncios, nos caos em que a lei expressamente o admitir.

No presente caso escolheu-se a via postal simples, por meio de carta.
Este meio de notificação está expressamente previsto para o caso, devendo, para o efeito, no momento em que presta termo de identidade e residência (TIR), indicar a sua residência, o local de trabalho ou outro domicílio à sua escolha (art. 196.º, n.º 2, do CPP), constando daquele termo que lhe foi dado conhecimento de que “as posteriores notificações serão feitas por via postal simples, para a morada indicada, excepto se o arguido comunicar uma outra” e que “o incumprimento do disposto nas alíneas anteriores legitima a sua representação por defensor em todos os actos processuais nos quais tenha o direito ou o dever de estar presente e bem assim a realização da audiência na sua ausência, nos termos do art. 333.º” – alíneas c) e d) do n.º 3 do mencionado art. 196.º.
Mas tudo isto pressupõe que o arguido tenha sido efectivamente notificado, por via postal simples, para a morada que consta do termo de identidade e residência, ainda que ele já lá não more, desde que não tenha comunicado a alteração de morada.
É, mais uma vez, o art. 113.º do CPP, desta vez no seu n.º 3, que nos diz como deve ser feita tal notificação:
«Quando efectuadas por via postal simples, o funcionário judicial lavra uma cota no processo com a indicação da data da expedição da carta e do domicílio para a qual foi enviada e o distribuidor do serviço postal deposita a carta na caixa de correio do notificando, lavra uma declaração indicando a data e confirmando o local exacto do depósito, e envia-a de imediato ao serviço ou ao tribunal remetente, considerando-se a notificação efectuada no 5.º dia posterior à data indicada na declaração lavrada pelo distribuidor do serviço postal, cominação esta que deverá constar do acto de notificação.»


Ou seja, primordial neste tipo de notificação, para além dos actos do funcionário judicial, é a conduta do distribuidor do serviço postal, que tem de proceder ao depósito da carta na caixa do correio do notificando, lavrando uma declaração na qual confirma aquele depósito, o local em que ocorreu e a respectiva data, declaração que tem de ser remetida ao tribunal.
Só se forem cumpridas todas estas formalidades é que se considera que a notificação foi efectuada no 5.º dia posterior à data indicada com sendo a do depósito.
Há neste caso uma “presunção legal de notificação” (3), já que o legislador presume que, em circunstâncias normais, o notificando toma conhecimento da carta que ficou na sua caixa de correio, directamente ou mediante as pessoas que a essa caixa também possam ter acesso (familiares, nomeadamente). E se o notificando não vai à caixa do correio, desinteressando-se do que nela possa ter sido entregue, então o risco da consequente ignorância já tem de correr por sua conta, se não sabe é porque não quis saber. É como se houvesse recusa de notificação. Para todos os efeitos, cumprido aquele formalismo, está o arguido notificado, daí se extraindo todas as consequências atrás assinaladas, nomeadamente a de que o julgamento pode ocorrer na sua ausência, na qual será representado pelo respectivo defensor.
Mas o mesmo não se pode dizer quando aquele depósito não ocorreu, seja qual for a causa. Não havendo depósito da carta, esta nunca pode chegar ao conhecimento do notificando, é impossível que este tome conhecimento do seu conteúdo, não podendo ficcionar-se qualquer presunção de notificação. Na impossibilidade de depósito da carta na caixa do correio, manda o n.º 4 do citado art. 113.º que o distribuidor do serviço postal lavre nota do incidente, apondo a respectiva data, devolvendo-a de imediato ao tribunal. Não estabelece esse n.º 4 qualquer presunção de notificação quando a carta é devolvida, ao contrário do que se prevê no número 3. Não se pode, por isso, estender a cominação neste prevista para o depósito, à situação em que tal depósito não ocorre.
Foi, porém, o que aconteceu no presente caso. Consta a fls. 615 a carta que havia sido enviada para notificação do arguido M., a qual foi devolvida ao tribunal com a menção de “Impossibilidade absoluta de depositar a carta” pelo facto de o local estar “encerrado para obras”.
Ou seja, não foi efectuado o depósito da carta, na caixa do correio do arguido.
Apesar disso, considerou o tribunal que aquele estava regularmente notificado.
Mas, indevidamente. Sob pena de estarem irremediavelmente comprometidas as garantias de defesa do arguido.
Em suma, terá de concluir-se que o arguido M. não foi notificado para a audiência de julgamento. O que tem como consequência a anulação do julgamento realizado, já que este não podia ter ocorrido na sua ausência, bem como dos actos subsequentes respeitantes ao mesmo arguido. Ressalvam-se, quanto a estes actos, os que respeitam à execução da medida de coacção a que está o mesmo sujeito - em prisão preventiva desde 26/08/2006 (fls. 887 v.º) -, que já havia sido decretada em momento muito anterior ao julgamento (fls 421) e que se mantém, sem prejuízo de ulterior reexame dos respectivos pressupostos, nos termos do art. 213.º, do CPP.

III. DECISÃO:
Em conformidade com o exposto, acordam os juízes desta Relação de Lisboa em julgar verificada a nulidade insanável prevista no art. 119.º, alínea c), do CPP, declarando-se nulo o julgamento do arguido M. - que terá de ser repetido pelo mesmo tribunal -, bem como todo o processado subsequente que a esse arguido diz respeito, salvo as decisões e demais actos respeitantes à execução da medida de coacção.
Notifique.
Lisboa, 14 / 11 / 2006
(Processado em computador e revisto pelo relator, o primeiro signatário)



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1.-Na redacção introduzida pelo DL 320-C/2000, de 15/12, cuja entrada em vigência ocorreu em 1/1/2001.

2.-Cfr. despacho de fls. 618/619, na sessão da audiência de julgamento do dia 2 de Novembro de 2004.

3.-“O que se exige, em termos de a notificação se considerar efectuada, é que se proceda ao depósito da carta tendo em conta o formalismo legal”. “… foi, efectivamente, propósito do legislador estabelecer uma presunção legal de notificação nos casos em que a carta enviada seja depositada na caixa de correio correspondente à morada indicada, ainda que não seja directamente entregue ao arguido”. – cfr. Ac. desta mesma 5.ª secção da Relação de Lisboa, de 30/9/2003, in CJ, tomo IV/03, pág. 135 em que foi relatora a Exmª Desemb. Margarida Blasco).