MÚTUO ONEROSO
JUROS REMUNERATÓRIOS
LIBERDADE DE ESTIPULAÇÃO
Sumário

I- A cisão, na obrigação de prestação a que alude o artigo 781.º do Código Civil, em “ dívida de capital” e “dívida de juros” só pode aceitar-se se tal resultar de qualquer norma legal imperativa que retire tal matéria da disponibilidade das partes.

II- Assim não acontecendo, e tendo as partes acordado em incluir no valor das prestações  o capital e os juros do empréstimo, o não pagamento de uma das prestações, seja qual for o conteúdo que a integre, importa o vencimento de todas.

III- Permite o artigo 5º/6 do Decreto-Lei n.º 344/78, de 17 de Novembro (com a redacção dada pelo Decreto-Lei n.º 83/86,de 6 de Maio) a capitalização de juros correspondentes a um período igual ou superior a três meses desde que convencionados, convenção que não tem de ser posterior ao vencimento dos juros.

IV- A consideração de que o contrato em causa é um contrato com elevado risco para o mutuante justifica que se tenha por válida a cláusula estipulada segundo a qual “ a falta de pagamento  de uma das prestações  na data do respectivo vencimento implica o imediato vencimento das restantes”, recebendo, assim, o mutuante antecipadamente o seu capital e respectivo rendimento sem ter que esperar pelo decurso do tempo.

V- O decurso do prazo de duração do contrato e o percebimento dos respectivos juros fazem parte desse mesmo contrato, o que é consagrado pelo disposto no artigo 1147.º  do Código Civil que prescreve que “ no mútuo oneroso o prazo presume-se estipulado a favor de ambas as partes, mas o mutuário pode antecipar o pagamento, desde que satisfaça os juros por inteiro”

(SC)

Texto Integral

Acordam os Juízes que constituem o Tribunal da Relação de Lisboa.

1. RELATÓRIO

BANCO […]S.A, propôs contra, JORGE […] e mulher ANA  […], esta acção com processo sumário, pedindo a condenação solidária destes a pagarem-lhe a importância de € 18.797,24, acrescida de € 2.326,87 de juros vencidos até 11 de Março de 2005, de € 93,07 de imposto de selo sobre estes juros e, ainda, os juros que, sobre a quantia de € 18.797,24 se vencerem, à taxa anual de 16,49%, desde 12 de Março de 2005 até integral pagamento, bem como o imposto de selo que, à taxa de 4%, sobre estes juros recair e, ainda, no pagamento das custas, procuradoria e mais legal, com fundamento em que, no exercício da sua actividade comercial, e com destino, segundo informação então prestada pelo R. marido, à aquisição de um veículo automóvel, da marca VOLKSWAGEN, modelo GOLF […] com a matrícula […], a A por contrato constante de título particular datado de 16 Fevereiro de 2004, concedeu ao dito R. crédito directo, sob a forma de um contrato de mútuo, tendo assim emprestado ao dito R. marido a importância de € 13.525,00.

Nos termos do contrato assim celebrado entre o A e o referido R marido, aquela emprestou a este a dita importância de € 13.525,00, com juros à taxa nominal de 12,49% ao ano, devendo a importância do empréstimo e os juros referidos, bem como o respectivo imposto de selo e os prémios de seguro, serem pagos, nos termos acordados, em 72 prestações, mensais e sucessivas, no valor de € 276,43, com vencimento a primeira em 10 de Março de 2004, e as seguintes nos dias 10 dos meses subsequentes.

De harmonia com o acordado entre as partes, a importância de cada uma das referidas prestações deveria ser paga – conforme ordem irrevogável logo dada pelo referido R. marido para o seu Banco – mediante transferências bancárias a efectuar, aquando do vencimento de cada uma das referidas prestações, para conta bancária logo indicada pela ora A.

Conforme também expressamente acordado, a falta de pagamento de qualquer das referidas prestações na data do respectivo vencimento implicava o vencimento imediato de todas as demais prestações.

Mais foi acordado entre o A e o referido R. marido que, em caso de mora sobre o montante em débito, a título de cláusula penal, acrescia uma indemnização correspondente à taxa de juro contratual ajustada – 12,49% – acrescida de 4 pontos percentuais, ou seja, um juro à taxa anual de 16,49%.
O referido contrato, celebrado por documento particular, é válido, "ex vi" o disposto no Decreto-lei 359/91, de 21 de Setembro, "maxime" o disposto no artigo 6° deste Decreto-Lei.

O A é uma instituição de crédito, nos termos e de harmonia com o disposto na alínea a) do artigo 3.º do Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras, aprovado pelo Decreto-Lei 298/92, de 31 de Dezembro.

Quer a taxa de juro anual acordada para o empréstimo referido, quer a dita cláusula penal, são legalmente válidas por força do disposto no artigo 7.º do Decreto-Lei 344/78, de 17 de Novembro, com a nova redacção que lhe foi dada pelo Decreto-Lei 83/86, de 6 de Setembro, e atento não haver qualquer limite estabelecido pelo Banco de Portugal para as taxas de juro a praticar por instituições de crédito.

A capitalização de juros é também permitida, atento o disposto no artigo 560.º, n.º 3, do Código Civil e no artigo 5.º, n.º 4, do citado Decreto-Lei 344/78 e ainda, conforme decidido no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17 de Maio de 1988, publicado na Tribuna de Justiça de Julho/Agosto de 1988, página 37.

Sobre os ditos juros incide imposto de selo, à taxa de 4%, imposto de selo, a pagar à A, "ex-vi" o disposto na Tabela Geral do Imposto de Selo -120.º A, alínea a), e os seus nos 1 e 4.º, ao presente art.º 17 2.1 da actual Tabela Geral de Imposto de Selo.

O referido R. marido, das prestações referidas, não pagou a 4.ª e seguintes, vencida, a primeira, em 10 de Junho de 2004, vencendo-se então todas, tendo, contudo, pago a 5.ª das ditas prestações, com vencimento em 10/07/2004.

O referido R marido não providenciou às transferências bancárias referidas -que não foram feitas -para pagamento das ditas prestações, nem o referido R., ou quem quer que fosse por ele, as pagou à A.

O R marido deve, assim, à A a quantia de € 18.797,24, a quantia de € 2.326,87 de juros vencidos até 11 de Março de 2005, € 93,07 de imposto de selo sobre esses juros, mais os juros que à referida taxa de 16,49%, se vencerem, sobre o dito montante de € 18.797,24 desde 12 de Março de 2005 até integral e efectivo pagamento e o dito imposto de selo sobre os juros vincendos.

O empréstimo referido reverteu em proveito comum do casal dos RR., – atento até o veículo referido se destinar ao património comum do casal dos RR – pelo que a R ANA é solidariamente responsável com o R JORGE, seu marido, pelo pagamento das importâncias referidas.

Citados, os RR não contestaram.

Nos termos do disposto no art.º 484.º, n.º 1 do C. P. Civil, o Tribunal a quo considerou provados os factos articulados pela A e proferiu sentença na qual condenou o R a entregar à A a quantia que se vier a apurar em liquidação de execução de sentença, correspondente às prestações de capital não pagas, acrescidas de juros desde 10/07/2004, à taxa de 16,49, a que acresce o imposto respectivo, até integral pagamento e absolveu a R, com fundamento em que o A não alegou factos que integrem o conceito de proveito comum.

Inconformada com essa decisão o A dela interpôs recurso, recebido como apelação, pedindo a sua revogação e a procedência da acção, formulando as seguintes conclusões:

1.ª Não faz qualquer sentido condenar o R. apenas no pagamento ao A. apenas de uma quantia a liquidar em execução de sentença, correspondente às prestações de capital não pagas, acrescidas de juros contabilizados desde 11.12.2003 à taxa de 18,8% a que acresce o imposto de selo respectivo, até integral pagamento, deduzido o valor obtido com a venda do veículo.

2.ª O artigo 781º do Código Civil é expresso ao estabelecer, que: “Se a obrigação puder ser liquidada em duas ou mais prestações, a falta de realização de uma delas importa o vencimento de todas.”

3.ª Estamos perante obrigações com prazo certo pelo que o devedor se constitui em mora independentemente de interpelação do devedor ex vi alínea a) do n.º 2 do artigo 805º do Código Civil, o seu vencimento é imediato.

4.ª Conforme acordado entre as partes, para que todas as prestações do contrato dos autos se vencessem imediatamente – como venceram –, apenas era – como o foi – necessário o preenchimento de uma condição, o não pagamento pelo R. de uma das referidas prestações.

5.ª Está provado nos presentes autos que o A. na acção, ora recorrente, na acção, ora recorrente, é uma sociedade financeira de aquisições a crédito, constituindo, actualmente uma instituição de crédito.

6.ª Não existe qualquer taxa juro especificadamente fixada pelo Banco de Portugal para a actividade de financiamento de aquisições a crédito, isto é, para a actividade exercida pela A., ora recorrente.

7.ª A taxa de juro – 18,08% – estabelecida por escrito para o financiamento de aquisição a crédito ao R., ora recorrido, do veículo automóvel referido nos autos é inteiramente válida.

8.ª É admissível a capitalização de juros por parte das instituições de crédito ou parabancárias que incluem no capital já vencido, sobre o qual incidem juros de mora, salvo se tal capitalização incidir sobre juros correspondentes a um período inferior a três meses.

10.ª Não é pois aplicável no contrato de mútuo dos autos o disposto no artigo 560º do Código Civil.

11.ª Ressalta do contrato de mútuo de fls., que os juros capitalizados respeitam ao período de 5 anos.

12.ª A capitalização de juros é, pois, inteiramente válida, no caso do contrato dos autos.

13.ª Ao contrário do que se pretende na sentença recorrida, o disposto no artigo 781º do Código Civil, não se restringe às prestações de capital, estendendo-se evidentemente aos juros remuneratórios que fazem parte de cada prestação que se vence.  

14.ª É, pois, manifesta a falta de razão do Senhor Juiz a quo na sentença recorrida, que ao julgar, como o fez, parcialmente improcedente e não provada a presente acção, violou o disposto no artigo 560º do Código Civil, nos artigos 5º, 6º e 7º, do Decreto-Lei 344/78, de 17 de Novembro, com a redacção que lhe foi dada pelo Decreto-Lei 83/86, de 6 de Maio, o artigo 1º do Decreto-Lei 32/89, de 25 de Janeiro, o artigo 2º do Decreto-Lei 49/89, de 22 de Fevereiro, os artigos 1º e 2º do Decreto-Lei 206/95, de 14 de Agosto, e o artigo 3º, alínea I, do Decreto-Lei 298/92, de 31 de Dezembro e ainda, o disposto no artigo 781º do Código Civil, o artigo 1º, n.º 1, alínea d), 4º e 211º do Código do Registo Civil.

15.ª Na sentença recorrida o Senhor Juiz a quo errou, ainda, ao julgar a presente acção improcedente e não provada quanto à R. mulher, ora recorrida, com fundamento que não está provado nos autos que o veiculo automóvel se destinasse a integrar o património comum dos, ora recorridos JORGE e ANA, e, assim, na falta de demonstração do proveito comum do casal dos ditos RR, ora recorridos.

16.ª Os recorridos, foram pessoal e regularmente citados para os termos da presente acção, tendo apresentado contestação, na qual não impugnaram não serem casados entre si à data da celebração do contrato dos autos, nem que o veículo dos autos tenha revertido em proveito comum.

17.ª No artigo 17º da petição inicial de fls., a A na acção, ora recorrente, alegou expressamente que o empréstimo concedido pela dita recorrente ao R. marido, ora recorrido, – que se destinava à aquisição de um veículo automóvel – reverteu em proveito comum do casal formado pelos RR na acção, ora recorridos.

18.ª Os recorridos apesar de pessoal e regularmente citados não apresentarem contestação pelo que não impugnaram também o facto de o empréstimo concedido pela A. na acção, ora recorrente, ao ora recorrido marido ter revertido em proveito comum do casal, pelo que tal matéria de facto se encontra provada, face ao preceito imperativo do artigo 484º, nº 1, do Código de Processo Civil.

19.ª A falta de impugnação de tais factos pelos RR JORGE e ANA, ora recorridos, implica a confissão dos factos articulados pela autora, nos termos e de harmonia com o disposto no artigo 484º, nº 1, do Código de Processo Civil.

20.ª A recorrida mulher é, pois, solidariamente responsável pelo pagamento da importância reclamada nos presentes autos, atento a importância mutuada ter revertido para o património comum do casal formado pelos recorridos – atenta aquisição de veículo automóvel –, como ressalta da matéria de facto invocada no artigo 17º da petição inicial que, por não impugnada, se tem de considerar confessada.

21.ª Na sentença recorrida o Senhor Juiz a quo ao absolver do pedido a recorrida mulher, com fundamento na não demonstração do casamento dos RR JORGE e ANA, ora recorridos e do proveito comum, violou o disposto no artigo 784º, n.º 2, do Código de Processo Civil, e no artigo 1.691º, n.º 1, alínea c) do Código Civil.

22.ª Termos em que deve conceder-se provimento ao presente recurso, e, por via dele, revogar-se a sentença recorrida, substituindo-se a mesma por acórdão que condene todos os RR., ora recorridos, na totalidade do pedido.

Os RR não apresentaram contra-alegações.

2. FUNDAMENTAÇÃO

A) OS FACTOS
Os factos a considerar são os fixados na sentença, ex vi art.º 484.º, n.º 1 do C. P. Civil e acima descritos.

B) O DIREITO APLICÁVEL

O conhecimento deste Tribunal de 2.ª instância, quanto à matéria dos autos e quanto ao objecto do recurso, é delimitado pelas conclusões das alegações do recorrente como, aliás, dispõem os art.ºs 684.º, n.º 3 e 690.º, n.º 1 e 2 do C. P. Civil, sem prejuízo do disposto no art.º 660.º, n.º 2 do C. P. Civil (questões cujo conhecimento fique prejudicado pela solução dada a outras e questões de conhecimento oficioso).

Atentas as conclusões da apelação, supra descritas as questões submetidas ao conhecimento deste Tribunal pelo apelante consistem, tão só, em saber se:

a) Os juros remuneratórios pedidos pela A se venceram em 10/06/2004 e são devidos desde essa data, como pretende a apelante, ou se os mesmos só são devidos à medida que decorre o tempo determinante da indisponibilidade do capital respectivo, devendo ser liquidados em execução de sentença, como decidiu o Tribunal a quo;

b) A ausência de contestação por parte dos RR tem como consequência a prova do proveito comum dos RR, nos termos do art.º 484.º, n.º 1 do C. P. Civil e consequente comunicabilidade da dívida, devendo os RR ser condenados solidariamente como pretende a apelante.

Vejamos.

I. Quanto à primeira questão, a saber, se os juros remuneratórios pedidos pela A se venceram em 10/06/2004 e são devidos desde essa data, ou se os mesmos só são devidos à medida que decorre o tempo determinante da indisponibilidade do capital respectivo, devendo ser liquidados em execução de sentença

Como é pacífico nos autos, o apelante, que é uma sociedade cuja actividade é constituída, grosso modo, pela actividade de concessão de crédito, regulada pelo Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras, aprovado pelo Decreto-Lei 298/92, de 31 de Dezembro (ex vi Dec. Lei n.º 206/95 de 14 de Agosto), celebrou como apelado, por escrito particular de 16 Fevereiro de 2004, um contrato de concessão de crédito ao consumo, previsto no art.º 2.º do Dec. Lei n.º 359/91, de 21 de Setembro, sob a forma de mutuo (1), entregando-lhe uma quantia que este se comprometeu a devolver-lhe, acrescida da respectiva remuneração, em 72 prestações, mensais e sucessivas, no valor de € 276,43, com vencimento a primeira em 10 de Março de 2004, e as seguintes nos dias 10 dos meses subsequentes.

Essas prestações, correspondendo ao fraccionamento da obrigação de restituição do capital mutuado (art.ºs 1142.º e 781.º do C. Civil), compreendiam parte do capital e respectivos juros remuneratórios (art.ºs 1145.º do C. Civil e 395.º do C. Com.).

O apelado não satisfez a 4.ª prestação, vencida em 10 de Junho de 2004, o que determinou o vencimento das restantes, uma vez que, para além do disposto no art.º 781.º do C. Civil, as partes tinham acordado que a falta de pagamento de qualquer das prestações na data do respectivo vencimento implicava o vencimento imediato de todas.

O Tribunal a quo, na esteira dos acórdãos do S. T. J. de 2/11/2004, 22/04/2004 e 22/02/2005, que cita, entendeu que o vencimento antecipado das prestações, nos termos do disposto no art.º 781.º do C. Civil, se aplica, tão só, à divida de capital não incluindo os juros remuneratórios do empréstimo bancário – pois estes, destinando-se a remunerar a indisponibilidade do capital mutuado, apenas serão devidos à medida que se forem vencendo (não tendo nascido a obrigação de juros, estes não podem vencer-se simultaneamente com a obrigação de restituição do capital) – e em consequência, condenou o apelado a restituir a divida de capital e os juros remuneratórios de acordo com o que se vier a apurar em liquidação de execução de sentença.

O apelante discorda dessa decisão pelos fundamentos exarados nas conclusões da apelação, supra descritas.

 Vejamos.

As partes contratantes, no exercício da sua liberdade contratual estipularam que o capital mutuado e respectivos juros remuneratórios seriam restituídos em 72 prestações mensais, cujo valor foi determinado no contrato, o que pressupôs a capitalização desses juros.

E, na esteira do estabelecido pelo art.º 781.º do C. Civil, acordaram que a falta de entrega de uma das fracções da obrigação de restituição, determinaria o vencimento das restantes.

A divisão de cada uma dessas fracções em “divida de capital” e “divida de juros”, para aplicação de um regime diverso de vencimento, como faz o Tribunal a quo, só pode aceitar-se se tal resultar do disposto no art.º 781.º do C. Civil ou de qualquer norma legal imperativa que retire tal matéria da disponibilidade das partes, uma vez que dúvidas não restarão ter sido vontade destas incluir em cada uma das prestações também os juros remuneratórios.  

Como consta da cláusula 4. c): “No valor das prestações estão incluídos o capital, os juros do empréstimo, o valor dos impostos devidos, bem como os prémios de seguro…”.

O art.º 781.º do C. Civil, inserido sistematicamente na Subsecção IV, sob a epígrafe “Prazo da prestação”, dispõe para os casos em que a prestação que constitui a obrigação do devedor se encontra subdividida em fracções, tendo cada uma delas um prazo de vencimento (2).  

Como já referimos, o contrato dos autos, que se insere desde há muito no exercício da actividade bancária, tem a natureza jurídica de um contrato de crédito ao consumo, a que se aplica, além do mais, o Dec. Lei n.º 359/91 de 21 de Setembro, e em que uma das partes (a apelante) o outorga na prossecução do seu objecto social, a saber, “…o financiamento da aquisição a crédito de bens e serviços” (Dec. Lei n.º 206/95, cit.).

Trata-se de um contrato com um regime e características próprias a começar pelo regime de prova (3), pela regulamentação legal tendo, além do mais, em vista a protecção do contraente débil que, em regra não intervém no estabelecimento das respectivas cláusulas, previamente fixadas e que se limita a aceitar (contrato de adesão) e pelo elevado risco que comporta para o mutuante.

De entre essa regulamentação legal, tendo em vista a protecção do contraente débil, sobressai a obrigatoriedade de clarificação contratual da concreta obrigação a cargo do mutuário, com a determinação do custo total do crédito e da taxa anual de encargos efectiva global (TAEG) em ordem a que o mutuário conheça a obrigação que sobre si impende, embora diluída em prestações (art.º 2.º, al. d) e e) e art.º 4.º do Dec. Lei n.º 359/91).

Estas “prestações” incluem em regra uma componente de capital e uma componente de juros remuneratórios o que, aliás, parece ter sido querido pelo legislador no seu propósito de quantificação das responsabilidades do mutuário.

Ora, não vislumbramos argumento interpretativo que, em face dessa realidade contratual prosseguida pelo legislador, nos conduza a afirmar que as”prestações” a que se reporta o art.º 781.º do C. Civil são, apenas, as “prestações” relativas ao capital mutuado (4).

Tratando-se de mútuo oneroso, a obrigação do mutuário, fraccionada em prestações, compreende o capital e a respectiva remuneração.

Por outro lado, tendo as partes contratantes estipulado que a falta de pagamento de uma das prestações (compreendendo capital e juros) determinaria o vencimento das restantes, a cisão a que procede a decisão sob recurso (entre prestação de capital e prestação de juros) só seria admissível se tal cláusula contrariasse qualquer norma legal imperativa, as proibições de anatocismo e de mútuo usurário (5) ou o regime das cláusulas contratuais gerais (6).

Ou seja, o cerne da questão reside em saber se uma tal cláusula é válida ou se é inválida.

Referimos já que o disposto no art.º 781.º do C. Civil não impede a estipulação em causa.

Quanto à figura do anatocismo (juros de juros), sendo uma prática tendencialmente proibida em direito civil, essa proibição não é, todavia, absoluta como resulta do disposto no art.º 560.º do C. Civil, o qual admite excepções, entre as quais a respeitante a “…regras ou usos particulares do comércio” (n.º 3) como é o caso do comércio bancário.

O art.º 5.º, n.º 6 do Dec. Lei n.º 344/78 de 17/11, na redacção do Dec. Lei n.º 204/87, permite a capitalização de juros correspondentes a um período igual ou superior a três meses, desde que convencionados.

E essa convenção, ao invés do expendido na decisão sob recurso, não tem que ser posterior ao vencimento dos juros.

Essa era a exigência do art.º 5.º citado na sua primitiva redacção, sendo que na redacção que lhe foi dada pelo Dec. Lei n.º 83/86 de 6/5, a eliminação da expressão “posterior” veio permitir a capitalização de juros, simplesmente, desde que convencionada.

Trata-se, ainda, de regra ou uso particular do comércio que afasta a exigência de convenção posterior ao vencimento dos juros, consagrada no art.º 560.º do C. Civil (7).

Quanto à proibição de usura estabelecida no art.º 1146.º do C. Civil, relativamente à questão em referência e que é o vencimento antecipado dos juros remuneratórios por falta de pagamento de uma das prestações, esta só relevaria se, com a cláusula respectiva, se aportasse a uma taxa de juros que excedesse os juros legais na medida fixada em tal preceito.
Acontece, todavia, que o contrato dos autos não está sujeito às limitações impostas pelo art.º 1146.º do C. Civil conjugado com o art.º 102.º, § 2.º do C. Comercial (8), pelo que a possibilidade de usura nem sequer se coloca.  

Por sua vez, o regime legal das cláusulas contratuais gerais, partindo dos pressupostos que, ao aderir a esquemas negociais antecipadamente fixados o cidadão o faz no exercício da sua liberdade contratual, mas que nem sempre essa liberdade contratual hipotética se torna possível na realidade, tem em vista a protecção do contraente débil, o qual mais não pode fazer do que aceitar, ou não, o clausulado que lhe é presente.

A cláusula que no contrato em apreço poderia estar inquinada, v. g. por impor uma antecipação de cumprimento exagerada (art.º 22.º, n.º 1, al. l) do Dec. Lei n.º 446/85) é a que resulta da conjugação da inclusão dos juros do empréstimo no valor das prestações - cláusula 4. c), supra citada - com a cláusula 8. b), nos termos da qual: “A falta de pagamento de uma das prestações na data do respectivo vencimento, implica o imediato vencimento de todas as restantes”.

Dir-se-á que, por força da acção conjunta de ambas as cláusulas, o mutuante acaba por receber antecipadamente o seu capital e respectivo rendimento sem ter que esperar pelo decurso do tempo.

Acontece, todavia, que como já referimos, se trata de um contrato com elevado risco para o mutuante que, não dispondo de outras garantias que não sejam as consequências do incumprimento, fortemente penalizadoras para o mutuário, se encontrará, muitas vezes, com uma virtual indemnização (9) por inadimplemento enquanto o mutuário dispôs da quantia (essa sim, real e não hipotética) que lhe foi entregue.  

Não se trata, pois, de uma antecipação exagerada, mas sim de remunerar a disponibilidade do capital tendo em atenção as expectativas do mutuante e os riscos que assume ao contratar.

Acresce que, o tempo de duração do contrato e a inerente remuneração do capital mutuado fazem parte da actividade social do apelante, o qual empresta capital com o propósito de receber os juros respectivos e, com isso, realizar lucros.
 
Se este empresta uma quantia com a expectativa de receber os juros remuneratórios respectivos durante seis anos, programando a sua gestão financeira de acordo com o contrato que assumiu, não é para receber o seu capital decorridos cinco meses e os juros remuneratórios referentes a esse período, abdicando da remuneração restante.

O decurso do prazo de duração do contrato e o percebimento dos juros fazem parte desse mesmo contrato.

E assim é que, reconhecendo essa realidade contratual, o art.º 1147.º do C. Civil dispõe que: “No mútuo oneroso o prazo presume-se estipulado a favor de ambas as partes, mas o mutuário pode antecipar o pagamento, desde que satisfaça os juros por inteiro (10).

E também o art.º 9.º do Dec. Lei n.º 359/91 estabelece a obrigação de pagamento de juros remuneratórios (embora em termos substancialmente diversos do disposto no art.º 1147.º do C. Civil) para o caso de antecipação de reembolso.

Ora, se é o próprio legislador a estabelecer um regime legal que implica o vencimento de juros remuneratórios independentemente do decurso do prazo respectivo e da inerente indisponibilidade do capital por parte do mutuante, não vislumbramos com que fundamento se possa considerar inválida, em face do regime legal das cláusulas contratuais gerais, a cláusula em apreço que determina o vencimento da “prestação” que incluía os juros remuneratórios.      

Não ignoramos a existência de jurisprudência no sentido da decisão sob recurso, para além daquela em que se louva, alicerçando-se também no axioma segundo o qual, vencendo-se antecipadamente a obrigação (de restituição do capital) deixa de decorrer o prazo a que respeitavam os juros remuneratórios, que não se vencem não sendo, por isso devidos (11).

Trata-se, quanto a nós, de um mero exercício de lógica formal, a partir da ideia da génese da obrigação de juros remuneratórios, que não tem em consideração os argumentos acima expendidos e que não se debruça sobre o que consideramos ser o cerne da questão, a saber, a validade ou invalidade da cláusula contratual respectiva.

Não podemos, por isso, seguir essa orientação jurisprudencial.

Procedem, pois, as conclusões da apelação quanto a esta questão, devendo, em consequência, revogar-se a decisão recorrida na parte em que condenou o R, quanto aos juros remuneratórios, tão só, na quantia que se vier a apurar em liquidação de execução de sentença.

II. Quanto à segunda questão, a saber, se a falta de contestação por parte dos RR tem como consequência a prova do proveito comum dos RR, nos termos do art.º 484.º, n.º 1 do C. P. Civil e consequente comunicabilidade da dívida, devendo os RR ser condenados solidariamente como pretende a apelante

O A pede a condenação da R com fundamento no disposto no art.º 1691.º, n.º 1, al. c) do C. Civil, o qual dispõe que: “São da responsabilidade de ambos os cônjuges: As dividas contraídas na constância do matrimónio pelo cônjuge administrador, em proveito comum do casal nos limites dos seus poderes de administração”.

Para além do mais (12), a responsabilidade do cônjuge que não contraiu a divida, supõe o seu proveito no acto de que a mesma deriva, ou seja, que a dívida tenha sido contraída em proveito comum dos cônjuges.

Este, em proveito comum, não é um conceito jurídico hermético, só acessível a juristas, e o seu cujo conteúdo é facilmente apreensível por um cidadão médio, mas não deixa de constituir um conceito legal, a integrar através de factos naturalísticos, susceptíveis de prova e logo de confissão por falta de contestação.

Como se infere do disposto no art.º 484.º do C. P. Civil, só os factos e não também o direito ou os conceitos jurídicos utilizados na petição podem ser reconhecidos (provados por ausência de impugnação) por falta de contestação.

A A não alegou quaisquer factos susceptíveis de integrarem esse conceito legal.

Em sua substituição, desenvolveu um raciocínio lógico que carece de qualquer fundamento legal em face dos critérios de interpretação estabelecidos pelo art.º 9.º do C. Civil, qual seja, que o proveito comum advém, do facto de o veículo referido se destinar ao património comum do casal.

Ora, trata-se de realidades distintas (a comunicabilidade das dívidas – art.º 1691.º do C. Civil - e os bens que integram a comunhão – art.ºs 1724.º e 1732.º do C. Civil) que o legislador trata de forma distinta.
Se o legislador quisesse reconduzir à categoria de dividas comunicáveis aquelas que resultam da aquisição de bens que passam a integrar o património comum, tê-lo-ia dito expressamente, prescindindo da formulação conceptual da al. c) do n.º 1, do art.º 1691.º do C. Civil.

E, não só não o fez, como estabeleceu no n.º 3 do art.º 1691.º do C, Civil que: “O proveito comum do casal não se presume, excepto nos casos em que a lei o declarar”.

Não se presume, nem pelo casamento, nem pelo facto de a contracção de dívidas, por um dos cônjuges, se traduzir na aquisição de bens (quantias monetárias ou outros) que passam a integrar o património comum.
E, in casu não existe qualquer presunção de que a quantia que a A mutuou ao R o tenha sido em proveito comum do seu cônjuge.

A aceitar-se como legal o silogismo feito pelo apelante (aquisição de veículo, o qual passa a integrar o património comum, logo proveito comum), isso traduzir-se-ia na eliminação da exigência legal quanto à prova do proveito comum e na criação de uma nova norma segundo a qual, o facto de uma dívida ser contraída na aquisição de um bem que pode integrar o património comum, faz presumir “júris et de jure” o proveito comum, o que não é admissível atentos os critérios gerais de interpretação consagrados no art.º 9.º do C. Civil.

Improcedem, pois, as conclusões da apelação quanto a esta segunda questão.

3. DECISÃO

Pelo exposto, acordam os juízes deste Tribunal da Relação em julgar a apelação parcialmente procedente, condenando o R no pedido contra ele formulado, a saber, a entregar ao A a importância de € 18.797,24, acrescida de € 2.326,87 de juros vencidos até 11 de Março de 2005, de € 93,07 de imposto de selo sobre estes juros e, ainda, os juros sobre a quantia de € 18.797,24 à taxa anual de 16,49%, desde 12 de Março de 2005 até integral pagamento, bem como o imposto de selo que, à taxa de 4%, sobre estes juros recair, confirmando-se, no mais, a decisão recorrida.

Custas pelo apelante e pelo apelado, em proporção do decaimento.

Lisboa, 04 de Dezembro de 2006

(Orlando Nascimento)
(Ana Resende)
(Dina Monteiro)



__________________________________
1.-Empréstimo bancário, ex vi art.ºs 362.º e 395.º do C. Com. e art.º 1142.º do C. Civil.

2.-Assumindo cada uma delas a designação de “prestações”.

3.-Art.º único do Dec. Lei n.º 32765 de 29/04/943: “Os contratos de mútuo ou usura, seja qual for o seu valor, quando feitos por estabelecimentos bancários autorizados, podem provar-se por escrito particular, ainda mesmo que a outra parte contratante não seja comerciante”.

4.-O facto de o art.º 560.º do C. Civil, relativo à autonomia do crédito de juros, dispor que “…o crédito de juros não fica necessariamente dependente do crédito principal…” não permite, só por si, sustentar argumento diverso tanto mais que, a expressão necessariamente parece apontar em sentido contrário, ou seja, na possibilidade de, contratualmente, se estabelecer essa dependência.

5.-Art.ºs 282.º, 1146.º, 559.º – A e 560.º do C. Civil)

6.-Dec. Lei n.º 446/85 de 25 de Outubro, alterado pelo Dec. Lei n.º 220/95 de 31 de Agosto e Dec. Lei n.º 249/99 de 7 de Julho.

7.-Cfr., neste sentido, Correia das Neves, Manual dos Juros, 3.ª ed., pág. 228 e a generalidade da jurisprudência, entre outros, os Ac. T. R. L. de 15/12/2005, P. 11687/2006-6, e os Ac. S. T. J. de 18/12/2003, P.03B3786, de 31/03/2004, P. 04B514, de 11/10/2005, P. 05B2461, in dgsi. pt e de 22/02/2005, in Col. J. I, pág. 86.

8.-Cfr. Meneses Cordeiro, Manual de Direito Bancário, 2.ª ed., pág. 583, Simões Patrício, Direito de Crédito, pág. 66 e na jurisprudência, entre outros, o Ac. R. L. de 5/2/2001, in Col. J. Tomo I, 2002, pág. 98.

9.-A este respeito, digamos desde já, não podermos aceitar a argumentação do Ac. S. T. J de 7/03/2006, P. 06A038, in dgsi. pt., segundo a qual: ”Embora a antecipação tenha origem em incumprimento do mutuário, o mutuante não tem necessariamente de aproveitar de tal faculdade legal, podendo esperar o decurso do tempo acordado, recebendo, nesse caso, os juros remuneratórios convencionados” e que o vencimento imediato, nos termos acordados: “…facultar-lhe-ia uma vantagem superior à que o cumprimento atempadamente do contrato lhe proporcionaria, o que poderia integrar uma interpretação ou aplicação da lei abusiva em termos do art.º 334.º do Cód Civil”.

10.-Não pretendemos extrair deste preceito um argumento de maioria de razão para o caso dos autos, mas apenas realçar a importância do prazo de duração do contrato e o recebimento pelo mutuante da remuneração do seu capital, os juros.
Não obstante, sempre diremos que esse argumento de maioria de razão, pelos fundamentos que expomos, se nos afigura mais forte que aquele outro que, para o desvalorizar, argumenta que, sendo do mutuante a iniciativa de antecipação do prazo de reembolso, não se justifica a “sanção” de pagamento dos juros por inteiro.

11.-Cfr., v. g. Ac. R. L. de 9/02/2006, in dgsi. pt; Ac. S. T. J. de 19/04/2005, P. 05A493; de 11/10/2005, P.05B2461; de 7/03/2006, P. 06A038, in dgsi. pt.

12.-Existência do casamento e observância dos seus poderes de administração.