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INTERROGATÓRIO DO DETIDO
PRISÃO PREVENTIVA
SEGREDO DE JUSTIÇA
Sumário
1. Uma interpretação do art.º 141º,n.º 4 CPP em conformidade com as normas e princípios constitucionais – v.g. constantes dos artºs 20º, nºs 1 e 4, 27º, nº 4, 28º, nº 1, e 32º, nºs 1 e 5, todos da Constituição da República Portuguesa (CRP), determina que os arguidos detidos podem ter acesso aos meios de prova em que se sustentou a convicção do Mmº JIC no despacho que determinou a sua prisão preventiva e no qual conclui pela existência, no inquérito, de fortes indícios da prática de crime de tráfico de estupefacientes sendo constitucionalmente intolerável, que se considere sempre e em quaisquer circunstâncias interdito esse acesso, com alegação de potencial prejuízo para a investigação, protegida pelo segredo de justiça, sem que se proceda, em concreto, a uma análise do conteúdo desses elementos de prova e à ponderação, também em concreto, entre, por um lado, o prejuízo que a sua revelação possa causar à investigação e, por outro lado, o prejuízo que a sua ocultação possa causar à defesa do arguido. 2. Não se trata de afirmar o acesso irrestrito do arguido a todo o inquérito, mas apenas aos específicos elementos probatórios que foram determinantes para a imputação dos factos, para a ordem de detenção e para a proposta de aplicação da medida de coacção de prisão preventiva
Texto Integral
Acordam em conferência no Tribunal da Relação de Lisboa: I – A) No processo de inquérito com o nº 14/06.7PEBRR-B dos serviços do Ministério Público junto do Tribunal da Comarca do Barreiro, foram os arguidos J. e V. (identificados nos autos) detidos e apresentados a interrogatório judicial, nessa qualidade, findo o qual a Mmª JIC decidiu: julgar válida a sua detenção (e de outros dois co-arguidos) e considerando – nomeadamente, quanto a estes dois arguidos –, em síntese, haver fortes indícios da prática de um crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. pelo artº 21º nº 1 do DL nº 15/93, de 22/01 – mormente, quanto à posse de 950 gr. de cocaína – e por se afigurar “premente o perigo de fuga” (por serem ambos de nacionalidade espanhola e residirem no seu país), bem como o perigo de continuação da actividade criminosa (“face à postura assumida” e que “por detrás deste tipo de indivíduos, existem redes criminosas ligadas ao tráfico”), acrescendo o perigo de perturbação da tranquilidade pública, decretou que aguardassem os ulteriores termos do processo em prisão preventiva – por ser, quanto a eles (e a um outro co-arguido), “a única medida que acautela a referida exigência de prevenção e perigos apontados”, ao abrigo do disposto nos artºs 193º, 195º, 196º, 202º, nº 1, al. a) e 204, als. a) e c), todos do CPP – cfr. despacho de 26/07/06 (fls. 88 a 92). B) Posteriormente, por requerimento entrado em 31/08/06 (fls. 3-4, 302-303 do processo principal), vieram estes arguidos, através do seu il. mandatário constituído requerer à Mmª JIC que se dignasse a indicar, de modo inequívoco, “quais os elementos probatórios e, bem assim, a sua correspondente valoração sobre os quais se fundou a decisão judicial de entender que terá havido fortes indícios...”
A Mmª JIC decidiu, por despacho de 05/09/06 (fls. 310-311, ou fls. 6-7 destes autos), com o seguinte teor (segue transcrição): «I – Fls. 302 e 303:
O Ilustre Mandatário dos arguidos J. e V. veio requerer o acesso aos elementos probatórios sobre os quais o Juiz de Instrução Criminal terá alicerçado a sua convicção.
Antes de mais, diga-se desde já que a convicção do juiz em causa, está explanada no próprio despacho de aplicação das medidas de coacção, porquanto foi uma decisão fundamentada.
Acresce que, como resulta aliás do próprio auto, foram comunicados a cada um dos arguidos os factos que lhes eram imputados, o que os arguidos muito bem entenderam, dadas as declarações que prestaram.
Quanto ao acesso aos meios de prova, que é o que o Ilustre Mandatário efectivamente pretende, não pode ainda o mesmo aceder àqueles, uma vez que o processo encontra-se ainda em fase de inquérito, não tendo ainda sido deduzida acusação, pelo que os autos encontram-se ainda ao abrigo do segredo de Justiça, nos termos do disposto no art. 86º, n.º 1 do Código de Processo Penal.
No entanto, nada obsta, nos termos do disposto no art. 86º, n.º 5 e 89º, n.º 2 do mesmo diploma legal, que o Ilustre Mandatário em causa tenha acesso, às declarações que foram prestadas pelos arguidos que representa, em sede de primeiro interrogatório judicial, à promoção do Ministério Público e ao despacho judicial, estes últimos, nas partes que dizem única e exclusivamente respeito aos arguidos.
Assim sendo, e porque todas as diligências de prova constantes dos autos, não podiam ser objecto de assistência por parte dos próprios arguidos, não podem os mesmos nesta fase aceder aos respectivos autos.
Pelo exposto, determino que nos termos do disposto no art. 89º, n.º 2, in fine do CPP, a secção disponibilize cópia das partes do auto de 1º interrogatório dos arguidos, que directamente digam respeito aos arguidos.
Notifique. » * II – A) Inconformados com este despacho judicial, recorrem os arguidos J e V para esta Relação, extraindo da sua motivação as seguintes conclusões (que se transcrevem): « 1.º
Os arguidos ora recorrentes solicitaram, através do seu requerimento de fls. …, em suma, que, em virtude de se afigurar de vital importância para o exercício da sua defesa, lhes fosse indicado de modo inequívoco quais os elementos probatórios (e a sua correspondente valoração) sobre os quais ter-se-á alicerçado a convicção do julgador de Instrução criminal no que à existência de fortes indícios da prática do crime de estupefacientes concerne. 2.º
O chamado direito de acesso a esses meios probatórios poder-se-ia – tal como foi requerido - concretizar pela mera indicação quais as provas justificaram a convicção sobre a existência fortes indícios da prática do crime de estupefacientes pelos arguidos. 3.º
A Mma. Juiz de Instrução Criminal do Tribunal a quo através do Despacho de fls. 310, “porque todas as diligências de prova constantes dos autos não podiam ser objecto de assistência por parte dos próprios arguidos” decidiu que “não podem os mesmos aceder aos respectivos autos”. Em suma, negou provimento à referida pretensão dos arguidos recorrentes, se bem que terá interpretado o requerimento dos arguidos ora recorrentes como se os mesmos pretendessem aceder directamente aos autos (para, dessa forma, consultar os elementos de prova que, alegadamente, sustentam a existência de fortes indícios), quando, na verdade os ora recorrentes apenas pretenderam - e isso surge de modo inequívoco no requerimento - que, de uma vez por todas, o tribunal recorrido viesse indicar aos arguidos quais os elementos probatórios que terão alicerçado a decisão judicial sobre as medidas de coacção.
Verdade é que, 4.º
Estabelece o art.º 86.º, n.º 1, do CPP que na fase processual do inquérito impera a regra do segredo de justiça. Contudo, tal disciplina não é absoluta posto que no art.º 86.º, n.º 5, é estabelecido que “pode (…) a autoridade judiciária (…) permitir que seja dado conhecimento a determinadas pessoas do conteúdo de acto ou de documento em segredo de justiça, se tal se afigurar conveniente ao esclarecimento da verdade” .
Mais, 5.º
De acordo com o decidido pelo Venerando Tribunal da Relação de Lisboa, Ac. de 15-03-2006, Proc. N.º 1407/2006-3, in www.dgsi.pt, “É evidente que estas normas mais não são que afloramentos de um princípio mais geral, segundo o qual prevalece sobre o segredo de justiça o acesso ao conteúdo do processo que se revele útil para a descoberta da verdade, para o exercício de direitos e, por maioria de razão, para a salvaguarda das garantias inerentes ao processo justo e equitativo, constitucionalmente consagrado (art. 20º, nº 4, CRP), maxime as garantias de defesa do arguido e o seu direito ao recurso (art. 32º, nº 1, CRP).” 6.º
Destarte, em concreto terá havido violação dos preceitos constitucionais contidos nos arts. art. 20º, nº 4 e 32.º, n.º 1, ambos da Constituição da República Portuguesa.
Por outro lado, 7.º
Encontra-se consagrado o reconhecido “direito ao conhecimento dos meios de prova”(Tribunal Constitucional Ac. TC de 2/11/05 (DR, II Série, de 4/1/06) e este estará salvaguardado quando for permitido aos arguidos o acesso aos autos de interrogatório e ao despacho que decretou a prisão preventiva e estes elementos permitam oacesso “à súmula dos meios de prova”.
Contudo, 8.º
Os referidos autos de interrogatório e o despacho que decretou a prisão preventiva não contêm qualquer súmula dos meios de prova mas tão somente uma menção genérica quanto aos outros “elementos colhidos nos autos”, pelo que, deste modo, não podem os arguidos recorrentes exercer o seu direito de contradita e de defesa sobre algo vago ou indeterminado. 9.º
Desta sorte, a decisão recorrida, nitidamente em desconformidade com a corrente jurisprudencial dominante dos tribunais superiores, incluindo a do Tribunal Constitucional, é também violadora do disposto nos arts. art. 20º, nº 4 e 32.º, n.º 1, ambos da Constituição da República Portuguesa, na medida em que é inconstitucional o entendimento segundo o qual o acesso ao inquérito, fora das situações expressamente contempladas na letra dos arts. 86º, nº 1, e 89º, nº 2, CPP, é sempre interdito (v.g., Ac. TC 121/97, D.R. IIª série, nº 100 de 30 de Abril de 1997).
Ademais, 10.º
O Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 23-09-2004, Proc. N.º 6997/2004-9, in www.dgsi.pt, interpretando o Ac. T.C. n.º 416/03, refere, a contrario sensu e muito bem, só faz sentido limitar o acesso aos autos por parte do arguido na fase do inquérito – onde, obviamente, vigora o segredo de justiça -, quando o mesmo arguido no seu primeiro interrogatório tomou conhecimento dos motivos da sua detenção e foi confrontado com as provas que justificam a sua indiciação pela prática do crime de tráfico de estupefacientes.
Ora, 11.º
O Tribunal recorrido, aquando do primeiro interrogatório, não confrontou os arguidos ora recorrentes com as provas que justificam a sua qualificada indiciação e que, concomitantemente, sustentam a aplicação da prisão preventiva. Não o fez nem tampouco autorizou o acesso, nem sequer, sob a forma de súmula aos elementos probatórios que diz existirem mas que nunca os indica em termos concretos.
Pelo que, 12.º
Tal decisão, ora em crise, do Tribunal de Instrução Criminal em não indicar quais os elementos probatórios que justificam a forte indiciação dos arguidos pela prática do crime de tráfico de estupefacientes é violadora dos artigos 20.º, n.º 1, 27.º, n.º 4, 28.º, n.º 1, 32.º, n.os 1 e 5, da Constituição da República, porquanto interpreta as normas conjugadas dos artigos 86.º, n.º 1, e 89.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, no sentido de que “o Juiz de instrução não poder autorizar, em caso algum e fora das situações tipificadas nesta última norma, o advogado do arguido a consultar o processo na fase de inquérito para poder impugnar a medida de coacção de prisão preventiva que foi aplicada aos arguidos” (Ac. TRL de 09-03-2004, Proc. N.º 67/2004-5, in www.dgsi.pt., Ac. TC de 19/02/1997, D.R. IIª série, nº 100 de 30 de Abril de 1997). Termos em que, sempre com o mui douto suprimento de V. Exas. requer-se que seja o Despacho de fls. 310 e 311, revogado porquanto violador das disposições legais atrás mencionadas na parte em que a Mma. Juiz se nega a indicar quais os elementos probatórios sobre os quais se fundou a convicção sobre a existência de fortes indícios da prática do crime de tráfico de estupefacientes por parte dos arguidos – “Assim sendo, e porque todas as diligências de prova constantes dos autos, não podiam ser objecto de assistência por parte dos próprios arguidos, não podem os mesmos nesta fase aceder aos respectivos autos” -, devendo a mesma, ser substituída por despacho que ordene a indicação de modo inequívoco de quais os elementos probatórios e, bem assim, a sua correspondente valoração sobre os quais se fundou a decisão judicial de aplicação da prisão preventiva, conforme tinha sido requerido a fls. … pelos arguidos. »
* B) A Exmª Magistrada do MºPº respondeu, formulando as seguintes conclusões: «1ª - O despacho do tribunal a quo, objecto do presente recurso, não violou os preceitos legais invocados pelo recorrente, dos quais fez justa, adequada e criteriosa aplicação; 2ª - Dos autos resultam fortes indícios de que os arguidos, aqui recorrentes, foram autor de factos susceptíveis de integrarem a prática do crime de tráfico de estupefacientes. 3ª – Tais indícios estão suportados em prova documental, testemunhal e nos depoimentos de outros arguidos. 4ª - No interrogatório a que foram submetidos os recorrentes foram confrontados com os factos que lhes são imputados, tendo-lhes sido dados a conhecer os elementos de prova (autos de apreensão), depoimentos de outros arguidos, na parte que se lhes referiam, como indiciadores da sua responsabilidade na prática dos factos em investigação, assim se dando cumprimento ao comando do n.º 4 do art. 141° do CPP, com a apresentação, em súmula, dos elementos de prova contra si recolhidos. 5ª - Não é possível facultar ao arguido o acesso a essas peças processuais por as mesmas dizerem também respeito a outros arguidos, intervenientes no processo, e cuja disponibilização, nesta fase, comprometeria irremediavelmente a investigação; 6ª - Não foi negado ao recorrente o direito a consultar as peças processuais mencionadas no art. 89° n. 2 do CPP, as quais estiveram à sua disposição, para esse efeito, na secretaria; 7ª - O art. 89° n.º 2 do CPP é claro no sentido de apenas permitir o acesso através de consulta na secretaria; 8ª - Tal interpretação não viola, nem o princípio do contraditório, nem os direitos de defesa do arguido; 9ª - Na fase processual de inquérito impera a regra do segredo de justiça – art. 86º n.º 1 do C. P. Penal, atentos os valores, por este, protegidos, mormente o interesse público na boa administração da justiça e no êxito da investigação criminal; 10ª - A abertura do acesso irrestrito aos autos na fase de inquérito poderá vir a ser fatal para a própria investigação, face a todos os malefícios susceptíveis de virem a acontecer aos indícios probatórios ainda não completamente adquiridos e garantidos nos autos; 11ª- O art. 86º nº5, confere à autoridade judiciária que preside à fase processual respectiva uma possibilidade de dar, ordenar ou permitir que seja dado conhecimento a determinadas pessoas do conteúdo de acto ou documento em segredo de justiça, se tal se revelar conveniente ao esclarecimento da verdade, não lhe impõe que o faça. 12ª - O despacho recorrido não violou qualquer preceito legal, designadamente os arts. 89° n.º 2, 61° n.º 1 f) e h) e 141° n.º 4, todos do CPP e 28° n.º 1 e 32° n.º 1 da CRP. 13ª - Assim, ao invés do que defende o recorrente, o despacho recorrido não violou qualquer norma legal, pelo que não merece qualquer censura, devendo, pois, ser mantida.
Pelo exposto, deve negar-se provimento ao recurso, mantendo-se o despacho recorrido como é de Justiça. » * C) Remetidos os autos a esta Relação, e após ordenar-se a junção de peça essencial à compreensão do presente recurso (certidão do auto de 1º interrogatório de arguido detido), a Exmª P.G.A. proferiu o seu douto parecer, nos termos que constam de fls. 70-72 destes autos e que aqui se dão por integralmente reproduzidos, considerando e ponderando, em síntese, que: « O que a lei, ordinária e constitucional, determina é que o arguido – quer seja, quer não seja sujeito à medida de coacção de prisão preventiva – seja informado sobre factos cuja prática lhe é imputada bem como das normas que os prevêem e punem, quando interrogado como arguido na fase de inquérito.
Coisa muito diferente é a que o arguido conheça quais as provas que existem e a forma como as provas foram obtidas (meios de prova) ainda na fase de inquérito.
Tal conhecimento só é obrigatório quando o MºPº deduz a acusação e o arguido da mesma é notificado, tendo aí conhecimento das provas e podendo ter acesso ao inquérito, uma vez que nessa altura, estando encerrado o inquérito, por natureza, está também terminada a investigação.
Antes do despacho de encerramento do inquérito, o processo está em segredo de justiça, com os objectivos que a respectiva existência visa salvaguardar, como seja o da protecção da investigação.
O despacho recorrido deu cumprimento ao disposto nas normas invocadas pelos arguidos como tendo sido violadas e cumpriu o disposto nos artºs 141º, nº 4, 194º, nº 3 e 97º, nº 4 do C.P. Penal, e ao determinar o acesso dos arguidos ao segmento do auto de 1º interrogatório bem como do despacho que determinou a aplicação da medida de coacção em causa, deu aos ora recorrentes acesso aos fundamentos no mesmo constantes para que a medida de coacção aplicada fosse aquela.
O despacho recorrido não violou as normas que os arguidos dizem ter sido violadas e cumpriu as que acima citamos como sendo as aplicáveis dentro da matéria questionada no recurso em apreciação..»
Para concluir que o recurso não merece provimento e, assim, deve manter-se na íntegra o despacho recorrido.
* D) Cumprido o artº 417º, nº 2 do CPP, responderam os arguidos, ora recorrentes, ponderando, além do mais, que: «... Os arguidos, por requerimento de 31-08-2006 solicitaram, por se afigurar de vital importância para o exercício da defesa, que a Senhora Juiz de Instrução Criminal indicasse de modo inequívoco quais os elementos probatórios e, bem assim, a sua correspondente valoração sobre os quais se fundou a decisão judicial de entender que terá havido fortes indícios da prática do crime de tráfico de estupefacientes.
A Senhora Juiz, por seu turno, por Despacho de fls. 310, entendeu que os arguidos pretendiam o acesso aos meios de prova, isto é, com o muito e devido respeito, terá entendido que os arguidos, pura e simplesmente desejavam devassar o acervo probatório que sustenta o inquérito.
Ora, nada mais errado.
Os arguidos, tranquilos que estão quanto à quantidade e qualidade do tal acervo probatório que supostamente servirá de suporte ao presente inquérito, pretendiam apenas - como aliás se depreende da interpretação literal do seu pedido – que o Tribunal de Instrução Criminal viesse dizer quais os meios de prova que possui e nunca, como bem está de ver, que os exibisse nesta fase do processo.
Contudo, a Sra. Juiz de Instrução Criminal do Tribunal de Comarca do Barreiro, no seu douto Despacho, insistiu que (…) sabem os arguidos quais os factos que lhes eram imputados, o que os arguidos muito bem entenderam, dadas as declarações que prestaram.
É verdade, os arguidos sabem quais os factos que lhe são imputados mas, o que eles não sabem nem conseguem compreender é, como foi possível o Tribunal de Instrução Criminal chegar à conclusão de que tais factos eram susceptíveis de ser imputados aos arguidos. A não ser que - e esta afigura-se como a única hipótese -, para a consideração da existência de fortes indícios, tenha o Tribunal considerado somente o depoimento incriminatório dos outros co-arguidos. ...»
Para concluírem que: «... (E) na verdade é de imperiosa necessidade para a defesa dos recorrentes e a bem da justiça que se descortine definitivamente se existe algum elemento probatório para além dos interesseiros depoimentos dos co-arguidos, posto que, se o Ministério Público refere que Da análise dos autos de declarações dos ora recorrentes, decorre que os mesmos foram informados sobre qual a prova indiciária contra si existente nos autos, o que, em bom rigor, os recorrentes, têm a percepção é que nos autos inexiste qualquer prova indiciária contra si e se ela existe que se diga qual.
Ora, não havendo elementos probatórios para além dos depoimentos dos co-arguidos, não existirão meios de prova e, a não existirem mais elementos de prova, não existirá a possibilidade de existirem fortes indícios da prática do ilícito imputado aos recorrentes. E, como o Tribunal da Relação de Lisboa já, muito doutamente, havia esclarecido (Ac. de 08-10-2003, Proc. 7002/2003-3, in www.dgsi.pt): (…) mesmo que se entendesse que existiam indícios com algum grau de consistência, ou mesmo que eles eram suficientes para deduzir uma acusação ou suportar um despacho de pronúncia, nunca seriam fortes para a imposição das três medidas de coacção mais graves, entre as quais se conta a prisão preventiva. A expressão fortes indícios representa uma exigência acrescida de probabilidade de condenação relativamente ao conceito de indícios suficientes. (…) E, note-se, que, de resto, já este conceito pressupõe “a mesma exigência de verdade requerida para o julgamento final”. A diferença está apenas na maior fragilidade dos elementos considerados, uma vez que resultam de uma actividade não contraditória, sem imediação, nem oralidade. Essa maior exigência, de resto, bem se justifica já que é muito mais grave sujeitar uma pessoa à prisão preventiva do que deduzir contra ela uma acusação, por muito relevante e pernicioso que isso mesmo possa ser. O entendimento contrário, levado até ao absurdo, legitimaria que se prendesse preventivamente uma pessoa em relação à qual não existiam sequer indícios, para, contra ela, deduzir acusação.
Ora, ao contrário do que entendeu a Ex.ma Senhora Procuradora-Geral Adjunta, aliás, espelhado no seu douto parecer ora sob resposta, os recorrentes não pretendem o acesso físico aos autos de inquérito mas tão só que, a Meritíssima Juiz de Instrução Criminal indique, de modo inequívoco, quais os elementos probatórios e, bem assim, a correspondente valoração sobre os quais se fundou a decisão judicial de aplicação da prisão preventiva, conforme, aliás, lhe tinha sido requerido.
Como já se viu, só desse modo – quando o Tribunal de Instrução Criminal indicar se existem mais elementos probatórios para além dos depoimentos dos arguidos, quais, e em que medida os valorou –, pode o Venerando Tribunal Superior, in casu, o Tribunal da Relação de Lisboa, sindicar se existem ou não fortes indícios que justifiquem a aplicação da prisão preventiva. Por outro lado, consoante a resposta que se obtiver do Tribunal de Instrução Criminal do Barreiro, os arguidos e, posteriormente, V. Exas., imediatamente, disporão de meios para avaliar os pressupostos da aplicação da prisão preventiva e, assim, pôr termo à insustentável injustiça que, estamos em crer e salvaguardado o respeito devido, tem sido a aplicação da prisão preventiva aos ora recorrentes. Em que medida o Tribunal recorrido está vinculado a indicar a súmula dos meios de prova que sustentam a existência de fortes indícios da prática do ilícito sub judice?
A resposta já tinha sido dada de modo claríssimo por parte desse mesmo Venerando Tribunal (através do seu Acórdão de 15-03-2006, Proc. N.º 1407/2006-3, in www.dgsi.pt, interpretando o Ac. T.C. n.º 416/03): “É evidente que estas normas mais não são que afloramentos de um princípio mais geral, segundo o qual prevalece sobre o segredo de justiça o acesso ao conteúdo do processo que se revele útil para a descoberta da verdade, para o exercício de direitos e, por maioria de razão, para a salvaguarda das garantias inerentes ao processo justo e equitativo, constitucionalmente consagrado (art. 20º, nº 4, CRP), maxime as garantias de defesa do arguido e o seu direito ao recurso (art. 32º, nº 1, CRP).”; pelo Ac. TRL de 09-03-2004, Proc. N.º 67/2004-5, in www.dgsi.pt., e Ac. T.C. de 19/02/1997, D.R. IIª série, nº 100 de 30 de Abril de 1997.
No caso concreto e para que não ofereça quaisquer hipóteses de confusão, o que se pede é que o Tribunal de Instrução Criminal do Barreiro, venha definitivamente dizer se tem mais prova indiciária do que os depoimentos dos co-arguidos e se a tem que diga qual é, pois só dessa forma conformar-se-á com as disposições legais e constitucionais que, de acordo com as conclusões do presente recurso, foram violadas.
Pelo que, junto de V. Exas., Venerandos Juízes Desembargadores, pede-se Justiça. »
* III – Colhidos os vistos, cumpre decidir. 1. Como resulta do que relatámos acima, a única questão a resolver no presente recursoconsiste em saber se podem (ou não) os arguidos (detidos) ter acesso aos meios de prova em que se sustentou a convicção do Mmº JIC no despacho que determinou a sua prisão preventiva e no qual conclui pela existência, no inquérito, de fortes indícios da prática de crime de tráfico de estupefacientes – cfr. artº 141º nº 4 do CPP, face ao segredo de justiça estabelecido, entre outros, nos artºs 86º, nº 1, e 89º, nº 2, do mesmo CPP, atenta a interpretação e aplicação daquela norma (do nº 4 do artº 141º do CPP) em conformidade com as normas e princípios constitucionais – v.g. constantes dos artºs 20º, nºs 1 e 4, 27º, nº 4, 28º, nº 1, e 32º, nºs 1 e 5, todos da Constituição da República Portuguesa (CRP).
E em conformidade decidir se deve manter-se o despacho judicial de fls. 310-311 (ora recorrido), ou antes, revogá-lo e determinar a sua substituição por outro que, deferindo a pretensão dos requerentes/recorrentes, indique aqueles meios de prova. 2. Começamos por ponderar que os ora recorrentes, no seu requerimento de 31/08/06 solicitaram que a Mmª JIC lhes indicasse “de modo inequívoco quais os elementos probatórios e, bem assim, a sua correspondente valoração sobre os quais se fundou a decisão judicial de entender que terá havido fortes indícios da prática do crime de tráfico de estupefacientes”, com fundamento na “vital importância para o exercício de defesa dos arguidos”.
A Mmª JIC, no seu douto despacho ora recorrido, parece entender que os mesmos pretendiam o acessoirrestrito aos meios de prova (isto é, a todos os meios de prova já existentes no aludido processo de inquérito), quando, ao invés e salvo o devido respeito, não foi isso que lhe foi requerido, mas antes e somente o acesso aos meios probatórios que a levaram a determinar a prisão preventiva destes arguidos, mais concretamente, o acesso aos meios de prova em que baseou a existência dos ditos fortes indicios da prática pelos mesmos do mencionado crime de tráfico de estupefacientes. 3. Dispõe o artº 141º do CPP (Primeiro interrogatório judicial de arguido detido), na parte que ora importa (nºs 1 e 4):
« 1. O arguido detido que não deva ser de imediato julgado é interrogado pelo juiz de instrução, no prazo máximo de quarenta e oito horas após a detenção, logo que lhe for presente com a indicação dos motivos da detenção e das provas que a fundamentam.
(...)
4. Seguidamente, o juiz informa o arguido dos direitos referidos no artigo 61º, nº 1, explicando-lhos se isso parecer necessário, conhece dos motivos da detenção, comunica-lhos e expõe-lhe os factos que lhe são imputados. »
Ora, entendeu a Mmª JIC – posição que também foi assumida pelo MºPº (em ambas as instâncias) – que, estando-se na fase de inquérito e atendendo a que, nesta fase, vigora o segredo de justiça, cujas finalidades importa não descurar, dizíamos entendeu que os arguidos apenas podem ter acesso às suas próprias declarações e, no mais, basta que aos mesmos lhe tenham sido indicados os factos imputados e a sua subsunção jurídico-penal para que, em suma, possam defender-se.
Ou seja, face ao dito segredo de justiça, considerou a Mmª JIC, em suma, que os arguidos não podem ter acesso aos meios probatórios, nem que estes se refiram, apenas e somente, à fundamentação dos ditos fortes indícios da prática do crime de tráfico de estupefacientes e que, como se viu, é pressuposto da aplicação aos arguidos, ora recorrentes, da medida de coacção de prisão preventiva. 4. Cremos, porém, que essa interpretação e aplicação do nº 4 do artº 141º do CPP, efectuada no douto despacho judicial recorrido não está em conformidade com os princípios e normas constitucionais, já acima referidas, mormente as relativas ao direito de defesa do cidadão, arguido detido, e atentos os princípios que enformam o Estado de Direito democrático, como é o nosso.
Para melhor compreensão do que afirmamos, veja-se o que, a dado passo do acima citado Acórdão do Tribunal Constitucional nº 416/2003, se diz, com interesse para o presente caso: «... Dispõe o n.º 4 do artigo 27.º da CRP que “Toda a pessoa privada da liberdade deve ser informada imediatamente e de forma compreensível das razões da sua prisão ou detenção e dos seus direitos”, preceituando o n.º 1 do subsequente artigo 28.º que “A detenção será submetida, no prazo máximo de quarenta e oito horas, a apreciação judicial, para restituição à liberdade ou imposição de medida de coacção adequada, devendo o juiz conhecer das causas que a determinaram e comunicá-las ao detido, interrogá-lo e dar-lhe oportunidade de defesa”. Estas específicas estatuições constituem concretização, quanto aos momentos processuais nelas previstos (privação inicial da liberdade e apreciação judicial da detenção), do princípio geral, plasmado no n.º 1 do artigo 32.º, de que “o processo criminal assegura todas as garantias de defesa, incluindo o recurso”.
Em consonância com aqueles comandos, o artigo 258.º do CPP determina que os mandados de detenção (emitidos na sequência de ordem do juiz ou, nos casos em que for admissível prisão preventiva, do Ministério Público) devem conter “a indicação do facto que motivou a detenção e das circunstâncias que legalmente a fundamentam” (n.º 1, alínea c)), sendo entregue ao detido uma das cópias do mandado (n.º 3). No prazo máximo de quarenta e oito horas após a detenção, o arguido é interrogado pelo juiz de instrução, ao qual é presente com a indicação dos motivos da detenção e das provas que a fundamentam (artigo 141.º, n.º 1), devendo, nesse interrogatório judicial de arguido detido, o juiz expor-lhe os factos que lhe são imputados (artigo 141.º, n.º 4), podendo o arguido, se optar por prestar declarações, confessar ou negar os factos ou a sua participação neles e indicar as causas que possam excluir a ilicitude ou a culpa, bem como quaisquer circunstâncias que possam relevar para a determinação da sua responsabilidade ou da medida da sanção (artigo 141.º, n.º 5).
Embora inserido na fase processual do inquérito − cujo dominus é o Ministério Público −, o interrogatório judicial de arguido detido é um acto jurisdicional que tem funções eminentemente garantísticas e não de investigação ou de recolha de prova. Trata-se de um acto subordinado ao princípio do contraditório, em que o arguido surge como sujeito processual, e não como objecto da investigação, e em que o juiz de instrução deve tentar minorar, na medida do possível, a desigualdade inicial de que partem Ministério Público e arguido quanto ao conhecimento dos factos investigados e da prova recolhida.
(...)Nesta perspectiva, surge como crucial a comunicação ao arguido dos factos que lhe são imputados.
Face às disposições paralelas do artigo 5.º, nºs 2 e 4, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem − que, respectivamente, estipulam que “qualquer pessoa presa deve ser informada, no mais breve prazo e em língua que compreenda, das razões da sua prisão e de qualquer acusação formulada contra ela”, e que “qualquer pessoa privada da sua liberdade por prisão ou detenção tem direito a recorrer a um tribunal, a fim de que este se pronuncie, em curto prazo de tempo, sobre a legalidade da sua detenção e ordene a sua libertação, se a detenção for ilegal” −, refere Régis de Gouttes (em Louis-Edmond Pettiti e outros, La Convention Européenne des Droits de l’Homme – Commentaire article par article, ed. Economica, Paris, 1995, págs. 203-210), que “o direito de saber porque se foi detido é indubitavelmente um dos direitos primordiais do indivíduo”, pois “saber que não se pode ser detido sem conhecer as respectivas razões é a primeira condição da segurança pessoal, é o teste de que se vive numa sociedade democrática e num verdadeiro Estado de Direito”. Por outro lado, “conhecer os motivos da detenção é também a condição sine qua non de uma verdadeira «igualdade de armas»: para se poder defender, para se poder prevalecer das garantias de um processo equitativo, é preciso primeiro saber as razões pelas quais se foi detido”, sob pena de “não apenas ser negado o princípio da presunção de inocência mas também a faculdade de a pessoa detida contestar o bem fundado das suspeitas que pesam sobre ela e de recorrer para um tribunal superior a fim de ser apreciada a legalidade da sua detenção”.
Por seu turno, Ireneu Cabral Barreto (A Convenção Europeia dos Direitos do Homem Anotada, 2.ª edição, Coimbra Editora, Coimbra, 1999, págs. 102-103), sintetizando a jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, recorda que “o detido deve saber a razão de ser da sua privação da liberdade” (Acórdão Fox, Campbell e Hartley, Série A, n.º 182, pág. 19, § 40), conjugando-se o n.º 2 com o n.º 4 deste artigo 5.º, pois “quem tem o direito de introduzir um recurso sobre as condições da sua privação de liberdade, só poderá utilizar eficazmente este direito se lhe forem comunicados, no mais curto prazo, os factos e as regras jurídicas invocadas para o privar dessa liberdade” (Acórdão X/Reino Unido, Série A, n.º 46, pág. 27, § 66, e Acórdão van der Leer, Série A, n.º 170-A, pág. 13, § 28). ...» nossos sublinhados. 5. Por outro lado, sobre a não comunicação dos elementos probatórios e relativamente ao segredo de justiça interno pondera-se no aludido Ac. T.C. nº 416/2003 o que a melhor doutrina e jurisprudência, aí citada, vêm expendendo, nesta matéria: « Relativamente ao segredo de justiça interno, aqui em causa, não se ignora que a alínea a) do n.º 4 do artigo 86.º do CPP veda, em regra, a “tomada de conhecimento do conteúdo de acto processual a que [os participantes processuais] não tenham o direito (...) de assistir” e que o n.º 2 do artigo 89.º só lhes consente o “acesso a auto na parte respeitante a declarações prestadas e a requerimentos e memoriais por eles apresentados, bem como a diligências de prova a que pudessem assistir”. Trata-se, porém, de uma proibição não absoluta, como o n.º 5 do artigo 86.º, para que também remete o n.º 2 do artigo 89.º, evidencia, e que parte significativa da doutrina não tem hesitado em qualificar de inconstitucional sempre que dela derive uma limitação desproporcionada dos direitos de defesa do arguido.
Como refere Germano Marques da Silva (Curso de Processo Penal, III vol., 2.ª edição, Editorial Verbo, 2000, pág. 101), “relativamente aos actos jurisdicionais atinentes à aplicação de medidas de coacção e de garantia patrimonial importa que sejam públicos e que o arguido tenha efectivamente meios de se defender, o que passa pelo conhecimento das provas contra ele carreadas e que na perspectiva da acusação justificam a aplicação de medidas de segurança”. É que, como se lê no II volume da mesma obra (1993, pág. 223), “uma medida de coacção representa sempre a restrição da liberdade do arguido e por isso só na impossibilidade ou em circunstâncias verdadeiramente excepcionais deve ser aplicada sem que antes se tenha dado a possibilidade ao arguido de se defender, ilidindo ou enfraquecendo a prova dos pressupostos que a podem legitimar”.
Subscrevendo essas críticas, Luís Manuel Teles de Menezes Leitão (“O segredo de justiça em processo penal”, Estudos Comemorativos do 150.º Aniversário do Tribunal da Boa-Hora, Ministério da Justiça, Lisboa, 1995, págs. 223-234, em especial págs. 228-229) sublinha que “não conhecendo os indícios contra si reunidos, a defesa resulta extremamente dificultada, impossível muitas vezes”, sustentando que “na hipótese de serem aplicadas ao arguido medidas de coacção, especialmente no caso de ser determinada a prisão preventiva, impunha-se que lhe fossem logo comunicados os elementos de prova já recolhidos nos autos, para que ele pudesse defender-se, quer apresentando provas, quer requerendo diligências de investigação em ordem a ilidir ou enfraquecer os indícios da sua responsabilidade”, sob pena de “esta limitação do direito do arguido à informação corre[r] o risco de atentar contra o artigo 32.º, n.º 1, da Constituição”.
A conjugação entre o direito de defesa do arguido e o segredo de justiça foi objecto de tratamento por este Tribunal Constitucional, no Acórdão n.º 121/97 (Diário da República, II Série, n.º 100, de 30 de Abril de 1997, pág. 5148; Boletim do Ministério da Justiça, n.º 464, pág. 146; e Acórdãos do Tribunal Constitucional, 36.º vol., pág. 313), embora o recurso onde esse aresto foi proferido respeitasse já à fase de interposição de recurso do despacho determinativo da prisão preventiva (sobre o tema, cf. Maria da Assunção E. Esteves, “A jurisprudência do Tribunal Constitucional relativa ao segredo de justiça”, em O Processo Penal em Revisão – Comunicações, Universidade Autónoma de Lisboa, Lisboa, 1998, págs. 123-131, republicado em Estudos de Direito Constitucional, Coimbra Editora, Coimbra, 2001, págs. 145-154). » 6. Tem especial interesse o que ali se consigna do Ac. T.C. nº 121/97, mormente sobre segredo de justiça e relevantes elementos de direito comparado: «... O Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, no caso Lamy/Reino da Bélgica veio julgar, através de acórdão de 30 de Março de 1989, tirado por unanimidade, que não era respeitada a igualdade de armas se o arguido ou o seu advogado, que pretendesse impugnar a decisão que lhe impusera a prisão preventiva, não tivesse acesso às peças processuais onde estavam os elementos que serviram para fundamentar tal decisão, ao passo que o Ministério Público delas tinha conhecimento e delas se servia para defender a manutenção da prisão preventiva. Ao não ser respeitada a igualdade de armas entre a acusação e a defesa, daí resultava, segundo a mesma decisão, que o processo penal não era verdadeiramente contraditório, pelo que era violado o artigo 5.º, n.º 4, daquela Convenção (acórdão integralmente publicado em Sub Judice – Justiça e Sociedade, Novos Estilos, n.º 11, Novembro de 1994, págs. 201 a 208, e também parcialmente na Revue Universelle des Droits de l' Homme, vol. 1, 1989, págs. 124 e seguintes).
No caso Lamy, o arguido era um cidadão belga, gerente de uma sociedade de responsabilidade limitada que se apresentara à falência, vindo aquele a ser responsabilizado pela prática do crime de insolvência dolosa. Preso preventivamente, impugnou o arguido por recurso a decisão de aplicação dessa medida de coacção, sem ter tido acesso a todas as peças do processo. No recurso de cassação suscitou a questão da falta de acesso ao processo, ao ter-se apercebido de que o tribunal de segunda instância de Liège se baseara em relatórios da polícia judiciária cujo conteúdo era desconhecido do recorrente e do seu advogado para manter a decisão que decretara a prisão preventiva. Face à improcedência do seu recurso no Tribunal de Cassação belga, o arguido recorreu às instâncias europeias. O Tribunal Europeu dos Direitos do Homem aceitou a sua tese, considerando ter sido violado o n.º 4 do artigo 5.º da CEDH. Escreveu-se nessa decisão:
“O Tribunal, tal como a Comissão, verificou que, devido à interpretação que a jurisprudência deu à lei, o advogado do requerente não pôde, durante os primeiros trinta dias da prisão preventiva, conhecer nenhum dado dos autos e especialmente dos relatórios elaborados pelo juiz de instrução e pela polícia judiciária de Verniers. Sucedeu assim concretamente no momento da primeira comparência perante a Secção que tinha de se pronunciar sobre a confirmação do mandado de prisão (...). O advogado não tinha a possibilidade de se opor eficazmente às declarações ou argumentos que o ministério público deduzira dos referidos documentos.
Era fundamental para o requerente ter esses documentos à sua disposição nesse momento crucial do processo, em que o tribunal tinha de decidir se prolongava ou dava por finda a prisão. Em especial, esta possibilidade teria permitido ao advogado do senhor Lamy expor os seus pontos de vista sobre as declarações e a atitude dos demais acusados (...). Na opinião do Tribunal, o exame dos documentos referidos era, portanto, indispensável para discutir eficazmente a legalidade do mandado de prisão.
Há uma relação demasiado estreita entre a necessidade da prisão preventiva e a posterior apreciação da culpabilidade para que se possa recusar a consulta dos autos no primeiro caso quando a lei a exige no segundo.
Ao passo que o procurador da Coroa conhecia os autos na sua totalidade, a tramitação processual não dava ao requerente a possibilidade de impugnar adequadamente os motivos invocados para justificar a prisão preventiva. Uma vez que não garantia a igualdade de armas, o processo não era realmente contraditório (veja-se, mutatis mutandis, a anteriormente citada sentença Sánchez-Reisse, série A, n.º 107, pág. 19, ponto 51).
Por conseguinte, foi violado o artigo 5.º, n.º 4. ” » 7. Finalmente, ainda quanto à “possibilidade de acesso a elementos constantes do processo, quer para a pessoa detida poder contestar perante o juiz que irá apreciar a legalidade da detenção o bem fundado da suspeita da autoria dos factos que concretamente lhe são imputados e dos pressupostos de aplicação de medida de coacção, quer para posteriormente impugnar a decisão desse juiz que haja validado a detenção e imposto, designadamente, medida de coacção de prisão preventiva”, faz-se ali uma resenha da jurisprudência do TEDH, mormente na linha traçada pelo já citado Acórdão Lamy: cfr. acórdãos de 13 de Fevereiro de 2001, nos casos Lietzow v. Alemanha, Garcia Alva v. Alemanha e Schöps v. Alemanha (todos disponíveis em www.echr.coe.int) - sublinhando, pela semelhança, o que se diz no Acórdão Lietzow: «... Em formulação repetida nesses três acórdãos, o TEDH enuncia os critérios gerais que perfilha nesta matéria nos seguintes termos (§ 44 do Acórdão Lietzow, § 39 do Acórdão Garcia Alva e § 44 do Acórdão Schöps):
“44. O Tribunal recorda que as pessoas detidas ou presas têm direito a que seja examinado o respeito das exigências processuais e de fundo necessárias à «legalidade», no sentido da Convenção, da sua privação de liberdade. Consequentemente, o tribunal competente deve verificar «quer o respeito das regras processuais da [legislação interna] e do carácter razoável das suspeitas que motivam a detenção, quer a legitimidade do objectivo perseguido por esta e em seguida pela [prisão]».
O tribunal que examine o recurso interposto contra uma prisão deve revestir-se das garantias inerentes a uma instância de natureza judiciária. O processo deve ser contraditório e garantir em qualquer caso a «igualdade de armas» entre as partes, o Ministério Público e o detido. Não há igualdade de armas quando ao advogado é recusado o acesso aos documentos do processo de inquérito cujo exame é indispensável para contestar eficazmente a legalidade da detenção do seu cliente. Se se tratar de pessoa cuja detenção se funda no artigo 5.º, n.º 1, alínea c), é obrigatória a realização de uma audiência (ver, entre outros, ao acórdãos Lamy v. Bélgica, de 30 de Março de 1989, série A, n.o 151, pp. 16-17, § 29, et Nikolova v. Bulgária [GC], n.o 31195/96, § 58, CEDH 1999-II).
Estas exigências decorrem do direito a um processo contraditório garantido pelo artigo 6.º da Convenção, que, no processo penal, implica, para a acusação como para a defesa, a faculdade de tomar conhecimento das considerações ou elementos de prova produzidos pela outra parte, bem como a de os discutir. De acordo com a jurisprudência do Tribunal, resulta da formulação do artigo 6.º – e especialmente do sentido autónomo que deve ser atribuído à noção de «acusação em matéria penal» – que esta disposição é aplicável às fases anteriores do processo (acórdão Imbrioscia v. Suiça, de 24 de Novembro de 1993, Série A, n.o 275, p. 13, § 36). Daí que, face às consequências dramáticas da privação da liberdade sobre os direitos fundamentais da pessoa em causa, qualquer processo concernente ao artigo 5.º, n.º 4, da Convenção deve, em princípio, respeitar de igual modo, tanto quanto possível nas circunstâncias de uma instrução, as exigências fundamentais de um processo equitativo, tais como o direito a um processo contraditório. A legislação nacional pode preencher estas exigências de diversas maneiras, mas o método por ela adoptado deve garantir que a outra parte esteja ao corrente da entrega de considerações e goza de uma efectiva possibilidade de as comentar (ver, mutatismutandis, o acórdão Brandstetter v. Áustria, de 28 de Agosto de 1991, Série A, n.o 211, pp. 27-28, § 67).”
No caso Lietzow(publicado em Recueil des Arrêts et Décisions, 2001-I, págs. 371-390), consignou-se:
45. No caso, o mandado de detenção notificado ao requerente em 6 de Fevereiro de 1992 expunha um resumo dos factos com base nas imputações contra ele deduzidas, as razões que justificavam, segundo o tribunal de distrito, a detenção do interessado e uma breve remissão para as provas nas quais se fundara o tribunal, a saber, os depoimentos de dois outros suspeitos no processo, N. e W., bem como os resultados das investigações em curso, não sendo fornecido qualquer detalhe quanto ao exacto conteúdo dos elementos a que se fazia referência.
Em 7 de Fevereiro de 1992, o advogado do requerente requereu ao tribunal que procedesse ao controlo jurisdicional da detenção do seu cliente. Também pediu ao magistrado do Ministério Público que lhe facultasse o acesso ao processo, ou, subsidiariamente, que pelo menos lhe fornecesse cópias dos depoimentos de N. e W., dado que estes aparentemente tinham desempenhado um papel determinante na decisão do tribunal de distrito de ordenar a detenção do requerente. Invocando o artigo 147.º, § 2.º, do Código de Processo Penal, o magistrado do Ministério Público indeferiu este pedido, alegando que a consulta desses documentos comprometia a finalidade da instrução. Em 10 de Fevereiro de 1992, o magistrado do Ministério Público enviou ao tribunal de distrito um processo com seis volumes relativo à instrução respeitante ao requerente e a outros arguidos.
Em 24 de Fevereiro de 1992, o tribunal de distrito determinou a manutenção da detenção do requerente. Declarando que continuavam a pesar fortes suspeitas sobre o requerente, não foi fornecida nenhuma especificação quanto aos factos pertinentes, limitando-se a remeter para o mandado de detenção. O tribunal acrescentou que, atentas as tentativas do requerente, anteriores à sua detenção, visando influenciar os outros suspeitos, continuava a existir grave risco de perturbação se ele fosse libertado.
46. Parece, assim, que os depoimentos de N. e W. desempenharam um papel decisivo na decisão do tribunal de distrito de manter o requerente em prisão preventiva. Contudo, enquanto o magistrado do Ministério Público e o tribunal de distrito de Francfort tivera, conhecimento desses depoimentos, o seu exacto conteúdo não havia sido, nessa fase, comunicado ao requerente ou ao seu advogado. Consequentemente, nenhum deles tivera oportunidade de contestar de modo satisfatório as considerações desenvolvidas pelo Ministério Público e pelo tribunal de distrito, nomeando pondo em causa a fiabilidade e o carácter probatório dos depoimentos de N. e W., que eram, também eles, visados pelas investigações desenvolvidas no processo do requerente.
É certo que, como sublinha o Governo, o mandado de detenção dava certas precisões quanto aos factos em que baseavam as suspeitas contra o requerente. No entanto, as informações fornecidas por este meio não constituíam mais do que um relato dos factos elaborado pelo tribunal de distrito com base no conjunto das informações comunicadas pelo Ministério Público. Na opinião do Tribunal, não é, de todo, possível à pessoa posta em causa contestar de modo satisfatório a fiabilidade desse relato se ela ignora os elementos nos quais este se fundamenta. É, portanto, necessário que o interessado tenha possibilidade bastante para tomar conhecimento dos depoimentos e de outros elementos de prova relativos, tais como os resultados do inquérito da polícia e de outras investigações, independentemente da questão de saber se o arguido pode fornecer indicações quanto à pertinência para a sua defesa dos elementos aos quais pretende ter acesso.
47. O Tribunal constata que o Ministério Público recusou o pedido de acesso aos documentos juntos ao processo nos termos do artigo 147.º, § 2, do Código de Processo Penal, com fundamento em que decisão contrária corria o risco de comprometer o sucesso da instrução em curso, que, segundo ele, era complexa e implicava um grande número de outros suspeitos. Este ponto de vista foi secundado pelo tribunal de apelação de Francfort no seu acórdão de 24 de Abril de 1992 (...).
O Tribunal reconhece a necessidade de uma condução eficaz dos inquéritos penais, o que pode implicar que uma parte das informações recolhidas durante essas investigações devam ser mantidas secretas a fim de impedir os suspeitos de alterar as provas e de prejudicar a boa administração da justiça. No entanto, este objectivo legítimo não deve ser perseguido à custa de restrições importantes infligidas aos direitos da defesa. Consequentemente, as informações essenciais para apreciar a legalidade da detenção de uma pessoa devem ser postas à disposição do advogado do suspeito de modo adequado à situação.
48. Nestas circunstâncias, e tendo em conta a importância atribuída pelo tribunal de distrito, na sua argumentação, aos depoimentos prestados por N. e W., que o requerente não pôde contestar de modo satisfatório porque deles não tomou conhecimento, o processo perante o tribunal de distrito de Francfort, que controlou a legalidade da prisão preventiva do requerente, não respeitou as garantias previstas no artigo 5.º, n.º 4, da Convenção. Assim, ocorreu violação desta disposição.”
Idêntico entendimento foi seguido quer no Acórdão proferido no caso Garcia Alva, em que se reconheceu o carácter determinante, para a decisão de validação da detenção e decretamento da prisão preventiva, do depoimento de uma testemunha (K.), tendo sido negado ao requerente o acesso ao respectivo teor, quer no Acórdão proferido no caso Schöps, relativamente à generalidade das investigações e, em especial, quanto ao teor dos depoimentos de duas testemunhas e de escutas telefónicas.
Recordadas as orientações da jurisprudência deste Tribunal Constitucional e do TEDH, e passando a apreciar o caso do presente recurso, constata-se que basta perfilhar a orientação traçada no Acórdão n.º 121/97 − sem necessidade de acompanhar em toda a sua extensão a jurisprudência do TEDH − para concluir pela inconstitucionalidade da interpretação seguida pelo acórdão recorrido.» - nossos realces. 8. Concluímos como o faz o dito Ac. TC nº 416/2003:
« Não se trata de afirmar o acesso irrestrito do arguido a todo o inquérito, mas apenas aos específicos elementos probatórios que foram determinantes para a imputação dos factos, para a ordem de detenção e para a proposta de aplicação da medida de coacção de prisão preventiva. Ora, relativamente a estes específicos elementos de prova é constitucionalmente intolerável, como se decidiu no Acórdão n.º 121/97, que se considere sempre e em quaisquer circunstâncias interdito esse acesso, com alegação de potencial prejuízo para a investigação, protegida pelo segredo de justiça, sem que se proceda, em concreto, a uma análise do conteúdo desses elementos de prova e à ponderação, também em concreto, entre, por um lado, o prejuízo que a sua revelação possa causar à investigação e, por outro lado, o prejuízo que a sua ocultação possa causar à defesa do arguido − ponderação a que, no caso, o acórdão [despacho] recorrido não procedeu.»
Daí que no Ac. T.C. nº 416/2003 se tenha decidido: «... Julgar inconstitucional, por violação dos artigos 28.º, n.º 1, e 32.º, n.º 1, da CRP, a norma do n.º 4 do artigo 141.º do Código de Processo Penal, interpretada no sentido de que, no decurso do interrogatório de arguido detido, a “exposição dos factos que lhe são imputados” pode consistir na formulação de perguntas gerais e abstractas, sem concretização das circunstâncias de tempo, modo e lugar em que ocorreram os factos que integram a prática desses crimes, nem comunicação ao arguido dos elementos de prova que sustentam aquelas imputações e na ausência da apreciação em concreto da existência de inconveniente grave naquela concretização e na comunicação dos específicos elementos probatórios em causa; ...» nosso sublinhado. 9. Concluindo.
Face ao acima exposto, não podemos deixar de constatar que a decisão judicial ora recorrida, ao interpretar e aplicar o artº 141º, nº 4, do CPP, nos termos acima transcritos, não só não está em conformidade jurisprudência corrente dos nossos tribunais superiores – entre outros, mormente os citados pelos recorrentes, veja-se a jurisprudência citada no Ac. TRL de 17/12/2003 (Processo 9782/03-3 – relator: des. dr. Horácio Telo Lucas; e que o ora relator também subscreveu).
Assim, e em consequência, é revogado o douto despacho ora recorrido (despacho de fls. 310-311), o qual vai ser substituído por outro que comunique aos arguidos, ora recorrentes, os elementos de prova em que a Mmª JIC (sua subscritora) baseou a forte indiciação da prática por estes arguidos do mencionado crime de tráfico de estupefacientes, e no qual sustentou a aplicação da medida de coacção de prisão preventiva – cfr. artº 141º, nº 4, face ao disposto nos artºs 86º, nº 1 e 89º, nº 2, todos do CPP, tendo em conta os princípios e normas constitucionais, mormente as constantes dos artigos 28º, nº 1, e 32º, nº 1, da CRP (cfr. Ac. TC nº 416/2003, entre outros).
* IV – DECISÃO:
Nos termos expostos, acordam em dar provimento ao recurso.
Sem custas. Lisboa, 13 de Dezembro de 2006.