DEPOIMENTO DE PARTE
SOCIEDADE ANÓNIMA
PODERES DE REPRESENTAÇÃO
Sumário

I- É àquele que requer o depoimento de parte que compete indicar a pessoa que o deve prestar.
II- Sendo a Ré uma sociedade comercial em forma de sociedade anónima, e dizendo os seus estatutos que a sociedade fica obrigada pela assinatura de dois administradores, tal não inviabiliza a prestação do depoimento de parte do presidente do conselho de administração, se os estatutos também preverem que a sociedade fique obrigada pela assinatura de um só administrador, pelo que, se a Ré quiser confessar factos, só terá que conferir a esse presidente do conselho de administração os necessários poderes para o efeito.

Texto Integral

Acordam na secção social do Tribunal da Relação de Lisboa:

V…, em 06 de Setembro de 2004, intentou acção declarativa de condenação, com processo comum, contra Companhia de Seguros …, que corre seus termos sob o nº 3360/04.0TTLSB, e na sua petição inicial requereu, entre outros meios de prova, o depoimento de parte da Ré, na pessoa do seu legal representante, a saber o Presidente do Concelho de Administração, à matéria dos nº 1 a 54 dessa petição.
Após a realização de uma audiência de partes a Ré contestou a acção, apresentando o seu rol de testemunhas.
A fls. 232, em 5.01.2006, foi proferido despacho saneador e foi também proferido despacho nos seguintes termos:
“Vai admitido o depoimento de parte da Ré, nos termos dos art. 552 e seguintes do Código de processo Civil e com o âmbito indicado pelo Autor. Notifique (nomeadamente o legal representante da Ré para comparecer na data designada para a audiência de discussão e julgamento, a fim de prestar o depoimento de parte agora admitido)”.
As partes foram notificadas deste despacho por cartas emitidas em 9.01.2006.
Em 11.04.2006, veio a Ré dizer que não existindo razão para que seja o actual presidente do conselho de administração da Ré a prestar o depoimento de parte requerido, até porque o Autor não identificou uma pessoa determinada nem indicou o motivo pelo qual sugere que a ré preste depoimento através do actual presidente do seu conselho de administração, o qual foi designado por deliberação de 29.01.2005 nada podendo esclarecer sobre os factos em causa que remontam a datas anteriores, requer que seja admitida, para esse efeito, a presença em audiência de discussão e julgamento da pessoa que o conselho de administração da Ré vier a designar.
O A. pronunciou-se pelo indeferimento desta pretensão da ré – fls. 301.
O Mº juiz proferiu, então, o seguinte despacho (fls. 321):
“Temos entendido que é a parte que requer o depoimento de parte e não quem o presta que tem a faculdade de designar o legal representante em concreto que deverá prestar o mesmo, correndo os riscos inerentes ao facto de indicar pessoa que, por não ter contacto directo com as matérias questionadas, revela pouco conhecimento das mesmas (como poderá ser o caso do Presidente do Conselho de Administração da Ré).
Sendo assim, vai indeferido o requerido pela Ré, devendo a mesma fazer comparecer no dia e hora designado, o referido Presidente do Conselho de Administração para prestar tal depoimento de parte.”

A Ré, inconformada, interpôs recurso deste despacho, terminando as suas alegações com longas e prolixas conclusões, mas que se resumem no seguinte:
(…)
O recorrido contra-alegou defendendo que o despacho recorrido deve ser mantido na íntegra.

Admitido o recurso com subida imediata, foram os autos remetidos a este Tribunal da Relação e, colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.
A questão que se suscita é relativa à escolha do legal representante da pessoa colectiva que deve prestar o depoimento de parte.

Fundamentação de facto

- V…, intentou em 06 de Setembro de 2004, a presente acção declarativa de condenação, com processo comum, contra Companhia de Seguros …, a qual corre seus termos sob o nº 3360/04.0TTLSB.
- Na petição inicial dessa acção o A. alega factos tendentes a demonstrar que actividade de perito avaliador que prestou no período de Junho de 1993 até Outubro de 2003, inicialmente para a Cª de Seguros … e a partir de 2001 para a Ré, que resultou da fusão das ..., deve ser qualificada como sendo prestada mediante contrato de trabalho.
- Em 5.01.2006, foi proferido o seguinte despacho:
“Vai admitido o depoimento de parte da Ré, nos termos dos art. 552 e seguintes do Código de processo Civil e com o âmbito indicado pelo Autor. Notifique (nomeadamente o legal representante da Ré para comparecer na data designada para a audiência de discussão e julgamento, a fim de prestar o depoimento de parte agora admitido)”.
- As partes foram notificadas deste despacho por cartas emitidas em 9.01.2006 e nada disseram.
- Só em 11.04.2006, veio a Ré dizer que não existe razão para que seja o actual presidente do conselho de administração da Ré a prestar o depoimento de parte requerido, até porque o Autor não identificou uma pessoa determinada nem indicou o motivo pelo qual sugere que a ré preste depoimento através do actual presidente do seu conselho de administração, o qual foi designado por deliberação de 29.01.2005 nada podendo esclarecer sobre os factos em causa que remontam a datas anteriores, requer que seja admitida, para esse efeito, a presença em audiência de discussão e julgamento da pessoa que o conselho de administração da Ré vier a designar.
- O A. pronunciou-se pelo indeferimento desta pretensão da ré – fls. 301.
- O Mº juiz proferiu, então, o despacho recorrido:
“Temos entendido que é a parte que requer o depoimento de parte e não quem o presta que tem a faculdade de designar o legal representante em concreto que deverá prestar o mesmo, correndo os riscos inerentes ao facto de indicar pessoa que, por não ter contacto directo com as matérias questionadas, revela pouco conhecimento das mesmas (como poderá ser o caso do Presidente do Conselho de Administração da Ré).
Sendo assim, vai indeferido o requerido pela Ré, devendo a mesma fazer comparecer no dia e hora designado, o referido Presidente do Conselho de Administração para prestar tal depoimento de parte.”
- Por deliberação de 28.01.2005 foi nomeado Presidente do Conselho de Administração da Ré, o Sr. Dr. … .
- Os estatutos da Ré, dispõem no art.20º que “nos limites da lei, o conselho de administração pode confiar a algum ou a alguns administradores matérias devidamente especificadas, bem como criar uma comissão executiva constituída por um número ímpar de administradores à qual caberá a gestão corrente da sociedade” e no art. 21º que “a sociedade fica obrigada pela assinatura de dois administradores, podendo, porém, constituir mandatários, cujos poderes de representação correspondem ao estabelecido pela lei, e fica também obrigada, nos limites da delegação prevista no artigo antecedente, pela assinatura de um só administrador”.

Fundamentação de direito

A decisão recorrida entendeu que “é a parte que requer o depoimento de parte e não quem o presta que tem a faculdade de designar o legal representante em concreto que deverá prestar o mesmo, correndo os riscos inerentes ao facto de indicar pessoa que, por não ter contacto directo com as matérias questionadas, revela pouco conhecimento das mesmas.
A Agravante discorda veementemente desta decisão por entender que no caso da parte que irá prestar o depoimento ser pessoa colectiva, é esta quem deve assumir a responsabilidade de escolher qual a pessoa concreta que a deverá representar em juízo para a prestação do depoimento de parte.
Quid juris?
No caso concreto, verifica-se que o Autor requereu o depoimento de parte do legal representante da Ré, a saber o presidente do conselho de administração, para prestar o depoimento de parte à matéria dos art. 1º a 54º da petição.
O Mº juiz deferiu ao requerido, nos termos do despacho de fls. 232, que transitou em julgado, fazendo, portanto, caso julgado formal dentro destes autos.
A nosso ver, a força desse caso julgado formal abrange a questão que estamos a discutir, uma vez que o referido despacho deferiu ao requerido depoimento de parte, sem qualquer restrição como resulta da referência feita ao nº 2 do art. 552º do CPC. E, embora não referisse expressamente que o legal representante da ré a prestar o depoimento fosse o presidente do conselho de administração, essa discriminação estava implícita no próprio despacho, pois assim tinha sido requerido pelo Autor.
Daqui resulta que a Ré já não podia, dentro deste processo, voltar a discutir a mesma questão, como fez através do requerimento de 11.04.2006 que deu origem ao despacho recorrido, por haver caso julgado formal – art. 666º nº 3 e 672º ambos do CPC.

De qualquer forma, mesmo que assim se não entenda, sempre se dirá que apesar do brilhantismo das alegações da Recorrente entendemos não lhe assistir razão.
O depoimento de parte é um meio de prova que visa, em princípio, a obtenção da confissão, ou seja, o reconhecimento pelo depoente da realidade de factos desfavoráveis para si e favoráveis à parte contrária (cfr. art. 352º, n.º 1 e seguintes do Cód. Civil). O art. 552º, n.º 1 do CPC ao determinar que o depoimento de parte só pode ter por objecto factos pessoais ou de que o depoente deva ter conhecimento, está a reconhecer isso mesmo, uma vez que a parte só pode confessar factos pessoais ou de que deva ter conhecimento.
Mas, quem verdadeiramente presta o depoimento é a própria parte, pelo que os factos pessoais que relevam são aqueles de que a própria parte tem conhecimento ou de que deva ter conhecimento.
Por factos pessoais ou de que o depoente deva ter conhecimento deve entender-se “não só os actos praticados pela própria parte ou com a sua intervenção, mas também os actos praticados perante ela e ainda os meros factos ocorridos na sua presença” (1) (2).
Assim, facto pessoal é o que é conhecido da parte ou aquele que, em face das circunstâncias concretas em que se produziu, seja de presumir que a parte dele teve conhecimento.
Mas, na aferição do requisito “facto pessoal” deve ter-se presente que este se refere à própria parte e não ao seu representante legal (3).
No presente caso, está em causa o relacionamento do Autor com a Ré e com sua antecessora (a Cª de seguros …), no período de Junho de 1993 a Outubro de 2003, tendo o A. alegado factos tendentes a demonstrarem a existência entre ambos de um contrato de trabalho e da justa causa para a sua rescisão pelo Autor e, bem assim, da existência de danos morais.
Muitos dos factos alegados pelo Autor na sua petição inicial sobre os quais requereu que recaísse o depoimento de parte são factos que, segundo alega, terão sido praticados pela Ré ou de que ela deveria ter conhecimento, justificando-se, portanto, este meio de prova.
Mas, sendo a Ré uma sociedade comercial em forma de sociedade anónima cuja vontade se exprime através dos seus legais representantes, nos termos dos art. 405º e seguintes do Cód. das Sociedades Comerciais e de acordo com os art. 19 e 20 dos respectivos estatutos, pode perguntar-se quem deve efectivamente ser chamado a tribunal para prestar o referido depoimento de parte de uma sociedade anónima.
Será o Presidente do Conselho de Administração, como pretende o Autor, ou poderá ser uma qualquer outra pessoa a indicar pela própria Ré e devidamente mandatada para o efeito, como esta propugna neste recurso?
Sobre esta precisa questão, podem ver-se decisões contraditórias na jurisprudência.
Assim, no acórdão da Relação do Porto que pode ser consultado em www.dgsi.pt, com o número convencional JTRP00027876, pode ler-se:
“I. O depoimento de parte visa a concretização da confissão das partes. Em caso de sociedade anónima pode ser requerido o depoimento do presidente do conselho de administração por se entender que o mesmo pode ter conhecimento de determinados factos que outros representantes não terão. Não cabe à sociedade indicar quem a representa no depoimento de parte, atento os estatutos ou decisão do próprio conselho de administração, pois a qualidade de representante legal apontada pela requerente será apreciada em sede de julgamento, no momento que precede o depoimento, se foram levantadas dúvidas sobre essa sua qualidade”.
Por outro lado, o Tribunal da Relação de Lisboa, em acórdão de 17.06.99, em www.dgsi.pt, já decidiu que “A própria sociedade, dentro da obrigação de colaborar para a descoberta da verdade é que deve indicar qual a pessoa, e para a hipótese de haver vários representantes, quem deve prestar o depoimento, por ser a mais indicada em face dos seus próprios conhecimentos e credenciá-la devidamente”.
Antes de mais importa referir que vigora no nosso processo civil o princípio geral de que todas as pessoas devem ser admitidas a depor, a fim de com o seu depoimento auxiliarem o tribunal na descoberta da verdade. Se têm a posição de partes, é nessa qualidade que pode ser exigido o seu depoimento; se não têm essa posição, então hão-de depor como testemunhas (cfr. Alberto dos Reis, CPC Anotado, IV Vol., pág. 348).
É facto indiscutível que pode requerer-se o depoimento de parte de pessoa colectiva ou de sociedade comercial, mas o depoimento prestado pelo seu representante só tem o valor de confissão nos precisos termos em que aquele possa obrigar a sociedade sua representada.
É o que decorre do nº 2 do art. 553º do CPC:
“pode requerer-se o depoimento de inabilitados, assim como de representantes de incapazes, pessoas colectivas ou sociedades; porém, o depoimento só tem valor de confissão nos precisos termos em que aqueles possam obrigar-se e estes possam obrigar os seus representados.
O que está em consonância com o disposto no nº 1 do art. 353º do C. Civil que refere “a confissão só é eficaz, quando feita por pessoa com capacidade e poder para dispor do direito a que o facto confessado se refira”.
Face ao quadro legal exposto, a nosso ver, a resposta à pergunta acima formulada é no sentido do despacho recorrido, ou seja, de que é àquele que requer o depoimento de parte que compete indicar a pessoa que o deve prestar, já que este meio de prova está na disponibilidade de quem o requer a fim de provar os factos de cuja prova está onerado.
Tratando-se de uma sociedade anónima nada obsta a que possa ser requerido o depoimento do presidente do conselho de administração.
O facto de os estatutos da Ré dizerem que a sociedade fica obrigada pela assinatura de dois administradores, não inviabiliza a prestação do depoimento de parte do presidente do conselho de administração, uma vez que os estatutos também prevêem que a sociedade fique obrigada pela assinatura de um só administrador, desde que devidamente mandatado pelo Conselho de Administração para certas matérias devidamente especificadas, conforme decorre do art. 20 dos estatutos.
Assim, se a Ré quiser confessar factos só terá que conferir ao seu Presidente do Conselho de Administração os necessários poderes para o efeito.
E uma vez que a qualidade de representante legal, para efeito de prestação de depoimento de parte, sempre poderá ser apreciada em sede de julgamento, no momento que precede o depoimento, se foram levantadas dúvidas sobre essa qualidade ou sobre os seus poderes de representação, ficam afastados os receios da Agravante relativamente às consequências previstas no art. 357º nº 2 do Cód. Civil.
E não se diga que o requerido depoimento de parte é um acto inútil pelo facto do actual Presidente do Conselho de Administração não ter conhecimento pessoal dos factos. É que quem verdadeiramente presta o depoimento é a própria parte, sobre factos que são do conhecimento pessoal desta e de que o Presidente do Conselho de Administração tem obrigação de conhecer.
Por outro lado, temos de convir que o Presidente do Conselho de Administração é a pessoa a quem, em princípio, compete representar a empresa que dirige, perante terceiros, não se vendo razão para que o não faça perante os tribunais, quando tal lhe é pedido pelo Tribunal. Ademais, quando se trata de depor sobre matéria de que a empresa que dirige tem conhecimento directo e pessoal e de que ele próprio também tem obrigação de conhecer.
E se segundo os estatutos da Agravante o presidente do conselho de administração não é legal representante desta, nada obsta a que o Conselho de Administração conferira ao seu Presidente os necessários poderes de representação e de confissão, como se apressou a fazer relativamente a um seu funcionário subalterno.
Entendemos, pois, que não é à pessoa colectiva que compete indicar quem a representa na prestação do depoimento de parte, mas antes ao requerente do depoimento, uma vez que é ele que suportará os riscos inerentes à falta de prova dos factos que pretende provar através desse meio.
Esta decisão também não afecta, a nosso ver, qualquer princípio estruturante do processo, como seja o da obtenção da verdade material ou da realização da justiça, e muito menos viola qualquer direito fundamental consignado nos art. 20º nº 1 e 202º nº 2 da CRP.
Ao invés, a pretensão da Ré de procurar obstar a que o seu Presidente do Conselho de Administração preste o requerido depoimento de parte é que pode violar um dos princípios estruturantes do processo como seja o de que todas as pessoas devem prestar a sua colaboração para a descoberta da verdade – art. 519º nº 1, 266º nº 2 e 552º do C. P. Civil.
Improcedem, assim, ou ficam prejudicadas, todas as conclusões do recurso, sendo de confirmar a decisão recorrida.

Decisão:
Face ao exposto, nega-se provimento ao recurso, confirmando-se a decisão recorrida.
Custas a cargo da Agravante.

Lisboa, 10/1/2007

Seara Paixão
Ferreira Marques
Maria João Romba



______________________________
1.-José Lebre de Freitas, A Confissão no Direito Probatório, pag.123/124.

2.-Ver também BMJ, nº 278, pag. 110 sobre um caso de fornecimento a uma sociedade, em que se considerou tratar-se de facto pessoal desta, apesar dos seus gerentes da sociedade terem mudado e alegado o seu desconhecimento dos factos.

3.-A memória que possibilita a confissão é a da própria sociedade, devidamente representada” – L. de Freitas, Ob. Cit. Pag. 124, nota 38.