SERVIDÃO DE PASSAGEM
PROVAS
RESTITUIÇÃO PROVISÓRIA DE POSSE
USUCAPIÃO
Sumário

I- Se for constituída servidão de passagem a favor de prédio dominante que foi ampliado em consequência de incorporação em prédio contíguo, a servidão não pode ser utilizada directamente para proveito da parte com que foi ampliado o prédio dominante.
II- No âmbito de procedimento cautelar de restituição provisória de posse, por ter sido o proprietário de prédio dominante impedido de utilizar a servidão de passagem, a prova da existência de servidão por usucapião conjugada com a prova de que a passagem foi impedida com ameaça implícita de uso de meios físicos é suficiente para que a providência seja decretada (artigos 393.º ,394.º e 395.º do C.P.C.).
III- Importa, no entanto, que o deferimento da providência não permita o que a servidão não permite, ou seja, se a servidão tinha por objecto o acesso a prédio rústico para seu cultivo, é inaceitável que se permita a utilização da servidão pelos veículos automóveis que se destinam ao stand de automóveis do requerente que funciona e existe na parcela urbana à qual foi adicionada a parcela rústica, parcela esta, e apenas esta, que beneficia da servidão à qual se encontra sujeita o prédio serviente (artigo 1546.º do Código Civil)
IV- Por isso, a providência deve limitar-se ao objecto da servidão, ou seja, à utilização da servidão a pé ou por meio de transporte exclusivamente destinado à utilização agrícola da referida parcela rústica (artigos 1543.º e 1544.º do Código Civil).

Texto Integral

Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa:

1. Joaquim […] e Maria […] instauraram providência cautelar de restituição provisória de posse contra Américo […] e outros, devidamente identificados,  pedindo que os requerentes sejam restituídos provisoriamente à posse correspondente ao direito de passagem de carro e a pé que beneficia o prédio dos requerentes descrito nos artigos 1º a 4ª e que sujeita o prédio dos requeridos e, em consequência, que se abstenham estes de praticar quaisquer actos que possam estorvar o  uso da servidão de passagem.

2. A providência foi deferida, mas, na sequência de oposição, o Tribunal ordenou o levantamento  da providência.

3. Os requerentes interpuseram desta decisão recurso de agravo considerando que o Tribunal não fez uma correcta apreciação da prova produzida por não ter levado em linha de conta as declarações da testemunhas arroladas pelos requerentes, absolutamente esclarecedoras quanto à existência de servidão de passagem que beneficia a parcela de terreno dos requerentes e que onera a propriedade dos requeridos.

4. São elucidativos, segundo os recorrentes, os depoimentos das 1ª, 2ª, 3º e 5º testemunhas que desde crianças viveram no local e que afirmaram que a servidão existe há muitas décadas, que a mesma foi utilizada por elas próprias, seus antepassados e antepassados dos recorrentes.

5. Do ponto de vista de facto consideramos, desde já, assente o seguinte:

1º- Por escritura pública de partilha datada de 18-3-1997, outorgada no Cartório Notarial […], foi adjudicado à requerente Maria […] e seu marido Joaquim […] o prédio urbano […]

2º- Em 27 de Junho de 2001, o referido Joaquim […] faleceu tendo deixado como únicos e universais herdeiros os requerentes Maria […] e Joaquim[…].

3º O prédio identificado é composto de duas parcelas, a primeira das quais foi  adquirida há mais de 100 anos pelos antecessores dos requerentes e a segunda na década de 60 do transacto século, hoje unificadas numa única descrição predial.

4º A primeira parcela confronta com a estrada nacional […] e nela existe um estabelecimento de compra e venda de automóveis, existindo um portão na sua extremidade nascente.

5º- A segunda parcela destina-se à exploração agrícola e não possui acesso directo à via pública.

6º Esta segunda parcela encontra-se granjeada.

7º A parcela referida em 4 permite o acesso à parcela referida em 5 através de uma área livre de construção  com uma largura que permite o estacionamento em paralelo de dois veículos automóveis.

8º- Os requeridos têm registado a seu favor o prédio urbano […]

9º Os terrenos dos requerentes e dos requeridos não são confinantes.

10º Sobre o prédio dos requeridos existe um caminho disposto no sentido norte-sul com 2,27 metros de largura  na sua parte mais estreita e pelo menos 2,45 na restante extensão  e no total com, pelo menos, 40 metros de comprimento, em terra batida, com o leito bem definido.

11º No início do mês de Outubro de 2005, os requeridos colocaram  ao longo do caminho montes de terra e entulho com recurso a um tractor e pás manuais.

12º Os requerentes removeram os montes de terra e entulho.

13º  Em 7 de Dezembro de 2005, os requeridos voltaram a colocar  terra e entulho no caminho com recurso aos meios referidos em 10.

14º Perante a abordagem do requerente e do seu empregado Hugo […ı no sentido de removerem a terra e o entulho, três indivíduos, que procediam aos trabalhos de obstrução do caminho, aproximaram-se munidos de pás nas mãos, colocando-se em posição frontal perante eles e um deles retorquiu “ Por aqui não passa mais ninguém. Se quiserem vão para o tribunal”.

15º Perante tal atitude o requerente e um seu empregado sentiram-se intimidados e afastaram-se.

16º Junto ao acesso do terreno confinante com o dos requeridos com a Estrada nacional […] existe uma placa onde consta “Entrada e saída de Viaturas”.

17º Nesse terreno existe um caminho perfeitamente delineado e denunciado com o leito definido pela existência de terra batida denunciando a passagem regular de veículos motorizados desde a estrada [……] e que dá ligação à parcela de terreno afecta ao cultivo de produtos hortícolas dos requerentes e às traseiras da parcela de terreno onde se situa o estabelecimento comercial  de compra e venda de automóveis.

18º Entre as marcas da passagem de rodas de veículos automóveis motorizados existente no caminho referido em 17 está a crescer vegetação.

Controvertido:

1- Os requerentes e os seus antecessores há mais de 100 anos que utilizam o referido caminho para acederem ao seu prédio, continuamente, à vista de toda a gente, sem oposição de quem quer que seja, nomeadamente dos requeridos,

2- Dele fazendo uso para movimentar os veículos do stand de automóveis para a área de terreno afecta a reparação, lavagem e limpeza semanais.

3- Por ele acedendo, quer a pé, quer de carro ou tractor, à restante área do prédio que é utilizada para o cultivo dos produtos hortícolas.

Apreciando:

6. A decisão sob recurso que ordenou o levantamento da providência considerou, com base em inspecção ao local, “que os terrenos dos requerentes e dos requeridos não são confinantes, sendo possível a passagem para a parcela afecta ao cultivo de produtos hortícolas pela parcela onde se encontra o comércio de automóveis e que liga com a Estrada nacional […] através de uma área livre de construção com uma largura que permite o estacionamento em paralelo de dois veículos automóveis. Verificou ainda a existência da placa referida no ponto 16 da matéria provada bem como do caminho delineado no terreno confinante ao terreno dos requeridos, o que indica que se trata de um local de passagem de viaturas, tanto mais que o terreno não possui qualquer construção e não se encontra granjeado”.

7. Verifica-se, assim, que os requerentes possuem acesso  à parte cultivada da sua propriedade, não sendo contíguas as propriedades (ver planta de fls. 119).

8. Verifica-se igualmente que a propriedade dos requerentes, um todo que hoje constitui uma única descrição predial, segundo eles alegam no artigo 13º do requerimento inicial - não se nos afigurando, porém, com base nos documentos juntos aos autos, a evidência assumida pelos requerentes de que a descrição predial atinente a prédio urbano haja integrado a parcela destinada à exploração agrícola e pecuária -, compõe-se de duas parcelas, sendo uma delas um stand de exposição e venda de automóveis ligeiros, construído onde havia edificação urbana e sendo a outra, a que está em causa nos autos, destinada a exploração agrícola e pecuária.

9. Os requerentes consideram que a favor desta parcela, segunda parcela, actualmente propriedade dos requerentes e que foi adquirida em momento diverso, ulterior, àquele em que foi adquirida a primeira parcela , está constituída por usucapião uma servidão de passagem de que é prédio serviente o imóvel dos requeridos.

10. Não constitui causa extintiva da servidão que beneficia o prédio dominante e que sujeita o prédio serviente  a ampliação de qualquer deles, em consequência da fusão com um prédio contíguo.  Sucede apenas que “deverá entender-se, respectivamente, que só fica onerada com a servidão a parte que constituía, antes, o prédio serviente e que a servidão não poderá ser utilizada directamente para proveito da parte com que foi ampliado o prédio dominante” (ANTUNES VARELA ”Código Civil Anotado, Vol III, 2º edição, pág. 626).

11. A existência de um caminho de acesso ao prédio dominante, constituído posteriormente à servidão, pode levar à extinção desta por desnecessidade, mas a desnecessidade deve ser declarada judicialmente (artigo 1569º/2 do Código Civil).

12. Estas considerações interessam ao caso em apreço, norteando-nos sobre a relevância maior ou menor de certos aspectos de facto, pois, por exemplo, não é pelo facto de se comprovar que hoje há um acesso ao prédio dos requerentes, rectius à parcela agrícola contígua à parcela urbana (que estariam em tempos separadas por um valado como foi testemunhalmente referido) que a pretensão dos requerentes vai  soçobrar necessariamente.

13. É que, a entender-se desse modo, isso significava que o Tribunal consideraria extinta a servidão por desnecessidade no âmbito de um procedimento cautelar em que se tem fundamentalmente em vista saber se está ou não constituída por usucapião uma servidão entre os prédios referenciados.

14. Não será, aliás, o aparecimento superveniente de um caminho que bastará para se considerar que a servidão se extingue por desnecessidade; assim sucederá muito provavelmente na grande maioria dos casos, mas outros há em que o caminho implica um custo para o prédio dominante que não justifica a extinção da servidão (caminho, por exemplo, muito extenso e acidentado contrariamente à constituída servidão de passagem que permite atingir a via pública com toda a facilidade).

15. Outra nota que releva em termos de compreensão da matéria de facto é que não importa que o caminho referenciado como servidão na planta junta pelos requerentes (fls. 43) possa constituir servidão de passagem relativamente a outros prédios, pois o que importa é que ele tenha sido constituído por usucapião relativamente à referida parcela de terreno.

Reanalisando a prova.

16. A testemunha dos requerentes Maria Custódia […], depois de se referir ao comprimento da serventia, referiu ainda que a serventia já existe há mais de 50 anos, “ essa serventia dava para  aqueles foros, para o  foro que é do Sr. Joaquim e para o nosso foro também”, serventia existente há mais de 50 anos pois, disse a testemunha, “ 73 tenho eu e já era serventia sempre”;  quanto à utilização da serventia referiu a testemunha que “ pelo menos já lá foram este ano lavrar com o tractor” .

17. A testemunha Emília […], cujo terreno fica entre os do requerente e requeridos, referiu que os terrenos dos requerentes são distintos e salientou que “ para entrar para a parte da frente, entrava pela estrada nacional, e para entrarmos para a traseira do terreno , é pela servidão”. Na parte da frente do terreno dos requerentes (actual Stand) havia casa de habitação e quintal onde habitava uma irmã da depoente e a parte de trás era agrícola; referiu que a parte de trás não tinha acesso à E.N”. Confirmou que a servidão vai até onde o requerente faz a lavagem dos carros”. Referiu que ela utilizava a servidão com a sua carroça, admitindo que “ é passagem de carros”

18. Quanto à testemunha Patrocínia […],  referiu que a traseira do terreno era cultivada; referiu que a servidão sempre existiu e que “ passavam todos pela serventia  […] naquele tempo chamava-se ‘serventia’, agora é servidão […] passavam todos por trás. Só quem passava pelo terreno da casa onde eu vivia era eu que tinha a entrada pela estrada nacional, para dentro da minha casa e do meu quintal”. Referiu que a servidão tem mais de 50 metros; referiu que iam cultivar o terreno do Sr. Joaquim “ mas era tudo em carroças”.

19. O depoimento das testemunhas dos requeridos no sentido de que ninguém passava pelo local é infirmado pelo depoimento das testemunhas dos requerentes.

20. Cumpre salientar que os requeridos não reconheceram a existência de servidão, mencionando que os requerentes só passaram a fazer uso diário da referida servidão “ a partir de Agosto do transacto ano”; alegaram inclusivamente que “ o caminho não existe nem nunca foi caminho” (artigo 30º da oposição).

21. Não há, pois, que entrar em linha de conta com a questão, que se poderia suscitar a partir dos depoimentos de testemunhas dos requeridos, da extinção da servidão por não uso, pois uma tal questão tem a montante a do reconhecimento da própria servidão.

22. Fica da matéria de facto, a nosso ver, em termos de apreciação sumária - estamos no âmbito de um procedimento cautelar - a convicção de que há muitas dezenas de anos que o aludido caminho constitui servidão de passagem para acesso a várias propriedades entre as quais a parcela de terreno que os requerentes vêm cultivando e que não tinha acesso à via pública.

23. As pessoas utilizavam esse caminho a pé, de carroça e também foi referido que os requerentes utilizavam o tractor.

24. Quanto à utilização do caminho, que é um caminho estreito, de carro, não nos parece que tenha sido considerado que a servidão alguma vez se haja constituído com tal finalidade, ou seja, para proporcionar acesso ao stand de automóveis dos requerentes.

25. Aliás, impondo-se que as utilidades, objecto de servidão (artigo 1544º do Código Civil) sejam gozadas por intermédio do prédio dominante, é bom de ver que o prédio dominante não é o prédio urbano dos requerentes (ainda que hoje ele abranja a parcela rústica), ou seja, o prédio dominante não corresponde à parcela urbana que tinha saída para a estrada nacional.

26. O prédio dominante, o que está aqui em causa, é a parcela rústica, a parcela destinada a cultivo e que se provou estar granjeada, o que evidencia a sua utilização.

27. E também não está em causa nestes autos a questão da constituição de servidão de passagem por usucapião em benefício do prédio dos requerentes na sua parte urbana, hoje utilizada para stand de automóveis.

28. Assim, reanalisada a matéria de facto, importa considerar provados anda os seguintes factos:

19º  Os requerentes e seus antecessores há mais de 50 anos que utilizam o caminho referido em 10 para aceder à parte destinada à exploração agrícola do prédio referenciado nos autos ( ou seja, a parte que corresponde à dita segunda parcela referenciada de 3º a 6º supra), o que vem fazendo, continuamente, à vista de toda a gente, sem oposição de quem quer que sejam designadamente os requeridos.

20º Por essa via, nesses termos, acediam à referida parcela a pé e de tractor para cultivo de produtos hortícolas.

29. Do exposto decorre que a providência deve ser decretada nos termos e pelas demais razões expostas, que não estão controvertidas, reconhecendo-se, assim, a existência de servidão de passagem a favor do prédio dos requerentes, rectius da parcela agrícola do prédio actualmente unificado, com o conteúdo acima mencionado (passagem a pé e de tractor para fins de exploração agrícola).

30. Assim sendo, é bom de ver que a aludida passagem não pode ser permitida a veículos destinados ao stand de automóveis dos requerentes pois isso seria permitir a constituição de uma servidão a favor de outro prédio dominante.

31. A restituição da posse aos requerentes limita-se ao âmbito acima indicado, ficando absolutamente vedado aos requerentes a utilização da referida servidão com quaisquer veículos que não sejam aqueles (tractor, carroças etc.) que são habitualmente utilizados na exploração agrícola.

32. Refira-se, desde já, para que não se suscitem quaisquer dúvidas, que os requerentes se pretenderem utilizar aquela passagem com algum veículo não destinado  à utilização agrícola (pensemos, por exemplo, no transporte de trabalhadores para amanho daquela parcela) não podem deixar, se não quiserem desrespeitar o comando judicial, de informar o Tribunal e os requeridos dessa sua pretensão a fim de se poder verificar se estamos face a uma utilização de viatura para a finalidade considerada ou diante de um pretexto, de uma habilidade, para se tornear a decisão proferida. A omissão de informação importa obviamente a responsabilização dos requerentes.

Concluindo:

I- Se for constituída servidão de passagem a favor de prédio dominante que foi ampliado em consequência de incorporação em prédio contíguo, a servidão não pode ser utilizada directamente para proveito da parte com que foi ampliado o prédio dominante.
II- No âmbito de procedimento cautelar de restituição provisória de posse, por ter sido o proprietário de prédio dominante impedido de utilizar a servidão de passagem, a prova da existência de servidão por usucapião conjugada com a prova de que a passagem foi impedida com ameaça implícita de uso de meios físicos é suficiente para que a providência seja decretada (artigos 393.º ,394.º e 395.º do C.P.C.).
III- Importa, no entanto, que o deferimento da providência não permita o que a servidão não permite, ou seja, se a servidão tinha por objecto o acesso a prédio rústico para seu cultivo, é inaceitável que se permita a utilização da servidão pelos veículos automóveis que se destinam ao stand de automóveis do requerente que funciona e existe na parcela urbana à qual foi adicionada a parcela rústica, parcela esta, e apenas esta,  que beneficia da servidão à qual se encontra sujeita o prédio serviente (artigo 1546.º do Código Civil)
IV- Por isso, a providência deve limitar-se ao objecto da servidão, ou seja, à utilização da servidão a pé ou por meio de transporte exclusivamente destinado à utilização agrícola da referida parcela rústica (artigos 1543.º e 1544.º do Código Civil).

Decisão: concede-se provimento ao recurso, ordenando-se a restituição provisória da posse aos requerentes correspondente ao direito de passagem a pé ou em veículo exclusivamente destinado à utilização agrícola da referida parcela (v.g. tractor, charrua, carroça, mas não veículo automóvel destinado ao stand), sobre o aludido caminho que dá acesso à  referida parcela de terreno dos requerentes, condenando-se os requeridos a absterem-se de qualquer acto que impeça a sua passagem.

Custas pelos requeridos

Lisboa,18 de Janeiro de 2007

(Salazar Casanova)
(Silva Santos)
(Bruto da Costa)