CONTRATO DE ARRENDAMENTO
RESOLUÇÃO DO CONTRATO
NÃO EXIGÍVELIDADE NA MANUTENÇÃO DO CONTRATO
Sumário

I - No âmbito do artigo 1083º do Código Civil, o legislador consagra uma cláusula geral, a cujo crivo submete o ilícito verificado, em ordem a aferir da sua gravidade e consequente suscetibilidade de comprometer, ou não, a subsistência do vínculo contratual.
II - Não obstante a eliminação da al. a) do n.º 2 do artigo 1083º dos adjetivos “reiterada e grave”, ínsitos à norma antes das alterações da lei 31/20012, a eficácia resolutiva de tais comportamentos é apreciada à luz da cláusula geral do n.º 1 e, por isso, os mesmos têm de assumir um caráter reiterado, que conduzirá a um nível de gravidade suficiente para sustentar a resolução do contrato.
III - Embora admitindo que, à luz da nova redação da al. a), a supressão da anterior adjetivação possa conduzir a que um incumprimento pontual atinja, objetivamente, tal gravidade que justifique a cessação da relação locatícia, os factos praticados pela arrendatária passaram-se no mesmo hiato temporal, sob idêntica contextualização, têm a sua sede própria de tutela jurídica noutros meios coercivos e são alheios ao objeto do contrato de arrendamento sob discussão, repelindo, assim, um incumprimento que torne inexigível ao senhorio a manutenção do contrato.

Texto Integral

Processo nº 1264/15.0T8GDM
Tribunal Judicial da Comarca do Porto
Gondomar, instância local, secção cível, J3

Acordam no Tribunal da Relação do Porto:

I. Relatório
B…, residente …, …., ….-… Gondomar, demandou, na presente ação de processo comum, C…, residente …, …., ….-… Gondomar, pedindo a resolução do contrato de arrendamento e o decretamento do despejo imediato da ré do locado, correspondente ao 1.º andar do prédio onde reside, com a sua entrega livre de pessoas e bens, com fundamento em incumprimento grave dos deveres de arrendatária.
Alegou, em síntese, que a ré impediu o seu acesso ao logradouro, o qual era por si utilizado, nele mantendo o cão e colocando a viatura dentro de um anexo de sua pertença, para o que arrombou a fechadura. Restituído à sua posse por via de procedimento cautelar que instaurou, com inversão do contencioso, pouco depois voltou a ré a usar aqueles espaços como se seus fossem, injuriando-o e tentando agredi-lo, comportamentos que constituem justa causa de resolução do contrato de arrendamento.
A ré contestou, impugnando parcialmente a matéria de facto alegada pelo autor. Deduziu reconvenção, invocando ter executado obras urgentes no locado no valor de €15.000, que reclama do autor.
Atribuindo-lhe litigância de má-fé, pediu a sua condenação em multa e indemnização em montante não inferior a €1.500,00.
O autor respondeu ao pedido reconvencional e ao pedido de condenação como litigante de má-fé, pugnando pela sua absolvição e pela condenação da ré como litigante de má fé.

A ré replicou, procurando afastar a litigância de má-fé.

Realizada audiência de julgamento, foi proferida sentença com o seguinte dispositivo: «Pelo exposto, decido:
a) julgar procedente a presente ação e, por via dela, declarar resolvido o arrendamento existente entre autor e ré, condenando a ré a entregar ao autor o locado supra identificado devoluto de pessoas e bens;
b) julgar improcedente o pedido reconvencional;
c) absolver ambas as partes dos pedidos de condenação como litigantes de má-fé;
d) condenar a ré/reconvinte nas custas do processo, sem prejuízo do apoio judiciário».

Inconformada, a ré interpôs recurso da decisão, admitido como apelação, a subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito suspensivo.
Rematou a sua alegação com as subsequentes conclusões:
«1.ª O Tribunal a quo fez uma errada interpretação da situação factual apresentada tanto pelo Autor como pela Ré.
2.ª Igualmente aquele Tribunal fez uma incorrecta interpretação jurídica
ao caso aplicável.
3.ª Os atos identificados sobre o comportamento da Ré e do seu filho referem-se a atitudes de indignação sobre a atitude do Autor pretender ultrapassar o determinado na, aliás douta, sentença proferida nos autos do processo cautelar de Restituição da Posse e não passaram disso mesmo.
4.ª Os factos dados como provados não se enquadram nas exigências legais impostas pelo disposto no art.º 1083.º do Código Civil para justificarem a resolução do contrato de arrendamento.
5.ª Os motivos previstos no referido art.º 1083.º do Código Civil são os que têm a haver com o decurso da vigência normal do contrato de arrendamento, mas os motivos que foram dados como provados têm a haver única e exclusivamente com uma situação meramente pontual, esporádica de desentendimento e reação espontânea da arrendatária que discute indignada com o senhorio porque este obteve uma sentença que lhe confere o direito de tomada de posse do logradouro do prédio e o mesmo pretende tomar posse do identificado logradouro e incluir no mesmo um quintal com a área de 150 m2 que faz parte do arrendado e que não está incluído na sentença do procedimento cautelar, situação com a qual a Ré não se conforma.
6.ª A Ré, na sua contestação alegou, nomeadamente, que o contrato de arrendamento celebrado em 1 de Abril de 1972 contemplava como fazendo parte integrante do arrendado a habitação sita no 1.º Andar do prédio, o logradouro sito no Rés-do-Chão do mesmo que é comum às duas habitações, bem como a metade esquerda do quintal, na direcção de quem entra no prédio e olha em frente, sito nas traseiras deste, correspondente a uma parcela de terreno com cerca de 150 metros, que está separada de outra parcela de terreno, por um passeio em cimento.
7.ª Situação que sempre existiu e funcionou pacificamente desde tal data e foi a situação que o Autor encontrou quando em Janeiro de 2014 chegou ao prédio e que no logradouro havia um anexo/barracão construído pela primitiva senhoria para a Ré guardar o seu automóvel.
8.ª Que a Ré sempre granjeou a metade esquerda do quintal, onde semeava, plantava e colhia hortaliças, batatas e diversos para sua utilização pessoal, e no qual existia um pequeno anexo onde a Ré guardava vários utensílios e ferramentas.
9.ª Que naqueles espaços, do logradouro e quintal, a Ré desde sempre teve um cão.
10.ª Situação que o Autor bem conhece, desde sempre, tanto mais que vive no prédio confinante a sul do prédio em questão, que, por isso, não corresponde à verdade que o Autor após a aquisição do prédio tenha tomado posse efectiva do mesmo, que ocupou o logradouro do Rés-do-Chão do Prédio, que tenha praticado actos materiais no logradouro.
11.ª O Rés-do-Chão do prédio foi ocupado por um suposto arrendatário, em Abril de 2014, tendo este encontrado a situação de utilização do ajuizado logradouro e quintal nas condições referidas.
12.ª O Autor intentou contra a Ré o Procedimento Cautelar de Restituição Provisória de Posse, que correu termos pelo 3.º Juízo Cível do Tribunal de Gondomar, com o n.º 1940/14.5TBGDM, alegando impossibilidade de uso e fruição do logradouro na sua plenitude e esbulho violento perpetrado pela Ré.
13.ª Por decisão de 20 de Agosto de 2014, tal procedimento cautelar foi julgado procedente e provado, tendo determinado que a ora Ré removesse o cadeado colocado no portão de acesso ao referido logradouro, bem como o referido veículo automóvel, o canídeo e demais materiais colocados nesse mesmo logradouro.
14.ª Ou seja, o Procedimento Cautelar nada decidiu sobre o quintal pertencente ao arrendado.
15.ª O Procedimento Cautelar foi julgado sem a audição da Ré e no mesmo foi decretada a inversão do contencioso, nos termos do disposto no art.º 371.º, do Código de Processo Civil.
16.ª Face à decisão naquele processo, o Autor efectuou no local, acompanhado de Agente de Execução, várias diligências para fazer cumprir o decidido naquele procedimento cautelar.
17.ª A Ré não intentou a competente acção judicial contra o novo senhorio, aqui Autor, porquanto logo que foi interpelada no local pelo Agente de Execução que pretendia executar a decisão, iniciou um diálogo sério com o representante do Autor no sentido de esclarecer o que se estava a passar e para que o Autor repensasse o assunto porque a Ré tinha razão e não foi ouvida no tribunal.
18.ª Que não assiste ao Autor o invocado direito de resolução do Contrato de arrendamento.
19.ª Porquanto, ao contrário do que o Autor alega, os factos invocados não se enquadram no disposto nas várias alíneas do art.º 1083.º, n.º 2 do Código Civil.
20.º O que o Autor deverá fazer será certamente requerer a execução da sentença nos seus termos, proferida nos autos de Processo Cautelar de Restituição Provisória de Posse referente àquele logradouro.
21.ª Em vez disso, o Autor optou por intentar uma acção de despejo com o intuito de afrontar a Ré e com a intenção de que esta lhe entregue a habitação deixando-lhe assim a possibilidade de ter a casa livre e arrendá-la com renda de valores actuais.
22.ª O Tribunal recorrido não respondeu ao artigo 3.º da contestação, ou a qualquer outro facto alegado pela Ré, com vista a pôr em causa a decisão judicial já proferida e transitada em julgado com inversão do contencioso no âmbito do processo 1940/14.5, que correu termos no 3.º Juízo Cível do Tribunal de Gondomar, alegadamente por estarmos em presença de caso julgado.
23.ª Mas a verdade é que o pedido e a decisão do referido processo Cautelar de Restituição de Posse referem um logradouro e a Ré na sua Contestação invoca um quintal.
24.ª Pelo que os factos invocados pela Ré na sua Contestação deveriam ter sido analisados pelo Tribunal recorrido.
25.ª Consequentemente, a douta Decisão Recorrida violou, nomeadamente, o disposto nos artigos 607.º do Código de Processo Civil, bem como do referido no artigo 1083.º do Código Civil.
26.ª Devendo, por isso, ser a Sentença anulada, ordenando-se a tramitação processual adequada de forma a que o Tribunal Recorrido atenda ao alegado pela Ré na sua contestação seguindo-se os ulteriores termos processuais.
Termos em que e nos demais de direito deve ser dado provimento ao presente recurso, revogando-se a douta Sentença Recorrida (…).».

Respondendo, o autor defendeu que a sentença não padece de quaisquer vícios, mormente dos apontados pela recorrente, devendo, por isso, ser mantida na íntegra.

II. Delimitação do objeto do recurso
Sendo a matéria recursiva limitada às questões levantadas nas conclusões da alegação (artigo 635º do Código de Processo Civil[1]), impõe-se a apreciação do dissentimento da recorrente quanto à decisão da matéria de facto e à decretada resolução do contrato de arrendamento.

III. Fundamentação de facto
A) O autor é dono e legítimo proprietário do prédio urbano, sito na Estrada …, n.º …, composto por casa de rés-do-chão e andar, descrito na Conservatória do Registo Predial de Gondomar sob o n.º 6907, da freguesia de … e inscrito na respetiva matriz predial urbana sob o artigo 15393 da União das Freguesias de …, … e …, que corresponde ao artigo 7736, da extinta freguesia de … (artigo 1.º da petição inicial – matéria não impugnada).
B) O autor adquiriu a propriedade do prédio em 27 de Dezembro de 2013, por compra e venda, titulada por escritura (artigo 2.º da petição inicial – matéria não impugnada).
C) O 1.º andar do prédio encontra-se arrendado para habitação, à ré C…, por efeito de transmissão do arrendamento, por morte do primitivo arrendatário D…, cujo contrato foi celebrado em 01/04/1972, com o anterior proprietário E… (artigo 3.º da petição inicial – matéria não impugnada).
D) Atualmente a renda anual é de €456,24 (quatrocentos e cinquenta e seis euros e vinte e quatro cêntimos), sendo a mesma paga em duodécimos de €38,02, por meio de transferência bancária para conta do autor da F… (artigo 4.º da petição inicial – matéria não impugnada).
E) Após a aquisição do prédio o autor comunicou à ré a mudança do senhorio (artigo 7.º da petição inicial).
F) Em Abril de 2014 arrendou a casa de r/chão a outro inquilino (artigo 12.º da petição inicial – matéria não impugnada).
G) Mudou a fechadura do portão de acesso exclusivo ao logradouro, e nele colocou um cadeado, de forma a não permitir o acesso ao prédio por estranhos (artigo 13.º da petição inicial).
H) Comunicou, ainda, à ré que retirasse uma viatura do primitivo arrendatário, que se encontrava aparcada e imobilizada, na entrada do logradouro (artigo 15.º da petição inicial).
I) Que retirasse o seu cão do logradouro (artigo 16.º da petição inicial).
J) Após a referida entrega das chaves do cadeado do portão de acesso, o autor quando pretendia entrar no logradouro, deparou-se com a colocação de um novo cadeado junto do seu (artigo 17.º da petição inicial).
L) Vindo a saber que fora colocado ou pela ré ou por alguém às suas ordens (artigo 18.º da petição inicial).
M) Ficando somente a ré com acesso ao logradouro do prédio, e por seu turno desapossando o autor, e privando-o de aceder ao mesmo (bem como ao arrendatário do R/C) (artigo 19.º da petição inicial).
N) Arrogando-se a requerida do direito a usar e fruir em exclusivo do logradouro, como se fosse a sua dona e possuidora, (artigo 20.º da petição inicial).
O) Mantendo no logradouro o seu cão (artigo 21.º da petição inicial).
P) Colocando a referida viatura dentro de um anexo/barracão existente na área pavimentada, que foi também ocupado pela R., (artigo 22.º da petição inicial).
Q) No âmbito do processo 1940/14.5 TBGDM, do 3.º juízo cível de Gondomar, que correu termos entre B… e C…, foi proferida decisão, transitada em julgado, que decidiu: «decretar a restituição provisória da posse ao requerente, (…) do direito de propriedade sobre o logradouro do prédio urbano sito na Estrada …, n.º …, composto por casa de rés-do-chão e andar, descrito na Conservatória do Registo Predial de Gondomar, sob o n.º 6907, da freguesia de ….
Em consequência determino que a requerida remova o cadeado colocado no portão de acesso ao referido logradouro, bem como veículo automóvel, o canídeo e demais materiais colocados nesse mesmo logradouro. Mais dispenso o requerente do ónus da propositura da ação principal e declaro invertido o contencioso, nos termos previsto no artigo 371.º do NCPC»
Na referida decisão foram considerados provados os seguintes factos:
«1.- Encontra-se registada a favor do requerente, desde 17-12-2013, a aquisição do prédio urbano, sito na Estrada …, n.º 1561, composto por casa de rés-do-chão e andar, descrito na CRP de Gondomar, sob o n.º 6907, da freguesia ….
2.- Tal prédio tem uma área coberta de 73,5 m2 e uma área descoberta de 266,5 m2.
3 – O requerente declarou comprar e G…, (…) declararam vender o prédio supra identificado em 27 de Dezembro de 2013 (…).
4 – O 1.º andar do prédio encontra-se arrendado para habitação (…) à requerida C…, por efeito de transmissão do arrendamento, por morte do primitivo arrendatário D…, contrato este celebrado em 1-04-1972, com o primitivo proprietário E….
(…).
6.- As entradas principais para o r/c e 1.º andar situam-se na frente do prédio.
7.- O prédio tem também um logradouro no r/c, sito na área descoberta, com acesso exclusivo por um portão situado na frente esquerda do prédio.
8 – Tal logradouro ladeia a toda a esquerda do prédio construído (visto de frente), bem como as traseiras do mesmo.
9.- Sendo composto por duas parcelas, divididas por um pequeno muro.
10.- Uma das parcelas que se encontra pavimentada, situa-se na lateral esquerda do prédio e nela existe uma pequena porção de terra.
11.- A outra parcela encontra-se nas traseiras do prédio, sendo a mesma composta por terra.
12.- Através da parte pavimentada do logradouro, pode-se aceder às entradas secundárias do r/c e 1.º andar, situadas na lateral esquerda do prédio. (…)» (fls. 35 e ss).
R) Em face do decretamento do procedimento cautelar, e para cumprimento do mesmo, no dia 04-09-2014, pelas 16:00h, deslocaram-se à residência da requerida para proceder à restituição provisória de posse, o Agente de Execução designado, na companhia do Ilustre Mandatário do autor e na presença de dois Agentes da P.S.P. (artigo 32.º da petição inicial – não impugnado; doc. de fls. 181).
S) Nessa diligência, o filho da ré ameaçou todos os presentes, dizendo que matava quem tentasse cumprir a ordem judicial, e caso a ordem fosse cumprida perseguiria quem o tivesse feito referindo-se especificamente ao requerente (artigo 33.º da petição inicial).
T) O filho da ré ameaçou o autor e o seu filho tendo dito “Quando ele aparecer mais logo, eu parto-o todo, eu mato-o, e também parto todo o filho dele, não tenho medo dele!” (artigo 34.º da petição inicial).
U) Como também o disse que o autor era corrupto e gatuno e que havia matado a sua própria mãe (artigo 35.º da petição inicial).
V) A ré instada a entregar o logradouro e a retirar o cadeado do portão, o veículo automóvel, o canídeo e demais pertences, recusou-se a efetuar a respetiva entrega. (artigo 36.º da petição inicial).
X) Pelo que, foi requerida e autorizada judicialmente a intervenção da força pública de segurança adequada e arrombamento, para cumprimento da ordem judicial (artigo 37.º da petição inicial).
Z) No dia 18 de Setembro, a ré entregou voluntariamente o logradouro, ao autor, tendo removido o canídeo, retirado o cadeado, e tendo-se comprometido a retirar o cadeado do “barracão” voluntariamente no prazo de 15 dias, (artigo 38.º da petição inicial).
A)’ No entanto, posteriormente apareceu o canídeo e o barracão e a viatura permaneciam também no logradouro (artigo 41.º da petição inicial).
B)’ O autor verificou que no logradouro permanecia uma pequena arrecadação com artigos da ré e do seu filho, situada atrás do barracão, e que ainda se encontravam couves plantadas na pequena porção de terra existente na parcela pavimentada do logradouro (artigo 44.º da petição inicial).
C)’ No dia 07 de Novembro de 2014, no prédio objeto do procedimento cautelar, supra identificado, cerca das 9h da manhã, o filho do autor, por instrução deste, fazendo-se acompanhar de dois operários da construção civil, entrou pelo portão de acesso ao logradouro, tendo-se dirigido ao pequeno barraco/arrecadação que era anteriormente utilizado pela ré, com o propósito de demolir o mesmo e remover consequentemente os resíduos sólidos daí resultantes, tendo tal intervenção sido dada a conhecer à Ilustre Mandatária da ré (artigo 46.º da petição inicial).
D)’ De seguida, a ré, também ela, se arrogou da propriedade/posse do logradouro, e afirmou perante os presentes que o autor seria um porco (artigo 52.º da petição inicial).
E)’ E, o filho da ré ameaçou o filho do autor quanto à integridade física deste (artigo 53.º da petição inicial).
F)’ Logo após, o 2.º participante e os funcionários deixaram o local (artigo 54.º da petição inicial).
G)’ E permanecido plantadas couves na porção de terra existente no logradouro, e ainda o barracão, que o autor pretendia remover (artigo 58.º da petição inicial).
H)’ Continuando o autor impedido de aceder ao logradouro, e de usar o que é seu, face à intimidação da ré e do seu filho (artigo 59.º da petição inicial).
I)’ Nunca tendo a R. deduzido qualquer oposição em face da decisão judicial proferida, tendo a mesma já transitado em julgado (artigo 61.º da petição inicial – matéria não impugnada).
J)’ Foi apresentada participação criminal contra a ré e seu filho, pelos “crimes de injúria, difamação, ameaça e desobediência” (artigo 65.º da petição inicial – não impugnado).
L)’ Estando o respetivo inquérito a correr termos na Comarca do Porto – Gondomar – Inst. Local – Secção Criminal – J2, sob o n.º 733/15.7T9GDM (artigo 66.º da petição inicial – não impugnado).
M)’ Foi comunicado à ré pela primitiva senhoria que esta havia recebido uma proposta de compra do prédio, da parte de B… (artigo 1.º da contestação – não impugnado).
N)’ O contrato de arrendamento celebrado em 1 de Abril de 1972 contemplava como fazendo parte integrante do arrendado a habitação sita no 1.º andar do prédio (artigo 3.º da contestação – parte não impugnada).

IV. Fundamentação de direito
1. Dissentimento quanto à matéria de facto
A alegação da recorrente denota a sua discordância relativamente à matéria de facto apurada, pois faz várias afirmações nesse sentido:
- «[O] Tribunal a quo fez uma errada interpretação da situação factual apresentada tanto pelo Autor como pela Ré», incluir no mesmo um quintal com a área de 150 m2 que faz parte do arrendado e que não está incluído na sentença do procedimento cautelar, situação com a qual a Ré não se conforma»;
- inclui no logradouro «um quintal com a área de 150 m2 que faz parte do arrendado e que não está incluído na sentença do procedimento cautelar, situação com a qual a Ré não se conforma»;
- «[O] Tribunal recorrido não respondeu ao artigo 3.º da contestação, ou a qualquer outro facto alegado pela Ré».
No domínio da reapreciação da matéria de facto pela Relação, em processo civil, a encetou-se, com reforma legislativa iniciada em 1995, um acentuado reforço dos poderes dos Tribunais de Relação e conferiu-se às partes um verdadeiro e duplo grau de jurisdição em matéria de facto, numa mais ampla e eficaz possibilidade de reagir contra eventuais erros do julgador de primeira instância. Contudo, procurando modelar um padrão processual das partes de rigor e exigência, mas também visando inibir devaneios impugnatórios genéricos ou generalizados apenas com o intuito de vincular o tribunal ad quem a reanalisar a matéria de facto, o vigente artigo 640º do CPC coloca, ao recorrente impugnante da decisão da matéria de facto, imposições que o obrigam a especificar, sob pena de rejeição, os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados, os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que imponham decisão sobre os pontos da matéria de facto diversa da recorrida e a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas. E, como, expressamente, resulta desse inciso normativo, a inobservância desse ónus de alegação, quanto à impugnação da decisão sobre a matéria de facto, implica a imediata rejeição do recurso.
Como se vê, as conclusões alegatórias da recorrente nem sequer individualizam a sua pretensão de impugnar a matéria de facto, mas os excertos transcritos sinalizam a sua dissidência quanto ao julgamento da primeira instância. Ora, a solução gizada pela reforma de 2013 para o recurso da matéria de facto recusa a repetição de julgamento, a admissibilidade de recursos genéricos contra a errada decisão da matéria de facto, tendo o legislador optado por abrir apenas a possibilidade de revisão de concretas questões de facto controvertidas relativamente às quais sejam manifestadas e concretizadas divergências por parte do recorrente[2]. Por isso, desconhecendo os concretos pontos de facto que a recorrente reputa de incorretamente julgados e a decisão a proferir sobre os mesmos, conforme impõe o artigo 640º, 1, alíneas a) e c), do CPC, não dispõe este Tribunal da Relação de condições processuais para conhecer da impugnação da matéria de facto. Ademais, a recorrente também não indica os concretos meios de prova que impõem decisão diversa, de acordo com o prescrito na alínea b) do mesmo preceito. Daí que, mesmo concedendo alguma complacência com o rigor adjetivo, não disponha este Tribunal dos dados mínimos relevantes para o reexame da factualidade provada e não provada. As asserções da apelante são genéricas, sem concretude bastante para identificar os factos e os meios de prova a reapreciar[3].
Não há sequer a possibilidade processual de convidar a recorrente a aperfeiçoar a sua alegação. Nesta sede, o legislador não instituiu qualquer convite ao aperfeiçoamento da alegação, cominando, imperativamente, a imediata rejeição do recurso, nessa parte, em caso de incumprimento pelo recorrente do referido ónus processual (artigo 640.º, 2, do CPC). Opção legislativa que, compreensivelmente, procura desencorajar impugnações temerárias e infundadas da decisão da matéria de facto[4]. Tanto assim é que o convite ao aperfeiçoamento está reservado para o recurso que verse sobre matéria de direito, como se vê do disposto no artigo 639º, 3, do CPC.
Assim, embora pareça dubitativa a impugnação da matéria de facto, por cautela, ante o incumprimento do ónus de impugnação, rejeita-se o recurso nessa parte.
Acresce que a dissidência da recorrente se refere à existência de um quintal que, na sua ótica, não integra o logradouro a que alude a decisão da restituição provisória de posse que lhe foi dirigida e que é parte integrante do locado. Ora, no âmbito desse procedimento cautelar, instaurado pelo autor contra a ré, foi proferida decisão, transitada em julgado, que decretou a restituição provisória da posse ao requerente do logradouro do prédio urbano sito na Estrada …, n.º …, composto por casa de rés-do-chão e andar, descrito na Conservatória do Registo Predial de Gondomar, sob o n.º 6907, da freguesia de …. Decisão que, dispensando o requerente do ónus da propositura da ação principal, declarou invertido o contencioso (processo 1940/14.5 TBGDM, do extinto 3.º juízo cível de Gondomar).
Do dispositivo da decisão não se intui se o “quintal” integra o logradouro ou, ao invés, o prédio dado de arrendamento à ré, mas os factos dados por apurados registam que «O 1.º andar do prédio encontra-se arrendado para habitação (…) à requerida C…, por efeito de transmissão do arrendamento, por morte do primitivo arrendatário D…, contrato este celebrado em 1-04-1972, com o primitivo proprietário E….» (n.º 4), denotando que o objeto do contrato de arrendamento se concentra no 1.º andar do identificado prédio. Está igualmente apurada a descrição do logradouro, na sua inserção geográfica, área e porções de terra (n.ºs 7 a 12), sem qualquer referência ao “quintal”. Consabido que o conteúdo semântico de “quintal” é uma pequena porção de terreno com horta ou jardim, junto de uma casa de habitação, usado quer para plantações quer para recreação, a factualidade exarada parece integrar no logradouro restituído ao autor o “quintal” a que alude a recorrente. Tanto assim é que, nesta ação, está demonstrado que o contrato de arrendamento celebrado em 1 de abril de 1972 se reportava à habitação sita no 1.º andar do identificado edifício (N’), aliás em plena conformidade com o teor do documento que sustenta o contrato (fls. 30 e 31) e sem qualquer referência ao “quintal” que a ré defende integrar o objeto do contrato de arrendamento. É certo que a demandada alegou, no artigo 3º da contestação, que do arrendamento fazia parte, além do 1.º andar, “o logradouro do rés-do-chão, comum às duas habitações, e a metade esquerda do quintal”, matéria que a decisão da matéria de facto não contemplou, porque o tribunal a quo entendeu que essa questão foi decidida, com trânsito em julgado, pela decisão proferida no procedimento cautelar, com inversão do contencioso, o que inviabiliza a sua rediscussão.
Efetivamente, nenhuma censura há a dirigir a esse concreto segmento decisório. No referido procedimento cautelar foi discutida a propriedade e a posse do logradouro do prédio e, nele, foi o autor restituído à sua posse, sem que a ré tivesse recorrido dessa decisão. As providências cautelares estão necessariamente dependentes de uma ação já pendente ou a instaurar posteriormente e acautelam ou antecipam provisoriamente os efeitos da providência definitiva, na pressuposição de que venha a ser favorável ao requerente a decisão a proferir no processo principal. Por isso, entre a providência cautelar e a ação principal deve existir uma relação que permita afirmar que o direito acautelado será provavelmente reconhecido na ação definitiva, procurando, através desta ação principal, a tutela para o mesmo direito preservado por via cautelar. É assim que o objeto da providência tem de ser conjugado com o objeto da causa principal, embora tal dependência não imponha perfeita identidade. A identidade entre o direito acautelado e o que se pretende fazer valer no processo definitivo impõe, pelo menos, que o facto que serve de fundamento àquele integre a causa de pedir da ação principal, embora se não pressuponha uma total identidade dos direitos a tutelar[5]. E essa identidade parcial existe no tocante à integração do “logradouro/quintal” no objeto do contrato de arrendamento entre a providência cautelar e a presente ação. É certo que o caráter instrumental e provisório das decisões cautelares permitia ampla e renovada discussão dos direitos transitoriamente acautelados nos procedimentos cautelares. Porém, a reforma do Código de Processo Civil de 2013 introduziu no âmbito dos procedimentos cautelares a figura da inversão do contencioso, admitindo que, mediante requerimento da parte, o juiz, na decisão que decrete a providência, possa «dispensar o requerente do ónus de propositura da ação principal se a matéria adquirida no procedimento lhe permitir formar convicção segura acerca da existência do direito acautelado e se a natureza da providência decretada for adequada a realizar a composição definitiva do litígio» (artigo 369º). Visa-se, por esta via e verificados determinados pressupostos, obstar à repetição da controvérsia já apreciada e decidida no âmbito do procedimento cautelar, não obstante a menoridade das garantias formais conferidas pela decisão cautelar[6]. Inversão que depende da verificação de dois pressupostos: - a matéria adquirida no procedimento tem de permitir que o juiz forme a convicção segura acerca da existência do direito acautelado; - e a natureza da providência decretada deve ser adequada a realizar a composição definitiva do litígio. Evidentemente que para antecipar o juízo definitivo sobre o litígio, aquele primeiro requisito não se basta com a prova meramente perfunctória do fumus boni juris, antes exigindo que a mesma se situe num patamar de exigência idêntico ao necessário para as decisões da matéria de facto nas ações de processo comum[7]. Este mecanismo faz com que o procedimento cautelar deixe de ser necessariamente instrumental e provisório e permite ao julgador a formação de convicção judicial sobre a existência do direito apta a resolver de modo definitivo o litígio, se verificados os demais pressupostos legalmente previstos.
Ante o exposto, tendo sido decretada a inversão do contencioso na evocada restituição provisória de posse, é definitiva a enunciação do direito do autor sobre o referido logradouro/quintal e a sua consequente exclusão do contrato de arrendamento que o aproxima da ré. Atenta a identidade dos sujeitos, da causa de pedir e do objeto, há uma repetição da causa que transporta a exceção dilatória de caso julgado, que obsta ao conhecimento do mérito da causa, no caso, concreto, quanto a essa questão da integração do logradouro/quintal no contrato de arrendamento [artigos 576º, 2, 577º, i), e 581º do CPC].
Deteta-se uma duplicação de factos provados no que se refere à alínea N)’ O 1.º andar do prédio encontra-se arrendado, para habitação, à ré, por efeito de transmissão do arrendamento, por morte do primitivo arrendatário seu marido, D…, ao abrigo do contrato de arrendamento celebrado em 1 de Abril de 1972, com o primitivo proprietário, mediante a renda anual de € 456,24, paga em duodécimos de €38,24, através de transferência bancária e às alíneas C) O 1.º andar do prédio encontra-se arrendado para habitação, à ré C…, por efeito de transmissão do arrendamento, por morte do primitivo arrendatário D…, cujo contrato foi celebrado em 01/04/1972, com o anterior proprietário E… e D) Atualmente a renda anual é de €456,24 (quatrocentos e cinquenta e seis euros e vinte e quatro cêntimos), sendo a mesma paga em duodécimos de €38,02, por meio de transferência bancária para conta do autor da F…. Não havendo, contudo, qualquer contradição nessa exposição, mas apenas repetição em total correspondência, nada se modifica a propósito, mantendo-se intocada a decisão sobre a matéria de facto.

2. A resolução do contrato de arrendamento
Refuta a recorrente a resolução do contrato de arrendamento para a habitação decretada pela sentença recorrida com base no seu incumprimento, à luz do disposto no artigo 1083.º, 1 e 2, a), do Código Civil, diploma a que pertencerão todas as normas indicadas sem menção de origem. Norma que dispõe que «qualquer das partes pode resolver o contrato, nos termos gerais de direito, com base em incumprimento pela outra parte (n.º1) e, designadamente quanto à resolução pelo senhorio, na violação de regras de higiene, de sossego, de boa vizinhança ou de normas constantes do regulamento do condomínio que, pela sua gravidade ou consequências, torne inexigível à outra parte a manutenção do arrendamento [n.º 2, a)]».
A data da celebração do contrato de arrendamento é anterior, quer ao atual regime, que é o NRAU (Novo Regime do Arrendamento Urbano, aprovado pela lei 6/2006 de 27 de fevereiro), quer ao RAU (Regime do Arrendamento Urbano, aprovado pelo decreto-lei n.º 321-B/90 de 15 de outubro). Sobre o regime transitório, resulta do artigo 59º da lei nº 6/2006, de 27 de fevereiro, que o NRAU se aplica imediatamente a todos os contratos, mesmo aos celebrados antes da sua entrada em vigor, embora, quanto a estes, com as especificidades resultantes do regime transitório constante dos artigos 26º a 58º. Contudo, os factos que o autor imputa à ré como fundamento da resolução do contrato datam do ano de 2014, na vigência do NRAU, iniciada em 28-06-2006 (artigo 65º do NRAU), pelo que se lhe aplicam esse seu regime e os (artigos 27º e 59º).
Em suma, a violação de qualquer dever do locatário pode constituir causa de resolução contratual quer nos termos gerais de direito quer quando esse incumprimento, pela sua gravidade ou consequências, torne inexigível ao senhorio a manutenção do arrendamento.
Tem gerado alguma diversidade interpretativa a conexão entre a cláusula geral ínsita ao n.º 2 da norma incumprimento que, pela sua gravidade ou consequências, torne inexigível à outra parte a manutenção do arrendamento e os exemplos-padrão que a poderão integrar. Enquanto há doutrina que entende que a técnica legislativa é a de usar os exemplos-padrão para concretizar a cláusula geral, que deverá ter uma estrutura valorativa idêntica aos casos exemplificados, e que a resolução não operará automaticamente, verificada que esteja a situação objetiva prevista, antes demandando o juízo de que, pela sua gravidade ou consequências, ela torna inexigível à outra parte a manutenção do arrendamento[8], outra defende que os casos enunciados no nº 2 da norma são casos típicos de resolução e não meras presunções ilidíveis de inexigibilidade da manutenção do arrendamento pelo senhorio, de forma a que, provados tais factos, nenhum juízo valorativo deve ser feito para constituir ou enjeitar o direito a resolução por parte do senhorio[9].
Ao invés, a jurisprudência é maioritária no sentido de que o inciso normativo obriga a articular e a conjugar uma violação contratual relevante com a referida cláusula geral da inexigibilidade, instituída no nº 2 do artigo 1083º, em cuja concretização e densificação deverão ser colocadas as questões referentes à boa fé, ao abuso do direito e ao princípio da proporcionalidade, de forma a sopesar a intensidade concreta e o grau de censurabilidade da violação contratual cometida e a gravidade objetiva do efeito que lhe corresponde. Vale por dizer que a aferição da ilicitude de certo comportamento deve ser casuisticamente realizada segundo um juízo objetivo de razoabilidade e proporcionalidade para concluir se é irremediável a destruição da relação contratual à luz da cláusula geral legalmente estabelecida. A esse entendimento subjaz o princípio de que o legislador, com a atual metodologia, consagra uma cláusula geral, a cujo crivo pretende ver submetido o ilícito verificado, em ordem a aferir da sua gravidade e consequente suscetibilidade de comprometer, ou não, a subsistência do vínculo contratual. Ao optar por uma enumeração exemplificativa, mesmo os fundamentos resolutivos especificados têm de preencher a aludida cláusula geral, atingindo um nível de gravidade ou de consequências que torne inexigível ao senhorio, de um ponto de vista objetivo e dos princípios gerais do direito dos contratos, a manutenção daquele contrato[10].
Nesse âmbito, também o Supremo Tribunal de Justiça, a propósito da realização de obras pelo arrendatário no locado, decidiu em sentido idêntico, ao sustentar que, no regime do NRAU, o interessado na resolução do contrato tem o ónus de alegar e provar os factos em que se consubstancia a violação culposa do dever contratual do locatário – no caso, a manutenção da coisa locada no estado originário e que esse «incumprimento contratual tem objetivamente um relevo ou incidência na concreta constelação de interesses subjacente à relação contratual que legitima, segundo critérios de proporcionalidade e razoabilidade, a formulação de um juízo de não exigibilidade quanto à manutenção da relação locatícia.»[11].
Posição a que se adere, não apenas pela expressividade da doutrina e da jurisprudência que a propugnam, mas também, e essencialmente, pelo modelo legislativo utilizado na norma ao prever a resolução para os casos de incumprimento objetivamente grave e que, pela sua gravidade ou consequências, torne inexigível à outra parte a manutenção do arrendamento. Relevância que, para efeitos resolutivos, só pode ser ponderada casuisticamente, em face das circunstâncias concretas de cada contrato e de cada infração, juízo extensível aos exemplos-padrão especificados, a título meramente exemplificativo, excluindo um sistema fechado e taxativo de tipificação dos fundamentos de despejo[12]. Doutro modo, seria o intérprete confrontado com uma diversidade de valoração de um conjunto de comportamentos infratores de deveres contratuais, cuja densificação só pode ser alcançada pela cláusula geral, que abrange esses e outros comportamentos que, pela circunstância de não estarem tipificados, poderiam escapar a idêntica eticização. Em suma, «não é qualquer infração, ‘tout court’, de um ou mais deveres que legitima, ‘ipso facto’, a resolução do arrendamento por iniciativa do senhorio. Em primeiro lugar, a lei exige que o incumprimento imputável culposamente ao arrendatário assuma especial importância – a qual pode ser aferida não só em função da própria natureza da infração como do carácter reiterado da conduta irregular; isto logo em geral, porque, relativamente à hipótese previstas na alínea b) do artigo 1086.º, é o próprio texto da norma a referir “a violação grave e reiterada e grave”. Em segundo lugar, é essencial que, por via dessas condutas censuráveis, não seja exigível ao senhorio a manutenção do arrendamento.»[13].
A sentença recorrida considerou que a factualidade apurada alíneas V); A)’; B)’; D)’, G)’ e H) destacam «o desrespeito e oposição à decisão judicial proferida, que ordenou a restituição do logradouro do imóvel pertença do autor e que não faz parte do locado» (…) atitudes da ré (e do seu filho) intimidam o autor que se vê impedido de aceder ao logradouro que lhe pertence. Tais atitudes (aliás repetidas e prolongadas no tempo) de intimidação, insultos ao autor (e respetivo filho) e desrespeito pela decisão judicial, assumem uma gravidade tal que tornem inexigível ao autor a manutenção do arrendamento». Os factos apurados que assim foram são: «V) A ré instada a entregar o logradouro e a retirar o cadeado do portão, o veículo automóvel, o canídeo e demais pertences, recusou-se a efetuar a respetiva entrega; A)’ No entanto, posteriormente apareceu o canídeo e o barracão e a viatura permaneciam também no logradouro; B)’ O autor verificou que no logradouro permanecia uma pequena arrecadação com artigos da ré e do seu filho, situada atrás do barracão, e que ainda se encontravam couves plantadas na pequena porção de terra existente na parcela pavimentada do logradouro; D)’ De seguida, a ré, também ela, se arrogou da propriedade/posse do logradouro, e afirmou perante os presentes que o autor seria um porco; G)’ E permanecido plantadas couves na porção de terra existente no logradouro, e ainda o barracão, que o autor pretendia remover. H)’ Continuando o autor impedido de aceder ao logradouro, e de usar o que é seu, face à intimidação da ré e do seu filho».
Atentando nos factos destacados, logo se antevê que todos eles, à exceção de a ré ter chamado ao autor “porco”, perante os presentes, se referem a atos reveladores de desobediência à decisão judicial que a condenou a entregar ao autor o logradouro/quintal. Ora, essa atitude tem a sua sede própria de proteção na garantia penal da providência, conferida pelo artigo 375º do CPC, ao estatuir que incorre na pena do crime de desobediência qualificada todo aquele quer infrinja a providência cautelar decretada, sem prejuízo das medidas adequadas à sua execução coerciva.
No tocante às dificuldades que a ré e o filho têm causado no acesso ao logradouro, crê-se que elas têm a sua sede própria de tutela na ação executiva, sendo, aliás, alheias à relação locatícia estabelecida. Comprovado, por decisão transitada em julgado que o logradouro não integra o contrato de arrendamento outorgado com a ré, resta ao autor a execução dessa decisão, a qual definiu a situação em termos definitivos, sendo estranha à questão agora sob dilucidação.
Quanto às expressões injuriosas e outras condutas eventualmente criminalmente puníveis, também os direitos dos visados estão tutelados no domínio da ação penal, já em curso conforme se encontra apurado. Tudo a significar que todas essas condutas poderão ser (serão) sindicadas na sua legalidade na sua esfera específica, pois, nesta sede de relacionamento contratual, o quadro factual provado parece integrar, como defende a recorrente, o seu direito à indignação. Sem embargo de se reconhecer que a recorrente se espraiou numa linguagem de excessivo conteúdo semântico e que essa “pulsão coloquial” merece censura, tudo parece confinado ao plano do “desabafo”, da exteriorização dos seus sentimentos. O seu enquadramento não pode distanciar-se da contextualização das afirmações produzidas, todas elas proferidas num clima de forte tensão dialógica, num clima de conturbação que parece redundar da recente aquisição do prédio pelo autor e da consequente rejeição de atitudes da arrendatária, até então consentidas pelo anterior senhorio. Crê-se, por isso, que as suas atitudes e afirmações foram expressas num exercício do seu direito de indignação, verbalizando os anseios e os medos e criando um desassossego e uma inquietude que turbam a serenidade dos envolvidos.
Por outro lado, só numa visão ampla do conteúdo normativo violado regras de sossego e de boa vizinhança os factos relatados poderiam afetar o contrato de arrendamento. As atitudes descritas foram dirigidas pela ré ao senhorio, que não habita naquele local, e não molestaram minimamente a vizinhança, que passou incólume ao “desassossego” criado ao senhorio (nada vem provado nesse sentido). Ainda assim, não tem densidade bastante para fundar a resolução do contrato de arrendamento, dada a sua escassa importância no domínio da relação locatíca stricto sensu, a fazer ajuizar que esses atos, pela sua diminuta relevância em termos de afetação do interesse contratual do senhorio, não é suscetível de pôr em causa a manutenção do vínculo arrendatício.
O contrato de arrendamento data de 1972 e nele sucedeu a ré, transmitido por óbito de seu marido. Logo, num contrato de arrendamento com mais de 40 anos de duração, compreendem-se as expetativas da ré quanto à manutenção do stato quo estabelecido, apesar de não haver segurança de que o contrato de arrendamento se prolongaria até ao final da vida da autora, porque a evolução legislativa desde há cerca de dez anos é no sentido de “liberalizar” e revitalizar o mercado do arrendamento, incluindo o habitacional, fazendo desaparecer do ordenamento jurídico nacional, progressivamente, a legislação vinculística que vigorou neste domínio ao longo de décadas[14]. De todo o modo, os arrendatários pressentem e aspiram a alguma estabilidade contratual que, por vezes, promove atitudes menos cuidadas e indesejáveis, que se lamentam e que se esperam irrepetíveis. Numa situação como a descrita, admite-se que o nível de gravidade poder-se-ia atingir pela reiteração destas e doutras condutas similares, a qual poderia conduzir a um grau de gravidade que tornasse insustentável a relação locatícia[15]. Só que a situação em destaque não comtempla a reiteração que a sentença recorrida lhe aponta. Os factos narrados passaram-se todos no mesmo hiato temporal e sob idêntica contextualização e, não obstante a eliminação da al. a) do n.º 2 do citado artigo 1083º dos adjetivos “reiterada e grave”, ínsitos à norma antes das alterações da lei 31/20012, a eficácia resolutiva de tais comportamentos, à luz da cláusula geral do n.º 1, têm de traduzir «um incumprimento que, pela sua gravidade ou consequências, torne inexigível à outra parte a manutenção do arrendamento». Condutas que deverão, em regra, ter um caráter reiterado, que conduzirá a um nível de gravidade suficiente para sustentar a resolução do contrato, não bastando um ou outro episódio isolado, embora admitindo que um incumprimento pontual possa atingir, objetivamente, tal gravidade que justifique a cessação da relação locatícia, hipótese que agora tem maior apoio normativo, face à supressão da anterior adjectivação[16].
Ante o expendido, considera-se que as condutas atribuídas à arrendatária, tuteláveis em sede própria e estranhas ao objeto do contrato de arrendamento sob discussão, não assumem, objetivamente, gravidade que torne inexigível ao senhorio a sua manutenção, o que transporta a procedência do recurso e a revogação da sentença recorrida, com a consequente absolvição da ré do pedido.

Atento o decaimento no recurso, são as respetivas custas e as da ação suportadas pelo autor, continuando as custas da reconvenção a cargo da ré, sem prejuízo do apoio judiciário de que beneficia (artigo 527º, 1, do CPC).

V. Dispositivo
Na defluência do exposto, acordam os Juízes do Tribunal da Relação do Porto em dar procedência à apelação e, por conseguinte, em revogar a decisão recorrida e absolver a ré do pedido.
O autor suporta as custas da ação e da apelação, mantendo-se as custas da reconvenção a cargo da ré, sem prejuízo do apoio judiciário concedido.
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Porto, 8 de novembro de 2016.
Maria Cecília Agante
José Carvalho
Rodrigues Pires
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[1] Aprovado pela lei 41/2013, de 26 de junho, doravante designado “CPC”.
[2] ANTÓNIO SANTOS ABRANTES GERALDES, Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, 3.ª ed., pág. 137.
[3] In www.dgsi.pt: Acs de 0 4-03-2015, processo nº 2180/09.0TTLSB.L1.S2; 01-10-2015, processo nº 824/11.3TTLRS.L1.S1; 21-04-2016, processo nº 449/10.0 TTVFR.P2.S1.
[4] In www.dgsi.pt: Acs de 07-07-2016, processo nº 220/13.8TTBCL.G1.S1; 14-07-2016, processo nº 111/12.0TBAVV.G1.S1.
[5] ABRANTES GERALDES, Temas da Reforma do Processo Civil, III Volume, 4.ª ed. revista e atualizada, pág. 152.
[6] LOPES DO REGO, in Revista Julgar, nº 16, Jan.- Abr. 2012, Os princípios orientadores da reforma do processo civil em curso, pág. 109.
[7] In www.dgsi.pt: Acs. da R. Porto de 10-03-205, processo n.º 560/14.9T8AMT.P1; R. Lisboa de 08-10-205, processo n.º 8069-14.4T8LSB.L1-8.
[8] MENEZES LEITÃO, Arrendamento Urbano, Almedina, 2014, 3.ª ed., pág. 119; MARIA OLINDA GARCIA, Arrendamento Urbano Anotado, Regime Substantivos e Processual, Coimbra Editora, 3.ª ed., pág. 34; FERNANDO BAPTISTA DE OLIVEIRA, A resolução do contrato no Novo Regime do Arrendamento Urbano, pá 27.
[9] PINTO FURTADO, Manual de Arrendamento Urbano, Volume 2, 4ª ed., págs. 1001 e 1002.
[10] In www.dgsi.pt: Acs. RC de 19-02-2012, processo n.º 4343/10.7 TJCBR.C1; 01-03-2016, processo n.º 2523/12.0TJCBR.C2; RL de 14-02-2013, processo n.º 513/11.9TJLSB.L1-6; 12-12-2013, processo n.º 3301/07.3TBFUN.L1-7; 05-03-2015, processo n.º 1948-12.5YXLSB.L1-2; 24-09-2015,processo n.º 16532-10.0T2SNT.L1-6.
[11] In www.dgsi.pt: Ac. de 13-02-2014, processo n.º 43/09.9TCFUN.L1.S1.
[12] MARIA OLINDA GARCIA, A nova disciplina do arrendamento urbano, Coimbra Editora, 2.ª ed., pág. 25.
[13] ANTÓNIO PINTO MONTEIRO e PAULO VIDEIRA HENRIQUES, A cessação do contrato no RNAU, in “O Direito “, 136 (2004), pág. 292.
[14] In www.dgsi.pt: Ac. do STJ de 18-02-2014, processo n.º 836/08.4TVPRT.P1.S1.
[15] MARIA OLINDA GARCIA, Arrendamento Urbano Anotado, 3.ª ed. cit., pág. 35.
[16] MARIA OLINDA GARCIA, Arrendamento Urbano Anotado, 3.ª ed. cit., pág. 35.