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EMPREITADA
DIREITO DE RETENÇÃO
Sumário
I. É de empreitada o contrato pelo qual uma das partes se obriga à reparação de um veículo, mediante um preço. II. Ao pretender-se a reparação de um veículo, para ficar apto ao seu uso ordinário, admite-se que possam ser reparadas todas as avarias que impedem tal uso, com o custo inerente a suportar pelo dono. III. Não há responsabilidade civil pela privação do uso de veículo, quando a sua retenção é legítima. (O.G.)
Texto Integral
Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa:
I. RELATÓRIO Maria instaurou, em 21 de Maio de 2004, na 8.ª Vara Cível da Comarca de Lisboa, contra C, S.A., acção declarativa, sob a forma de processo ordinário, pedindo, designadamente, que a R. fosse condenada:
a) A reconhecer a A. como dona do veículo automóvel Volkswagen Golf, e entregar-lhe imediatamente esse veículo, devidamente reparado e em condições de funcionamento;
b) A reconhecer que não é devido o valor das rubricas de mão-de-obra na factura LOF 8273 e só ser devida pela A. a quantia de € 1 196,72.
c) A reconhecer que não são devidos os custos da segunda reparação do veículo, a que se refere a factura LOF 8274.
d) A reconhecer que não lhe assiste qualquer direito de retenção sobre o veículo da A.
e) A pagar à A. a quantia de € 40,00/dia, desde 11 de Julho de 2003 até à data da entrega à A. do referido veículo, a título de danos patrimoniais pela privação do seu uso, estando já vencida a quantia de € 12 520,00.
Para tanto, alegou, em síntese, ser proprietária do referido veículo, recorrendo sempre aos concessionários da marca, nomeadamente à R., para fazer a sua assistência. Sofrendo o veículo de uma avaria, entregou-o à R., para reparação, que a orçamentou no valor de € 3 000,00 e indicou estar concluída até ao final da segunda semana de Julho de 2003, o que mereceu a concordância da A. A R. não realizou a reparação nesse período e veio a informá-la de que o veículo fora submetido a uma segunda reparação, por o motor haver gripado, exigindo então o pagamento de 50 % da primeira reparação e o pagamento integral da segunda reparação, facturando trabalhos e peças que não eram necessários e recusando entregar-lhe o veículo. Para além da realização defeituosa da prestação, a R. incorreu ainda em mora, causando-lhe danos, como o da privação do uso do veículo.
Contestou a R., alegando que a A. nunca a informou da natureza da avaria, que descobriu depois ser do motor, sendo a mesma imputável à A., a qual se recusou a pagar os serviços prestados. Concluiu assim pela improcedência da acção.
Na sequência da prestação de caução, a R. entregou à A. o veículo.
Realizada a audiência de discussão e julgamento, foi proferida sentença, nos termos da qual se reconheceu à Autora ser proprietária do referido veículo automóvel e de que não deve as rubricas da factura LOF 8273: sete horas a remover e a instalar o bloco do motor e seis horas a montar e desmontar o bloco do motor, devendo dessa factura a quantia de € 1 196,72, e, quanto ao mais, a acção julgada improcedente.
Inconformada, apelou a Autora, que no termo das alegações apresentou, em síntese, as seguintes conclusões: a) A obrigação que a R. assumiu foi uma obrigação de resultado. b) Não se tratava de substituir ou reparar certas peças, mas que a R. realizasse as operações necessárias para que o veículo pudesse de novo funcionar. c) Era a R. quem estava em melhor posição de ajuizar sobre os meios necessários para alcançar o referido resultado. d) A R. foi incapaz de realizar um diagnóstico correcto quanto à reparação do veículo, identificando tardiamente a “gripagem” do motor. e) A R., não tendo cumprido as obrigações a que se vinculara, não tem o direito de reclamar da A. senão o montante que se dispôs a pagar, a quantia de € 1 196,72. f) Deve a R. indemnizar os prejuízos que resultaram da tardia entrega do veículo, os quais se reportam à privação do uso do veículo. g) A decisão recorrida violou nomeadamente as disposições dos artigos 1207.º e seguintes do CC. Pretende, com o provimento do recurso, a revogação da decisão recorrida e a substituição por outra que julgue a acção procedente quanto aos pedidos das alíneas a), b), c), d) e e) (este parcialmente) da petição inicial.
Contra-alegou a R., no sentido de ser mantida a decisão recorrida.
Corridos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
Neste recurso, discute-se essencialmente o incumprimento contratual e a obrigação de indemnizar.
II. FUNDAMENTAÇÃO
2.1. Foram dados como provados, designadamente, os seguintes factos: 1. A A. comprou, em 18 de Fevereiro de 2000, a Ts, S.A., concessionária da Volkswagen (VW), em novo, o veículo automóvel ligeiro de passageiros, da marca Volkswagen, modelo Golf 1J, a gasolina. 2. A aquisição do direito de propriedade sobre tal veículo está registada definitivamente a favor da A., na Conservatória do Registo de Automóveis de Lisboa, desde 6 de Junho de 2000. 3. A R. exerce, entre outras, a actividade de prestação de assistência e reparação de veículos automóveis, como concessionária da marca Volkswagen, estando integrada na chamada “Organização do Serviço Volkswagen”. 4. Os métodos e padrões de actuação da R. estão definidos no livro VW – Viaturas Ligeiras – Plano de Assistência, entregue à A. no momento em que adquiriu o veículo e em que, designadamente, é referido que as “oficinas estão equipadas com aparelhos e ferramentas modernos, especialmente desenvolvidos para o seu veículo, dispõem de pessoal técnico altamente treinado (…) para determinar quais os trabalhos que precisam de ser executados, todos os serviços são precedidos dum diagnóstico, depois do que lhe será dada informação sobre os trabalhos necessários, respectivo preço e prazo da execução (…) os concessionários Volkswagen estão altamente preparados para assistir o seu veículo, garantindo um trabalho de qualidade (…)”. 5. A A. efectuou na oficina da R., em Lisboa, a revisão recomendada para os 45 000 Km, em 25 de Outubro de 2001, quando o veículo apresentava 45 872 Km, os 60 000 Km, em 18 de Junho de 2002, quando apresentava 62 424 Km, e os 75 000 Km, em 28 de Janeiro de 2003, quando apresentava 77 710 Km. 6. No dia 9 de Junho de 2003, no acesso sul à Ponte 25 de Abril, o veículo parou e não mais conseguiu retomar a marcha por o motor não funcionar. 7. O veículo entrou na referida oficina transportado por um reboque. 8. A R. inspeccionou imediatamente o veículo, para identificar e fazer o diagnóstico dos trabalhos necessários à reparação e informou a A. de que a avaria tinha sido provocada pela fractura do parafuso de aperto da poli da árvore de cames, que liga a correia de transmissão ao motor. 9. A R. comprometeu-se, com o acordo da A., a realizar e a enviar um relatório à fábrica VW na Alemanha, para que a situação fosse avaliada na perspectiva de um eventual defeito de fabrico do parafuso. 10. A 11 de Junho, a R. elaborou o relatório fotocopiado a fls. 46, do qual consta que a avaria consistia “parafuso aperto poli árvore de cames partido, dando origem a empenar válvulas” e que “necessita desmontar cabeça do motor e substituir válvulas; carro fora de garantia; agradeço saber qual a comparticipação visto ser caso raro” 11. Em 16 de Junho, a R. informou-a de que a VW na Alemanha havia proposto assumir os custos da reparação necessária, na proporção de 50 %. 12. A A. pediu à R. que lhe apresentasse um relatório da reparação, com a discriminação dos trabalhos necessários e o seu preço. 13. A R. recusou e informou a A. de que o orçamento só seria apresentado após a abertura do motor, o que só seria possível em 23 de Junho. 14. A 29 de Junho de 2003, a R. informou telefonicamente a A. de que a reparação orçaria em cerca de € 3 000,00, cabendo à A. o pagamento de 50 % desse valor e que o veículo seria reparado até ao final da segunda semana de Julho. 15. A A. concordou com a reparação, nos termos indicados. 16. A R. não reparou o veículo até ao final da segunda semana de Julho de 2003. 17. Após se ter efectuado a reparação, quanto à avaria da quebra do parafuso de aperto da poli da árvore de cames, a R. pôs o motor a trabalhar e a luz do óleo não se apagava. 18. A R. procedeu à retirada do cárter e verificou que ali existia óleo; verificou, então, a bomba de óleo, que eleva o óleo do cárter e lubrifica o motor, e concluiu que estava avariada, impedindo a lubrificação do motor e dando causa a que sofresse um sobreaquecimento, por falta de lubrificação. 19. Isso levou à respectiva “gripagem” e daí, com o esforço exigido ao motor, à quebra do mencionado parafuso e à empenagem completa dos êmbolos. 20. A 18 de Agosto, a R. pediu à A que se deslocasse às suas instalações, tendo-a então informado de que o carro tinha tido uma primeira reparação, quanto à avaria diagnosticada em 9 de Junho e de que tinha sido necessário proceder a uma segunda reparação, uma vez que o motor havia “gripado” por falta de óleo, quando, concluída a primeira reparação, foi posto em funcionamento para colocar o veículo em marcha. 21. E exigiu-lhe o pagamento de 50 % da primeira reparação e a totalidade do custo da segunda. 22. A factura LOF 8273, de 24 de Setembro de 2003, no valor de € 1 738,17, com IVA (fls. 48), respeita à reparação do veículo, quanto à avaria da quebra do parafuso de aperto da poli da árvore de cames. 23. A factura LOF 8274, de 24 de Setembro de 2003, no valor de € 2 908,92, com IVA (fls. 51), respeita à substituição do motor. 24. A R. recusa-se a entregar o veículo à A., por falta de pagamento dessas facturas. 25. A A. é docente no ISCTE, em Lisboa, tendo a sua residência em Évora. 26. Desloca-se ao ISCTE, pelo menos, três vezes por semana, que podem ser ou não seguidas, para o que necessita e utiliza transporte próprio. 27. Está a desenvolver um trabalho de investigação, para a preparação da dissertação de doutoramento em Sociologia, que a obriga a várias deslocações por todo o território nacional continental, para entrevistas. 28. Durante mais de um ano, a A. utilizou um veículo usado, que lhe foi cedido precariamente por um tio. 29. O aluguer de um veículo, de características idênticas ao da A., não custa menos de € 40,00. 2.2. Delimitada a matéria de facto relevante, que não vem impugnada, importa agora conhecer do objecto do recurso, circunscrito pelas respectivas conclusões, e cujas questões jurídicas emergentes se prendem com o incumprimento contratual e a obrigação de indemnizar por efeito do mesmo.
Na realidade, entre a apelante e a apelada foi celebrado um contrato de empreitada, nos termos do qual a última se obrigou a proceder à reparação do veículo avariado, mediante o pagamento de um preço a suportar pela primeira. Este acordo de vontades contém, pois, os elementos que caracterizam o referido contrato, que vem definido no art.º 1207.º do Código Civil (CC), sendo certo que a expressão realização da obra abrange igualmente a reparação da coisa (PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA, Código Civil Anotado, II, 2.ª edição, pág. 703).
Tem sido, também, nesse sentido que a jurisprudência vem qualificando tal contrato (acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 10 de Outubro de 2002 e de 23 de Novembro de 2004, acessíveis em www.dgsi.pt, 02B2601 e 04A2728), assim como a doutrina (ROMANO MARTINEZ, Direito das Obrigações – Contratos, 2.ª edição, pág. 392).
Tal qualificação, de resto, não suscita controvérsia no âmbito dos presentes autos.
Por efeito do referido contrato, a apelada ficou vinculada à realização de uma obra, nomeadamente à reparação do veículo automóvel, cujo motor deixara de funcionar. Assim, a execução da reparação consistia em pôr o veículo apto para o seu uso ordinário. Tratou-se, pois, de uma obrigação de resultado (ANTUNES VARELA, Das Obrigações em Geral, Vol. I, 10.ª edição, pág. 86).
A apelada, tendo procedido à reparação do veículo, realizou a prestação a que estava adstrita por efeito do referido contrato de empreitada, cumprindo-o.
Por sua vez, em face do mesmo contrato, a apelante estava obrigada a pagar o preço da reparação do veículo, cuja determinação dependia da aplicação do disposto no art.º 883.º do CC, por remissão do n.º 1 do art.º 1211.º do mesmo Código.
O preço da reparação, tanto inclui os gastos efectuados com a avaria inicialmente diagnosticada como os da outra avaria mais tarde descoberta, sendo certo que esta última, ao contrário do alegado pela apelante e como resulta da matéria de facto provada, já existia antes da reparação do veículo.
O contrato de empreitada, formalizado verbalmente, não fixava um preço, tendo o valor indicado (50 % de cerca de € 3 000,00) uma finalidade meramente indicativa.
De resto, esse valor orçamentado fora baseado no diagnóstico da avaria inicial, que se revelou incompleto face à avaria superveniente.
A circunstância desta última avaria não ter sido diagnosticada pela apelada, logo de início, acaba por, no contexto dos autos, não ter qualquer relevância jurídica, na medida em que não foi alegado que tivesse prejudicado a outra parte, designadamente na formação do mencionado contrato de empreitada. Na verdade, mesmo que tivesse sabido da extensão real da avaria do veículo, nada nos autos permite afirmar que a apelante não tivesse celebrado o contrato de empreitada, nos termos em que o fez.
Pretendendo-se a reparação do veículo, de modo a pô-lo apto para o seu uso ordinário, sem submissão a qualquer condição, de preço ou outra, está a admitir-se que o responsável repare todas as avarias que impedem o seu normal funcionamento, com o inerente custo em termos de despesa e trabalho.
É, neste âmbito, que ganha especial relevância o princípio geral estruturante do direito civil segundo o qual, no cumprimento da obrigação, assim como no exercício do direito correspondente, devem as partes proceder de boa fé (art.º 762.º, n.º 2, do CC).
Nestes termos, vindo a descobrir-se que, no cumprimento da obrigação que impende sobre a encarregada da reparação do veículo, para além da avaria diagnosticada, existia outra avaria que obstava também ao seu funcionamento normal, e, nessa medida, sendo igualmente objecto de reparação, não pode a dona do veículo eximir-se ao pagamento da reparação da avaria superveniente, sob pena de se cometer ofensa grave ao princípio da boa fé. Sendo certo assistir-lhe o direito de ver reparada essa avaria, em cumprimento da obrigação de resultado da parte contrária, também, por efeito da boa fé, não pode deixar de suportar o custo inerente. De outro modo, verificar-se-ia também um injusto enriquecimento à custa alheia.
De resto, na acção, a apelante não impugnou sequer a despesa e o trabalho com a reparação dessa avaria, o que afasta qualquer aproveitamento da outra parte, para além de ter pedido ainda a entrega do veículo, devidamente reparado e em condições de funcionamento.
É certo que, em face da avaria superveniente, a apelada, também num procedimento de boa fé, tinha o dever de informar de imediato a outra parte dessa circunstância e das suas consequências, nomeadamente em termos orçamentais.
Não se provou, porém, que a apelada tivesse cumprido tal dever, embora o contrário também não ficasse demonstrado.
De qualquer modo, não tendo sido retiradas quaisquer consequências da eventual violação desse dever de informação, a questão carece de interesse por não ser determinante na decisão do mérito da causa, como aliás se aludiu na sentença recorrida.
Neste contexto, cumprida a sua obrigação, podia a apelada, em conformidade com o disposto no n.º 1 do art.º 883.º do CC, fixar o preço da reparação do veículo, englobando o seu custo integral, designadamente o da factura correspondente ao valor de € 2 908,92.
Recusando a apelante cumprir a sua obrigação de pagamento do preço devido pela reparação do veículo, gozava a apelada do direito de retenção, nos termos do art.º 754.º do CC, como se entendeu na sentença recorrida, sem impugnação da apelante.
Sem o pagamento do preço devido, à apelada era lícito recusar a entrega do veículo automóvel.
Por isso, sendo lícita a retenção do veículo, não há responsabilidade civil da apelada pelos prejuízos decorrentes daquele facto, nomeadamente quanto à privação do seu uso.
2.3. Perante o que antecede, pode retirar-se de mais relevante a seguinte síntese:
a) É de empreitada o contrato pelo qual uma das partes se obriga à reparação de um veículo, mediante um preço.
b) Ao pretender-se a reparação de um veículo, para ficar apto ao seu uso ordinário, admite-se que possam ser reparadas todas as avarias que impedem tal uso, com o custo inerente a suportar pelo dono.
c) Não há responsabilidade civil pela privação do uso de veículo, quando a sua retenção é legítima.
Nestes termos, improcede a apelação, sendo caso para se confirmar a sentença recorrida, que, para além de ter sido exaustivamente fundamentada, não violou qualquer disposição legal, designadamente as especificadas pela recorrente.
2.4. A apelante, ficando vencida por decaimento, é responsável pelo pagamento das custas, em conformidade com a regra da causalidade, consagrada no art.º 446.º, n.º s 1 e 2, do Código de Processo Civil.
III. DECISÃO Pelo exposto, decide-se: 1) Negar provimento ao recurso, confirmando a sentença recorrida. 2) Condenar a apelante no pagamento das custas.
Lisboa, 22 de Fevereiro de 2007 (Olindo dos Santos Geraldes) (Ana Luísa de Passos G.) (Fátima Galante)