PROVA PERICIAL
ASSESSOR TÉCNICO
Sumário

I - Ordenada a realização de perícia em processo crime, não se verificando nenhuma das hipóteses do n.º 3, do art. 154.º, do CPP, o arguido tem direito a indicar consultor técnico da sua confiança, para assistir à mesma (art. 155.º).
II - O consultor técnico tem funções de fiscalização e de assessor da parte, que exerce assistindo à realização da perícia, com a possibilidade de intervir (art. 155.º, n.º 2) e de ser ouvido em audiência (art. 350.º), mas não participando na elaboração do relatório pericial (art. 157.º), razão por que a sua intervenção não belisca a independência técnico-científica do perito.
III - Ao consultor técnico não é aplicável o regime de impedimentos, recusas e escusas, previsto para os peritos (arts. 153.º, nºs 1 e 2, e 47.º), nem está obrigado a compromisso ou juramento (art. 91.º, a contrario), não podendo a sua intervenção ser vetada pela entidade incumbida da perícia, já que a lei não coloca qualquer restrição à respectiva escolha, antes consagrando a figura do consultor técnico como sendo da estrita confiança pessoal de quem o indica.

Texto Integral

Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação de Lisboa:

Iº 1. No processo nº3/01.8TABBR-A do Tribunal Judicial do Bombarral, em que são arguidos Alfredo Rodrigues da Cruz, José Francisco Elias Rodrigues e Cruz & Companhia, SA, por despacho de 19Maio04, foi determinada a realização de perícia ao vinho apreendido – análises isotópicas através de ressonância magnética, a efectuar pelo Laboratório de Química Analítica e de Síntese (LAQAS), do Instituto Nacional de Engenharia, Tecnologia e Inovação, I.P.
Na sequência de requerimento dos arguidos, por despacho de 24Nov.05, foi admitida, nos termos do art.155, nº1, do CPP, a intervenção como consultores técnicos do Sr. Engº Osvaldo Filipe Amado, para assistir à fase inicial da perícia, destinada a determinar os resultados da análise físico-química dos produtos e do Prof. Gerard Martin, para assistir à fase subsequente da perícia, destinada a interpretar os resultados.
Por ofício de 16Jan.06, o Instituto Nacional de Engenharia, Tecnologia e Inovação, I.P. (INETI) - Laboratório de Química Analítica e de Síntese (LAQAS), comunicou que o Instituto Nacional da Vinha e do Vinho (IVV), proprietário do banco de dados de vinhos, apresentava reservas à designação do Prof. Gerard Martin como perito para assistir à fase de interpretação de resultados, devido à existência de um inquérito a nível do OLAF da Comissão Europeia por declarações proferidas por aquele, propondo a nomeação pelo tribunal de perito independente, sugerindo para essas funções o Prof. Claude Guillou.
Ouvidos, os arguidos Alfredo Cruz e Cruz e Companhia, S.A., opuseram-se, tendo sido proferido, em 8Maio06, o seguinte despacho:

“....
A fls.3475 vêm os arguidos requerer que seja admitido que os consultores técnicos por si indicados possam assistir à realização da perícia, nos termos do n°1 do art.155° do CPP, indicando o Sr. Engº. Osvaldo Filipe Amado para assistir à fase inicial da perícia, destinada a determinar os resultados da análise fisico-química dos produtos e o Prof. Gerard Martin, para assistir à fase subsequente da perícia, destinada a interpretar os resultados.
De acordo com os elementos vertidos nos autos, tendo em conta o seu volume, foi proferido o despacho de fls.3479, permitindo que os senhores consultores técnicos indicados assistissem cada um deles à fase indicada, no condicionalismo constante do nº4 do art.155, do CPP, ou seja, desde que a designação do consultor técnico e o desempenho da sua função não perturbe o andamento normal do processo nem atrasem a realização da perícia.
Dado conhecimento ao INETI, veio este juntar parecer do IVV e informação da Comissão Europeia, conforme documentos de fls.3507 a 3513, nos quais consta que a manutenção do senhor perito Prof. Gerard Martin na fase da interpretação de resultados pode pôr em perigo a integridade do Banco de Dados Isotópicos Europeu, por acesso do referido perito a dados dos quais o IVV é a nível nacional o detentor exclusivo, como definido comunitariamente, que se poderá inutilizar se tomado aberto ao conhecimento que não seja estritamente controlado, e para cujo acesso são impostos rígidos condicionalismos pela regulamentação comunitária ao acesso e à utilização do Banco de Dados, de forma a evitar a sua utilização para fins diferentes dos que estiveram na sua génese, designadamente, na prática de fraudes contra a genuinidade do produto.
Ficou assim o processo dotado de elementos até antes inexistentes.
Foram os arguidos notificados do teor dos documentos apresentados (fls.3507 e 3513) que se pronunciaram a fls.3518 a 3523, reiterando a indicação do Prof. Gerard Martin.
Pedidos esclarecimentos ao INETI e ao IVV, vieram estes reafirmar o conteúdo já anteriormente trazido aos autos, referindo que, conforme declarações proferidas pelo Prof. Gerard Martin em sede de audiência de julgamento, este, à data dos factos, desenvolvia actividade profissional como consultor da empresa "Eurofins", empresa privada que opera na área comercial das análises isotrópicas de alimentos e cedeu para fins comerciais a informação que colheu do Banco de Dados Isotópicos Europeu.
Ouvido o M.P., pelo mesmo foi promovido que sejam notificados os arguidos para indicar novo perito, atenta a sua ligação à empresa privada Eurofins, que coloca em perigo o Banco de Dados Isotópicos Europeu (fls. 3542).
Em face dos elementos dos autos, entendeu o tribunal estar configurada uma situação de perigo relativo à integridade do Banco de Dados Isotópicos Europeu, o que põe em causa a sua imparcialidade sendo, em consequência, proferido o despacho de fls.3543.
Tendo em consideração os elementos novos constantes dos autos e que davam conta da falta de condições do senhor perito nomeado, indispensáveis para a realização da perícia, considerando existir risco de ser considerada suspeita, por existir motivo sério e grave adequado a gerar desconfiança sobre a imparcialidade do perito em causa foram os arguidos notificados para substituírem tal perito (art°s.43 n°1, 47 e 153 nºs2 e 3 CPP).
....”.

2. Deste despacho interpôs recurso a arguida, Cruz & Companhia, S.A., motivando-o com as seguintes conclusões:
2.1 Quer no que se refere à escolha e nomeação, quer no que respeita à função, o estatuto do consultor técnico é diverso do perito.
2.2 A escolha e nomeação do consultor técnico assenta na relação de confiança estabelecida com o interveniente processual, não estando sujeitas à aceitação do Tribunal ou de outros intervenientes processuais, mormente da entidade pericial nomeada.
2.3 O direito de escolher e nomear consultor técnico pela recorrida representa uma emanação do princípio do contraditório e do direito de escolher defensor, constitucionalmente consagrados.
2.4 Dadas as características da análise isotópica, o princípio do contraditório só será respeitado se ao consultor técnico for garantido acesso aos valores atendíveis coligidos no Banco de Dados Isotópicos Europeu, no desempenho das funções de assistência da perícia.
2.5 Do conhecimento de tais valores não resulta qualquer perigo para a integridade daquele Banco de Dados nem, consequentemente, qualquer prejuízo para a imparcialidade do consultor técnico.
2.5 Ao decidir em sentido contrário, o Tribunal recorrido ofendeu o disposto pelos arts.155°, nºs.1 e 2, 43, 1, 47 e 153, 2 e 3, do C.P.Penal, bem como os nºs.2 e 5 do art. 32°, da CRP, pelo que
Deverá ser dado provimento ao presente recurso, revogando-se os despachos impugnados, ordenando-se a admissão do consultor técnico nomeado para assistir à perícia, e anulando-se a que porventura se tenha realizado sem aquele......”.

3. Admitido o recurso, a subir imediatamente, em separado e com efeito devolutivo, o Ministério Público respondeu, concluindo:
3.1 As reservas manifestadas relativamente à pessoa do consultor técnico indicado pelo ora recorrente são sérias e dotadas de implicações que não se esgotam no âmbito dos autos, conforme resulta das exposições feitas quer pelo I.V.V., e pelo I.N.E.T.I./L.A.Q.A.S.;
3.2 Tais reservas são incompatíveis com a função que o ora recorrente pretende que seja exercida pelo Prof. Gerard Martin - a de consultor técnico numa perícia onde ficará acessível aos participantes a informação contida no Banco de Dados Isotópicos Europeu;
3.3 Conforme resulta de fls.3508, o Prof. Gerard Martin não é a única pessoa dotada de conhecimentos e aptidões para a função de consultor técnico.
3.4 Já, ao invés, é a única pessoa relativamente à qual, até agora, as entidades oficiais colocaram reservas.
3.5 Assim, face aos interesses em conflito e considerando superior o interesse na manutenção da integridade do Banco de Dados Isotópicos Europeu, bem andou a Mma. Juiz quando optou por convidar o ora recorrente a indicar outro consultor técnico, em detrimento do Prof. Gerard Martin, sendo certo que com isso e face à existência de outras pessoas dotadas dos conhecimentos adequados ao desempenho da função não se mostra afectado de forma significativa o direito de defesa legalmente reconhecido e muito menos o princípio do contraditório, o qual tem sido amplamente observado ao longo dos autos.
2.6 Como tal, deve o despacho proferido ser mantido nos seus exactos termos, por legal e demonstrativo de uma adequada e justa ponderação de interesses, assim se fazendo a tão desejada e costumada JUSTIÇA.

4. Neste Tribunal, a Ex.ma Srª. Procuradora Geral Adjunta, aderiu à resposta do Ministério Público em 1ª instância.
5. Colhidos os vistos legais, procedeu-se a conferência.
6. O objecto do recurso, tal como se mostra delimitado pelas respectivas conclusões, reconduz-se à questão de saber se a indicação de consultor técnico, pelo arguido, para assistir a perícia ordenada em processo penal, pode ser vetada pela entidade incumbida da sua realização, ou se tal nomeação depende da livre escolha do interveniente processual que o indica.
* * *
IIº 1. Segundo o Prof. Manuel da Andrade (1), a perícia consiste num meio de prova que se traduz na “percepção, por meio de pessoas idóneas para tal efeito designadas, de quaisquer factos presentes, quando não possa ser directa e exclusivamente realizada pelo juiz, por necessitar de conhecimentos científicos ou técnicos especiais, ou por motivos de decorro ou de respeito pela sensibilidade (legítima susceptibilidade) das pessoas em quem se verificam tais factos; ou na apreciação de quaisquer factos (na determinação das ilações que deles se possam tirar acerca doutros factos), caso dependa de conhecimentos daquela ordem, isto é, de regras de experiência que não fazem parte da cultura geral ou experiência comum que pode e deve presumir-se no juiz, como na generalidade das pessoas instruídas e experimentadas”.
Como meio de prova organizado e produzido no próprio processo em que se utiliza, encontra-se expressamente previsto na legislação processual, ou seja, no Código de Processo Civil (art.568 e segs.), no Código de Processo do Trabalho (art.100 e segs.) e no Código de Processo Penal (art.151 e segs.).
No caso, tendo sido determinada, em processo crime, a realização de perícia ao vinho apreendido, os arguidos, nos termos do art.155, nº1, do CPP, indicaram dois consultores técnicos, para exercer essas funções em fases diferentes da perícia ordenada, um deles o Prof. Gerard Martin, nome que suscitou reservas à entidade incumbida de proceder à perícia, reservas essas que mereceram acolhimento no despacho recorrido por essa intervenção configurar “...uma situação de perigo relativo à integridade do Banco de Dados Isotópicos Europeu, o que põe em causa a sua imparcialidade... falta de condições do senhor perito nomeado, indispensáveis para a realização da perícia, considerando existir risco de ser considerada suspeita, por existir motivo sério e grave adequado a gerar desconfiança sobre a imparcialidade do perito em causa...”.
O Código de Processo Penal refere-se à figura do consultor técnico, nos seus arts.155,156, nº1,157, nº1, 317, 318, 331 e 350.
O consultor técnico não presta compromisso de honra (art.156, nº1) e não está sujeito ao regime dos impedimentos, recusas e escusas, só previsto para o perito (art.153).
A função do consultor técnico é de fiscalização, que exerce assistindo à realização da perícia, com a possibilidade de intervir nos termos do art.155, nº2 e de ser ouvido em audiência (art.350).
O consultor técnico não participa na elaboração do relatório pericial (art.157), isto é, a independência técnico-científica do perito não é beliscada, só podendo o consultor técnico intervir na fase de realização do exame, sugerindo diligências, formulando observações e objecções (nº2, do art.155), dessa forma fazendo com que sejam trazidos ao processo mais dados para realização do relatório e permitindo a fiscalização por parte dos intervenientes processuais em relação à recolha dos dados que fundamentarão o mesmo relatório (por isso, tais sugestões, observações e objecções, ficarão a constar do auto- art.155, nº2).
Assim, é manifesto o erro do despacho recorrido, ao equiparar o consultor técnico ao perito e ao invocar em relação àquele o regime de impedimentos, recusas e escusas, só previsto para estes (arts.153, nºs1 e 2, e 47), consultor técnico que nem sequer está obrigado a compromisso ou juramento (art.91, a contrario).
O posicionamento do consultor técnico no acto está intimamente conexionado com o querer e a posição de quem o designa (até para efeitos de responsabilidade pela sua remuneração, quem o indica terá que pagar ou não os seus serviços consoante o que previamente combinaram), ele é como que um assessor técnico da parte, ou do mandatário desta, já que, exigindo a perícia, em regra, conhecimentos técnicos particulares que não são do domínio de um jurista, justifica-se que na sua efectivação o contraditório da parte seja exercido, não através do seu mandatário, mas por um técnico habilitado, que a possa enriquecer, intervindo nos termos em que o nº2, do art.155, do que não advirá qualquer risco para a imparcialidade da perícia, pois o consultor técnico não intervirá na elaboração do respectivo relatório (art.157, nº1).
Ao consagrar a possibilidade de intervenção dos consultores técnicos, nos termos em que se encontra regulada no CPP, pretendeu o legislador permitir que se faça uma espécie de fiscalização privada da perícia (2).
Deste modo, não faz sentido a pretensão da entidade incumbida da perícia (INETI- LAQAS) de ver substituído o Prof. Gerard Martin por pessoa independente, pois a escolha do consultor técnico está na inteira disponibilidade do respectivo interveniente processual.
O legislador restringiu a intervenção do consultor técnico nos casos em que, realizando-se na fase de inquérito, o conhecimento dela ou dos seus resultados, pelo arguido, pelo assistente ou pelas partes civis, pode prejudicar as finalidades do inquérito (al.a, do nº3, do art.154), ou quando razões de urgência ou perigo de demora o imponham (al.b, do mesmo preceito legal), hipóteses que não foram invocadas no caso em apreço para afastar a intervenção de consultores técnicos.
Aceitou o despacho recorrido, porém, as reservas da entidade nomeada para a perícia e do IVV em relação ao concreto consultor técnico indicado pela recorrente, por com a sua intervenção poder ele ter acesso a dados que posteriormente usaria para fins diferentes.
Contudo, não prestando o consultor técnico qualquer tipo de juramento, nem estando sujeito a qualquer obrigação de reserva, os conhecimentos que outro consultor técnico obteria com a intervenção no acto processual em causa sempre poderiam ser transmitidos à pessoa indicada, ou a qualquer outra. Por outro lado, não estando o relatório pericial sujeito a segredo de justiça e sendo os peritos e consultores técnicos ouvidos em audiência (art.350), acto em que a perícia tem de ser examinada para poder ser valorada (art.355), sempre poderiam tais dados chegar facilmente ao conhecimento do Prof. Gerard Martin.
Se a diligência implicar acesso a dados ou informações, em relação aos quais exista lei a protegê-los e a obrigar os respectivos detentores a segredo, a único solução é que em relação a esses dados ou informações seja invocado o direito de escusa a fornecê-los, por estarem abrangidos pelo dever de segredo, o que será, então, solucionado através de incidente próprio.
O que não pode ser admitido é que entidade estranha ao processo, pretenda condicionar a forma como os arguidos exercem os seus direitos de defesa em relação à perícia ordenada, tentando impedir a intervenção do consultor técnico por eles indicado, quando a lei não coloca qualquer restrição nessa escolha e consagrou a figura do consultor técnico como sendo da estrita confiança pessoal de quem o indica.
* * *
IIIº DECISÃO:
Pelo exposto, os juizes do Tribunal da Relação de Lisboa, em conferência, acordam em dar provimento ao recurso, revogando o despacho recorrido, que deve ser substituído por outro admitindo a intervir como consultor técnico o Prof. Gerard Martin, indicado pelos arguidos, anulando-se a perícia que porventura se tenha realizado sem ele.
Sem tributação.
Lisboa, 27/02/2007
(Relator: Vieira Lamim)
(1º Adjunto: Ricardo Cardoso)
(2º Adjunto: Filipa Macedo)



_____________________________________
1.-Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra Editora, 1979, pág.262.

2.-Simas Santos e Leal Henriques, Código de Processo Penal anot., 1999, Rei dos Livos, vol.I, pág.804.