I – Não é possível arguir a falsidade ou anulação do Auto de Penhora ou do Auto de Nomeação do segundo Fiel Depositário, atento o desfasamento temporal entre ambos os momentos e documentos e a natureza e finalidade de cada um deles;
II – A actuação do Fiel Depositário nomeado, na sequência do falecimento do anterior (aliás, pai daquele), quando conjugada com a anterior situação e historial dos bens penhorados, não permite afirmar que a mesma não foi desenvolvida com “a diligência e zelo de um bom pai de família” (artigo 843.º, número 1 do Código de Processo Civil).
(JES)
(…)
Importa frisar que a Embargada e Apelante, no seu recurso, não veio impugnar a matéria de facto dada como assente pelo tribunal recorrido, nos termos do artigo 690.º-A do Código de Processo Civil, não se vislumbrando também motivo para este tribunal, ao abrigo do disposto no artigo 712.º do Código de Processo Civil, alterar os factos dados como provados e acima transcritos.
Logo, será com base na matéria de facto fixada pela 1.ª instância que iremos apreciar e decidir o presente recurso.
A Exequente impugna a sentença proferida pelo tribunal a quo, defendendo, em síntese, que a mesma fez uma incorrecta aplicação do disposto nos artigos 1187.º, 1188.º, 1190.º do Código Civil e artigos 843.º, n.º 1 e 854.º do Código de Processo Civil, face à matéria descrita e dada como assente, pois esta permite responsabilizar o embargante pela deterioração dos bens penhorados (com excepção da serra eléctrica que desapareceu), por evidenciar suficientemente a violação dos deveres que legalmente incumbem ao fiel depositário.
Tendo em atenção as datas da penhora e das nomeações dos dois fiéis depositários dos autos (5/3/1999, 5/3/99 e 8/11/2002, respectivamente), é o regime anterior ao actualmente em vigor que se aplica à situação em apreço, importando ter em consideração as normas com relevância para a análise do litígio dos autos e que são as contidas nos artigos acima indicados, bem como no artigo 848.º do Código de Processo Civil (…)
Compulsados e conjugados os factos dados como assentes com o regime legal acima transcrito, importa realçar, desde logo, um primeiro e longo período de exercício de funções de fiel depositário por parte do pai do embargante e gerente da executada (cerca de 3 anos e 8 meses), em que a serra eléctrica desapareceu, os demais bens penhorados foram desmontados, estiveram inoperacionais e degradaram-se, chegando pelo menos uma parte de um deles ao poder do segundo fiel depositário em mau estado (ventilador de uma das câmaras) e o local onde parte deles se encontrava mudou de mãos, cenário esse que a embargada, nas suas alegações de recurso parece não ponderar devidamente, pretendendo, ao invés (lembrando um pouco aquela fábula do lobo e do cordeiro: “se não foste tu, foi o teu pai…!), assacar ao actual fiel depositário toda a responsabilidade por uma situação de deterioração e perda de valor dos bens apreendidos que, relativamente aquele primeiro período, não pode nem deve lhe ser imputada.
È certo que o embargante, no momento em que foi nomeado fiel depositário dos bens em causa não suscitou qualquer reserva quanto à existência, estado e valor dos bens, mas, como bem se diz na sentença recorrida, tratou-se de um acto meramente formal e que, estamos em admitir, foi aceite por aquele por respeitar a bens (que não conhecia ainda, no seu estado actual, pelo menos) e a funções ligadas ao seu falecido pai, numa “passagem de testemunho familiar” que se impôs a quaisquer outras considerações de ordem prática, económica, profissional ou pessoal, não se concebendo, por outro lado, a possibilidade do mesmo vir arguir a falsidade ou anulação do Auto de Penhora ou do seu Auto de Nomeação, atento o desfasamento temporal entre ambos os momentos e documentos e a natureza e finalidade de cada um deles (existe desconformidade entre a situação actual dos bens penhorados e aquela encontrada na altura da sua apreensão judicial, mas não se pode qualificar tal disparidade factual entre o passado e o presente dos bens como falsidade ou anulabilidade das respectivas descrições e declarações, não padecendo, por outro lado, o segundo Auto, de índole essencialmente procedimental, de qualquer vício na formação, declaração da vontade ou na realidade relatada que permita suscitar aquelas invalidades jurídicas).
Debrucemo-nos, então, sobre a conduta do embargante, de forma a aferirmos se a mesma foi desenvolvida com “a diligência e zelo de um bom pai de família”.
O actual fiel depositário, como já se referiu acima, foi confrontado com um cenário de “facto consumado”, quanto a tal desaparecimento, bem como à desmontagem, inactividade e localização dos demais objectos, tendo, em nosso entender, consoante as circunstâncias e na medida das suas possibilidades e conhecimentos, mantido e conservado os bens a que tinha acesso.
Verifica-se que o mesmo, poucos dias depois da sua nomeação, conseguiu descobrir onde todos os bens penhorados (com excepção da serra eléctrica de cortar peixe) se encontravam, tendo informado, de imediato, o Tribunal, do desaparecimento da dita serra (cf. requerimento de fls. 11 dos autos).
Por outro lado e relativamente aquele bem que estava nas antigas instalações da executada e que estavam ser exploradas por outrem, em circunstâncias que desconhecemos, convirá lembrar que o mesmo se traduzia numa câmara frigorífica, com a capacidade de cerca de 30 toneladas, em razoável estado de conservação e funcionamento, em cimento e fixa ao solo /ligada permanentemente ao chão (factos 5 e 6), de impossível ou muito difícil desmembramento e transporte, com grandes e proibitivos custos de remoção, encontrando-se, portanto e nessa medida, seriamente limitada a actuação do embargante quanto a essa segunda câmara frigorífica, até porque conflituava com direitos de terceiros.
E não valerá a pena defender que o mesmo se encontrava obrigado a manter em funcionamento as duas câmaras, pois estas já estavam desmontadas quando o apelado iniciou as suas funções de fiel depositário, não se sabendo se, face ao tempo entretanto decorrido, estavam em condições mínimas de operarem de novo, como ainda porque o recorrido não tinha conhecimentos técnicos para o fazer, convindo realçar, finalmente, no que toca à câmara maior, que a dificuldade de acesso ao lugar onde ela se encontrava criava sérios obstáculos a tal tarefa, sendo certo que o artigo 1187.º do Código Civil determina que o “o depositário não tem o direito de usar a coisa depositada nem de a dar em depósito a outrem, se o depositante o não tiver autorizado”, não nos encontrando, igualmente, perante um das excepções contempladas no número 2 do artigo 843.º do Código de Processo Civil ou em outras disposições desse mesmo diploma legal (artigos 852.º, 853.º e 862.º-A, por exemplo).
O artigo 1188.º do Código Civil, ao contrário do que afirma a apelante, não tem aqui aplicação, dado não terem ficado demonstrados nos autos factos suficientes, comprovativos de uma efectiva turbação de detenção ou esbulho da coisa por parte de terceiros que permitissem ao fiel depositário actuar da forma ali descrita, pois o tribunal só sabe que o mesmo não tem livre acesso à dita câmara frigorífica, por ela estar colocada em instalações comerciais de terceiros, tendo, contudo, aí se deslocado e confirmado a sua existência concreta, bem como o desaparecimento da serra eléctrica e não havendo notícia de que esses terceiros se arroguem a posse ou propriedade daquela, contestando a penhora e venda do mesmo.
Mas, ainda que assim não fosse, as consequências legais daí advenientes eram a da exoneração do Embargante das obrigações de guarda e restituição do bem e imposição do dever de comunicação imediata por parte do fiel depositário de tal situação, respondendo este somente pelos prejuízos advenientes da omissão de tal comunicação, não se reconduzindo esses danos à perda ou desvalorização da coisa, se estas já não podiam ser evitadas, como seria o caso dos autos, atenta a natureza e localização daquela, não sabendo nós, finalmente, desde quando tal situação se verificava e se o anterior fiel depositário tinha já dado informação nos autos acerca da mesma (cf., a respeito destes pontos, Pires de Lima e Antunes Varela, “Código Civil Anotado”, II Volume, 1.ª Edição, 1968, Coimbra Editora, págs. 518 a 522, em anotação aos artigos 1188.º e 1189.º).
A exequente considera que a transferência daqueles bens que se encontravam em casa dos avós para outro local ao ar livre constitui uma violação dos referidos deveres do Embargante mas temos para nós, acompanhando nessa parte a sentença recorrida, que, considerando o motivo justificativo de tal mudança – venda da mencionada habitação –, o tipo e dimensão da dita câmara e ventilador da segunda (que já se encontrava em mau estado, no dia 8/11/2002) e o facto dos mesmos estarem guardados em terreno particular e protegidos com um plástico da chuva e do vento, o Embargante, embora não dando o cumprimento ideal aos seus deveres funcionais, deu-lhe a satisfação mínima, legalmente exigível.
Convirá realçar, aliás, que, tendo os bens em questão se deteriorado anteriormente, no período de actuação do primeiro fiel depositário (desde logo, pela sua desmontagem e não funcionamento), ficamos sem saber se essa degradação se acentuou com a colocação ao ar livre dos ditos bens e em que medida, a ter acontecido, terá pesado na perda de valor dos mesmos, competindo tal prova à exequente, nos termos dos artigos 342.º e seguintes do Código Civil e não “herdando” o filho a responsabilidade pelas eventuais omissões e comportamentos ilícitos do pai nesta matéria.
O Embargante, por outro lado, logo que o tribunal lhe deu ordem para informar acerca do estado das duas câmaras frigoríficas, comunicou, de pronto, aos autos, a situação das mesmas, numa prova clara que nunca se pretendeu furtar ao contacto com a autoridade judicial e ao cumprimento das suas funções e obrigações.
Não podemos deixar de lamentar a demora excessiva da acção executiva de que os presentes autos são dependentes e que, só por si, constitui uma das causas para a deterioração dos bens penhorados, mas também se nos afigura que a exequente, perante tal atraso e a natureza e situação dos bens apreendidos, poderia ter lançado mão do mecanismo legal previsto no artigo 851.º do Código de Processo Civil (venda antecipada de bens), obviando, de alguma maneira, à deterioração e perda de valor dos mesmos.
Dir-se-á, finalmente, que o regime que anteriormente vigorava para o depósito dos bens apreendidos pelos tribunais, embora reconduzido ao respectivo contrato, previsto nos artigos 1185.º e seguintes do Código Civil, sempre se revelou, pelas suas próprias características, carências e deficiências, pouco eficaz e operativo, tendo a nossa jurisprudência o interpretado e aplicado com muito menos rigor e exigência do que o da sua matriz jurídica (bastará pensar, por exemplo, no amadorismo da esmagadora maioria dos fiéis depositários nomeados, na imposição de tal papel, na sua correspondente falta de estruturas materiais e conhecimentos jurídicos necessários ao exercício competente das respectivas funções, na diminuta remuneração paga aos mesmos e na incerteza do pagamento das despesas pelos mesmos suportadas através da venda dos bens penhorados, com a subsequente e indesejável entrada em cena do erário público, na figura dos Cofres dos Tribunais).
Logo, pelos motivos expostos, o presente recurso de apelação não pode conduzir à modificação da sentença recorrida, que se deve manter nos seus precisos moldes.
IV – DECISÃO
Por todo o exposto e tendo em conta o artigo 713.º do Código do Processo Civil, acorda-se neste Tribunal da Relação de Lisboa em julgar improcedente o recurso de apelação interposto por MARIA, confirmando, nessa medida e integralmente a sentença proferida pelo tribunal da 1.ª instância.
Custas do recurso pelo Apelante.
Notifique e Registe.
Lisboa, 22 de Março de 2007
(José Eduardo Sapateiro)
(Carlos Valverde)
(Granja da Fonseca)