MÉDICO
RESPONSABILIDADE CIVIL
Sumário

I – A natureza extra-contratual ou contratual da responsabilidade dos médicos quando os serviços prestados sejam levados a cabo em instituição privada dependerá da caracterização da situação em concreto: relação contratual única e directa entre a clínica e o paciente, relação contratual dividida em que a clínica apenas assume as obrigações correspondentes ao contrato de internamento ou relação única de prestação de serviços médicos celebrada com médico embora o serviço realizado em regime ambulatório, consistindo em consultas ou prestação de cuidados de saúde simples e/ou exames complementares de diagnóstico.
II – Os deveres de conduta de preservação da saúde e da vida adstritos ao médicos encontram-se presentes quer no âmbito de uma relação contratual directa com o paciente, quer no domínio de uma relação em que a prestação de cuidados médicos se faz por médico unicamente vinculado perante a instituição privada de saúde. Em ambos os casos, o incumprimento desses deveres ou o seu cumprimento defeituoso é fonte de responsabilidade (contratual ou extracontratual) do médico.
(G. A.)

Texto Integral

Acordam na 2ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

            I – M, viúvo, e D, casado, demandam, na presente acção declarativa com processo ordinário, J, médico, pedindo a condenação deste a pagar ao 1º Autor a quantia de € 53.620,77, e ao 2ª Autor a quantia de € 41.150,83, o que fazem com o fundamento que seguidamente se refere:
            O 1º Autor, na qualidade de funcionário da EDP, recorre aos serviços clínicos da organização S, SA, que dizem ser uma organização de medicina apoiada em diversas clínicas de várias especialidades.
            Necessitando sua mulher, M, de ser observada a derrames nas pernas, em consulta de cirurgia cardiovascular, obteve da referida organização a indicação para efeito dessa consulta da clínica do Dr. A , na qual, por o dito clínico não estar ao serviço, lhe foi indicada a clínica do Dr. A J, que também tinha relacionamento com a S.
            Foi assim marcada consulta para o ora R., tendo o 1º Autor e a M comparecido no dia e hora da marcação – 16,15 h de 28.10.1997 – sendo atendidos pelas 17,50 h.
            No seguimento do interrogatório para abertura de ficha, e análise de documentos de que se fazia acompanhar, a M apresentou a carta de um médico alertando para que a mesma tinha doença alérgica, e enumerando os alimentos e medicamentos cuja utilização deveria ser feita com cuidados.
            Após exame das varizes, o R. disse que iria fazer uma ecografia às pernas a fim de averiguar se havia varizes internas e de seguida que iria proceder à secagem dos derrames, mas que antes iria fazer uns testes.
            De novo o 1º Autor alertou o R. para os problemas alérgicos de sua mulher, e para o aviso de vários médicos de que eventualmente seria perigoso aplicar medicamentos, fármacos e outras substâncias não testadas.
            Não obstante, pelas 18,00 h, o R. deu três injecções na coxa da perna esquerda da M, e, segundos após, esta evidenciou grande dificuldade em respirar, perdendo logo após os sentidos.
            Um relatório elaborado pelo próprio R. refere que a doente iniciou um quadro de dispneia intensa associada a edema da língua e glote, tendo sido administrada adrenalina e iniciada respiração assistida, mas, perante a falta de êxito dessas manobras, foi chamado o Dr. P .
            Chegado este médico, cerca de 10 minutos depois foi dada ordem ao 1º Autor de sair do gabinete.
            Pelas 19,15 h, foi informado pelo Dr. A que M tinha falecido, tendo sido solicitada a comparência da Polícia de Segurança Pública, para remover o corpo para a morgue.
            Enquadrando a actuação do R. como desenvolvida no quadro de um contrato, entendem os Autores que o R. não cumpriu a obrigação a que estava obrigado, visto que dela resultou a morte de M.
            Referem que o resultado da autópsia é o de que a morte foi causada por shock anafiláctico, pós injecção teste de ESCLEREMO-R, para esclerose das varizes dos membros inferiores, pelo que, nos termos do artigo 798º do Código Civil, o R. é responsável pelo prejuízo que tal incumprimento causou.
            Invocam o desgosto sofrido com a perda da esposa (o 1º Autor e a falecida eram casados há 22 anos) e mãe (o 2º Autor tinha então 19 anos), a idade desta à data (45 anos), e a perspectiva de ter uma esperança de vida por muitos anos, e ainda o ser uma pessoa muito alegre e dedicada à costura, de que retirava grande prazer.
            Calculam o valor indemnizatório pela perda do bem vida em € 24.939,89 para cada um dos Autores, a indemnização pelo sofrimento dela em € 7.481,97, e a compensação pelo dano moral causado pela morte em € 24.939,89, a favor do 1º Autor, e em € 12.469,95, para o 2º Autor.
            Citado, contestou o R., invocando a excepção de ilegitimidade passiva, por sustentar que não foi parte de qualquer contrato celebrado com o 1º Autor e a falecida M, mas porventura com a S.
            Defendeu-se seguidamente por excepção peremptória, dizendo estar a obrigação de indemnizar prescrita, assentando tal alegação na aplicação do prazo do artigo 498º, nº 1 do Código Civil, em face da inexistência de relação contratual entre o R. e a doente.
            Requereu o incidente de chamamento, na modalidade de intervenção acessória prevista no artigo 330º do Código de Processo Civil, da Companhia de Seguros Fidelidade, para a qual transferiu a responsabilidade civil emergente da sua actividade profissional.
            Em sede de impugnação, não apenas alegou não ter existido incumprimento contratual, em face da já invocada inexistência de contrato, como sustentou ter procedido de acordo com as cautelas devidas, considerando que o produto que iria usar para o tratamento das varizes, visando a sua esclerose, o Escleremo-R, não constava da lista de medicamentos a que a M era comprovadamente alérgica, e que efectuou um teste com a realização de três picadas com doses insignificantes do mesmo, visando aquilatar da reacção da doente ao produto.
            Refere seguidamente que as manobras de reanimação foram as adequadas ao caso, e que o relatório da autópsia não refere que a morte ocorreu por causa da administração do produto, mas devido a choque anafiláctico, o qual era de todo imprevisível sendo o teste indispensável à realização do tratamento.
            Impugna os valores peticionados e conclui pedindo a absolvição da instância ou do pedido.
            Responderam os Autores à matéria das excepções e declararam nada terem a opor ao incidente de chamamento.
            Foi determinada a junção da apólice do seguro de responsabilidade invocado pelo R., e, seguidamente, proferido despacho indeferindo o chamamento da seguradora.
            Em despacho saneador proferido em audiência preliminar, foram as excepções julgadas improcedentes e, logo de seguida, julgada a acção improcedente, com base na transferência integral da responsabilidade exigida ao R. para a Companhia de Seguros.
            Interposto recurso de apelação, foi tal decisão revogada, sendo ordenado o prosseguimento dos autos, com selecção da matéria de facto nos termos do artigo 511º, nº 1 do Código de Processo Civil.
            Foi assim, depois de relegado para final o conhecimento da excepção de prescrição, proferido despacho de condensação, sendo arrolados os factos assentes e elaborada a base instrutória, sem reclamação, sendo seguidamente oferecidas as provas.
            Teve lugar audiência de discussão e julgamento, com gravação da prova realizada, com redução a escrito, em acta, da matéria a que o R. respondeu, confessando, e, a final, foi lavrado e lido despacho decidindo a matéria de facto, também sem reclamações.
            Não foram oferecidas alegações escritas sobre o aspecto jurídico da causa, vindo por fim a ser proferida sentença, que, além de julgar improcedente a excepção de prescrição, absolveu o R. do pedido, por considerar que se não verifica um dos pressupostos da responsabilidade civil (que entendeu ser extracontratual), a ilicitude da conduta imputada ao R..
           
De novo apelaram os Autores, sendo por eles, a finalizar as alegações, formuladas as seguintes conclusões:
            1. O R. foi avisado por pelo menos duas vezes, pelo A. C, de que deveriam ser usadas as máximas cautelas com esta, porquanto era alérgica a variadíssimas substâncias.
2. Ao R. foi exibida, não porque tenha pedido, uma lista contendo um enunciado não exaustivo de produtos a que a M era alérgica e lista de medicamentos que deveriam ser usados com muita cautela. Dela constava a observação de que não era exaustiva porquanto havia muitos produtos que ainda não tinham sido experimentados e estavam sempre a surgir novos produtos no mercado.
3. Ao perceber o propósito do R. o A. C voltou a alertá-lo para o problema de sua mulher sobretudo na administração de produtos não testados.
4. Não obstante, o R. deu três injecções na coxa da paciente.
5. Ficou provado que segundos após a administração das injecções a M evidenciou dificuldades imensas em respirar e, logo após, perdeu os sentidos.
6. A Maria A veio a falecer com 45 anos às 18 horas e 55 minutos desse mesmo dia, em consequência da administração do produto.
7. No entendimento dos recorrentes estabeleceu-se um contrato de prestação de serviços entre médico e paciente.
8. A própria douta sentença recorrida reconhece que o R. actuou pessoalmente e que a intervenção clínica do R. na pessoa da M se traduziu num acto isolado, feito a pedido de um seu colega e que foi agente material e directo de actos médicos que em concreto foram realizados na pessoa da M.
9. Não obstante a intervenção ter revestido aspecto negocial, admite-se que o R. tenha actuado como mandatário de uma clínica médica, sendo de presumir que a haver mandato o mandante não teria pretendido o resultado do mandato, logo, interditando a exclusão de responsabilidade do R.
10. Foi lesado o direito de personalidade, bem vida, reconhecido como um direito absoluto, oponível erga omnes, sendo a sua violação objecto de tutela aquiliana – art°s 483° e ss. do CC.
11. A dose administrada pelo R. foi suficiente para causar a morte da M.
12. O R. actuou livremente pois, optando, mal ou bem, por actuar como actuou só que o fez sem as devidas cautelas. Dos meios de prova gravada resultam depoimentos categorizados que apontam para a necessidade de aplicar inicialmente uma dose mínima a que se seguiriam outras consoante a reacção da paciente até poder administrar o produto com segurança. Por outro lado, o produto não deveria ter sido injectado da forma como foi, antes devendo ter sido por aplicação subcutânea ou administração num olho.
13. Nenhuma daquelas cautelas o R. tomou tendo inclusivamente administrado três doses em vez de uma.
14. O resultado da aplicação do produto não era imprevisível mas não era provável.
15. O produto administrado, o ESCLEROVIN é um produto que os médicos em clínica geral nunca utilizam, daí, o total desconhecimento dos seus efeitos e, logicamente, a necessidade de redobrar cautelas.
16. A douta sentença recorrida entende que a solução factual se deverá enquadrar no âmbito da responsabilidade civil extracontratual o que se aceita (sem conceder) como uma das vias possíveis para justificar a responsabilização do R.
17. Entendem os recorrentes que se verificam todos os requisitos previstos no art° 483° do CC.
18. Na óptica da responsabilidade civil contratual, que se entende como a mais consentânea, tem de admitir-se que houve incumprimento contratual e que tal incumprimento se ficou a dever a facto imputável ao R. – art°801°, n° 1 CC.
19. Como consequência da falta de cumprimento imputável ao devedor têm aplicação as disposições dos art°s 798° e 799° do CC.
20. Procedendo de causa a si imputável competia ao R. provar não só que actuava por incumbência e em nome da S, como provar que a causa da morte não procede de culpa sua (culpa "lato sensu"). Os AA. entendem que o retorno de responsabilidade para a clínica médica não tem cabimento por força de necessária aplicação do disposto no n° 2 do art° 800°, já que há nítida violação de deveres impostos por normas de ordem pública uma vez que se trata de bem fundamental e protegido constitucionalmente, a lesão do bem vida.
21. O R. não pode afastar a sua responsabilidade no sucedido pois a isso se opõe o art° 490° do CC.
22. Se for aplicada a moldura da responsabilidade civil extracontratual haverá que ver se se verificam os pressupostos dos art°s 483°, n° 1, 562° e 563° do CC. e o requisito que levou a douta sentença a denegar provimento à acção foi o da ilicitude. Ora, ilicitude, como vem definida no Ac. dessa Relação, de 29.11.05, proc. 4374/05, "é o comportamento de uma pessoa, por acção ou omissão, controlável pela vontade, consubstanciado na violação de um direito de outrem, designadamente um direito absoluto, por exemplo o direito à integridade física".
23. "Distingue-se no plano da culpa stricto sensu entre a culpa consciente, por um lado,...e a culpa inconsciente, por outro, em que o agente não chega, por imprevidência, descuido, imperícia ou inaptidão, a conceber a possibilidade da produção do evento danoso, mas podendo e devendo prevê-lo se usasse da diligência devida." (mesmo aresto).
24. A obrigação de indemnização depende de que entre o acto ilícito e o prejuízo ocorra um nexo de causalidade adequada (art°s 562° e 563° do CC.) e esse verificou-se.
25. Nem se contrarie invocando o caso fortuito porquanto o evento era previsível e poderia ter sido evitado se tivesse sido previsto.
26. A douta sentença recorrida violou os art°s n°s 483°, n° 1, 490º, 798°, 799°, 800°, 1 e 2 e 801°, n° 1, todos do CC. bem como os art°s 660°, n° 2 mais por deficiente interpretação dos meios de prova produzidos em audiência do que por ai (sic).
TERMOS EM QUE e com o douto suprimento de Vossas Excelências, deverá ser dado provimento ao presente recurso revogando-se a douta sentença recorrida como melhor for entendido.

Contra-alegou o R., formulando as seguintes conclusões:
(1) Quanto à matéria de facto (i) a sentença recorrida fez correcto apuramento dos factos provados, ante a prova produzida e (ii) os recorrentes não cumprem o ónus previsto no artigo 690º-A do CPC naquilo em que discutem a matéria de facto provada;
(2) Quanto à matéria de Direito (i) a sentença recorrida fez correcta qualificação jurídica dos factos quando entendeu que a haver responsabilidade esta não poderia ter natureza jurídica contratual (iii) sendo que os recorrentes entram em contradição quando tendo fundado aqui a sua petição, ora dizem aceitar esta qualificação, ora dela discordam;
(3) A sentença recorrida fez correcta interpretação dos factos quando concluiu que no caso o réu agiu (i) no quadro de um teste a produto alérgico ante informação que obteve de que a doente era alérgica a certos produtos e não chegou a submetê-la a qualquer tratamento (ii) e fora de qualquer contrato de prestação de serviços com a paciente (iii) tendo agido de acordo com a diligência devida no caso;
(4) A sentença recorrida fez correcta aplicação do Direito quando (i) ante a matéria provada, não descortinou qualquer ilicitude na conduta do ora réu (ii) pelo que não encontrou fundamento para o responsabilizar civilmente (iii) quer no quadro da responsabilidade civil extracontratual, quer contratual.
Corridos os vistos, cumpre conhecer.

            II – QUESTÕES A CONHECER
            O âmbito objectivo do recurso é definido pelas conclusões das alegações do recorrente, como consabidamente decorre dos artigos 684º, nº 3 e 690º, nº 2 do Código de Processo Civil.
            As alegações dos apelantes são algo inconsistentes, pois ora nelas se aceita a moldura da responsabilidade civil extracontratual que na sentença claramente foi adoptada, ora se insiste na perspectiva da responsabilidade contratual, que fora invocada na petição inicial.
            Em face da imprecisão da posição que os apelantes adoptam, entende-se que deve tal questão ser apreciada em sede de recurso, ainda que pouca relevância possa assumir para a solução da questão central e decisiva, de saber se o tribunal julgou bem ao absolver o R. do pedido, por entender não estar preenchido o requisito da ilicitude da conduta que lhe foi imputada.
            Saliente-se ainda que, apesar de fazerem apelo tanto no corpo das alegações, como nas conclusões, para o teor de alguns depoimentos testemunhais prestados em audiência de discussão e julgamento, nomeadamente pela médica Dra. C, que não teriam sido valorados devidamente pelo tribunal de 1ª instância, a verdade é que os Autores não impugnam qualquer das respostas dadas à matéria da base instrutória, limitando-se a sustentar que desse depoimento resultam dados contrários à conclusão a que se chegou de a conduta do R. não ser ilícita, por terem sido observadas as regras de cuidado exigíveis.
            Não obstante não estar em causa a decisão da matéria de facto, não deixará este tribunal de se pronunciar sobre esse ponto, para o que fez a necessária audição da gravação da prova.
            Em suma, são questões a decidir:
            A) Foi ou não celebrado um contrato de prestação de serviços médicos entre o 1º Autor e sua mulher, M e o R., cuja prestação principal este último não cumpriu cabalmente?
            B) No cumprimento do dever de tratar a M, o R. (não) observou o dever de cuidado exigido em face da doença alérgica daquela, (não) procedendo com as exigíveis cautelas ao teste do produto com o qual tencionava tratar a doença vascular de que a mesma padecia (varizes dos membros inferiores)?

            III – OS FACTOS
            O tribunal deu como provado, com interesse para a decisão da causa, e sem impugnação, os seguintes factos:
1) O A., M, contraiu casamento com M no dia 14 de Julho de 1975, casamento que só veio a ser dissolvido por óbito da sua esposa, cfr. doc. de fls. 199 – (Al. A) dos factos assentes);
2) D nasceu no dia 24 de Julho de 1976, filho do A., M, e de M, cfr. doc. de fls. 200 – (Al. B) dos factos assentes);
3) O A., M, na sua qualidade de funcionário da EDP, recorre aos serviços da S, S.A., organização de medicina apoiada em diversas clínicas de diversas especialidades – (Resposta ao 1º da base instrutória);
4) Como a sua esposa carecia de consulta de cirurgia cardiovascular para observação de derrames nas pernas, averiguou junto da S onde é que se poderia dirigir, tendo sido indicada a clínica do Dr. A, que mantinha relacionamento com a S – (Resposta ao 2º da base instrutória);
5) No dia 28 de Outubro de 1997, com consulta marcada para o R., Dr. J, a mulher do A. compareceu nos serviços da S, S.A. pelas 16h15m – (Al. D) dos factos assentes);
6) Atendidos às 17h50m, o R., Dr. J, inquiriu M, a fim de abrir a necessária ficha e analisar os documentos que a mesma lhe apresentou, que constavam de carta de médico avisando que a esposa do A. sofria de doença alérgica, lista de medicamentos e produtos a que era alérgica e lista de medicamentos cuja utilização deveria ser feita com cuidados, cfr. docs de fls. 14 e 15 – (Al. E) dos factos assentes);
7) Após exame das varizes, o R., Dr. J, informou o casal que iria fazer uma ecografia às pernas de M a fim de averiguar se havia ou não varizes internas – (Al. F) dos factos assentes);
8) Acrescentou que, de seguida, iria proceder à secagem dos derrames, mas que, perante o quadro clínico, teria que efectuar uns testes – (Al. G) dos factos assentes);
9) Perante o referido em 7) e 8), o A. alertou, de novo, o R. para o problema alérgico da sua esposa, avisando-o que vários médicos tinham alertado para eventual perigosidade na administração de medicamentos, fármacos e substâncias não testadas em M – (Resposta ao 3º da base instrutória);
10) Não obstante, o R., cerca das 18h00m, deu 3 injecções na coxa da perna esquerda de M, sendo que as 3 picadas foram em doses em concentração de 0,5% e inferiores a 0,5 c.c. – (Resposta ao 4º da base instrutória);
11) O R. efectuou um teste, com o produto que iria usar para efeito de esclerose de varizes, o “ESCLEROVIN”, que não se incluía na lista que lhe fora entregue pela doente, fazendo 3 picadas sucessivas com doses de concentração de 0,5% e inferiores a 0,5 c.c. – (Resposta ao 7º da base instrutória);
12) O teste visava aquilatar da reacção da doente ao produto, sendo que, de acordo com os conhecimentos médicos existentes, esse era o único teste possível para esse efeito – (Resposta ao 8º da base instrutória);
13) A paciente ainda se levantou da marquesa e andou um ou dois passos – (Resposta ao 9º da base instrutória);
14) Segundos após a administração das injecções, M evidenciou dificuldades imensas em respirar e, logo após, perdeu os sentidos – (Resposta ao 5º da base instrutória);
15) Chamado o Dr. P, e tendo este chegado 10 minutos após, foi ordenado ao A. que saísse do gabinete – (Al. I) dos factos assentes);
16) As manobras de respiração assistida foram com “AMBU” – (Resposta ao 10º da base instrutória);
17) As tentativas de reanimação foram efectuadas pelo R. e pelo Dr. P – (Resposta ao 11º da base instrutória);
18) Quando a equipa de emergência do “112” chegou, a doente encontrava-se em paragem respiratória, mas não cardíaca, com batimentos rítmicos e valores tensionais na ordem dos 110 mmHg – (Resposta ao 12º da base instrutória);
19) A paciente foi de imediato entubada e foi-lhe administrada, durante não mais de 50 minutos, cerca de 20 a 25 ampolas de adrenalina endotraqueal, que não lograram reverter a situação clínica, que foi tida por irrecuperável cerca de 55 minutos depois do início do quadro em causa – (Resposta ao 13º da base instrutória);
20) M sofreu e teve aflições – (Resposta ao 18º da base instrutória);
21) M, veio a falecer, com 45 anos de idade, no estado de casada com o A., M, às 18 horas e 55 minutos do dia 28 de Outubro de 1997, cfr. doc. de fls. 195 – (Al. C) dos factos assentes);
22) Do relatório médico subscrito posteriormente pelo R. resulta que “a doente desencadeou um quadro de dispneia intensa associada a edema da língua e da glote”, que em consequência, administrou “duas fórmulas de adrenalina endovenosa a 1 g de metilpelnisolona – solu – Medrol” e iniciou respiração assistida” e não tendo obtido “qualquer êxito com as manobras realizadas contactámos o 112”, cfr. doc. de fls. 16 a 17 cujo teor se dá por reproduzido – (Al. H) dos factos assentes);
23) Cerca das 19h15m, o 1º A. foi informado pelo Dr. A que a sua esposa, M, falecera e que já tinha sido contactada a PSP para remover o corpo para o Instituto de Medicina Legal – (Al. J) dos factos assentes);
24) Da administração das injecções pelo R. resultou o decesso de M – (Resposta ao 6º da base instrutória);
25) Do relatório de autópsia resulta que a causa de morte de M foi “shock anafiláctico, pós injecção teste de ESCLEREMO-R, para esclerose das varizes dos membros inferiores" cfr. doc. de fls. 19 a 23 – (Al. L) dos factos assentes);
26) A intervenção clínica do R. na pessoa de M traduziu-se num acto isolado feito a pedido de um seu colega – (Al. M) dos factos assentes);
27) O A. amava a sua esposa e sofreu um forte abalo com a sua morte – (Resposta ao 14º da base instrutória);
28) A falecida era pessoa alegre – (Resposta ao 15º da base instrutória);
29) Dedicava-se em pleno à costura, de onde tirava grande prazer, produzindo parte considerável do vestuário do seu agregado familiar e de outros parentes e amigos – (Resposta ao 16º da base instrutória);
30) Com excepção das varizes nas pernas e dos problemas alérgicos de que padecia e que motivaram vários episódios de urgências hospitalares, não eram conhecidas a M outras doenças, nomeadamente que fizessem perigar a sua vida – (Resposta ao 17º da base instrutória);
31) O A. D, à data do óbito de sua mãe, vivia com os seus pais – (Resposta ao 19º da base instrutória);
32) O A. D sentiu dor pela morte de sua mãe – (Resposta ao 20º da base instrutória);
33) Correu termos no DIAP de Lisboa, autos de inquérito com o n.º  TDLSB, instaurados por participação da PSP de Lisboa, que tiveram por objecto o óbito de M, os quais foram instaurados contra o ora R., Dr. J, e em que era assistente o aqui 1º A., M, cfr. doc. de fls. 18 a 23 dos presentes autos e fls. 4 e 60 a 62 do processo apenso – (Al. N) dos factos assentes);
34) Esse processo de inquérito criminal foi objecto do despacho de arquivamento, datado de 5 de Fevereiro de 2002, cujo teor é constante de fls. 136 a 139 do apenso e que se dá aqui por integralmente reproduzido, o qual foi notificado ao A. M a 7/2/2002, cfr. fls. 144 do apenso – (Al. O) dos factos assentes);
35) A presente acção deu entrada em juízo no dia 22 de Fevereiro de 2002, cfr. fls. 1 – (Al. P) dos factos assentes);
36) O R. foi citado a 4/3/2002, cfr. fls. 26 – (Al. Q) dos factos assentes).

            IV – DO DIREITO
            IV – A)
A primeira questão tem sido objecto de debate doutrinal, mormente quando os cuidados médicos são prestados em instituição de saúde privadas.
No estudo denominado justamente Responsabilidade Civil em Instituições Privadas de Saúde: Problemas de Ilicitude e de Culpa[1], Nuno Manuel Pinto Oliveira explana as diversas posições que têm sido defendidas tanto na doutrina nacional como na de diversos países europeus, designadamente italiana, francesa e alemã, referindo que têm sido desenvolvidas teses unitárias (em que a responsabilidade dos médicos é configurada como um regime transtípico, corrigindo a distinção entre os dois “tipos” tradicionais de responsabilidade, a contratual e a extracontratual), e concepções dualistas ou pluralistas, em que o regime dessa responsabilidade se configurará como um regime “típico” – ou como o resultado da confluência ou concurso entre os dois regimes “típicos” de responsabilidade civil.
Claramente, a nosso ver, inexiste, em face da lei portuguesa, um regime unitário, no que concerne à responsabilidade dos médicos quando os serviços são por si prestados em ambiente institucional privado, pois que depende do que forem os factos de cada caso concreto haver ou não, como refere Carlos Ferreira de Almeida[2], uma relação contratual única e directa entre a clínica e o paciente (contrato total), haver uma relação contratual dividida, em que a clínica apenas assume as obrigações correspondentes ao contrato de internamento, embora acordado em conexão com um outro contrato de prestação de serviço médico directa e autonomamente celebrado com o médico  ou ainda haver uma única relação contratual de prestação de serviços médicos celebrada com o médico, embora o serviço seja realizado em regime ambulatório, consistindo em consultas ou prestação de cuidados de saúde simples e/ou exames complementares de diagnóstico.
 Só nestes dois últimos casos se estaria perante responsabilidade civil contratual do médico, sendo que no primeiro a sua responsabilidade apenas se poderá colocar no plano da responsabilidade civil extracontratual[3].
No caso dos autos, não obstante a formal alegação puramente conclusiva feita desde a petição inicial pelos Autores, no sentido de ter sido estabelecido um contrato entre o 1º Autor e sua mulher e o R., a verdade é que nada alegaram no sentido de aportar factos concretos que permitam dar como apurada essa versão da relação existente.
Se a consulta tivesse decorrido em consultório privativo do R., tal omissão de alegação pouco significado poderia ter, pois seria legítimo presumir (presunção judicial, fundada nas regras da experiência – artigo 351º do Código Civil) existir um contrato de prestação de serviço tacitamente acordado entre as partes.
É, porém, facto assente que os cuidados médicos foram prestados em consultório integrado numa clínica privada, a do Dr. A, por sua vez relacionada (pressupostamente por contrato) com a S, SA, organização autónoma da EDP mas a que os funcionários desta empresa (e respectivos membros do agregado familiar) se dirigiam (desconhece-se a que título, mas porventura também na base de um acordo entre a empresa e essa sociedade).
Em face desta situação factual, em bom rigor não tem o tribunal elementos para decidir de modo afirmativo se foi ou não celebrado um contrato entre o 1º Autor e sua mulher e o R. ou se foi ou não celebrado um acordo entre eles e a clínica do Dr. A (note-se que bastaria que o pagamento da consulta fosse feita a esta clínica para claramente ficar arredada a relação contratual directa entre o paciente e o médico prestador dos serviços médicos, e saliente-se que essa é hoje uma situação que ocorre com enorme frequência, sabido que muitos médicos exercem clínica privada em clínicas de que não são donos ou sócios ou accionistas).
Optou o tribunal de 1ª instância, na ausência de factos alegados e provados no sentido de configurar uma relação contratual directa da M com o R., por adoptar a  tese da responsabilidade civil extracontratual, já que não foi desse modo possível determinar que o R. tivesse assumido directamente para com ela uma obrigação de prestar serviços médicos, tanto mais que só interveio a pedido de um colega seu, na impossibilidade deste estar presente [alínea M) dos factos assentes – ponto 26 da matéria de facto provada].
Na prática – embora os dois regimes de responsabilidade se diferenciem relevantemente nalguns poucos aspectos, como o do ónus da prova – artigos 799º e 487º do Código Civil[4] – tal opção parece ter sido a mais adequada.
Em primeiro lugar, porque os deveres de conduta que estão em causa num caso e no outro se não diferenciam substancialmente – o dever de preservação dos bens da saúde e da vida, cuja observância pelo R. está afinal em causa, tanto existe no âmbito de uma relação contratual ou meramente obrigacional que o vincule directamente perante o paciente, como no âmbito da prestação de cuidados médicos por médico unicamente vinculado perante a instituição privada de saúde, do mesmo modo que o dever de prestação (tendente – obrigação de meios – a obter um resultado: a cura, a limitação ou retracção de um quadro clínico de doença ou tão só a eliminação ou redução das suas manifestações de dor) está presente em qualquer dos tipos de relações, podendo a sua inobservância, incumprimento ou cumprimento defeituoso, ser fonte quer de responsabilidade contratual quer extracontratual.
Assim, a existência de um acordo directo entre a M e o R. seria um quid que acresceria a esse quadro comum, pelo que a ausência de factos demonstrativos da natureza da relação entre eles estabelecida melhor se coaduna com a mera responsabilidade civil extracontratual.
E, em segundo lugar, porque os apelantes parecem aceitar o enquadramento feito na sentença da responsabilidade do R. no âmbito da responsabilidade extracontratual, desse modo reconhecendo que a análise dos pressupostos da responsabilidade civil accionada dispensa a tese do contrato directamente celebrado entre eles.
Assim, no que à primeira questão concerne, entende-se ser de manter a fundamentação de direito seguida na sentença impugnada.

            IV – B)
            Relativamente à segunda questão:
            Está em causa a observância ou não pelo R. do dever de cuidado ao efectuar o teste do medicamento com o qual, após ter realizado o exame da M, iria proceder ao tratamento das varizes, tendo consideração a informação que lhe fora facultada por ela e pelo 1º Autor de que a mesma padecia de diversas alergias, tendo-lhe sido mostrada uma relação, elaborada por uma médica da paciente, dos alimentos e medicamentos já testados e a que era alérgica e cuja administração só se poderia fazer com as maiores cautelas.
            A matéria de facto dada como provada evidencia que o R., tendo procedido ao exame das varizes dos membros inferiores, e após a realização de um exame ecográfico, concluiu que o tratamento adequado era o da secagem das mesmas [alínea G) dos factos assentes], pela administração de um medicamento – o ESCLEROVIN – que não se incluía na lista que lhe fora entregue (resposta ao artigo 7º da base instrutória).
            E que antes da sua aplicação, o testou, injectando três vezes quantidades diminutas, em doses em concentração de 0,5% e inferiores a 0,5 c.c. (respostas ao artigos 4º e 7º da base instrutória).
            É neste ponto que os apelantes trazem à colação o depoimento das testemunhas Dra. T, médica de família da M e da Dra. M, médica da falecida, tendo em vista realçar afirmações por elas produzidas reveladoras de que a administração de qualquer produto à doente em causa deveria sempre ser precedida de extremos cuidados, concretamente de testes.
            Da audição do depoimento da testemunha Dra. T ressalta unicamente essa realidade, não se tendo ela pronunciado sobre o ESCLEROVIN, que nunca receitou.
            A audição do depoimento da médica Dra. M – que, ao invés do que os apelantes referem, não se apresentou como alergologista, mas como especialista em pneumologia e medicina desportiva – evidencia que conhecia muito bem o problema das alergias de M, que considerou ser bastante complexo e grave, pois que ocorria com muitos alimentos correntes e medicamentos do grupo do ácido acetilsalicílico ou derivados, (tendo elaborado a lista que está a fls. 14-15, de que consta, quanto aos medicamentos, que a mesma poderá não estar completa, devido às alterações frequentes do mercado farmacêutico), e referiu que a situação gerada era frequentemente a de formação de edemas da glote, criadores de risco forte de morte por asfixia.
Mais opinou, tal como a perita médica Dra. E (essa sim, imunoalergologista), que se deveria proceder sempre, em face do quadro patenteado e para o qual se alertava com a referida listagem, à realização de testes de medicamentos não testados antes.
            A referida perita médica disse que esses testes deveriam ser efectuados pela administração de diminutas quantidades, que seriam gradualmente aumentadas (teste provocação, assim lhe chamou).
            A testemunha Dra. M disse que os testes deveriam ser feitos por aplicação subcutânea ou por vezes num olho.
            Quando, após as instâncias dos ilustres mandatários das partes, o senhor juiz inquiriu a testemunha sobre como considerava a realização do teste do ESCLEROVIN por aplicação endovenosa (sem mencionar que anteriormente a testemunha Dr. J referira no seu depoimento ter sido essa a via de aplicação do teste, por ter declarado que a aplicação subcutânea não era possível, dado causar necrose da pele), a Dra. C disse, em tom que parece ser não tanto de espanto mas de correcção daquilo que teria tomado como um lapso: “Endovenoso? Deve ter sido na pele, subcutâneo”.
            E quando logo de seguida o senhor juiz quis a sua opinião acerca da possibilidade de o teste do ESCLEROVIN ser cutâneo, de imediato a testemunha se escusou a responder, referindo então que a sua especialidade não era de cirurgia vascular, mas de pneumologia e medicina desportiva, que se a dúvida se colocava ao tribunal então deveria este socorrer-se de quem fosse especialista nessa matéria e que em matéria de questões vasculares “todos nós temos uma noção, mas eu seria sempre uma clínica geral nessa área vascular. Não faz sentido”.
            Não tem, pois, o depoimento da Dra. M, em que os apelantes fazem assentar o mais forte argumento acerca da alegada não observância dos cuidados devidos por parte do R., o valor assertivo que aqueles lhe atribuíram, sendo antes patente que, revelando então não ser especialista em alergologia, a referida médica se escusou a opinar sobre se o teste do medicamento em causa poderia ser feito pela via subcutânea.
            Em face deste contexto, e tanto mais que, ao invés da perita médica Dra. E, tanto o R., em articulado e em depoimento de parte, como a sua testemunha, Dr. P, admitiram a ocorrência de choque anafiláctico e a sua tradução no edema da glote (cuja existência aquela negara), não se vêem razões para duvidar de que o teste realizado o foi pela única via admissível, dada a natureza do produto (insusceptível de ser testado pela via subcutânea).
            Note-se ainda que a própria Dra. M, autora do estudo das alergias de M, afirmou que a sua intenção ao elaborar a dita listagem era que fosse completa, mas que não há garantias de o ser, que a vida é um risco e que não sou Deus, o que se pode entender como revelador da opinião de que existe sempre uma margem maior ou menor de imprevisibilidade, que nem com todos os cuidados pode ser eliminada.
            E refira-se que o tribunal demonstrou estar atento à realidade dos factos (à verdade material, se se quiser), pois que a questão do acerto da via usada para testar o medicamento não fora objecto de alegação pelo Autores, razão de não ter sequer tradução na base instrutória, e foi seguindo a pista dos depoimentos das testemunhas arroladas pelo próprio R. que o tribunal se debruçou sobre a mesma.
            Não se vê, por isso, razão para discordar da conclusão de que o R. cumpriu cabalmente, ao realizar o teste de que resultou a morte de M (resposta ao artigo 6º da Base Instrutória – ponto 24 da matéria de facto), o dever de cautela exigido.
            Do mesmo modo, os cuidados e manobras tendentes a obter a sua reanimação foram os exigíveis, como resulta das respostas dadas à matéria de facto, e que a audição dos depoimentos médicos prestados em audiência revela.

            Desta constatação arrancou a sentença para a conclusão de que se não verifica o pressuposto da ilicitude na conduta do R..
            Não seguimos esse entendimento.
            Quando o facto gerador de responsabilidade consiste, como é o caso, na violação do direito de outrem – primeira parte do artigo 483º, nº 1 do Código Civil – o que genericamente corresponde à violação do dever de respeitar direitos absolutos, como os direitos da personalidade (entre os quais e à cabeça o direito à vida – nº 1 do artigo 70º do mesmo Código), é de presumir a ilicitude, que só a ocorrência de causa de justificação afasta (acção directa, legítima defesa, estado de necessidade, consentimento do ofendido, se relevante).
            Só no caso do segundo segmento do nº 1 do artigo 483º do Código Civil – violação de dever de respeitar disposições legais destinadas a proteger interesses alheios – é que a ilicitude pode depender da inobservância de um dever de cuidado ou de diligência.
            Assim, a observância pelo R. do dever de proceder com os cuidados exigíveis – tanto em função da legis artis, como em atenção à informação que lhe foi fornecida pelo 1º Autor e pela M de que esta tinha graves problemas de reacções alérgicas – traduzida no facto, provado em julgamento, de ter procedido ao teste pela única via possível de o realizar, e com a administração de quantidades diminutas do medicamento, ganha, a nosso ver, relevância no plano da culpa, sem a qual inexiste, por regra, obrigação de indemnizar (nº 2 do artigo 483º).
            A culpa, ou nexo de imputação do facto ao agente, é, nos termos do nº 2 do artigo 487º, apreciada, na falta de outro critério legal, pela diligência de um bom pai de família, em face das circunstâncias de cada caso.
            No caso da responsabilidade civil dos médicos, o padrão bom pai de família encontra correspondente no padrão do bom profissional[5], ou seja, no padrão de conduta profissional que um médico medianamente competente, prudente e sensato, com os mesmos graus académicos e profissionais teria tido em circunstâncias semelhantes, naquela data[6].
            Da factualidade dada como provada, corroborada seguramente pela audição da prova gravada, retira-se, a nosso ver, a conclusão de que o R. seguiu, na sua actuação, tal padrão de conduta, o qual, não pôde, contudo, evitar a produção do evento infeliz que vitimou a esposa do 1º Autor, por se ter ainda assim, por força do próprio e indispensável teste, desencadeado a reacção alérgica que se visava evitar ocorresse[7].
            Assim e embora se considere que o pressuposto que se não verifica é o da culpa, entende-se ser de concluir que a sentença fez correcta aplicação do direito ao julgar não verificados os pressupostos da responsabilidade civil imputada ao R., pelo que se impunha absolvê-lo do pedido.
            Deve, assim, a presente apelação ser julgada improcedente, confirmando-se, embora com fundamentação algo diversa, a sentença impugnada.

            V – DECISÃO
            Nestes termos acordam em julgar o recurso improcedente e confirmar a sentença apelada.
            Custas pelos RR..

            Lisboa, 22 de Março de 2007

António Neto Neves
Isabel Canadas
Maria da Graça Mira

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[1] Publicado no volume 11 do Centro de Direito Biomédico da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, dedicado ao tema da Responsabilidade Civil dos Médicos, Coimbra Editora, 2005, de  págs. 127 a 255.
[2] Em Os contratos civis de prestação de serviço médico, publicado em Direito da Saúde e Bioética, AAFDUL, citado no estudo de Nuno Pinto Oliveira já citado, a fls. 131-132.
[3] Neste sentido, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 5.7.2001, publicado em Colectânea de Jurisprudência/Supremo Tribunal de Justiça 2001, tomo II, págs. 166-170.
[4] Mas, para o autor que vimos referindo, Nuno Pinto Oliveira, ob. e loc. citados, pág. 167, há pelo menos uma regra da responsabilidade contratual  cuja aplicação à responsabilidade civil dos médicos é duvidosa – o artigo 799º…
[5] Vide João Álvaro Dias, O problema da avaliação dos danos corporais, in no volume 11 do Centro de Direito Biomédico da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, dedicado ao tema da Responsabilidade Civil dos Médicos, Coimbra Editora, 2005, de  págs. 387 a 433, designadamente a págs. 397-402.
[6] Autor e obra citados, pág. 401.
[7] Razão porque, no caso concreto, caso fosse de aplicar o regime da responsabilidade obrigacional, e se considerasse, pois, aplicável a regra de ónus de prova vertida no artigo 799º do Código Civil, ainda assim  deveria dar-se como não verificado o pressuposto da culpa.