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PRESUNÇÃO DE PROPRIEDADE
REGISTO AUTOMÓVEL
Sumário
Reconhecido o direito de propriedade sobre um veículo automóvel, designadamente por presunção resultante do registo, e não se provando a existência de qualquer direito real ou obrigacional que favoreça a fruição pelo detentor, deve proceder-se à sua restituição. (O.G.)
Texto Integral
Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa: I. RELATÓRIO D instaurou, em 18 de Março de 2005, no 1.º Juízo Cível da Comarca do Funchal, contra F, por si e em representação do seu filho menor, B, acção declarativa, sob a forma de processo sumário, pedindo, para além do mais, que lhe fosse reconhecido o direito de propriedade sobre o veículo automóvel de matrícula 54-12-GI e se condenassem os Réus a entregar-lhe a documentação respeitante ao mesmo.
Para tanto, alegou, em síntese, que, em 10 de Julho de 2002, comprou a D Lda., o referido veículo, que aquela adquirira ainda em vida de S, marido e pai dos RR., falecido a 5 de Abril de 2002, e cujos documentos recusaram entregar.
Contestaram os RR., impugnando o direito da A. e, em reconvenção, pediram, designadamente, o reconhecimento a favor da herança, aberta por óbito do referido Severiano, do direito de propriedade sobre o mesmo veículo e a condenação da A. a devolvê-lo.
A A. respondeu, concluindo pela improcedência da reconvenção.
Realizado o julgamento, foi proferida a sentença, julgando-se improcedentes os referidos pedidos da A. e dos RR.
Inconformados recorreram ambas as partes, mas o recurso da A., por falta de alegações, foi julgado deserto.
Os Réus alegaram e formularam, no essencial, as seguintes conclusões: a) Face ao teor do documento autêntico que foi exigido pelo julgador para a resposta ao quesito 11.º, deveria o mesmo ter obtido uma resposta afirmativa. b) A qual também decorria da presunção do registo. c) Sem a entrega dos documentos à A. não poderia existir transmissão, como decorre do art.º 882.º, n.º 2, do CC. d) Por decisão do Tribunal de Família do Funchal achava-se provado que o veículo era propriedade do defunto marido da R. e) Deve ser considerado que o veículo referido é propriedade dessa herança. f) Não tendo a A. título que legitime a sua detenção, existe o direito à sua reivindicação e entrega. Pretendem, com o provimento do recurso, a condenação da A. à entrega do veículo.
A Autora não contra-alegou.
Corridos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir. Neste recurso, está em causa, essencialmente, o reconhecimento do direito de propriedade sobre um veículo automóvel e a sua restituição.
II. FUNDAMENTAÇÃO 2.1. Foram dados como provados, designadamente, os seguintes factos: 1. A Ré foi casada com S, falecido no dia 5 de Abril de 2002. 2. Desse casamento, nasceu B, no dia 11 de Fevereiro de 1993. 3. Por contrato celebrado no dia 10 de Junho de 2002, a Autora adquiriu, por compra, a D, Lda., o veículo ligeiro de passageiros, marca Opel, matrícula 54-12-GI, pelo preço de € 8 421,71, pago integralmente. 4. Foi de imediato investida na posse da viatura, que passou a utilizar no seu interesse exclusivo e sob a sua responsabilidade. 5. A A. não recebeu a documentação referente à viatura, nomeadamente o livrete e o título de registo de propriedade, que a vendedora se encarregou de actualizar. 6. Em princípios de 2004, D, Lda., cessou a sua actividade, encerrando o estabelecimento. 7. A partir daí a A. tem mantido a viatura fora de circulação, por não dispor dos documentos. 8. Quando adquiriu a viatura, a A. estava convencida de que a vendedora, tal como lhe referiu, era sua proprietária. 9. A R. tem em seu poder os documentos, que recusa entregar.
2.2. Em face da certidão de fls. 78 dos autos, emitida pela Conservatória do Registo de Automóveis de Lisboa e junta durante a audiência de discussão e julgamento, está ainda provado: 10. A propriedade do veículo, de matrícula 54-12-GI, está registada a favor de S, desde 6 de Março de 2000.
Este facto está provado por meio de certidão, dotada de prova plena nos termos do art.º 371.º, n.º 1, do Código Civil (CC), de harmonia com o disposto no art.º 110.º do Código do Registo Predial (CRP), aplicável por remissão do disposto no art.º 29.º do DL n.º 54/75, de 12 de Fevereiro – art.º s 713.º, n.º 2, e 659.º, n.º 3, do Código de Processo Civil (CPC).
2.3. Delimitada a matéria de facto provada e com relevância, importa agora conhecer do objecto do presente recurso, circunscrito pelas respectivas conclusões, e cuja questão jurídica emergente respeita essencialmente à reivindicação do veículo automóvel de matrícula 54-12-GI.
Está em causa apenas o pedido deduzido na reconvenção, sendo certo que a acção foi julgada improcedente, por decisão transitada em julgado.
Decorre dos factos provados que a propriedade do veículo, de matrícula 54-12-GI, está registada a favor de S, desde 6 de Março de 2000, o qual faleceu em 5 de Abril de 2002.
O registo definitivo constitui uma presunção de que o direito existe e pertence ao titular inscrito, nos termos do art.º 7.º do CRP, aplicável nos termos da remissão antes enunciada.
Trata-se de uma presunção legal juris tantum que é ilidível por prova em contrário, nos termos do n.º 2 do art.º 350.º do CC.
Em face dessa presunção, o direito de propriedade sobre o veículo automóvel sempre pertenceu ao mencionado S, integrando, depois da sua morte, o acervo da respectiva herança.
De resto, da prova efectuada nos autos, não resulta que aquele tivesse transmitido a propriedade sobre o veículo a favor de outra pessoa, nomeadamente de D, Lda., nem tão pouco que a herança referida o tivesse feito (resposta negativa ao quesito 8.º).
Daí que, face ao resultado da prova produzida, se afigure de todo incompreensível a referência da sentença a um contrato de compra e venda a favor da referida sociedade comercial.
Dentro do contexto descrito, não se provando que o direito de propriedade sobre o veículo tivesse sido transferido antes para D, Lda., o contrato de compra e venda celebrado por esta com a apelada, em 10 de Julho de 2002, correspondeu a um contrato de compra e venda de coisa alheia, e, como tal, foi nulo, nos termos do art.º 892.º do CC.
Sendo o contrato de compra e venda nulo, naturalmente, que não pode produzir-se o efeito da transmissão da coisa, que caracteriza aquele contrato, sem prejuízo, todavia, da eventual responsabilidade civil do vendedor pelos prejuízos causados à compradora.
Deste modo, e – reiterando – em face do resultado da prova produzida, não pode deixar de se concluir que o direito de propriedade sobre o veículo, de matrícula 54-12-GI, pertence à herança aberta por óbito de S.
Reconhecido o direito de propriedade sobre o referido veículo a favor da herança mencionada, a sua restituição só pode ser recusada nos casos previstos na lei (art.º 1311.º, n.º 2, do CC).
Esses casos podem decorrer da existência de um direito real ou obrigacional que favoreça a fruição pelo detentor.
Tratando-se, com efeito, de um facto impeditivo, compete a quem se arroga esse direito a sua demonstração, ao abrigo da regra da distribuição do ónus da prova plasmada no n.º 2 do art.º 342.º do CC.
Assim, cabia à apelada, enquanto detentora do veículo, a prova de que tinha um título válido para o deter.
Essa prova não foi feita, tanto mais que apenas invocara o direito de propriedade cujo reconhecimento peticionara, e que não procedeu, sendo ainda também irrelevante, pelo que antes se afirmou quanto à distribuição do ónus da prova, a resposta negativa ao quesito 13.º, que versava sobre a falta de título legítimo.
Nestas condições, não se provando qualquer direito real ou obrigacional que obste à restituição do veículo, não pode deixar de proceder a sua restituição.
2.4. Perante o descrito, pode extrair-se de mais relevante: Reconhecido o direito de propriedade sobre um veículo automóvel, designadamente por presunção resultante do registo, e não se provando a existência de qualquer direito real ou obrigacional que favoreça a fruição pelo detentor, deve proceder-se à sua restituição.
Nestas condições, procede no essencial a apelação, o que implica, na parte correspondente, a alteração da sentença recorrida, com o reconhecimento do direito de propriedade da herança referida sobre o veículo automóvel de matrícula 54-12-GI e a condenação da apelada a proceder à sua restituição.
2.5. A apelada, ao ficar vencida por decaimento, é responsável pelo pagamento das custas, em conformidade com a regra da causalidade (art.º 446.º, n.º s 1 e 2, do CPC).
III. DECISÃO Pelo exposto, decide-se: 1) Conceder provimento ao recurso, revogando a decisão recorrida, na parte respectiva, e, em consequência, reconhecer o direito de propriedade da herança referida sobre o veículo automóvel, de matrícula 54-12-GI, e condenar a Autora à sua restituição. 2) Condenar a Apelada no pagamento das custas.
Lisboa, 26 de Abril de 2007 (Olindo dos Santos Geraldes) (Ana Luísa de Passos G.) (Fátima Galante)