DIREITO DE PROPRIEDADE
RESTRIÇÃO DE DIREITOS
ABUSO DO DIREITO
Sumário

I – Apenas poderão ser proibidas as emissões (de fumo, fuligem, vapores, cheiros, etc.) que, em alternativa, ou importem um prejuízo substancial para o uso do prédio vizinho, ou não resultem da utilização normal do prédio de que emanam, o que não se verifica no caso dos autos.
II – Acresce que o funcionamento e emissões de uma chaminé que serve um forno no qual os RR. esporadicamente confeccionam grelhados, exclusivamente para o seu consumo, não é susceptível de beliscar os direitos da A. a um ambiente sadio e à qualidade de vida.
III – A factualidade apurada nos autos não permite concluir que os RR. exercem o seu direito excedendo manifestamente os limites impostos pela boa-fé (ou mesmo, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico do seu direito), não existindo elementos que permitam concluir com segurança pelo desequilíbrio no exercício do direito, por qualquer forma.
(M.J.M.)

Texto Integral

Acordam na Secção Cível (2ª Secção) do Tribunal da Relação de Lisboa:

                                                           *
I - R C G L G intentou a presente acção declarativa com processo sumário contra A P M e M T D.
            Alegou a A., em resumo:
            A A. é dona de um prédio urbano, sito em Alcochete, confinante a sul com o prédio pertencente aos RR. .
            Os RR. mandaram construir um anexo em madeira, encostado à parede sul do prédio da A. que serve como parede interna do barracão, ali existindo várias espécies de animais domésticos e fazendo-se sentir o cheiro resultante dos respectivos dejectos que põe em risco a saúde e comodidade habitacionais do prédio da A., além de que são emitidos ruídos que causam incómodo e impedem o repouso dos moradores.
            Acresce que os RR. mandaram construir, a cerca de um metro do prédio da A., uma chaminé que emite fumos, fuligem, calores e cheiros que entram de imediato para o prédio da A., obrigando-a a ela e aos seus inquilinos a manter portas e janelas fechadas.
            As obras foram construídas sem o devido licenciamento camarário.
            Pediram os AA. a condenação dos RR. a demolirem o barracão dele retirando os animais, a demolir a chaminé, a pintar a parede sul e a pagarem à A. uma indemnização de € 7.500.
            Após contestação dos RR. o processo prosseguiu, vindo a ser proferida sentença que julgou a acção parcialmente procedente condenando os RR. a demolirem a chaminé e a permitirem à A. o acesso à parede sul do seu prédio quando necessário proceder a qualquer reparação, bem como a pagarem a esta a indemnização de € 1.000,00, absolvendo-os do mais pedido.
            Da sentença apelaram os RR. os quais concluíram pela seguinte forma a respectiva alegação de recurso:
1.Os Apelantes aceitam e nada terão a dizer em relação ao acesso com expressão na alínea b) da aliás douta decisão porquanto o mesmo nunca foi solicitado pela A. e por conseguinte nunca foi vedado (o que foi confirmado nos Autos pelo filho da A., A H L G),
2. Todavia, como se constatará pelos transcritos depoimentos das testemunhas M J S S,  M C M,  L S,  C S P e J F F — tendo igualmente sido dado como provado nas respostas à matéria de facto alegada — arts. 21º. e 22°. quesitados - a "chaminé existente no prédio dos RR. foi construída há mais de 16 anos (art°. 21°.)” “e serve um forno onde esporadicamente são cozinhados alguns grelhados, exclusivamente para os RRs., (art°.22°.)", sendo tal constante na Sentença, relatório e matéria de facto assente (18 e 19 ), em inspecção ao local (fls. 122 dos Autos) acrescendo que a Meritíssima Juiz "a quo" e o Tribunal igualmente puderam constatar na referida deslocação local que (...) " existe uma cozinha, uma pequena chapa que dá no máximo para quatro costeletas e a que corresponde a referida chaminé (...) - sic" - respostas à matéria de facto alegada, pág. 5, fls… dos Autos.
3. O reconhecido uso esporádico e minimalista não conflituam com a tutela constitucional do direito ao ambiente e qualidade de vida humano e sadio, pois não se nos afigura possível que o assente uso esporádico para o casal, logo minimalista, contenda com o disposto no art°. 1346° do CC, importando um prejuízo substancial para o uso do imóvel ou que resulte de uma utilização anormal do prédio de que emanam como ensinam os ilustres Profs. Pires de Lima e Ant Varela (C. Civil anotado, em nota ao art° 1346), "exigindo-se um prejuízo substancial, põem-se de lado as emissões que produzam um dano não essencial (sic)", e torna-se ademais mister atender ao concreto escopo de protecção da norma» que, não fará sentido no caso vertente, quando afinal, não foi produzida "in concreto" prova cabal do virtual dano).
4. Parece-nos ter existido um excessivo zelo valorativo na apreciação, achando nós que se extrapolou a razoabilidade ao sentenciar uma indemnização compensatória a favor da A. e que possa impender sobre os RR., tanto mais que, no caso vertente, tudo se encontrará dentro dos estritos e razoáveis limites dos direitos de uso, fruição e disposição da propriedade de cujos direitos não serão superiores ou superlativos face aos que assistirão aos RRs. mas outrossim, equitativos e com aceitação de mútuas cedências no respeito pela boa-fé e bons costumes.
5. Não se nos afigura que os presentes circunstancialismos importem desmedidos sacrifícios para a A., sendo notoriamente exagerado e intelectualmente falacioso, o argumento em que esta se estriba ao dizer-se prejudicada no seu direito a um ambiente sadio que não foi colocado em causa.
6. Assim sendo, a aparente "colisão de direitos", é inexistente e não servirá à A., chamar a si "as dores" de um único inquilino (!!) - o do r/c esq°. - tanto mais que é latente o conflito e animosidade entre este e os RRs..
7. O uso dado pelos RR. ao aludido forno e chaminé que o sustenta, não corresponderá a um abuso de direito, exercício danoso, ou a um excesso – portanto desproporcional — face aos limites impostos pela boa-fé - sendo que é a própria razoabilidade das coisas que nos faz constatar que uma chaminé com tais dimensões e que serve um pequeno forno de uso esporádico e para duas únicas pessoas, jamais poderia gerar emissão de fumos, cheiros, fuligens tais que prejudiquem a A., subsumindo o enfoque dado.
8. A própria A., "até o confessa" tacitamente na sua própria PI, nomeadamente no respectivo art. 10º. Ao dizer que (…) recentemente, os RR. mandaram construir uma chaminé – sic" que, com humor duvidoso, tornando insuportável "a vida" naquele prédio (sic) art. 15°. da mesma PI.      Então a chaminé tornou a vida assim tão insuportável a A. que apenas terá "dado por ela" decorridos mais de 16 anos sobre a sua construção? e durante aquele hiato temporal nada houve a assinalar ou reclamar?
9. É igualmente curioso que a A. - nas palavras da testemunha A H, seu filho - refira que não podia algumas vezes colocar roupas a secar por causa de tais fumos... será credível que alguém que passe apenas fins-de-semana esporádicos no aludido prédio coloque neste amiúde roupa a secar?
10. Inexistirá efectivo dano ou sequer "animus nocendi",voluntariamente actuado pelos RR. no sentido de lesar a A., pelo que deverá soçobrar a intenção indemnizatória desta, por não merecer a tutela do direito, nem se incluir na estatuição do art°. 496°. do C.C. que impõe a existência necessária para além da ilicitude, de culpa na conduta dos RR., expressa num particular juízo de reprovabilidade pessoal.
11. E não existe “tout court", prova cabal do virtual dano, apurada em sede de julgamento, como se verificou face ás transcrições supra, afigurando-se-nos, com o devido respeito e salvo melhor opinião, que o Tribunal "a quo'', menosprezou os aludidos depoimentos valorando prova que, no nosso entender, não consubstanciará qualquer palpável objectivo, subsumível na expectativa indemnizatória da A..
12. Os apelantes entendem que nunca poderiam ter sido dados como provados os Factos dos quesitos 8°, 9º e 10º porquanto estarão em contradição essencial com os igualmente provados quesitos 21° e 22º (todos da Base Instrutória) e que se consubstanciaram nos art°s. 9° (falso, face à Inspecção Local fls. 122). 10º, 11º 12º. – em abono da A. e 18°. e 19 º em abono dos RR. (da Matéria de Facto dada como assente na Douta Sentença, fls..., pág. 2 )
13. Sentenciando a demolição da chaminé identificada nos Autos, com base em premissas erradas viola-se o principio da equidade que deverá nortear as decisões judiciais e reflexamente "premeia-se" quem artificiosa, ardilosa, e voluntariamente peticiona com base em conjecturas e alguma reserva mental, não apresentando, de facto, prova de danos e sacrifícios em que necessariamente tenha incorrido.
14.  Será precisamente a essa acepção que nos devemos socorrer, auxiliados pela constatação da inércia da A. ao longo de mais de 16 anos e que só agora, curiosamente, veio a juízo reclamar, pretextando a falsa construção recente daquela.
15. E se a chaminé, objecto do pleito, é bastante antiga e de uso esporádico, todavia. tal não relevará para enformar qualquer intuito "demolidor", porquanto, se a mesma nada acrescenta, igualmente nada diminui, na qualidade de vida e direito de uso do prédio contíguo.
16. É sabido que, face ao RGEU a chaminé dos RR. deveria distar cerca de 1,50m de quaisquer vãos ou compartimentos de habitação – e a mesma distará 1,18m apenas (Inspecção ao local pelo Tribunal fls. 122), todavia tal diferença não nos parece tão significativa que possa por si só impedir a sua existência. tanto mais que, àquela chaminé, poderão igualmente ser acrescidos os parcos centímetros em altura que lhe faltarão em obediência ao art°. 113 do RGEU, coisa que os RR. aceitam e se comprometem a fazer, caso o Douto Tribunal da Relação o determine.
17. Sendo que tal solução, implicará para os RR. menor sacrifício, resultando igual e necessariamente protegidos, também, os interesses da A..
18. Face ao que foi dito, o Acórdão a proferir, procedendo a uma correcta interpretação e aplicação dos meios de prova aos factos e à sua correspondente jurídica concluirá pela alteração da sentença recorrida e absolvendo os Apelantes no que respeita ao pagamento indemnizatório à A., assim como no tão excessivo quanto inútil sacrifício que resultaria para aqueles da demolição da chaminé.
            A A. contra alegou nos termos de fls. 189 e seguintes.
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            II - O Tribunal de 1ª instância julgou provados os seguintes factos:
 1 - A Autora é proprietária do prédio urbano sito na Rua António dos Santos Gonçalves,  Alcochete, descrito na Conservatória do Registo Predial do Montijo, sob o n.° …, inscrito na matriz predial urbana  da freguesia e concelho de Alcochete;
 2 - Esse prédio confina a sul com o prédio urbano  sito na Rua 25 de Abril,  Estrada Alcochete/Samouco, propriedade dos Réus, que se encontra descrito na Conservatória do Registo Predial de Alcochete, e inscrito na matriz predial ;
3 - A Autora cedeu o gozo temporário do r/c esq.° do prédio referido em 1) a A C e 1° andar esq° a F C N;
4 - A  Autora reside no 1° andar dto° do prédio referido em 1);
5 - Os Réus mandaram construir um anexo em madeira "tipo barracão", coberto por telhado de lusalite encostado à parede sul do prédio da Autora;
6 – A parede Sul do Prédio da A. serve como parede interna do barracão.
7 - Esse barracão serve de depósito de lenha e arrumos;
8 - No prédio da Autora faz-se sentir um cheiro resultante dos dejectos dos animais;
9 - Os Réus mandaram construir uma chaminé situada a cerca de um metro das traseiras do prédio da Autora;
10 - Que emite fumos, fuligem, vapores, calores e cheiros para o prédio da Autora;
11 - Que entram para dentro do mesmo;
12 - As pessoas que residem no prédio da Autora têm de manter fechadas as portas e janelas para que o fumo, fuligem, vapores, calores e cheiro da chaminé não entre nas suas residências;
13 - O R/C esq.° do prédio identificado em 1) tem infiltrações de água;
14 - No prédio da autora fazem-se sentir barulhos resultantes do encostar da lenha e outros bens dentro do barracão dos Réus;
15 - Esses ruídos causam incómodos, desassossego e impedem o repouso dos inquilinos do R/C esq.° do prédio referido em 1);
16 - Desde 2003 o telheiro dista da parede do imóvel da Autora cerca de 35 cm,
17 - Os Réus possuem meia dúzia de galinhas e pintos da índia e outros pequenos pássaros que estão numa pequena capoeira situada noutro ponto do prédio;
18 - A chaminé existente no prédio dos Réus foi construída há cerca de 16 anos;
19 - E serve um forno onde, esporadicamente, são cozinhados grelhados, exclusivamente para os Réus.
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III - São as conclusões dos recursos que definem o objecto dos mesmos, consoante resulta dos arts. 684, nº 3 e 690, nº 1 do CPC. Deste modo, as questões que, essencialmente, se colocam na presente apelação são a de se haverá lugar à alteração da matéria de facto, no que respeita às respostas aos arts. 8 a 10 da Base Instrutória, bem como as de se existem os requisitos previstos na lei para que seja ordenada a demolição da chaminé construída pelos RR. e o pagamento por estes de uma indemnização à A..
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IV – 1 - Atento o nº 1-a) do art. 712 do CPC a decisão do tribunal de 1ª instância sobre a matéria de facto pode ser alterada pela Relação se tendo ocorrido gravação dos depoimentos prestados, tiver sido impugnada – nos termos do art. 690-A – a decisão com base neles proferida.
Pelos RR./apelantes é posta em causa a resposta aos artigos 8), 9) e 10) da Base Instrutória que defendem que deveriam ter sido antes considerados «não provados» ao invés de «provados» como efectivamente sucedeu, respostas aquelas que vieram a traduzir-se nos factos da sentença recorrida consignados sob os números 10), 11) e 12).
            Perguntava-se naqueles artigos da Base Instrutória:
8 - «Que [a chaminé mandada construir pelos RR.] emite fumos, fuligem, vapores, calores e cheiros para o prédio da Autora?»
9 - «E que entram para dentro do mesmo?»
10 - «As pessoas que residem no prédio da Autora têm de manter fechadas as portas e janelas para que o fumo, fuligem, vapores, calores e cheiro da chaminé não entre nas suas residências?»
            Alicerçam-se, os RR. para  efeito da respectiva impugnação, nos depoimentos das testemunhas M J S, A H G, L S, C P e J F F e referem uma «contradição essencial» com as respostas aos artigos 21) e 22) da Base Instrutória.
            Na fundamentação das repostas à matéria de facto provada o tribunal de 1ª instância referiu a inspecção ao local e a prova testemunhal produzida, mencionando o por si retirado do teor dos depoimentos das testemunhas inquiridas.
            Vejamos.
De acordo com o art. 655 do CPC o tribunal aprecia livremente as provas, decidindo segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto – princípio que apenas cede perante situações de prova legal (que se reconduzem, fundamentalmente, a casos de prova por confissão, por documento e por presunção legal).
É sabido que a gravação dos depoimentos pode revelar-se insuficiente para fixar todos os elementos susceptíveis de condicionar ou influenciar a convicção do juiz; existem aspectos comportamentais ou reacções dos depoentes que apenas podem ser percepcionados, apreendidos, interiorizados e valorados por quem os presencia e que jamais podem ficar gravados ou registados para aproveitamento posterior por outro tribunal que vá reapreciar o modo como no primeiro se formou a convicção do julgador ([1]). Como referiu Eurico Lopes Cardoso ([2]) os «depoimentos não são só palavras, nem o seu valor pode ser medido apenas pelo tom em que foram proferidas. Todos sabemos que a palavra é só um meio de exprimir o pensamento e que, por vezes, é um meio de ocultar. A mímica e todo o aspecto exterior do depoente influem, quase tanto como as palavras, no crédito a prestar-lhe».
Assim, entendeu o STJ no seu acórdão do de 13-3-2003 ([3]) que «desprovida do que só a imediação pode facultar a análise da prova gravada não importa a assunção de uma nova convicção probatória, mas tão só a averiguação da razoabilidade da convicção atingida pela instância recorrida».
Deste modo, o tribunal de segunda instância não vai à procura de uma nova convicção mas à procura de saber se a convicção expressa pelo tribunal “a quo” tem suporte razoável naquilo que a gravação de prova – com os mais elementos existentes nos autos – pode exibir perante si. Assim, a divergência quanto ao decidido pelo Tribunal de 1ª instância na fixação da matéria de facto será relevante neste Tribunal apenas quando resultar demonstrada pelos meios de prova indicados pelo recorrente a ocorrência de um erro na apreciação do seu valor probatório, sendo necessário para que aquele se verifique que os mencionados meios de prova se mostrem inequívocos no sentido pretendido pelo mesmo recorrente.
Atentemos ao caso dos autos.
No que concerne à matéria que nos interessa a testemunha M J S – moradora no r/c direito do prédio da A. – afirmou que a chaminé «às vezes deita fumo», que já viu os fumos a saírem, mas que vê pouco a chaminé a funcionar porque «saio cedo e entro tarde» e que pela sua porta que deita para o quintal não entram fumos e cheiros, mas que a A., às vezes, se lhe queixava do fumo e da fuligem.
A testemunha L S referiu que a chaminé serve um forno pequeno, uma chapa em que os RR. cozinham para si de quando em quando, «passando semanas e semanas que aquilo nem é aceso», tendo a testemunha estendido roupa (na casa dos RR.) diariamente, no Inverno, debaixo da chaminé sem qualquer problema.
A testemunha C S, vizinha, mencionou que a chaminé serve um forno onde os RR. de vez em quando fazem uns grelhados para eles, não fazendo fumos nem cheiros. Também a testemunha J F F, vizinho, referiu que a chaminé serve um forno pequeno, achando que os vizinhos não serão incomodados pelos fumos e cheiros emitidos.
Já a testemunha A C - morador no r/c esquerdo do prédio da A. e cujas relações com os RR. não são as melhores - mencionou os fumos emitidos pela chaminé, duas a três vezes por semana e a fuligem, bem como a necessidade de, naquelas circunstâncias, manter portas e janelas fechadas.
A testemunha A H G, filho da A., mencionou que de vez em quando é queimada lenha na chaminé emitindo esta fumos que incomodam a A. e o inquilino do prédio Sr. C, havendo para o efeito que manter as portas fechadas.
A testemunha J C, cunhado da A. afirmou fazerem-se sentir muitas vezes, no prédio da cunhada, os fumos, a fuligem e os vapores da chaminé.
Deste modo, da globalidade dos depoimentos das testemunhas não resulta a falta de razoabilidade da convicção assumida pelo julgador de 1ª instância no que concerne à apreciação da prova produzida, concretizada nas respostas à matéria de facto a que nos reportamos, a sua desconformidade com a realidade emergente daquela prova, em termos de recondução a um erro de julgamento.
Saliente-se que as respostas aos arts. 8, 9 e 10 não colidem com as respostas aos arts. 21 e 22 da Base Instrutória, havendo, tão só, que as conjugar. O facto de a chaminé ter sido construída há mais de 16 anos e servir um formo onde esporadicamente são cozinhados alguns grelhados, apenas para os RR., não implica que das vezes em que nesse período de tempo a chaminé tenha sido utilizada emita fumos, vapores, cheiros e fuligem que entram para dentro do prédio da A..
Entende-se, pois, não ser de alterar as respostas à matéria de facto nos termos propostos pelos apelantes.
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IV – 2 - Como vimos, o âmbito da apelação encontra-se delimitado pelos aspectos relacionados com a chaminé construída no prédio vizinho ao da A. e respectivas emissões.
A sentença recorrida situou-se, no que a tal se refere, no campo quer das limitações previstas no art. 1346 do CC, quer no apelo ao direito ao ambiente e à qualidade de vida da A., quer na referência às normas dos arts. 113 e 114 do RGEU, bem como no abuso de direito.
Vejamos.
Consoante decorre do art. 1305 do CC, o proprietário goza de modo pleno e exclusivo dos direitos de uso, fruição e disposição das respectivas coisas, mas dentro dos limites da lei e com observância das restrições por ela impostas.
Fixando expressamente a lei limitações ao exercício do direito de propriedade, tais restrições podem derivar tanto do direito privado, como do direito público.
Entre estas últimas - limitações de interesse público - encontram-se as respeitantes à fixação de regras mínimas a observar na construção de edifícios, por razões de segurança, salubridade e higiene e, ainda, de ordem estética, ligadas à boa ordenação urbanística das povoações, envolvendo, em geral, a necessidade de o titular do direito se abster de certas condutas no seu exercício ([4]); neste âmbito se situam, designadamente, as que decorrem das normas do RGEU.
As restrições de direito privadas resultam, essencialmente, das relações de vizinhança, tendo em vista a regulação dos conflitos de interesses que surgem entre vizinhos, estando previstas nos arts. 1344 e seguintes do CC..
Efectivamente, as limitações resultantes da contemplação de interesses particulares podem estar relacionadas com a maneira de ser de certas categorias de coisas sobre as quais os direitos reais incidem: assim, a proximidade ou contiguidade existente entre prédios faz com que frequentemente o exercício de direitos reais sobre um deles se projecte sobre os prédios vizinhos – daí as limitações impostas pelas relações de vizinhança.
Neste âmbito dispõe o art. 1346 do CC que «o proprietário de um imóvel pode opor-se à emissão de fumo, fuligem, vapores, cheiros, calor ou ruídos, bem como à produção de trepidações e a outros quaisquer factos semelhantes, provenientes de prédio vizinho, sempre que tais factos importem um prejuízo substancial para o uso do imóvel ou não resultem da utilização normal do prédio de que emanam».
Não são, pois, todas as emissões que podem ser proibidas, mas, apenas, aquelas que, em alternativa:
- ou importem um prejuízo substancial para o uso do imóvel;
- ou não resultem da utilização normal do prédio de que emanam.
Ensinam Pires de Lima e Antunes Varela ([5]) que «exigindo-se um prejuízo substancial, põe-se de lado as emissões que produzem um dano não essencial. O prejuízo deve ser apreciado, além disso, objectivamente, atendendo-se à natureza e finalidade do prédio, e não segundo a sensibilidade do dono». Já o «uso normal do prédio depende do seu destino económico, que deve ser também apreciado objectivamente e em relação a cada caso». Quanto às emissões desnecessárias, seja qual for o prejuízo que causem aos prédios vizinhos, devem considerar-se sempre ilícitas, quer porque traduzem uso anormal do prédio de que emanam, quer porque envolvem, na maior parte dos casos, um abuso de direito».
No acórdão do STJ de 3-12-1992 ([6]), referiu-se, seguindo Antunes Varela, que o art. 1346 «tem especialmente em vista as emissões de agentes físicos, com carácter de continuidade ou, pelo menos periodicidade, que tenham a sua fonte em determinado prédio e perturbem a utilização normal do prédio contíguo».
Neste contexto, atentemos ao caso dos autos.
Com relevo para a questão que se nos coloca há que salientar a seguinte factualidade:
Os RR. mandaram construir uma chaminé situada a cerca de um metro das traseiras do prédio da A., construção que teve lugar há cerca de 16 anos; tal chaminé que serve um forno onde, esporadicamente, são cozinhados grelhados, exclusivamente para os RR., emite fumos, fuligem, vapores, calores e cheiros para o prédio da A., os quais entram para dentro do mesmo. Assim, as pessoas que residem no prédio da Autora têm de manter fechadas as portas e janelas para que o fumo, fuligem, vapores, calores e cheiro da chaminé não entrem nas suas residências.
            Temos, pois, uma chaminé que emite fumos, fuligem, vapores, calores e cheiros que entram para o prédio da A., sendo que as pessoas que ali residem para deles se defenderem - e assim não entrarem nas suas residências - têm de fechar portas e janelas. Todavia, servindo aquela chaminé um forno onde só esporadicamente são confeccionados grelhados e apenas para utilização dos aqui RR., não se regista nem uma utilização contínua, nem uma utilização com uma periodicidade definida da mesma, correspondendo logicamente a frequência e o tipo de emissões à utilização que lhe é dada.
Nas circunstâncias apuradas, entende-se não se verificar um “prejuízo substancial” para o uso do imóvel da A. com a ocasional emissão dos fumos, vapores e fuligem provenientes da chaminé. Da conjugação dos factos provados não resulta que as emissões produzam um “dano essencial”, objectivamente apreciado; quanto muito, ocasionarão incómodos aos residentes no prédio da A. – esporadicamente, quando os RR. confeccionam para seu consumo os aludidos grelhados.
 Igualmente, não se vislumbra que as emissões não resultem da utilização normal do prédio de que emanam – trata-se de um prédio urbano, estando dentro dos limites da “normalidade” da sua utilização que os seus proprietários utilizem um forno dotado da respectiva chaminé para fazerem uns grelhados para seu consumo.
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IV – 3 - Na sentença de 1ª instância, como vimos, foram chamados à colação o direito ao ambiente e à qualidade de vida da A..
Vejamos.
É sabido que para a sua própria sobrevivência o homem necessita de um permanente equilíbrio com a natureza; entre os elementos preponderantes do equilíbrio existencial básico de cada homem encontra-se, desde logo, um ambiente de vida humano sadio e ecologicamente equilibrado, valor esse expressamente reconhecido a nível constitucional – art. 66, nº1, da Constituição – como o são os direitos à integridade moral e física e à protecção da saúde - arts. 25 e 64 do mesmo diploma. Tem sido entendido que tratando-se de direitos fundamentais, quer porque figuram entre os direitos, liberdades e garantias quer porque são direitos de natureza análoga, são os preceitos constitucionais a eles referentes directamente aplicáveis, nos termos dos arts. 17 e 18 da Constituição.
 Em consonância com aquelas normas constitucionais, a lei 11/87, de 7-4 (Lei de Bases do Ambiente), estabelece no seu art. 2 que todos os cidadãos têm direito a um ambiente humano e ecologicamente equilibrado e o dever de o defender; quanto ao ambiente ele é definido – no art. 5 -  como o conjunto dos sistemas físicos, químicos, biológicos e suas relações e dos factores económicos, sociais e culturais com efeito directo ou indirecto, mediato ou imediato, sobre os seres vivos e a qualidade de vida do homem. Já no que concerne à qualidade de vida ela é ali considerada como «resultado da interacção de múltiplos factores no funcionamento das sociedades humanas», traduzindo-se «na situação de bem estar físico, mental e social e na satisfação e afirmação culturais, bem como em relações autênticas entre o indivíduo e a comunidade, dependendo da influência de factores inter-relacionados, que compreendem, designadamente: a) A capacidade de carga do território e dos recursos; b) A alimentação, a habitação, a saúde, a educação, os transportes e a ocupação dos tempos livres; c) Um sistema social que assegure a posteridade de toda a população e os consequentes benefícios da Segurança Social; d) A integração da expansão urbano-industrial na paisagem, funcionando como valorização da mesma, e não como agente de degradação.
Ora, não se vê como o funcionamento de uma chaminé que serve um forno no qual os RR. esporadicamente confeccionam os acima referidos grelhados, exclusivamente para o seu consumo, com as emissões supra aludidas, seja susceptível de beliscar aqueles direitos da A. a um ambiente sadio e à qualidade de vida.
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IV – 4 - A sentença recorrida alicerçou-se, igualmente, nas disposições dos arts.. 113 e 114 do RGEU.
Tem o art. 113 o seguinte teor:
«As condutas de fumo elevar-se-ão, em regra, pelo menos, 0 m 50 acima da parte mais elevada das coberturas do prédio e, bem assim, das edificações contíguas existentes num raio de 10 metros. As bocas não deverão distar menos de 1m,50 de quaisquer vãos de compartimentos de habitação e serão facilmente acessíveis para limpeza».
Por seu turno, dispõe o art. 114:
«As chaminés de instalações cujo funcionamento possa constituir causa de insalubridade ou de outros prejuízos para as edificações vizinhas serão providas dos dispositivos necessários para remediar estes inconvenientes».
Tem sido entendido que estando consignadas no RGEU várias restrições de direito público impostas na construção de prédios urbanos, por razões de salubridade, segurança e estética, procurou o legislador defender ali não só o interesse público da saúde e bem-estar mas também os interesses dos proprietários dos imóveis abrangidos e que «tal objectivo de protecção individual implica o reconhecimento de um autêntico direito subjectivo» ([7]).
Tal posição não é unânime. Tem sido igualmente entendido que o RGEU não confere direitos subjectivos aos proprietários dos imóveis, não podendo as respectivas normas ser invocadas por particulares para a sua protecção face a outros particulares, havendo o reconhecimento e aplicação das normas em referência de concretizar-se pela via administrativa ([8]).
No caso que nos ocupa, qualquer que seja o entendimento por que se opte o resultado é idêntico.
Na respectiva petição inicial, no que concerne às condições e situação da chaminé, a A. apenas alegou que ela estava situada a cerca de um metro das traseiras do seu prédio; tal factualidade resultou provada (sendo, embora, possível precisar, face ao auto da inspecção ao local a fls. 122, onde se diz que entre a chaminé e a parede da empena da casa da A. distam 1,18 m, que a distância entre a chaminé e a parede era exactamente esta). Nada alegou a A. – e nada se provou, portanto - sobre as demais características da chaminé, designadamente sobre a altura da mesma relativamente às edificações circundantes.
Como vimos, de acordo com o citado art. 113 as bocas das condutas de fumo não deverão distar menos de 1m,50 de quaisquer vãos de compartimentos de habitação. Correspondendo os referidos «vãos» às portas, janelas ou quaisquer outras aberturas similares formadas na parede daqueles compartimentos, nada foi alegado nos autos sobre tal.
Aparentemente a A. não terá elegido como causa de pedir essas matérias, não alegando os pertinentes factos, pelo que não seria possível alicerçarmo-nos em tal.
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IV – 5 - Dispõe o art. 334 do CC que é ilegítimo o exercício de um direito quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.
Trata-se de uma figura correspondente a uma válvula de segurança para obtemperar à injustiça gravemente chocante e reprovável para o sentimento jurídico imperante em que, por particularidades ou circunstâncias especiais do caso concreto, redundaria o exercício de um direito conferido pela lei; é genericamente entendido que existirá tal abuso quando, admitido um certo direito como válido, isto é, não só legal mas também legítimo e razoável, em tese geral, aparece todavia, no caso concreto, exercitado em termos clamorosamente ofensivos da justiça, ainda que ajustados ao conteúdo formal do direito.
O abuso de direito pressupõe a existência do direito – direito subjectivo ou mero poder legal – embora o titular se exceda no exercício dos seus poderes. A nota típica do abuso de direito reside «na utilização do poder contido na estrutura do direito para a prossecução de um interesse que exorbita do fim próprio do direito ou do contexto em que ele deve ser exercido» ([9]).  
Segundo Coutinho de Abreu ([10]) «há abuso de direito quando um comportamento, aparentando ser exercício de um direito, se traduz na não realização dos interesses pessoais de que esse direito é instrumento e na negação de interesses sensíveis de outrem».
Menezes Cordeiro ([11]) destaca entre os comportamentos abusivos o desequilíbrio no exercício, no âmbito do qual refere «o exercício danoso inútil» com o objectivo de provocar danos na esfera alheia, contrário à boa fé, e «a desproporcionalidade entre a vantagem auferida pelo titular e o sacrifício imposto pelo exercício a outrem», referindo que tal desproporcionalidade, ultrapassados certos limites, é abusiva, defrontando a boa fé.
Afigura-se, todavia, que no caso dos autos não foram demonstrados factos que nos possam reconduzir ao abuso de direito. Existem as supra descritas emissões quando os RR. esporadicamente cozinham para si grelhados no respectivo forno, o que terá consequências desvantajosas para os RR. que têm de fechar as portas e janelas para se defenderem do fumo, fuligem, cheiros, mas não permitindo a factualidade apurada concluir os RR. exercem o seu direito excedendo manifestamente os limites impostos pela boa-fé (ou mesmo, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico do seu direito). Nem mesmo existem elementos que permitam concluir com segurança pelo aludido desequilíbrio no exercício do direito, por qualquer forma.
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IV – 6 - Do supra exposto decorre que se entende ser insubsistente a condenação dos RR. a demolirem a chaminé.
Igualmente sem fundamento resulta a condenação dos RR. a pagarem aos AA. a quantia de € 1000 a título de danos não patrimoniais. Não se verificam, para o efeito, os pressupostos previstos nas disposições conjugadas dos art. 483, nº 1 e 496 nº 1, do CC do CC – desde logo, não estaríamos em face de danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, merecessem a tutela do direito, uma vez que os simples incómodos ou contrariedades não justificam qualquer indemnização por danos não patrimoniais.
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V - Face ao exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar procedente a apelação revogando a sentença recorrida na parte em que condena os RR. a demolirem a chaminé a que se reportam os autos, bem como a pagarem aos AA. a indemnização de € 1000 e respectivos juros.
Custas da acção por A. e RR. na proporção de 9/10 para 1/10 e da apelação pela A..
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Lisboa, 10 de Maio de 2007

  Maria José Mouro
      Neto Neves
    Isabel Canadas

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[1]              Nesse sentido Abrantes Geraldes, «Temas da Reforma do Processo Civil», II vol., pag. 273.
[2]              BMJ nº 80, pags. 220-221.
[3]              Ao qual se pode aceder em  http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/ , processo 03B058.
[4]              Carvalho Fernandes, «Lições de Direitos Reais», 4ª edição, pags. 201-202.
[5]              «Código Civil Anotado», vol. II, pags. 178-179.
[6]              Publicado no BMJ nº 422, pag. 365.
[7]              Acórdão do STJ de 28-1-2003, publicado na Colectânea de Jurisprudência, ano XI, tomo 1, pag. 61 que se cita a título de exemplo.
[8]              Ver, a propósito, o acórdão desta Relação de 24-6-2003, publicado na Colectânea de Jurisprudência, ano XXVIII, tomo 3, pag. 118, no qual se diz que sendo «as restrições do R.G.E.U. prescritas exclusivamente no interesse da salubridade das construções não podem interpretar-se nunca no sentido da criação de restrições de direito privado prescritas no interesse da vizinhança», bem como o acórdão da Relação de Coimbra de 16-11-1999, publicado na Colectânea de Jurisprudência, ano XXIVV, tomo 5, pag. 29.
[9]              Pires de Lima e Antunes Varela, «Código Civil Anotado», vol. I, pag. 297.
[10]             «Do Abuso de Direito», pag. 43.
[11]             «Tratado De Direito Civil», I, Parte Geral, tomo I, 2ª edição, pag. 265.