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COMPRA E VENDA
VENDA DE COISA DEFEITUOSA
VÍCIO REDIBITÓRIO
Sumário
I – Em matéria de venda de animais defeituosos rege ainda o Decreto de 16.12.1886. II – No tocante a gado bovino, de acordo com os seus arts. 49º e 50º, a única doença passível de ser considerada como defeito para efeitos de resolução do contrato é a tísica tuberculosa, a verificar mediante o exame ou vistoria aí previsto. III – Não se tendo procedido em conformidade com este regime, não é possível procurar regular o caso mediante o recurso às regras constantes dos arts. 913º e segs. do C. Civil, por aquele diploma ser um regime especial que exclui, pelo menos no seu âmbito, a aplicação do regime geral. IV – Desconhecendo-se a causa da morte dos animais, fica excluída a hipótese de se proceder a uma interpretação actualista deste diploma no sentido de fazer relevar doenças mais modernas e suficientemente graves.
(RRC)
Texto Integral
ACORDAM NO TRIBUNL DA RELAÇÃO DE LISBOA
7ª SECÇÃO CÍVEL
I – Maria […] intentou contra Raul […] e Maria Antónia […] esta acção com processo especial para cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contratos, pedindo a sua notificação para lhe pagarem a quantia de € 13.098,28, acrescida de juros de mora vencidos até à data da entrada da providência no valor de € 615,80 e bem assim € 89,00 de taxa de justiça por ela paga, correspondendo a primeira das mencionadas quantias ao preço, não pago, de gado que foi vendido pela requerente aos requeridos.
Notificados, os requeridos deduziram oposição, invocando excepções e impugnando factos e pedindo, para o caso de não serem acolhidas as excepções dilatórias deduzidas, com a sua absolvição da instância, a sua absolvição do pedido quanto ao preço de quatro dos animais.
Realizado o julgamento, foi proferida sentença que julgou não verificadas as excepções dilatórias de ineptidão do requerimento de injunção e de ilegitimidade da autora e a acção procedente, condenando os réus no pedido.
Estes apelaram, tendo apresentado alegações onde pedem a revogação da sentença e a sua substituição por acórdão que os absolva do pedido quanto ao pagamento do preço dos animais que morreram, para tanto formulando as conclusões que passamos a transcrever:
1.ª O art.º 49º do Decreto de 16.12.1886 enumera taxativamente as doenças de animais domésticos no que toca à qualificação de vícios redibitórios.
2.ª Não foi possível determinar a ou as doenças que levaram os animais bovinos comprados pelos Apelantes a morrer.
3.ª Não é possível enquadrar a situação dos animais comprados pelos Apelantes no Decreto de 16.12.1886.
4.ª Os animais mortos tinham valor económico e constituem mercadoria defeituosa, geradora de responsabilidade do vendedor por ter sido transmitida sem aptidão para realizar a função para a qual foi comprada.
5.ª A decisão recorrida deveria ter-se socorrido da aplicação ao caso concreto do disposto nos artigos 913º e sgs., do Código Civil.
6.ª Este erro na aplicação do Direito constitui o fundamento do recurso por força do disposto no art. 690º, nº 2, do Código Civil.
7.ª A decisão recorrida está ainda em oposição com a respectiva fundamentação.
8.ª À matéria de facto dada como provada deveria corresponder a absolvição dos Apelantes do pedido de pagamento dos 4 animais mortos, por aplicação do regime do contrato de compra e venda de animais defeituosos, previsto no art. 913º e sgs. do Código Civil.
9.ª A oposição entre a fundamentação e a decisão constitui nulidade da sentença, nos termos da alínea c), do nº 1, do art. 668º, do Código de Processo Civil.
Houve contra-alegações da apelada onde esta pugna pela improcedência do recurso.
Colhidos os vistos, cumpre decidir, sendo questões sujeitas à nossa apreciação as enunciadas pelos apelantes nas conclusões que formularam – já que são estas, como é sabido, que delimitam o objecto do recurso -, ou seja, as de saber:
a) se a sentença está afectada de nulidade por contradição entre os fundamentos e a respectiva decisão – concl. 7ª e 9ª
b) se ao caso não é aplicável o Decreto de 16.12.1886, mas antes o regime dos arts. 913º e segs. do C. Civil, por isso se impondo a sua absolvição parcial do pedido – concl. 1ª a 5ª e 8ª.
II – Na sentença descrevem-se como provados os seguintes factos:
1. Em 27.05.2005, o requerido no exercício da sua actividade, comprou à requerente gado vivo, constante da factura n° 500042, junta a fls. 71.
2. Até à presente data, o requerido não pagou o valor constante da factura, de 13.098,20, que se vencia na data da factura.
3. O requerido negociou a compra de 22 animais constantes da factura referida em 1), vindos dos Açores com o Sr. Barcelos.
4. Quatro desses animais vinham com sinais de não conseguirem sobreviver.
5. O requerido denunciou logo ao Sr. […] a situação.
6. O Sr. […] viu os animais no estado que lhe foi contado pelo requerido.
7. Disse apenas ao requerido que desse umas injecções aos animais.
8. O requerido injectou os animais doentes com os medicamentos recomendados pelo Sr. […].
9. Os quatro animais acabaram por morrer.
10. Os quatro animais em causa não correspondiam aos animais sãos que o requerido pretendia adquirir.
III – Antes de iniciarmos a concreta análise das questões de que nos cabe conhecer, importa, pelo seu manifesto interesse, atentar no raciocínio e argumentos que estão na base da decisão emitida na sentença impugnada.
Podem eles ser resumidos do seguinte modo:
a) Os factos julgados como provados enquadram um contrato de compra e venda de animal defeituoso, visto que os quatro animais que faleceram já vinham doentes quando chegaram às instalações do réu.
b) À compra e venda de animais defeituosos aplica-se o regime legal traçado nos arts. 49º e 50º do Decreto de 16.12.1886; e nos arts. 49º a 58º desse diploma regula-se a compra e venda de animais domésticos defeituosos, indicando-se relativamente a alguns deles, e de modo taxativo, que doenças podem ser consideradas como vícios redibitórios. Nesse diploma igualmente se estabelece um regime diverso do geral quanto à denúncia, impondo-se ao comprador o ónus de requerer, no prazo de 10 dias completos, um exame ou vistoria de peritos para determinar a existência, ou não, do facto onde aquele faz assentar o seu direito;
c) Tal diploma considera os vícios redibitórios como uma situação de incumprimento, implicitamente aceitando que a declaração negocial dos compradores não designa a coisa em si, mas a coisa como deve ser, com todas as qualidades e sem vícios, conferindo-lhes o contrato o direito a coisa com essas características (Na passagem que acabámos de resumir a sentença seguiu de muito perto parte do Parecer do Professor Pinto Monteiro, C. J. 1994, tomo V, pág. 5 e segs.)
d) No que respeita aos bois são tidos como vícios redibitórios no seu art. 49º a tísica tuberculosa, devendo o comprador, que pretende a rescisão do contrato ou a redução do preço com base em tal vício, requerer no prazo já referido o também já aludido exame ou vistoria;
e) E, segundo o art. 57º do mesmo Decreto, no caso de os animais morrerem, o vendedor só está obrigado à garantia estabelecida quando o comprador houver requerido o dito exame no prazo referido e se demonstrar que a morte procedeu de qualquer das lesões ou moléstias previstas.
f) Os réus no caso dos autos não alegaram nem demonstraram, nem a doença que terá vitimado os quatro animais em causa, nem que tenham requerido a realização do exame ou vistoria por forma a poderem eventualmente demonstrar que a morte adveio de alguma das moléstias previstas no citado Decreto ou, pelo menos, identificar a sua causa;
h) Não podem, pois, ao abrigo das disposições legais citadas, obter nem a anulação do contrato, nem a redução do preço, para tanto invocando a morte dos quatro animais. Estão, assim, obrigados a pagar o respectivo preço e juros de mora pelo atraso no cumprimento dessa obrigação.
Sobre a nulidade da sentença:
É vício que os apelantes atribuem à decisão apelada e que radicam na alegada circunstância de a matéria de facto julgada como provada impor a absolvição dos apelantes quanto ao pagamento do preço atinente aos animais doentes, por aplicação do regime da compra e venda de animais defeituosos, plasmado no art. 913º e segs. do Código Civil. Haveria, na sua tese, uma contradição entre os fundamentos e a decisão que reconduzem à previsão do art. 668º, nº 1, alínea c) do C. P. Civil.
É bom de ver que não lhes assiste a mínima razão neste ponto.
A oposição entre os fundamentos e a decisão, integradora de nulidade da sentença, pressupõe um erro de raciocínio lógico consistente em a decisão emitida ser contrária – conclusão não permitida pelas premissas – à que seria imposta pelos fundamentos de facto ou de direito de que o juiz se serviu ao proferi-la.
Acaso os factos consagrados como verdadeiros conduzam, no plano de uma correcta aplicação do direito, a solução diversa da adoptada, estar-se-á, não perante um qualquer vício que afecte a regularidade formal da sentença, mas perante um erro de julgamento que porá em causa o seu valor intrínseco. Tal erro de julgamento, a existir, não envolverá qualquer vício da sentença, antes se repercutirá no seu mérito e só nesse enquadramento poderá ser sindicado.
E é exactamente isto que está subjacente à invocação dos apelantes que manifestamente discordam da decisão de mérito que coube aos factos apurados.
Não se verifica, pois, a arguida nulidade.
Sobre o regime legal aplicável ao caso dos autos:
Nesta matéria sustentam os apelantes que, não se sabendo de que doença morreram os animais por eles adquiridos, afastada fica a aplicação do Decreto de 1886 ao caso dos autos, já que no seu âmbito é taxativa a enumeração das doenças consideradas como vícios redibitórios, devendo recorrer-se à figura do contrato de compra e venda de coisa defeituosa e ao regime para ele consagrado nos arts. 913º e segs. do C. Civil, ao abrigo do qual lhes seria permitido não pagar o preço devido pelos animais doentes, mas cuja maleita se não apurou.
É o próprio Código Civil – diploma a que respeitam as normas de ora em diante referidas sem menção de diferente proveniência – que no seu art. 920º, respeitante à venda de animais defeituosos, ressalva a aplicação das “leis especiais ou, na falta destas, os usos sobre a venda de animais defeituosos.”
E, assim, dúvidas não existem quanto à aplicação do ainda não revogado Decreto de 16.12.1886, pese embora a distância temporal que dele nos separa.
Em face disto impõe-se concluir que, em matéria de venda de animais defeituosos, rege este diploma especial e na sua falta os usos existentes sobre a venda, não sendo inteiramente coincidentes as opiniões doutrinárias quanto à possibilidade de aplicação supletiva das normas gerais relativas à compra e venda de coisa defeituosa.
António Pinto Monteiro [1] a este propósito escreve, nomeadamente, que: (…) Uma análise comparativa do art. 920º do Código Civil com o art. 1496º do Código Civil italiano mostra que o legislador português, ao contrário do legislador italiano, pretendeu subtrair de todo a questão da venda de animais defeituosos do âmbito de aplicação das normas gerais. De facto, não pode ser outro o sentido da omissão no que se refere à possibilidade de aplicação das normas gerais (que são as normas precedentes no Código Civil italiano, ou seja, as que regulam a garantia por vícios) presente no nosso art. 920º do Código Civil. O legislador quis, verdadeiramente, que a venda de animais defeituosos, no que diz respeito aos vícios juridicamente relevantes e ao exercício dos direitos do comprador, fosse exclusivamente cometida às leis especiais e aos usos.”
Já Calvão da Silva [2] entende sobre esta a matéria que: “só nos aspectos não regulados pelas leis especiais existentes encontrarão aplicação as normas do Código Civil relativas à venda de coisas viciadas (art. 913º e segs.)”
Desnecessário será, porém, tomar partido sobre esta questão, já que, como de seguida se verá, em causa estão apenas aspectos directamente versados pelo Decreto em causa, pelo que nunca se poria o problema de, por insuficiência de regulamentação especial, haver necessidade de recorrer aos usos ou às regras gerais relativas à venda de coisa defeituosa.
De facto, e tal como se refere na fundamentação da sentença acima resenhada, nesse diploma, concretamente no seu art. 49º, descrevem-se as doenças consideradas como defeitos dos animais vendidos ou trocados, dizendo-se assim:
“São reputados vícios redhibitórios e tornam resilivel o contrato de compra e venda ou troca dos animais domésticos, salvo convenção em contrário estabelecida pelos contrahentes, as moléstias ou defeitos seguintes: (…) Para os bois: a) Atísica tuberculosa.”
Significa isto que no tocante a gado bovino a única doença passível de ser considerada como defeito é a tísica tuberculosa, só nesse caso havendo fundamento bastante para a resolução do contrato – mediante a propositura da acção redibitória (art. 56º) -, para a redução do preço ou para que o comprador, no âmbito de acção em que lhe seja pedido o pagamento do preço, legitimamente deduza a excepção do não cumprimento do contrato pelo vendedor.
Previamente, e no prazo de dez dias, compreendendo o da entrega do animal, deve, por imposição do art. 52º do mesmo diploma, requerer a realização de exame ou vistoria com vista à averiguação da existência do defeito em que fundará a acção redibitória.
Também para o caso de morte dos animais vendidos releva sobremaneira a realização de tal exame ou vistoria, a pedido formulado atempadamente pelo comprador, já que, segundo o art. 57º do mesmo Decreto, o vendedor só será obrigado à garantia nele estabelecida, quando, tendo tido lugar aquela diligência, se provar que a morte procedeu de qualquer das moléstias ou lesões previstas.
Como faz notar Calvão da Silva [3], subjacente a este regime está a ideia de que qualquer animal tem pequenos defeitos, pelo que a lei dá relevância apenas aos que considera principais e por eles responsabiliza o vendedor quando se manifestem dentro do prazo de garantia.
Ora no caso dos autos, tal como se entendeu na sentença, não foi alegado nem demonstrado que os quatro animais em causa sofressem da dita maleita, ou de qualquer outra, nem em relação a eles foi requerida, no dito prazo de dez dias, a realização de exame ou vistoria que pudesse atestar ter a sua morte sobrevindo a alguma das doenças previstas no Decreto em causa.
E, por isso, não pode concluir-se que os mesmos fossem portadores de defeito juridicamente relevante, ou seja, capaz de fundar quer a resolução do contrato, quer a deduzida excepção de não cumprimento do contrato pelo vendedor, já que este “está obrigado a entregar ao comprador o animal isento desses vícios, sendo a isenção de vícios conteúdo do dever de prestação e considerando objecto do contrato, portanto, a entrega do animal sem defeitos.” [4]
O regime aplicável é, pois, o do Decreto de 1886.
E não vale dizer, como fazem os apelantes, que o regime nele instituído se não aplica ao caso dos autos porque não lograram demonstrar os pressupostos em que tal diploma faz assentar o direito que invocam.
Tal ideia não tem, salvo o devido respeito, qualquer fundamento.
Trata-se de lei especial cuja aplicação é ressalvada pelo art. 920º - que assim subtrai da aplicação do regime da venda de coisa defeituosa que institui a venda de animais defeituosos -, não fazendo qualquer sentido sustentar, em absoluta subversão desta regra, a aplicabilidade do regime geral dos arts. 913º e segs. ao caso dos autos, por oportunamente se não ter seguido o caminho apontado por aquele diploma especial, requerendo o exame aos animais, nem se ter demonstrado que os mesmos sofressem da referida maleita, nem que a sua morte tivesse procedido de doença para o efeito relevante.
Como acima se aflorou já, mesmo que se optasse pelo entendimento defendido por Calvão da Silva que admite a aplicação das normas de natureza geral quanto a aspectos não tratados no Decreto de 1886, ainda assim, e como é bom de ver, não seria caso de recorrer ao regime geral instituído nessas normas, visto que se está no campo de matéria expressamente regulada naquele diploma especial.
E, finalmente, mesmo a entender-se, com Calvão da Silva[5], que o Decreto de 1886, pela sua vetustez, não poderia deixar de ser objecto de uma interpretação actualista, “quer na enumeração das doenças para incluir outras mais modernas e suficientemente graves, pelo critério do art. 913º do Código Civil, que justifiquem eadem ratio ou a fortiori a resolução – não a anulação – ou a redução do preço, sem prejuízo do direito à reparação das enfermidades ou substituição do animal (arts. 914º ou 918º), quer no dies a quo do prazo de garantia, para ir ao encontro do período de incubação de certas doenças graves.”, isso de modo algum aproveitaria aos apelantes, visto que, sabendo-se que os animais acabaram por morrer, desconhece-se em absoluto a doença de que eventualmente padeceriam – deve notar-se, aliás, que se julgou como provado que os animais vinham com sinais de não conseguirem sobreviver e que acabaram por morrer (factos nºs. 4 e 9), mas não se sabe o que terá motivado a situação, sendo que até a referência a doença não especificada de que sofreriam, feita constar no art. 26º da contestação, não foi considerada assente -, além de que os mesmos não foram submetidos ao indispensável e já referido exame por perito.
Não podem, assim, ser acolhidas as razões invocadas pelos apelantes, impondo-se a improcedência do recurso.
IV – Pelo exposto, julga-se a apelação improcedente, mantendo-se a sentença impugnada.
Custas a cargo dos apelantes.
Lxa. 22.05.07 (a relatora do processo esteve de baixa, por doença, entre 8.03 e 10.05.07 na sequência de intervenção cirúrgica a que foi submetida)
[1] No parecer já referido, C. J. 1994, tomo V, pág. 5 e segs. [2] Em Compra e Venda de Coisas Defeituosas , Almedina, pág. 85. [3] Obra citada, a pág. 88 [4] Autor e obra acabados de citar, pág. 88. [5] Ibidem, pág. 89.