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DIREITO DE PERSONALIDADE
OFENSAS AO BOM NOME
Sumário
1. A afirmação de um facto susceptível de pôr em perigo o crédito ou o bom nome de uma pessoa pressupõe a existência de “animus injuriandi”. 2. A falta dos elementos essencialmente integrantes do crime de injúrias ou denúncia caluniosa impede a verificação dos requisitos legais da responsabilidade civil extracontratual por factos ilícitos. 3. É o que acontece, por exemplo, se a afirmação desse facto corresponder ao exercício de um direito ou ao cumprimento de um dever. (A.L.G.)
Texto Integral
ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA
I – 1. A veio interpor a presente acção declarativa de condenação, sob a forma de processo ordinário, contra B
Pedindo a condenação do Réu a pagar-lhe a quantia de 52.972,94 Euros, acrescida de juros à taxa legal, desde a citação e até efectivo pagamento, bem como nos honorários dos mandatários do A., a liquidar em execução de sentença.
Alega para tanto, e em síntese, que, em 1996, patrocinou um arguido em julgamento criminal, tendo no âmbito desse processo inquirido o R., que prestou o seu depoimento como testemunha de acusação.
Posteriormente, por não ter gostado do modo como foi inquirido, o R. viria a apresentar queixa-crime contra o A. por injúrias agravadas, em 3 de Dezembro de 1996, na sequência da qual o A. foi constituído arguido, tendo o R. deduzido pedido de indemnização civil.
Porém, em Maio de 2000, o A. foi absolvido da acusação pública e do pedido de indemnização civil, decisão confirmada pelo Tribunal da Relação.
Em virtude do exposto o A. sofreu um desgosto profundo e grande abalo na sua reputação pessoal e profissional, além de uma considerável quebra na sua actividade profissional.
Razão pela qual pretende ser indemnizado.
2. O R. contestou, por via de excepção, invocando a prescrição do direito reclamado e alegando a ilegitimidade do A.
No demais, impugna os factos articulados e conclui no sentido da improcedência da acção.
3. O A replicou, pugnando pela improcedência das excepções invocadas e concluindo como na p.i.
4. Foi proferido despacho saneador, em sede do qual foram declaradas improcedentes as excepções deduzidas e seleccionada a matéria de facto relevante para a causa.
Realizou-se a audiência de discussão e julgamento, tendo o Tribunal “a quo” proferido sentença a julgar improcedente a acção.
5. Inconformado, o A. Apelou, tendo formulado, em síntese, as seguintes conclusões:
1 - O direito ao bom-nome é um direito de personalidade, pertencente, por conseguinte, à categoria dos direitos absolutos, consagrados, entre outros, no art. 26º da CRP.
2 - Os arts. 70° e 81º do CC, transpõem a ideia constitucionalizada da protecção à pessoa humana para o campo do direito civil.
3 - Assim, correndo uma ofensa ilícita ao direito ao bom-nome, a Lei admite que haja lugar à responsabilidade civil por factos ilícitos (cf. art. 70°, nº 2, conjugado com o art. 483º, ambos do Cód. Civil).
4 - Os factos apurados nestes autos, demonstram, sem sombra para dúvidas, que o comportamento do aqui Apelado é ilícito, na medida em que este apresentou uma queixa-crime contra o aqui Apelante, fundamentada em factos que se vieram a demonstrar serem falsos.
5 - O Apelado, violou ilicitamente direitos do aqui Apelante, por ofensa ao crédito e ao bom-nome, ficando constituído, em consequência, na obrigação de o indemnizar pelos danos, considerados todos eles provados nos autos e resultantes dessa violação.
6 - O direito de queixa, não pode, em princípio, atentar contra o bom-nome e reputação de outrem, neste caso do aqui Apelante, pelo que, estamos perante o conflito de dois direitos constitucionalmente garantidos – o direito de queixa, exercido pelo aqui Apelado e o direito à honra e ao bom-nome, do aqui Apelante – que terá de ser resolvido, nos termos do art. 335º do CC.
7 - A conduta do aqui Apelado – ao consubstanciar a queixa-crime em factos falsos – mostra-se desajustada do comportamento que qualquer pessoa diligente adoptaria, sendo censurável, culposa, ilícita e traduzindo abuso de direito – cf. art. 334º do CC.
8 - É, assim indubitável, a conclusão, que o aqui Apelado agiu ilícita e culposamente – cf. art. 483°, nº 1 e 487º, nº 2, ambos do CC.
9 – E assim, terá de concluir-se de modo diverso ao do Tribunal "a quo ", na medida em que existe obrigação indemnizatória na esfera jurídica do R., aqui Apelado, pelos danos causados, com a sua conduta ilícita, ao aqui Apelante.
10 - Indemnização, cujo montante, deverá ser fixado equitativamente pelo Tribunal, nos termos e para os efeitos do disposto nos arts. 496º, nº 3 e 494º, do Cód. Civil.
11 - Com a sentença, ora em recurso, violou ainda o Tribunal "a quo" o art. 26º da C.R.P., dos quais fez uma incorrecta interpretação e aplicação da Lei ao caso em apreço, por isso, é ilegal e injusta e, nessa medida, deve ser revogada.
6. Foram apresentadas contra-alegações.
7. Corridos os Vistos legais, Cumpre Apreciar e Decidir.
II – Os Factos: - Mostram-se provados os seguintes factos:
1 - O R. é actualmente Inspector…. No ano de 1996 era Agente e exercia funções na Direcção …(al. a) dos factos assentes).
2 - No decurso de 1996, o A. patrocinou o arguido C, que era acusado dos crimes de tráfico de estupefacientes e associação criminosa (…) (al. b) dos factos assentes).
3 - No âmbito da sua actividade profissional, no dia 03.06.1996, prestou o seu depoimento como testemunha de acusação no decurso da Audiência de Discussão e Julgamento realizada no âmbito daquele processo (al. c) dos factos assentes).
4 - O R. tinha participado na investigação daquele processo-crime, motivo pelo qual veio a ser arrolado como testemunha de acusação pelo Ministério Público (al. d) dos factos assentes).
5 - Na sequência do depoimento prestado pelo R., o A. inquiriu-o na qualidade de mandatário do arguido que patrocinava naquele processo (al. e) dos factos assentes).
6 - A determinada altura da inquirição e porque o R. referia que tinha visto o arguido com droga, enquanto do auto de diligência externa elaborado naqueles autos, resultava que os agentes apenas tinham "ouvido" ou "percebido" essa situação.
7 – O Autor, na qualidade de mandatário do arguido C, referiu que "alguém está a mentir" (al. g) dos factos assentes).
8 - A 03.12.1996, o R. apresentou queixa-crime contra o A., por difamação e injúrias agravadas, na sequência do que o A. veio a ser constituído arguido e foi-lhe aplicada a medida de coacção de termo de identidade e residência. Posteriormente veio ser deduzida acusação contra o aqui A. (al. h) dos factos assentes).
9 - Na sequência da acusação deduzida contra o aqui A., o R., que já havia requerido a sua constituição como assistente, veio aderir à acusação pública e a deduzir pedido de indemnização civil contra o aqui A., o qual veio a contestar tal pedido, bem como requereu a abertura da instrução (al. i) dos factos assentes).
10 - Realizada a instrução, foi proferido despacho de pronúncia contra o aqui A. (al. j) dos factos assentes).
11 - Em 19.11.98, o A. apresentou a sua contestação (…).
12 - Em 20.05.99, o A. veio a requerer naqueles autos que não lhe fosse aplicada a Lei da Amnistia (al. m) dos factos assentes).
13 - Realizou-se a audiência de discussão e julgamento, a qual se prolongou por várias sessões (al., n) dos factos assentes).
14 - Em 12.05.2000, foi proferida sentença naqueles autos que absolveu o arguido e foi julgado improcedente o pedido cível. Recorreu o Ministério Público, tendo sido proferido Acórdão pelo Tribunal da Relação de Lisboa, em 21.12.2000, que negou provimento ao recurso e confirmou a sentença recorrida (al. o) dos factos assentes).
15 - O R., enquanto profissional a prestar serviço …, deslocou-se várias vezes a Tribunal para prestar o seu depoimento enquanto testemunha de acusação arrolada pelo Ministério Público, no âmbito dos processos em que interveio na investigação (al. p) dos factos assentes).
16 - O A. exerce a advocacia há 25 anos, dedicando-se, fundamentalmente, à área do direito criminal, tendo, ao longo destes anos, patrocinado vários arguidos em processo-crime.
17 - A expressão referida em 7), proferida pelo aqui A., pretendeu chamar a atenção para a eventual discrepância entre o depoimento do aqui R. e o auto de diligência externa que se encontrava naqueles autos (art. 2° da BI).
18 - O A. apenas teve como objectivo defender os interesses do seu patrocinado (art. 3º da BI).
19 - Na sequência da informação prestada pelo DIAP à Ordem dos Advogados, de que se encontrava a decorrer um inquérito criminal contra o aqui Autor, aquela instaurou contra o A. um processo de apreciação prévia, que veio a ser arquivado (art. 4º da p.i.).
20 - O A. nada tinha de pessoal contra o R., tendo afirmado como referido em 7), sem qualquer propósito de ofender ou denegrir a imagem do R (art. 5º da BI).
21 - O R. bem sabia quais as funções dos advogados de defesa dos arguidos, bem como conhecia a forma como decorrem as inquirições (art. 6° da BI).
22 - O R. nunca apresentou qualquer queixa-crime para com qualquer outro advogado (art. 7° da BI).
23 - Tal facto foi notícia na imprensa escrita.
24 - À data dos factos o A. exercia a sua actividade profissional há cerca de 18 anos, usando de urbanidade para com clientes, colegas, magistrados, funcionários judiciais e demais intervenientes processuais.
25 - Enquanto cidadão tem tido uma conduta irrepreensível (art. 13° da BI).
26 - Nunca ninguém, até então, tinha apresentado qualquer queixa-crime contra o aqui A. (art. 14° da BI).
27 - A apresentação da queixa-crime contra o A., o decurso de todo o processo que durou 4 anos, bem como a existência de uma participação à O. A., deixaram o A. transtornado, provocando-lhe sofrimento (art. 15° da BI).
28 - O A. sentiu-se enxovalhado e humilhado, quer como advogado, quer como cidadão (art. 16° da BI).
29 - O A. é um profissional e cidadão sério, honesto, zeloso, respeitável e merecedor de toda a consideração social (art. 17° da BI).
30 - Com a conduta do R., o A. sentiu-se denegrido profissional e civilmente (art. 18° da BI).
31 - O A. desloca-se diariamente a vários Estabelecimentos Prisionais e Tribunais Criminais (art. 19° da BI).
32 - Colegas, guardas prisionais e arguidos presos sabiam que o A. tinha um processo a correr contra si (art. 20 da BI).
33 - Das várias vezes que o A. se deslocou para prestar declarações ao Ministério Público, Tribunal de Instrução Criminal e nas várias sessões de julgamento em Tribunal, acabou por encontrar, para além de outros colegas, funcionários judiciais, guardas prisionais e arguidos presos, que o conheciam profissionalmente, o que lhe causou um sofrimento profundo e enorme consternação (art. 24° da BI).
34 - Regista para sempre na memória a circunstância de se ter sentado no "banco dos réus", na realização do debate instrutório e da audiência de julgamento, o que constituiu, enquanto Advogado e enquanto cidadão, o facto mais desagradável porque passou até hoje e lhe provocou um desgosto profundo (art. 25° da BI).
35 - Em consequência do que se descreve, o A. sofreu uma depressão e necessitou de acompanhamento médico especializado (art. 26° da BI).
36 - O A. viu afectada, em consequência do que se descreve, a sua vida familiar, social e profissional, que só conseguiu reabilitar e normalizar após a sua absolvição (art. 27° da BI).
37 - Para a recuperação da estabilidade emocional, familiar e profissional do A. pode contar com o apoio da sua família, amigos, colegas e até de magistrados, que conhecendo bem o A. e considerando-o, nunca lhe negaram o apoio de que tantas vezes necessitou (art. 28° da BI).
38 - Após ter tomado conhecimento de que Tribunal da Relação havia confirmado a sentença recorrida, ainda necessitou de um considerável período de tempo para se recuperar de todo o sofrimento que o R. lhe causou (art. 29° da BI).
39 - O A. já conseguiu recuperar quase totalmente a sua estabilidade emocional (art. 30° da BI).
40 – O mandatário constituído do A. e que lhe assegurou toda a defesa no processo-crime apresentou uma nota de honorários no valor de 7.500,00 Euros.
41 – Satisfez o pagamento de encargos e custas judiciais no valor de Esc. 44.695$00.
42 – Teve que empreender deslocações várias.
III – O Direito: 1. Através da presente acção pretende o Autor/Apelante ser indemnizado em virtude do desgosto profundo sofrido, quer enquanto pessoa, quer enquanto profissional, por actos praticados pelo Réu, que o atingiram no seu bom-nome, honra e consideração.
O facto praticado pelo Réu consistiu, em síntese, na apresentação de uma queixa-crime contra o A., por difamação e injúrias agravadas, tendo o A. sido constituído arguido em processo-crime.
O que despoletou tal situação foi o facto de o A. ter dito que “alguém estava a mentir” (referindo-se ao Réu), quando o A. interrogava o arguido de que era mandatário num processo-crime, em julgamento, e no qual o Réu também estava a depor, devido à sua actividade profissional, como testemunha de acusação
Processo que culminou com a absolvição do A. depois de todo o processado, incluindo a audiência de discussão e julgamento.
Com base no referido circunstancialismo fáctico pretende o Autor que o Réu seja condenado a indemnizá-lo por ofensa ao crédito e bom-nome do Autor, aqui Apelante. Argumentando, para o efeito, que com a apresentação da referida queixa-crime, por parte do Réu, terá este pretendido prejudicá-lo, denegrindo e ofendendo publicamente a sua imagem enquanto ser humano e profissional.
Vejamos se lhe assiste razão.
2. Está em causa, na presente acção, a tutela geral da personalidade, e enquanto princípio geral legal de protecção dos indivíduos, a lei ordinária, na salvaguarda do princípio constitucional do direito de todos os cidadãos ao bom-nome e reputação e o direito à imagem, consagrado no art. 26º da Constituição, protege-os igualmente contra qualquer ofensa ilícita ou ameaça de ofensa à sua personalidade física ou moral – cf. nº 1 do art. 70º do CC.
Essa protecção, conferida por lei, implica que a ofensa praticada seja ilícita, sancionando-se todos os factos voluntários ilícitos que sejam ofensivos da personalidade física ou moral de qualquer cidadão.
Resulta do nº 2 do art. 70º do CC que à responsabilidade por ofensa aos direitos de personalidade são aplicáveis, em termos gerais, os arts. 483º e segts do CC.
Estabelece, por sua vez, o art. 484º do CC que, quem afirmar ou difundir um facto capaz de prejudicar o crédito ou o bom-nome de qualquer pessoa, singular ou colectiva, responde pelos danos causados.
Assim, a ofensa do crédito e do bom-nome prevista no art. 484º do CC apresenta-se como um caso especial de facto antijurídico definido no art. 483º do CC e subordinado aos pressupostos nestes enunciados, os quais são cumulativos.
O que significa que a obrigação de indemnizar, com fundamento em tais factos e resultantes daquela modalidade de responsabilidade, pressupõe a prática de um acto ilícito (e culposo) que tenha causado prejuízo a alguém.
Daqui decorre que, não basta, pois, a mera existência de prejuízo ou danos morais. Exige-se, sobretudo, que o facto voluntário praticado pelo lesante tenha um carácter de ilicitude, de contrariedade por parte do lesante, com os comandos que lhe são impostos pela ordem jurídica, e impõe-se a infracção de deveres jurídicos, quer por omissão, quer por acção.
3. Violando o seu dever de abstenção ou praticando actos violadores de deveres jurídicos face à personalidade física ou moral de outrem, o lesante pratica um facto positivo ou uma acção ilícita, (1) tornando-se responsável pelos prejuízos que determinar.
E considera-se expressamente como antijurídica e ilícita a afirmação ou difusão de um facto capaz de prejudicar o crédito ou bom-nome de qualquer pessoa, desde que “seja susceptível, dadas as circunstâncias do caso, de diminuir a confiança na capacidade e na vontade da pessoa para cumprir as suas obrigações (prejuízo do crédito) ou de abalar o prestígio de que a pessoa goze ou do bom conceito em que seja tida (prejuízo do bom nome) no meio social em que vive ou exerce a sua actividade”. (2)
4. Não obstante o que ficou dito, em matéria de direitos de personalidade, pode acontecer que o facto lesante tenha sido praticado no exercício regular de um direito, no cumprimento de um dever, ou mesmo em legítima defesa ou mera acção directa.
Em tais circunstâncias não se poderá afirmar, sem mais, que o facto ou acto praticado seja ilícito. “Assim, não é ilícito o facto praticado no exercício legítimo de um direito. Tal causa de exclusão tem carácter geral e encontra tradução na al. b) do nº 2 do art. 31º do CP, no âmbito da consideração da ordem jurídica como totalidade”. (3)
Esclarece, ainda, o mesmo Autor, que:
“A ilicitude não tem obviamente lugar quando se exercitam poderes derivados da prevalência, ou ordenada pela lei na regulação dos interesses da vida real, de certo interesse, através da atribuição de um direito subjectivo, com denegação de relevo jurídico o interesse conflituante.
Pelo que, o titular de um direito não tem de responder civilmente pelos prejuízos na esfera da personalidade de outrem que, embora causados pelo exercício desse direito, representem, de um ou de outro modo, a frustração dos interesses que a lei postergou ao conceder esse direito. É este o entendimento corrente do princípio «qui iure suo utitur nemini facit iniuriam».
Para depois concluir: “Só que aqui, não se estará propriamente perante uma causa justificativa da ilicitude, na medida em que não há como que uma prévia ilicitude que seja sequencialmente justificada, nem há, por conseguinte, um autêntico acto lesivo. Estamos, sim, perante a determinação do próprio âmbito normativo do direito que, directamente, torna lícita a prevalência de certos interesses sobre outros e lícitos os actos em que essa prevalência se exprime”.
Tudo isto para dizer que, a afirmação ou divulgação de um facto pode, no entanto, não ser ilícita, se corresponder ao exercício de um direito ou faculdade ou ao cumprimento de um dever. (4)
Sendo também uniforme o entendimento jurisprudencial que defende que a violação do direito de personalidade pode ser afastada quando o facto do lesante é praticado no exercício regular de um direito, no cumprimento de um dever, em acção directa, em legítima defesa ou com o consentimento do lesado.(5)
5. Reportando-nos ao caso concreto constatamos que:
Resulta dos autos que o Autor apenas Apelou da sentença na parte da aplicação do direito, tendo, pois, transitado a decisão relativa à matéria de facto proferida pelo Tribunal “a quo”. Sendo esta inalterável, a subsunção jurídica há-de forçosamente assentar nos factos dados provados, nos precisos termos em que resultam do presente processado.
E provado ficou que o Autor, referindo-se ao Réu, disse que “alguém estava a mentir” (o que decerto terá sido entendido por este como estando a chamar-lhe “mentiroso”) e que, por tal facto, o Réu apresentou queixa-crime contra o Autor por difamação e injúrias agravadas – cf. factos integrados nos pontos 6) a 8) dos factos provados. A dedução de queixa, em processo-crime, tal como se deixou expresso nos pontos antecedentes, constitui o exercício legal de um direito que é reconhecido em sede constitucional e processual penal, com o alcance que foi supra referido.
Destarte, só o exercício excessivo desse direito pode ser censurável.
E para esse efeito teria de ser feita a prova de que o seu exercício teve em vista prejudicar o A. e denegrir a imagem e o bom-nome deste. E que a denúncia tivesse sido caluniosa.
Ora, o elemento descritivo típico da denúncia caluniosaconsiste na consciência da falsidade da imputação do que se alega e pretende provar – má-fé substancial ou material –, não sendo, porém, uma mera resultante lógica da absolvição do arguido da correspondente factualidade.
E a verdade é que, dos factos quesitados e relativos às intenções do Réu, que integravam o quesito 9º, da Base Instrutória, foi dada a resposta de “Não Provado” – cf. fls. 646.
Ou seja: não ficou provado que“O Réu pretendeu, com a apresentação da referida queixa-crime, prejudicar, ofender e denegrir publicamente a imagem do aqui Autor, enquanto Homem e Advogado” – cf. fls. 131 e 646.
Falhou a prova da intenção do Réu, do elemento subjectivo, e dessa consciência inerente aos factos.
E a falta de elementos essencialmente integrantes do crime de denúncia caluniosa não permite configurar os pressupostos da responsabilidade civil extracontratual, por factos ilícitos, decorrentes da afirmação ou da divulgação de um facto susceptível de pôr em perigo o crédito ou o bom-nome de uma pessoa. (6)
6. Nada se tendo provado a este respeito, não pode, pois, considerar-se ilícita a conduta do Réu, de molde a dar como verificados os pressupostos de responsabilidade extracontratual por factos ilícitos, nem, por conseguinte, condenar o Réu a ressarcir o Autor – cf. arts. 483º e 484º, ambos do CC.
Porquanto, não se tendo apurado que com a apresentação da referida queixa-crime o Réu pretendesse ofender, ou tivesse a intenção de denegrir publicamente a imagem do Autor, ou que tivesse exercido abusivamente o seu direito de queixa, não se podem dar por verificados os requisitos da responsabilidade civil extracontratual por factos ilícitos estabelecida nos arts. 483º e 484º, ambos do CC, por inexistência dos seus pressupostos: a ilicitude e a culpa.
Destarte, pese embora os danos sofridos pelo Autor, não pode o Réu ser condenado a indemnizá-lo, por falência dos respectivos pressupostos legais.
7. Em tal circunstância, também não se vislumbra qualquer colisão dedireitos.
Com efeito, acolisão de direitos prevista no citado art. 335º, do CC, pode ter lugar em duas situações:
a) - relativamente a direitos iguais ou da mesma espécie – caso em que, segundo o seu nº 1, devem os titulares ceder na medida do necessário para que todos produzam igualmente o seu efeito, sem maior detrimento para qualquer das partes;
b) - e quanto aos direitos desiguais ou de espécie diferente – em que o princípio estabelecido no seu nº 2 impõe a prevalência do direito que deva considerar-se superior.
Daqui decorre que a colisão de direitos tanto pode ter lugar nos casos de direitos iguais, como naqueles em que os objectos jurídicos são diversos e desiguais, desde que os exercícios e tutelas desses direitos se mostrem colidentes.
O que exige, para a emanação de uma decisão, que se atente na natureza dos interesses juridicamente tutelados e em conflito. Há, assim, que proceder a uma criteriosa identificação e ponderação, “quer dos bens juridicamente tutelados pelas normas jurídicas estruturantes dos direitos colidentes, quer dos conteúdos dos poderes jurídicos resultantes destes direitos, quer ainda, das modalidades de actividade material concretamente exercitadas pelas partes, e os interesses efectivamente prosseguidos por estas”.(7)
Ponderação que igualmente depende, segundo Hubmann,(8) não só de uma comparação abstracta de bens e valores jurídicos tutelados, mas também da própria situação concreta.
Assim sendo, a definição da superioridade de um direito em relação a outro terá necessariamente de ser feita em concreto, pela ponderação dos interesses que cada titular visa atingir.
Entendimento que tem suporte na doutrina e jurisprudência.(9)
Será, pois, em função dos factos reais apurados, das actividades desenvolvidas e dos comportamentos conflituantes – aferidos em concreto – que se deve apurar qual o direito que releva juridicamente e que, nessa medida, deve ser tutelado.
Procedendo-se à hierarquização legal desses valores para, a final, se determinar para que lado pendem os pratos da balança jurídica de tais valorações.
Ora, in casu, parece evidente que o direito de queixa que foi regularmente exercido pelo Réu, ao abrigo de um direito legalmente instituído, e sem que prossiga um interesse que o exorbita ou extravase, não colide com qualquer direito do Apelante digno de tutela.
Pelo que, entendemos que não faz sentido falar-se na existência de colisão de direitos.
8. Por fim dir-se-à que tão pouco existe violação ao art. 26º da CRP, pois esta norma remete para a lei ordinária o estabelecimento das garantias efectivas dos direitos pessoais aí consagrados.
E a interpretação a fazer da lei ordinária é aquela a que se chegou nos pontos anteriores.
9. Igualmente não existe abuso de direito, por falta dos requisitos legais do art. 334º do CC.
A noção de abuso de direito foi consagrada no CC de 66, no art. 334º, segundo a concepção objectiva: para que haja lugar a abuso de direito é necessário a existência de uma contradição entre o modo ou o fim e o interesse ou interesses a que o poder nele consubstanciado se encontra adstrito. (10)
Tal acontecerá, também, no entender de Vaz Serra, perante a “clamorosa ofensa do sentimento jurídico socialmente dominante”.(11)
Ora, não se vislumbra dos autos por parte do Réu o abuso manifesto dos limites impostos pela boa-fé ou pelos bons costumes nos termos consagrados pelo art. 334º do CC.
10. Nestes termos, falece a presente Apelação.
11. Mostrando-se a questão controvertida e passível de interpretação jurídica, entendemos que não estão reunidos os pressupostos legais para condenar o Autor como litigante de má-fé.
IV – Decisão:
- Termos em que se acorda em julgar improcedente a Apelação e se confirma a sentença recorrida.
- Custas pelo Apelante. Lisboa, 31 de Maio de 2007. Ana Luísa de Passos Geraldes (Relatora) Fátima Galante Ferreira Lopes __________________________
1 A este propósito cf. o Acórdão da Relação de Lisboa, de 25/11/2004, 6ª Secção, in www.dgsi.pt.
2 Neste sentido Pires de Lima e Antunes Varela, in “Código Civil Anotado”, pág. 486.
Cf. também o Acórdão da Relação de Lisboa, de 29/03/2007, 6ª Secção, in www.dgsi.pt.
3 Neste sentido, Capelo Sousa, in “Direito Geral de Personalidade”, pág. 436. Cf. tb o Acórdão citado de 25/11/2004.
4 Cf. Pires de Lima e Antunes Varela, in “Código Civil Anotado”, pág. 486 e segts.
5 Por todos, cf. Acórdão do STJ, de 3/10/1995, in BMJ., pág. 429.
6 Assim igualmente o decidiu o Acórdão da Relação de Coimbra, de 20/03/2001, proferido no âmbito do Proc. Nº 376/2001, in www.dgsi.pt.
7 Neste sentido veja-se Rabindranath Capelo de Sousa in “O Direito Geral de Personalidade”, pág. 553 e segts.
8 Autor Alemão citado por Rabindranath, ibidem,...
9 Veja-se Pessoa Jorge in “Pressupostos da Responsabilidade Civil”, pág. 201, citado por Abílio Neto in CC Anotado, e decisão transcrita na CJ, ano 1989, T. 1º, pág. 276.
10 Sobre o conceito do abuso de direito, cf. Menezes Cordeiro, in “da Boa Fé no Direito Civil”, II, vol., 1985, págs. 661 e segts.
11 Citado nos autos; cf. BMJ nº 85º, pág. 253.