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PRIVILÉGIO CREDITÓRIO
CRÉDITO LABORAL
TRABALHADOR MARÍTIMO
NAVIO
GRADUAÇÃO DE CRÉDITOS
Sumário
I – Os créditos salariais dos tripulantes de navio gozam do privilégio creditório sobre o navio conforme estabelece o art.º 578.º do Código Comercial, independentemente de terem (ou não) origem na última viagem e por motivo dela. II – Tais créditos devem ser graduados com prioridade em relação à penhora sobre o navio. (sumário elaborado pelo relator)
Texto Integral
Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação de Lisboa
I – Relatório
No processo comum intentado por (A), contra (D), Lda., foi esta condenada por decisão transitada em julgado, no pagamento ao autor da quantia de 5.217,66 euros, acrescida de juros de mora vencidos e vincendos, à taxa anual de 4%, desde a citação até integral pagamento.
Nos autos de execução da referida sentença, foi efectuada penhora de bens móveis em 20.12.2005, estando em causa, como se diz na sentença de graduação de créditos, a penhora de um navio.
Por apenso aos referidos autos de execução, vieram reclamar créditos:
- (J) – fls. 4 - (trabalhador da executada), por dívida respeitante a cessação de contrato individual de trabalho, no valor de 10.058,28 euros, e juros;
- BANCO, SA, devido a hipoteca sobre o navio "PELICANO", no montante de 6.867.017,89 euros, e juros;
Foi proferida sentença de graduação de créditos cuja parte dispositiva se transcreve:
“Pelo exposto, reconheço os supra referidos créditos reclamados, e procedo à sua graduação da seguinte forma: 1° - crédito reclamado pelo Banco Millennium BCP Investimento, SA; 2° - crédito do exequente. 3° - crédito do credor (J).”
Inconformado com a sentença, vieram, o exequente (A) e o credor reclamante (J) interpor recurso de apelação para este Tribunal da Relação.
O exequente (A) apresentou doutas alegações, com as seguintes conclusões:
(…)
Termina pedindo a revogação da decisão recorrida, bem como, determinar-se a realização de nova graduação de créditos que respeite o privilégio creditório do trabalhador recorrente.
O credor Millenium contra-alegou, pugnando pela manutenção da decisão recorrida.
Admitidos os recursos na forma, com o efeito e no regime de subida devidos, subiram os autos a este Tribunal da Relação.
O Exmo. Magistrado do Ministério Público emitiu douto parecer no sentido de ser mantida a decisão recorrida.
Nada obstando ao conhecimento da causa, cumpre decidir.
Os recursos têm como âmbito as questões suscitadas pelos recorrentes nas conclusões das alegações (art.ºs 690º e 684º, n.º 3 do Cód. Proc. Civil) , salvo as questões de conhecimento oficioso (n.º 2 in fine do art.º 660º do Cód. Proc. Civil).
Assim, as questões essenciais a que cumpre dar resposta nos recursos interpostos são as seguintes:
1 - Do recurso interposto pelo exequente:
-se o crédito do exequente é um crédito privilegiado e, na positiva, qual o regime legal aplicável ao referido crédito;;
- se o crédito do exequente deve ser graduado em 1° lugar, à frente do crédito do Banco reclamante garantido por hipoteca.
- Se o parágrafo único do art.º 585.º do CComercial, interpretado conforme consta da sentença recorrida, viola o estabelecido no art.º 59.º n.º 1 al. a) da CRP
2 - Do recurso interposto pelo recorrente (J):
- Se o crédito do trabalhador é um crédito que goza de privilégio imobiliário geral sobre os bens imóveis do empregador, ficando assim abrangidos pelo art.º 751° do Código Civil (alterado pelo DL 38/2003), ou seja sendo considerados privilégios creditórios imobiliários especiais;
- Se o crédito do trabalhador reclamante deve ser graduado antes do crédito hipotecário do credor reclamante Millenium
II - FUNDAMENTOS DE FACTO
Os factos considerados provados, com interesse para a decisão da causa, são os seguintes:
A – No processo comum referido no relatório acima, foi a ali ré (D) condenada a pagar, ao ali autor (A), a quantia de 5.217,66 euros, referente a metade do vencimento referente ao mês de Março de 2005, no valor de C 1.000;
vencimento referente ao mês de Abril de 2005, no valor de C 2.000; vencimento referente ao mês de Maio de 2005, no valor de E 2.000;
vencimento referente a três dias do mês de J o de 2005, no valor de € 199,99,
o que totaliza a quantia de € 5.199,99.
acrescida de juros de mora vencidos e vincendos, à taxa anual de 4%, desde a citação e até integral pagamento.
B – Nessa decisão foram considerados confessados por falta de contestação, os factos alegados pelo autor, e que, nos termos da p.i., são os seguintes:
1 - O A. é trabalhador inscrito marítimo, tem a categoria profissional de electricista e é titular da Cédula de Inscrição Marítima n° P 4, emitida pela Capitania do Porto de Aveiro (Doc. 1).
2° - Nessa qualidade, no início de Fevereiro de 2005, o A. celebrou com a R. um contrato verbal pelo qual se obrigou, mediante retribuição, a prestar a sua actividade à R. para exercer as funções de electricista a bordo da draga "Pelicano", sob a autoridade e direcção desta.
3° - Foi acordado entre as partes que o A. estaria ao serviço da R., pelo período de tempo que durasse a reparação da draga " Pelicano".
4° - A draga " Pelicano " estava acostada no cais da Quimiparque, no Barreiro, a realizar diversas reparações.
5° - Foi acordado entre o A. e a R. que aquele trabalharia 8 horas por dia de segunda a sexta-feira e que receberia um vencimento mensal de €2000 ( dois mil euros).
6° - O A. iniciou a prestação do trabalho à R. no dia 3 de Fevereiro de 2005.
7.º - O A. foi inscrito como tripulante da draga " Pelicano ", como se demonstra pela lista da tripulação.
8° - À data da cessação do contrato – 3.6.2005 – a ré devia ao autor as seguintes quantias:
- metade do vencimento referente ao mês de Março de 2005, no valor de € 1.000;
- vencimento referente ao mês de Abril de 2005, no valor de € 2.000;
- vencimento referente ao mês de Maio de 2005, no valor de € 2.000;
- vencimento referente a três dias do mês de Junho de 2005, no valor de € 199,99,
o que totaliza a quantia de € 5.199,99.
C - Nos autos de execução da referida sentença, foi efectuada, em 20.03.2006, a penhora de uma “Draga de sucção com o nome “Pelicano”, registada no Registo Internacional de Navios da Madeira sob o n.º 1212, registo IMO n.º 7340631, indicativo de chamada CQVN, com tonelagem de arqueação bruta (tab) 2.929 t”
D - Para garantia de empréstimo já vencido foi constituida, sobre o referido navio, uma hipoteca a favor do credor reclamante BANCO S.A.;
E – Essa hipoteca encontra-se registada a favor do reclamante, respectivamente no Registo Internacional de Navios da Madeira e na Conservatória do Registo Comercial da Zona Franca da Madeira.
F – O reclamante (J) detém sobre a executada um crédito já vencido no valor de € 10.058,28 devido nos termos do “Acordo de Pagamento Decorrente de Cessação de Contrato Individual de Trabalho”.
III – FUNDAMENTOS DE DIREITO
Estamos perante uma reclamação de créditos em que a questão fulcral que se coloca é a de saber como se graduam os créditos do exequente e do credor (J) (créditos salariais) e do credor hipotecário BANCO, S.A..
A sentença recorrida graduou, como acima deixámos dito, em 1.º lugar o crédito do Banco, em 2.º lugar o crédito do exequente e em 3.º lugar o crédito de (J).
É contra este entendimento que, quer o exequente, quer (J), se insurgem.
Analisemos a questão.
Em primeiro lugar há que definir o regime jurídico aplicável aos mencionados créditos.
O exequente entende ser aplicável ao seu crédito o regime estabelecido nos art.ºs 574.º e segs. do Código Comercial (por se tratar de crédito marítimo) e na Convenção internacional para a unificação de certas regras relativas aos privilégios e hipotecas marítimas, assinada em Bruxelas em 10 de Abril de 1926 (e não pelo disposto no artigo 737° do Código Civil) – o que o recorrido contesta por entender que a referida convenção não é aplicável ao caso, defendendo ainda que o crédito do recorrente não é um crédito marítimo.
Estamos perante a penhora e hipoteca de navio português (facto sob C – navio registado no Registo Internacional de Navios da Madeira sob o n.º 1212, registo IMO n.º 7340631, indicativo de chamada CQVN, com tonelagem de arqueação bruta (tab) 2.929 t e, por isso, considerado nacional nos termos do art.º 3.º do DL 201/98 de 10.07 que define o Estatuto Legal do Navio), sendo portugueses os credores reclamantes, e a hipoteca foi registada, também, em Portugal.
Todos os elementos da relação jurídica se encontram exclusivamente conexionados com a ordem jurídica interna.
Nos termos do corpo do art.º 488.º do Cód. Comercial, “As questões sobre propriedade do navio, privilégios e hipotecas que o onerem são reguladas pela lei da nacionalidade que o navio tiver…”
Assim, tal como defende o recorrido, entendemos que ao caso dos autos é aplicável o direito material português e não a Convenção internacional para a unificação de certas regras relativas aos privilégios e hipotecas marítimas, assinada em Bruxelas em 10 de Abril de 1926.
Como ensina Salvador da Costa in Concurso de Credores, 3.ª Edição, Almedina, pág. 157, “Quando uma situação jurídica só se ache conexionada através de qualquer um dos seus elementos – sujeitos, vontade, objecto, facto jurídico -, com a ordem jurídica portuguesa, certo é inexistir, em regra, uma questão privada internacional, sendo, então, exclusivamente aplicável o direito material português”.
Sendo, como é, aplicável o direito material português, vejamos, agora, se os indicados créditos beneficiam de preferência no pagamento em relação a outros.
1 – O crédito do exequente
Dos factos assentes resulta que o crédito do exequente é um crédito fundado no contrato de trabalho celebrado entre a executada e o exequente e provém dos salários referentes aos meses de Março, Abril, Maio e Junho de 2005, tendo o exequente sido contratado para prestar a sua actividade de electricista a bordo da draga "Pelicano", sob a autoridade e direcção da executada, durante o período de tempo em que o referido navio estivesse em reparação, sendo certo que o navio estava acostado no cais da Quimiparque, no Barreiro, a realizar diversas reparações.
Mais resulta dos factos assentes que o trabalhador foi inscrito como tripulante do navio penhorado.
Os salários dos tripulantes têm privilégio sobre o navio nos termos do art.º 578.º, ponto 6.º do Código Comercial.
É discutida, quer na doutrina, quer na jurisprudência, se esses salários só beneficiam do referido privilégio se forem referentes à “ultima viagem ou por motivo dela”, pois que, o § único do mencionado art.º 578.º estabelece que “As dívidas mencionadas nos n.ºs 1.º a 9.º são as contraídas durante a última viagem e por motivo dela”.
No sentido de que essas dívidas só gozam do mencionado privilégio creditório se “contraídas durante a última viagem e por motivo dela”, já se pronunciaram, entre outros, Fernando Olavo, Privilégios Creditórios Sobre o Navio – Um Feixe de Questões”, CJ 1984/5/15, e Salvador da Costa, Ob. Cit. Pág. 204 e no voto de vencido subscrito pelos Senhores Conselheiros Salvador da Costa e Armindo Luís no Ac. Do STJ de 17.11.2005 in www.dgsi.pt.
No sentido de que o privilégio se constitui independentemente de o salário ter ou não origem na última viagem e por motivo dela decidiu o referido Ac. do STJ de 17.11.2005, e jurisprudência e doutrina aí citada.
Diz-se naquele acórdão:
“…parece evidente, como decorre do disposto no art. 574º do C. Comercial, que todos os créditos enumerados no art. 578º gozam de privilégio mobiliário especial sobre o navio e devem, em princípio, ser graduados pela ordem por que se encontram enunciados.
Cremos, na verdade, "em face da redacção do § único do artigo 578º do C.Comercial, que deve entender-se que os créditos mencionados nos nºs 1 a 9 desse preceito são sempre privilegiados, embora os referentes à última viagem prefiram aos que se constituíram em viagens anteriores ou por motivo delas" ( Ac. STJ de 14/04/92, in BMJ nº 416, pag. 436 - relator Albuquerque de Sousa).
É esta a única solução adequada se considerarmos que a interpretação deve reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico (art. 9º, nº 1, do C.Civil) e partindo do princípio de que o legislador soube exprimir o seu pensamento em termos adequados (nº 3 do mesmo preceito).
De facto, e em primeiro lugar, ao dizer o art. 574º que gozam de privilégio os créditos designados nesta secção, necessariamente abarca no seu conteúdo todos e não só alguns dos créditos enunciados no citado art. 578º.
Doutro passo, a norma do art. 578º traduz apenas uma intenção de graduar os créditos privilegiados segundo regras de prioridade relativa, não pretendendo, de nenhum modo, conceder privilégios, estes conferidos pelo simples facto de se inserirem na secção a que alude o art. 574º.
Como explica Cunha Gonçalves ( "Comentário ao Código Comercial Português", vol. III, Lisboa, 1918, pags. 302 a 304), "em algumas legislações, além da preferência derivada da numeração dos privilégios, há uma outra de carácter geral, fundada na data das últimas viagens, ou conforme o porto em que as obrigações foram contraídas. (...) Esta preferência das viagens parece ter sido também adoptada pelo nosso legislador que, no § único do artigo 578º (...) pela forma por que foi redigido, parece que idênticas dívidas das viagens anteriores não serão privilegiadas como aliás dispunha o art. 1300º do Cód. de 1833, fonte desse § único. Se atendermos, porém, a que o legislador não transcreveu o advérbio somente, que existia na fonte, e se fizermos o confronto entre os nºs 7º e 10º, 9º e 13º, penso podermos concluir que os créditos mencionados nos nºs 1º a 9º são sempre privilegiados; todavia, os referentes à última viagem preferem aos nascidos das precedentes". (…)
Em consequência, todos os créditos mencionados no art. 578º do C.Comercial gozam de privilégio sobre o navio, sendo que o respectivo § único apenas estabelece uma forma de prioridade das dívidas que têm privilégio sobre o navio, independentemente da prevalência de uns sobre outros”.
É, como vimos, matéria não isenta de dúvidas. Parece-nos, contudo, analisando os diversos n.ºs do art.º 578.º do CCom., ser a interpretação que fez vencimento no acórdão mencionado a mais convincente e, por isso, - sem outros argumentos adicionais que não temos, - aqui se adopta.
O crédito do exequente goza, pois, no nosso entendimento, do privilégio sobre o navio, nos termos do art.º 578.º ponto 6.º do CCom..
2 – Os créditos do reclamante (J)
Ficou assente que se trata de créditos devidos por virtude da cessação de Contrato Individual de Trabalho.
Aos privilégios creditórios de que gozam os créditos emergentes do contrato de trabalho é aplicável o art.º 377.º, do Código do Trabalho (CT) que, sob a epígrafe “Privilégios creditórios” estabelece o seguinte: “1 - Os créditos emergentes do contrato de trabalho e da sua violação ou cessação, pertencentes ao trabalhador, gozam dos seguintes privilégios creditórios: a) Privilégio mobiliário geral; b) Privilégio imobiliário especial sobre os bens imóveis do empregador nos quais o trabalhador preste a sua actividade. 2 - A graduação dos créditos faz-se pela ordem seguinte: a) O crédito com privilégio mobiliário geral é graduado antes dos créditos referidos no n.º 1 do artigo 747.º do Código Civil; b) O crédito com privilégio imobiliário especial é graduado antes dos créditos referidos no artigo 748.º do Código Civil e ainda dos créditos de contribuições devidas à segurança social.
Face à sua abrangência, parece não restarem dúvidas de que este artigo veio revogar tacitamente a al. d) do n.º 1 do art.º 737.º do CCivil.
Assim, os créditos do reclamante (J) gozam, nos termos do n.º 1 do art.º 377.º do CT, de privilégio mobiliário geral (al. a) ), não se colocando qualquer questão sobre privilégio imobiliário especial por não estarem em causa os imóveis do empregador nos quais o trabalhador preste a sua actividade.
3 – Do crédito hipotecário do reclamante Banco Millenium BCP Investiomento S.A.
O Banco fez registar uma hipoteca sobre o navio a que se referem os autos.
“As hipotecas sobre navios, sejam legais ou voluntárias, produzirão os mesmos efeitos, e reger-se-ão pelas mesmas disposições que as hipotecas sobre prédios, em tudo o quanto for compatível com a sua especial natureza, e salvas as modificações da presente secção” – art.º 585.º do CCom..
Nos termos do art.º 686.º n.º 1 do Ccivil, “a hipoteca confere ao credor o direito de ser pago pelo valor de certas coisas imóveis, ou equiparadas, pertencentes ao devedor ou a terceiro com preferência sobre os demais credores que não gozem de privilégio especial ou de prioridade de registo”.
Quer isto dizer que, “no confronto dos credores, só os que disponham de privilégio especial ou de prioridade de registo têm preferência de pagamento em relação ao seu titular, ao qual assiste o direito de sequela” (Salvador da Costa, ob. cit., pág. 73
Nos termos do art.º 592.º do Ccom. “os credores hipotecários serão pagos dos seus créditos, depois de satisfeitos os privilégios creditórios sobre o navio, pela ordem da prioridade do registo comercial”.
Assim sendo, o crédito hipotecário do reclamante será pago após satisfeito o privilégio creditório do exequente
Tendo em linha de conta o que ficou dito, os créditos reconhecidos passam a graduar-se da seguinte forma:
1.º - O crédito do exequente;
2.º - O crédito hipotecário do reclamante
3.º - O crédito do reclamante (J)
IV - DECISÃO
Em conformidade com os fundamentos expostos:
- nega-se provimento ao recurso interposto pelo reclamante Nuno Forca.
- Concede-se provimento ao recurso interposto pelo exequente e, em consequência, altera-se a decisão recorrida, graduando os créditos da seguinte forma:
1.º - O crédito do exequente;
2.º - O crédito hipotecário do reclamante
3.º - O crédito do reclamante (J)
Custas pelo reclamante vencido no que se refere ao recurso por si interposto e pela reclamada no que se refere ao recurso interposto pelo exequente.