INVENTÁRIO
SEPARAÇÃO DE MEAÇÕES
RELAÇÃO DE BENS
DÍVIDA DE CÔNJUGES
Sumário

Dada a especificidade do inventário da separação de meações que comporta a par das dívidas a terceiros e créditos sobre estes, as compensações de patrimónios (comum e próprios), as dívidas entre os cônjuges, ou seja entre os patrimónios próprios de cada um dos cônjuges, então, da relação de bens, terão de constar não só as posições activa e passiva do património comum em relação a terceiros como as compensações entre património comum e próprios e bem assim como as dívidas recíprocas dos cônjuges se não tiverem sido saldadas ao longo da vida conjugal, isto pela simples razão de que não tendo ocorrido esse pagamento, é no momento da partilha do património comum que tal deve ocorrer. E para tal é necessário que a relação de bens contemple esses créditos ou compensações. E só não deverá ocorrer se a complexidade da matéria de facto subjacente às questões suscitadas no incidente de reclamação da relação de bens tornarem inconveniente a decisão incidental das mesmas (cfr. art.º 1350 do CCiv).
(V.G.)

Texto Integral

            Acordam os juízes na 2.ª secção (Cível) do Tribunal da Relação de Lisboa

I – RELATÓRIO

Inconformada com o teor da decisão de 31/08/06 que indeferiu a reclamação por si apresentada da relação de bens no inventário para separação de meações e determinou a exclusão da relação de bens de fls. 66, da verba n.º 2 (direito de crédito litigioso no valor de € 13.654,00), dela agravou a requerente do inventário acima identificada em suma concluindo:
I. Recorrente e recorrido foram casados entre si desde 1976, no regime de comunhão de adquiridos;
II. O casal era titular da conta bancária n.º , na Agência do Montijo Banco Atlântico, hoje Millenium BCP.
III.O ora cabeça-de-casal deixou o lar conjugal em 31 de Dezembro de 1999 – e saiu com o deliberado propósito de romper a sociedade conjugal.
IV. Antes de sair de casa, levantou, -apropriou-se e utiliza em exclusivo benefício o saldo da referida contra, no montante de esc. 30.062.640$00.
V. O cabeça-de-casal, com tal apropriação, causou um elevado prejuízo à ora recorrente.
VI.Os factos traduzem grosseira violação do disposto nos artigos 1681/1, 1689/1, 1724 , 1730.
Deve, por isso, com o douto suprimento, ser revogado o despacho recorrido e substituído por outro que mantenha na relação de bens comuns a partilhar a verba de que o cabeça-de-casal se apropriou, com todos os ganhos que tal saldo poderia gerar.

Em contra-alegações o recorrido, em suma diz: as relações patrimoniais entre os ex-cônjuges cessaram em 22/01/03 e nessa data não existia a referida quantia pois foi levantada muito tempo antes da data em que se consideram produzidos os efeitos do divórcio.

Questão a resolver: saber se o mencionado saldo de 33.729.108$00 que a conta bancária de que recorrente e recorrido eram titulares existente em 30/11/99 deve ser relacionado no Inventário para partilha dos bens dos ex-cônjuges ora recorrente e recorrido.

II- FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

O Tribunal recorrido deu como assentes os seguintes factos:
1.Os interessados casaram entre si em 24 de Dezembro de 1976, sem convenção antenupcial, ou seja, no regime de comunhão de adquiridos.
2. Casamento que foi dissolvido pelo divórcio litigioso, em 10 de Março de 2004, no Tribunal de Família e de Menores do Barreiro, com culpa única do cabeça-de-casal (processo de divórcio apenso);
3. A acção de divórcio foi intentada em 22/01/2003 – fls. 2 do proc. Apenso.
4. No processo de divórcio ficou ainda provado que os interessados viviam separados desde Dezembro de 1999, altura em que a cabeça-de-casal deixou o lar conjugal para ir viver com outra mulher.
5. No Tribunal do Montijo, 3.º juízo, correu termos a acção ordinária com o n.º , proposta pela ora reclamante contra o ora cabeça-de-casal, cujo pedido principal se traduzia na condenação do Réu a repor na conta bancária do casal a quantia de 30.062.642$00, que ele levantou, antes de sair de casa, em Novembro de 1999, acção que veio a ser julgada improcedente e o Réu absolvido dos pedidos.
6. Nessa acção ficou provada, entre outros, a seguinte factualidade (não alterada quer pelo Tribunal da Relação de Lisboa quer pelo Supremo Tribunal de Justiça) – fls. 162 a 192:
a) Vivem separados um do outro desde 31 de Dezembro de 1999;
b) Nesse dia, o Réu deixou a casa onde ambos habitavam;
c) Autora e Réu eram titulares da conta bancária n.º 4853601 sediada na agência do Montijo do Banco Atlântico;
d)Em 30 de Novembro de 1999 aquela conta apresentava um saldo de 33.729.108$00;
e) Antes de sair de casa onde ambos habitavam, o Réu procedeu ao levantamento de tal quantia e dela se apropriou.

Mais se prova documentalmente:

Na acção de divórcio litigioso sob o n.º  acima referida nenhum dos então cônjuges, designadamente o cônjuge mulher que deduziu o pedido reconvencional de decretamento do divórcio litigioso com fundamento na violação culposa do Autor dos deveres de coabitação e de fidelidade, requereu, ao abrigo do disposto no art.º 1789, n.º 2 do CCiv que os efeitos do divórcio retrotraíssem à data em que cessou a coabitação.

Na última relação de bens de fls. 66/68 o cabeça-de-casal C, relacionou sob verba n.º 2 “o direito de crédito litigioso que a herança detém sobre o interessado e cabeça-de-casal C, no montante de €143.654,00”

Dessa relação, reclamou a interessada M, e no que aqui releva em b) “Indica um suposto crédito litigioso de € 143.654,00 quando devia indicar a importância exacta que levantou de que se apropriou e de que tem estado a beneficiar, que é de esc. 33.729.108$00, no equivalente a 168.240,08 € tudo exactamente como ficou provado, por constar de matéria assente, na acção do Tribunal Judicial do Montijo, como se documentou.”
Na referida acção sob o n.º  que correu termos no Tribunal Judicial do Montijo onde a Autora M peticionava em alternativa que o Réu C fosse condenado a repor na conta do casal o valor global de que se apropriou (capital e juros) ou em alternativa a entrega à Autora de metade desse valor com que se locupletou (15.031.320$35) com todos os benefícios que tal quantia ganharia, à taxa da banca, desde o levantamento até efectivo ressarcimento; no saneador veio a considerar-se inexistir erro na forma de processo que o Réu excepcionara de que o Réu agravou e a final veio a ser a julgar-se improcedente a acção; interpostos recursos de agravo e apelação para o Tribunal da Relação o qual por acórdão de 13/01/04, conhecendo previamente do agravo declarou verificada a excepção dilatória de erro na forma do processo, não conhecendo de mérito; desse acórdão agravou a Autora e o Supremo Tribunal de Justiça por acórdão de 30/09/04 dando provimento ao agravo considerou inexistir erro na forma do processo e que a acção de indemnização do art.º 1681 é a adequada ordenando a baixa dos autos ao Tribunal da Relação com revogação do decidido, para que os senhores desembargadores conheçam do mérito da acção; o Tribunal da Relação em obediência ao acórdão do Supremo Tribunal de Justiça citado, e por acórdão de 15/02/05 julgou a apelação da Autora totalmente improcedente e consequentemente absolveu dos pedidos o Réu e a Autora de novo pede revista e o Supremo Tribunal de Justiça por acórdão de 20/09/05 nega essa mesma revista em suma com base no seguinte: “(…)dizer-se como ora se faz na conclusão 6.ª que o simples facto de a recorrente se ver privada do montante levantado e do rendimento desse dinheiro é suficiente prejuízo meramente constitui, a nosso ver, uma tentativa de remediar uma flagrante omissão por si praticada aquando da propositura da acção, que foi proposta a coberto do art.º 1681, n.º 1 do Código Civil (…) o acórdão é perfeitamente claro sendo certo que nele se fez um adequado enquadramento jurídico dos factos dados como assentes e se encontra suficientemente fundamentado, (…) podendo, e até devendo, ser confirmado nos termos facultados pelo art.º 713, n.º 5 do Código do Processo Civil. Porém só agora a recorrente vem invocar o abuso de direito (…) mas a recorrente com o devido respeito, não tem razão quanto mais não fosse porque não estando alegado – e muito menos provado – qualquer prejuízo sofrido pela autora, torna-se claro, face a todo o supra exposto que não se poderá concluir que o acto de levantamento de dinheiro (efectuado quando o casal ainda vivia em comum) possa constituir uma situação de abuso de direito (…) Em primeiro lugar o abuso de direito pressupõe, naturalmente, a existência do direito, não sendo invocável quando se pretenda impugnar, não os limites desse direito, mas a própria existência do direito (…) em segundo lugar, o mero exercício excessivo de um direito não o torna ilegítimo. Necessário é que tal excesso seja manifesto, o que significa que este instituto reveste natureza excepcional, funcionando como uma válvula de segurança do sistema jurídico destinada a impedir que em casos-limite, o titular de um direito o possa legitimamente exercer em termos clamorosamente ofensivos da justiça ou ofendendo clamorosamente o sentimento jurídico dominante (…) Na realidade e atento o ora exposto, nãos e nos afigura claro e muito menos óbvio, que o comportamento do réu esteja eivado de abuso de direito. Tal não faz sentido, tanto mais que os interesses económicos da Autora – desprotegidos que foram na presente acção, face aos moldes em que a mesma foi proposta, diga-se – não ficarão afectados no futuro. Sempre se verificará a partilha dos bens do casal, o que ocorrerá depois de cessarem as relações patrimoniais entre os cônjuges, e então poderá a ora recorrente ver reposta a situação económica a que tem direito, sendo certo que não poderá olvidar que o acto de levantamento realizado pelo Réu no que respeita à parte do saldo que constitui produto do seu trabalho não constitui um acto ilícito e que relativamente à parte que à Autora diz respeito, jamais se apurou a sua dimensão, meramente se sabendo ser inferior a metade do montante total pelo Réu levantado. Destarte, não vemos que a conduta do Réu possa ser qualificada como clamorosamente ofensiva da justiça ou do sentimento jurídico dominante.(…)”.

III – FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

A única questão que aqui nos ocupa é a de saber se a verba n.º 2 que o próprio cabeça-de-casal, ora recorrido, C, relacionou cujo valor e forma de relacionamento (era apenas isso que a ora recorrente reclamava nos pontos II-b) e c) na reclamação constante de fls. 48) foi posto em causa pela Autora deve ser relacionada e o modo como o deve ser.

A decisão recorrida foi no sentido da exclusão desse relacionamento e na sua fundamentação, inter alia, consta: “(…) Mas essa quantia foi levantada e utilizada em proveito próprio do cabeça-de-casal, em Outubro de 1999, ou seja muito tempo antes da data em que se consideram produzidos os efeitos patrimoniais do divórcio, que se reporta a 22 de Janeiro de 2003, ou seja, cerca de 38 meses antes. Aliás, tal levantamento, insere-se no âmbito dos poderes que livremente, qualquer dos cônjuges poderia exercer, por incluídos nos seus poderes a de administração, como flui dos art.º 1678/3, 1680, do C.Civil. Por conseguinte, o dever de relacionar esse montante fica desde logo excluído pela sua inexistência naquela data (neste sentido Ac do STJ de 21/01/2003, in www.dgsi.pt/jstj - processo 03A1772. Haveria, quanto muito, que relacionar o remanescente desse valor existente nessa data. Todavia, a reclamante não alegou, nem demonstrou esse facto, ignorando-se igualmente o destino que o cabeça-de-casal lhe deu.(…)”

Dois fundamentos subjacentes à decisão: a quantia em causa, tendo sido levantada pelo requerido de conta comum dos cônjuges pouco tempo antes de 31/12/99 data da separação de facto dos cônjuges, ou seja os tais 38 meses antes da data da cessação das relações patrimoniais entre eles e que se reporta a 22/01/03, inexistia nesta última data; o levantamento foi feito pelo requerido no âmbito dos poderes de administração de qualquer dos cônjuges como flui dos art.ºs 1678, n.º 3, 1680 do CCiv.

Uma coisa podemos já afastar: a possibilidade de se relacionar esse valor como crédito litigioso pela simples razão de que por decisão transitada em julgado se julgou improcedente a acção intentada pela requerente contra o requerido com vista à reposição desse valor com o fundamento no art.º 1681, n.º 1 do CCiv.

O que é que deve ser relacionado e em que termos?

Dispõe o art.º 1404 do CPC que decretado o divórcio pode qualquer dos cônjuges requerer inventário para partilha dos bens, sendo o regime o da comunhão geral ou o de comunhão de adquiridos, incumbindo as funções de cabeça-de-casal ao cônjuge mais velho, correndo o processo por apenso ao processo de divórcio. Aplicam-se-lhe as disposições previstas no Capitulo XVI, secções 1 a 8. Entre essas disposições constam as do art.º 1345 do CCiv.

Dispõe o art.º 1345, nº 1 do CPC: “Os bens que integram a herança (leia-se comunhão de bens do casal) são especificados na relação por meio de verbas, sujeitas a uma só numeração, pela ordem seguinte: direitos de crédito, títulos de crédito, dinheiro, moedas estrangeiras, objectos de ouro, prata e pedras preciosas e semelhantes, outras coisas móveis e bens imóveis.”

O n.º 2: “As dívidas são relacionadas em separado, sujeitas a numeração própria.”

O n.º 3: “A menção dos bens é acompanhada dos elementos necessários à sua identificação e ao apuramento da sua situação jurídica.

O n.º 4: “Não havendo inconveniente para a partilha, podem ser agrupados, na mesma verba, os móveis, ainda que de natureza diferente, desde que se destinem a um fim unitário e sejam de pequeno valor.”

O n.º 5: “As benfeitorias pertencentes à herança são descritas em espécie, quando possam separar-se do prédio em que foram realizadas, ou como simples crédito, no caso contrário; as efectuadas por terceiros em prédio da herança são descritas como dívidas, quando não possam ser levantadas por quem as realizou.”

O n.º 1 do art.º 1346 do CPC especifica a obrigatoriedade de indicação do valor dos bens relacionados, o n.º 2 estatui a forma de indicação do valor dos prédios inscritos na matriz e o n.º 3 dispõe sobre quais os bens que devem ser relacionados como bens ilíquidos.

Estatui o n.º 1 do art.º 1348 do CPC: “Apresentada a relação de bens, são os interessados notificados de que podem reclamar contra ela no prazo de 10 dias, acusando a falta de bens que devam ser relacionados, requerendo a exclusão de bens indevidamente relacionados, por não fazerem parte do acervo a dividir, ou arguindo qualquer inexactidão na descrição de bens, que releve para a partilha.”

O n.º 1 do art.º 1349 do CPC: “Quando seja deduzida reclamação contra a relação de bens, é o cabeça-de-casal notificado para relacionar os bens em falta ou dizer o que se lhe oferecer sobre a matéria da reclamação, no prazo de 10 dias.”

O n.º 2 do mesmo art.º: “Se o cabeça-de-casal confessar a existência dos bens cuja falta foi acusada, proceder-se-á imediatamente, ou no prazo que lhe for concedido, ao aditamento da relação de bens inicialmente apresentada, notificando-se os restantes interessados da modificação efectuada.”

O n.º 3: “Não se verificando a situação prevista no número anterior, notificam-se os restantes interessados com legitimidade para se pronunciarem, aplicando-se o disposto no n.º 2 do art.º 1344, e decidindo o juiz da existência de bens e da pertinência da sua relacionação, sem prejuízo do disposto no artigo seguinte.”

O art.º 1350, n.º 1 do CPC: “Quando a complexidade da matéria de facto subjacente às questões suscitadas tornar inconveniente nos termos do n.º 2 do art.º 1336, a decisão incidental das reclamações previstas no artigo anterior, o juiz abstém-se de decidir e remete os interessados para os meios comuns.”

Nesta última hipótese os bens cuja falta se acusou não são incluídos no inventário e permanecem relacionados aqueles cuja exclusão se requereu (cfr. n.º 2 do art.º 1350 do CPC).

Vistas estas disposições processuais supletivamente aplicáveis ao inventário para separação de meações, pareceria assistir razão ao Meritíssimo Juiz do Tribunal recorrido: se à data da propositura da acção de divórcio (22/01/03) data relevante nos termos do art.º 1789, n.º 1 do CCiv para se aferir dos efeitos do divórcio, não existia, já, o saldo da conta bancária n.º , por ter sido integralmente levantado pelo reclamado C, antes de sair de casa em 31/12/99, não pode o mesmo ser relacionado a fim de ser partilhado, isto pela comezinha razão de que só pode ser partilhado o que existe.

Concordamos com esse entendimento: não pode ser relacionado o saldo, porque o mesmo já não existia.

Mas se isto não oferece dificuldades de entendimento, há que ver se o regime processual do inventário para separação de meações, não tem de se harmonizar com o regime substantivo, designadamente com as disposições dos artigos 1689 e 1697 do CCiv.

Dispõe o art.º 1689, n.º 3 do CCiv, epigrafado “Partilha do casal. Pagamento de dívidas”: “Os créditos de cada um dos cônjuges sobre o outro são pagos pela meação do cônjuge devedor no património comum; mas não existindo bens comuns, ou sendo estes insuficientes, respondem os bens próprios do cônjuge devedor.

E, no tocante ao pagamento de dívidas do casal o art.º 1697 do CCiv estatui a compensação nos seguintes termos do n.º 1: “Quando por dívidas da responsabilidade de ambos os cônjuges tenham respondido bens de um só deles, este torna-se credor do outro pelo que haja satisfeito além do que lhe competia satisfazer; mas este crédito só é exigível no momento da partilha dos bens do casal, a não ser que vigore o regime de separação;
Uma preocupação do legislador: na liquidação e na partilha do património comum deve haver equilíbrio no rateio final por forma a que o património individual de cada um dos cônjuges não fique nem beneficiado nem prejudicado em relação ao outro (cfr. n.º 1 do art.º 1689  e a regra da metade do n.º 1 do art.º 1730 do CCiv).

Como se vê, existem especificidades na liquidação e partilha do património comum dos cônjuges que não encontramos na liquidação e partilha da herança, e essas especificidades têm a ver com a circunstância de naquele tipo de inventários, ao longo da vigência da comunhão conjugal, se verificarem transferências de valores entre os patrimónios – o património comum e os patrimónios próprios dos cônjuges.[1]

As relações patrimoniais entre os cônjuges cessam com a dissolução do casamento que neste caso se reporta à data da propositura da acção de divórcio.

Cada cônjuge receberá na partilha os seus bens próprios e a sua meação no património comum, conferindo previamente o que dever a este património (cfr. art.º 1697, n.º 2 e 1689, n.º 1 do CCiv).

A partilha numa acepção ampla compõe-se de três operações básicas: a separação de bens próprios como operação preliminar; a liquidação do património comum, destinada a apurar o valor do activo comum líquido, através do cálculo das compensações e da contabilização das dívidas a terceiros e entre os cônjuges; e a partilha propriamente dita.

A liquidação do património comum depende assim do cálculo de compensações, das dívidas a terceiros e das dívidas entre os cônjuges.

Se assim é, dada a especificidade do inventário da separação de meações que comporta a par das dívidas a terceiros e créditos sobre estes, as compensações de patrimónios (comum e próprios), as dívidas entre os cônjuges, ou seja entre os patrimónios próprios de cada um dos cônjuges, então, da relação de bens, terão de constar não só as posições activa e passiva do património comum em relação a terceiros como as compensações entre património comum e próprios e bem assim como as dívidas recíprocas dos cônjuges se não tiverem sido saldadas ao longo da vida conjugal, isto pela simples razão de que não tendo ocorrido esse pagamento, é no momento da partilha do património comum que tal deve ocorrer. E para tal é necessário que a relação de bens contemple esses créditos ou compensações. E só não deverá ocorrer se a complexidade da matéria de facto subjacente às questões suscitadas no incidente de reclamação da relação de bens tornarem inconveniente a decisão incidental das mesmas (cfr. art.º 1350 do CCiv).

Ora a matéria de facto do incidente é extraordinariamente simples: o reclamado e ex - cônjuge C, antes de sair de casa, ou seja antes da separação de facto que ocorreu em 31/12/99, levantou da conta bancária de que eram titulares a reclamante e reclamado, ex-cônjuges, a quantia de 33.729.108$00, correspondente ao saldo que a conta apresentava, dela se apropriou e está a dispor em benefício exclusivo da sua pessoa.

Antes de analisarmos os regime de administração dos bens do casal, uma breves considerações sobre o contrato de abertura de conta e o contrato de depósito bancário.

Os contratos bancários como contratos de natureza comercial (cfr. art.º 362 do CCom) obedecem aos princípios gerais de autonomia privada, da liberdade negocial e da informalidade, estabelecidos pelos art.ºs 405 e 219 do CCiv, princípios este que no domínio mercantil e particularmente no bancário ganha maior acentuação, por força das características de simplicidade, rapidez e desmaterialização que caracterizam a actividade bancária. A conta é a sede de registo contabilístico em termos de deve e haver de todas as operações propiciadas ao cliente pelos serviços de caixa do banco. O contrato de abertura de conta obriga o banco a aceitar os depósitos de disponibilidade monetárias do cliente, nele, além disso, se regulamenta o movimento de pagamentos e transferências e as ordens respectivas, débitos de juros, comissões e despesas, fornecimento de extractos. Da abertura de conta deriva como efeito necessário a conta-corrente entre o banqueiro e o cliente, contrato este que tem, na disciplina do contrato comercial com o mesmo nome (art.ºs 344 e ss do CCom) o adequado referencial, com as especificidades de os créditos da conta são exclusivamente pecuniários, a compensação dos créditos faz-se gradual e sucessivamente e não apenas no encerramento de conta, devendo a posição credora, em princípio estar do lado do cliente que pode dispor a qualquer altura do saldo.

À abertura de conta andam em regra associados três negócios que dela são complemento: a) a convenção do cheque; b) a emissão de cartões bancários de débito e de crédito; c) a concessão de crédito por descoberto em conta, que são negócios previstos em regar nas cláusulas contratuais gerais respeitantes à abertura da conta relativamente aos quais esta funciona como contrato-normativo.

A abertura de conta é em regra dependência de um contrato de depósito bancário à ordem, contrato esse que no entendimento maioritário da jurisprudência dos nossos tribunais superiores é um contrato de depósito irregular[2], tal como vem definido nos art.ºs 1205 e 1206 do CCiv, sendo que este último remete a disciplina do depósito irregular para as norma do mútuo, o que se compreende atendendo às afinidades que o depósito de coisas fungíveis apresenta com o empréstimo da mesma categoria de coisas.

Em todo o caso, o depositante à ordem tem sempre, inteira disponibilidade sobre o saldo da conta (tal como expressamente o determina o n.º 2 do art.º 1 do DL 430/91 de 01/11, que estabelece o regime geral da constituição dos depósitos em bancos), o que não acontece no mútuo, o que nos leva a crer que o depósito irregular seja apenas uma variante do contrato de mútuo.

Não são confundíveis a titularidade da conta bancária e a propriedade das disponibilidades monetária nela depositadas. O dinheiro de terceiro depositado na conta individual continua a ser de terceiro (na origem) o dinheiro de um só dos titulares ou de parte deles depositado numa conta plural continua a pertencer ao dono ou donos (origem).

Assim no caso dos autos a conta pode ser movimentada apenas por um dos cônjuges, sem a intervenção do outro, mas o saldo dela não lhe pertence por inteiro.

O art.º 516 do CCiv que estabelece o critério de partição nas dívidas e nos créditos entre os devedores e credores solidários, tem, aqui, inteira aplicação, e, deste modo, é de presumir que a propriedade dos depósitos em contas plurais é de todos, em partes iguais, como de resto, uniformemente o tem entendido o Supremo Tribunal de Justiça.

A matéria referente à propriedade do dinheiro depositado na conta bancária não oferece dificuldades.

Há que ver no contrato de abertura de conta e depósito bancário à ordem as relações internas entre os titulares e a externa, ou seja entre os titulares e o Banco.

Ninguém põe em causa que a conta pudesse ser movimentada por qualquer dos titulares da conta que se afiguram como credores do Banco em relação ao saldo existente na conta, credores solidários, por isso. Se um desses credores dá ordem de levantamento da totalidade da quantia o Banco devedor este libera-se da obrigação, pagando por inteiro ao credor que lha exige (art.º 512, n.º 1 do CCiv).

Mas já o credor titular cujo direito é satisfeito além da parte que lhe compete na relação interna entre os credores titulares tem de satisfazer aos outros a parte que lhes compete no crédito comum (cfr. art.º 533 do CCiv).

Ou seja, tendo o reclamado C, levantado a mencionada quantia correspondente aos saldo da conta, dela se apropriando, e dela beneficiando em exclusivo, como provado vem, deve satisfazer a parte que compete à reclamante no crédito comum, que é metade de PTE 33.729.108,00, ou seja PTE 16.864.554,00.

Resta saber se no regime legal de bens de comunhão de adquiridos existe alguma norma que altere esta situação ou disponha em sentido contrário.

O casal era casado em regime de comunhão de adquiridos.

O saldo da conta bancária existente em 30/11/99, presume-se, como bem se diz na decisão recorrida, bem comum do casal, isto por força das disposições dos art.ºs 1722, n.º 1 e n.º 2 “a contrariu sensu”, 1724, 1725 do CCiv. E o reclamado não ilidiu essa presunção como lhe competia.

Os deveres patrimoniais dos cônjuges respeitam essencialmente ao exercício dos poderes de administração e de alienação dos bens do casal. O art.º 1678 distribui as competências a respeito da administração de bens próprios e comuns dos cônjuges, enquanto os art.ºs 1682 e 1682-B do CCiv regulam os negócios de disposição sobre os mesmos bens e a violação desses deveres patrimoniais constitui um ilícito matrimonial, sendo ilícito matrimonial a má administração de bens próprios do cônjuge não administrador ou de bens comuns do casal ou a inobservância de regras de administração extraordinária conjunta de bens comuns ou ainda a alienação ou oneração de bens próprios ou comuns sem o consentimento do outro cônjuge nos casos em que a lei exige o consentimento de ambos.

Tratando-se de bens comuns a regra é a de que ambos os cônjuges são administradores do património comum (art.º 1678, n.º 3, 2.ª parte do CCiv), ressalvada a concessão de poderes de administração ordinária a qualquer dos cônjuges em relação a bens comuns como previsto no art.º 1678, n.º 3, 1.ª parte em conjugação com o n.º 2 do art.º 1678 do CCiv.

As regras citadas dizem respeito a actos de administração dos bens comuns. O levantamento do saldo de uma conta bancária cujos titulares são os cônjuges, feito por um deles pode configurar-se como um acto de administração, e em abstracto, até, pode resultar de um acto com aparência de mandato ou seja com o conhecimento e sem a oposição do outro como resulta do art.º 1681, n.º 2 do CCiv e nessa altura aplicam-se as regras desse contrato estando o dever de prestar contas confinado aos últimos cinco anos, que no caso se mostraria ultrapassado. Caso se não provasse o destino dado ao saldo da conta bancária, ter-se-ia de considerar que o levantamento fora feito para fazer face às despesas comuns do casal, e, por essa via, nada haveria que relacionar.

Não é o caso, porém.

Prova-se que o reclamado marido, antes de se separar de facto da reclamante, levantou o saldo que sabia não lhe pertencer por inteiro e passou a utilizá-lo, seguramente, já separado da mulher, em proveito exclusivo próprio.

Um tal acto não poderia contar com o consentimento expresso ou tácito da ora reclamada, ao qual neste inventário, em tempo, se opõe.

Estamos obviamente fora do acto de administração ordinária que a lei prevê, porquanto o levantamento do saldo da conta colectiva, foi feito por um dos cônjuges imediatamente antes de sair de casa, ou seja imediatamente antes de se dar a separação de facto do casal, e já com o intuito que o mesmo concretizou de o afectar ao proveito exclusivo próprio.

E se assim é, não nos movemos já dentro daquelas regras que o Código Civil prevê para os actos de administração dos bens comuns do casal, porque, pelas razões expostas o levantamento caiu fora do âmbito da administração ordinária de bens do casal.

E assim sendo o cônjuge co-titular da conta bancária cujo saldo, na sua totalidade, foi levantado pelo outro cônjuge, dele se apropriando, fazendo por isso coisa sua,  contra a vontade presumida daquele, utilizando-o em proveito próprio exclusivo, sendo aquele proprietário de ½ desse saldo, tem direito a obter ½ desse saldo e o outro titular deve satisfazer àquele essa mesma metade por força do disposto no art.º 533 do CCiv.

A conclusão idêntica chegaríamos, se enquadrássemos o acto de utilização em proveito exclusivo próprio do cônjuge separado de facto, da quantia por ele levantada da conta comum, como um acto de alienação de bem móvel comum, nos termos dos n.ºs 1 e 4 do art.º 1682 do CCiv, ou seja como um acto que carecendo de consentimento do outro, implica que o valor dos bens alienados seja levado em conta na sua meação.

No sentido de que deve ser relacionado o saldo de um conta bancária colectiva (ou seja com dois titulares), mas solidária, aberta pelos cônjuges na pendência da sociedade conjugal, temos entre outros o seguinte acórdão da Relação de Lisboa, cujo sumário se segue e se encontra disponível em www.dgsi.pt :

Acórdãos TRL Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo: 0013831 
 
Nº Convencional: JTRL00008612
Relator: SANTANA GUAPO
Descritores: INVENTÁRIO
DEPÓSITO BANCÁRIO
 
Nº do Documento: RL199701140013831
Data do Acordão: 14-01-97
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: N
Privacidade: 1
 
Meio Processual: AGRAVO.
Decisão: NEGADO PROVIMENTO.
Área Temática: DIR PROC CIV.
DIR CIV - DIR FAM.
Legislação Nacional: CCIV66 ART1680 ART1724 ART1725 ART1789 N1.
 
Sumário: I - Seja qual for o regime de bens, cada um dos cônjuges pode efectuar depósitos bancários em seu nome e movimentá-los, sem que exista necessidade de autorização ou consentimento do outro cônjuge, o mesmo se passando relativamente a contas conjuntas em nome de ambos.
II - Efectuado o levantamento do montante de conta conjunta dos cônjuges, montante esse que se encontrava integrado na comunhão conjugal, mesmo que tal levantamento tenha tido lugar antes da propositura de acção de divórcio deve ele ser relacionado no consequente inventário facultativo para separação de meações se não ficaram apuradas as circunstâncias do levantamento, designadamente se o mesmo teve lugar, ou não, ainda durante o período de vida em comum do casal.

Poderia a reclamante ter exigido o seu crédito na pendência da sociedade conjugal. Não o fazendo, por força do disposto no art.º 1697, n.ºs 1 e 2 do CCiv a exigibilidade deferiu-se para o momento da liquidação e partilha, devendo assim e atendendo ao princípio nominalista do art.º 550 do CCiv, ser a reclamante compensada tão só em relação a metade daquele saldo.

IV – DECISÃO

Tudo visto julga-se parcialmente procedente o agravo revoga-se a decisão recorrida e em seu lugar determina-se que na relação de bens do casal seja excluída a verba n.º 2 (Direito de crédito litigioso no valor de € 143.654,00), devendo ser incluída sob a epígrafe “crédito de um dos cônjuges sobre o outro”, a quantia de PTE 16.864.554,00, ou o correspondente valor em euros, moeda com curso legal neste momento em Portugal, ou seja € 84.120,04.
Sem custas, por não ter havido oposição.

Lxa 28 /06 /07
João Miguel Mourão Vaz Gomes
Jorge Manuel Leitão leal
Américo Joaquim Marcelino
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[1] Essas transferências ocorrem ou porque se utilizam verbas comuns para financiar obras num imóvel próprio, para pagar uma dívida da exclusiva responsabilidade de um dos cônjuges, quer porque se adquire a casa de morada de família com capital próprio de um dos cônjuges sem se formalizar a sub-rogação real, ou porque se paga um dívida de ambos com capital de um dos cônjuges; estes movimentos de capital, estes financiamentos sem prazos e sem juros, representados com mais ou menos rigor pelos intervenientes, são mais característicos da comunhão conjugal do qualquer outra reunião de patrimónios, assim se formando, como diz Pereira Coelho no seu Curso de Direito de Família, 2.ª edição, pág. 431, uma conta-corrente entre o património comum e os patrimónios próprios, uma conta que se fecha no momento da partilha. A técnica das compensações visa restabelecer as forças dos patrimónios através do reconhecimento de créditos de compensação em favor de cada património empobrecido. Para haver compensações em sentido estricto tem de verificar-se, como diz Cristina Araújo Dias, em “Compensações pelo Pagamento de Dívidas do Casal (O caso especial da sua actualização) in Comemorações dos 35 anos do Código Civil, FDUC, Coimbra Editora, 2004, pág. 321, um relacionamento entre o património comum e o património próprio de um dos cônjuges, pois se existirem transferências de valores entre património próprios dos cônjuges, teremos créditos entre os cônjuges, que integram o conceito de compensação em sentido lato. Com a compensação não se confundem outros créditos entre os cônjuges ou entre os seus patrimónios, créditos esses que podem nascer, designadamente, por força da responsabilidade civil baseada em actos de administração intencionalmente prejudiciais (art.º 1681, n.º 1 do CCiv), ou em administração contra a vontade do dono dos bens (art.º 1681, n.º 3) ou ainda por força de responsabilidade por danos não patrimoniais que assente na violação de direitos fundamentais ou do estatuto matrimonial do outro cônjuge, sendo que esses créditos nascem de factos específicos que não se relacionam com o curso normal das transferências de valores entre os patrimónios, com a tal conta-corrente de financiamentos que os créditos de compensação pretendem encerrar com justiça, e estes créditos são autónomos e excepcionais.
[2] Entre outros o Acórdão do STJ de 03/03/05 in CªJª XIII, Tomo I, págs. 109/114.