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RESERVA DE PROPRIEDADE
EXECUÇÃO
PENHORA
RENÚNCIA
Sumário
I- É inadmissível a penhora de bens do próprio exequente e é isso o que acontece quando este instaura execução sendo titular de registo de reserva de propriedade que não pretende cancelar. II- Não vale a instauração da execução como acto tácito de renúncia, nem tão pouco releva qualquer declaração expressa nesse sentido quando afinal o exequente se recusa a proceder em conformidade cancelando o registo. III- Não pode o Tribunal permitir que prossiga uma execução em termos tais que, pela sua inacção, ele contribua para dar tutela a uma situação em que a aparência é desconforme à realidade: vender como bem do executado um bem sobre o qual o exequente mantém um registo que o Tribunal não pode mandar cancelar e que obsta a que o adquirente adquira a propriedade. IV- Desrespeitar-se-ia, assim, em grau elevado o princípio da confiança que num Estado de Direito pressupõe que os Tribunais não são conscientemente coniventes com situações lesivas dos interesses daqueles que a eles recorrem de boa fé. V- O Tribunal não pode consentir aquilo que seria uma fraude à lei (artigo 280º do Código Civil): proceder-se à alienação de veículo propriedade da entidade mutuante como se ela o pudesse fazer por dispor de uma propriedade resolúvel que lhe impõe a venda no caso de não pagamento pelo devedor fiduciante. VI- Com efeito, permitindo-se o prosseguimento da execução estaria a permitir-se instrumentalizar o processo executivo para a realização coerciva de um direito real de garantia que a nossa lei não reconhece desrespeitando-se o princípio da tipicidade dos direitos reais mediante a criação por via jurisprudencial um novo direito real de garantia de índole similar à alienação fiduciária em garantia. (S.C.)
Texto Integral
Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa:
Banco […], SA interpôs recurso da decisão de fls. 106 que indeferiu o cumprimento do disposto no artigo 864.º do Código de Processo Civil enquanto não estiver comprovado o cancelamento do registo de reserva de propriedade que se encontra efectuado a favor do exequente.
Desta decisão foi interposto recurso.
Verifica-se que T.[…], SA demandou em acção declarativa com processo sumário Fernando […] e mulher Etelvina […] instaurando seguidamente execução de sentença no âmbito da qual foi penhorado o veículo […] verificando-se que sobre o memos incide reserva de propriedade registada a favor do Banco[…] SA o que levou a decisão recorrida a considerar que, devendo o registo automóvel estar em conformidade com a situação substantiva dos bens, designadamente quanto a terceiros e para defesa destes, impor-se ao exequente provar o cancelamento do registo de reserva de propriedade ao qual disse ter renunciado.
Nada temos a acrescentar relativamente ao que referimos a este propósito em anteriores decisões designadamente no âmbito do P. 8541/2004 que aqui se transcreve:
P. 8541/2004
Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa:
1. Banco […] interpôs recurso da decisão de fls. 69 que determinou a suspensão da acção executiva quanto aos termos da penhora conexionados com o veículo de marca Fiat […] Considerou a decisão recorrida, face à declaração de renúncia expressa do exequente da reserva de propriedade, que os autos deviam aguardar a junção da competente certidão do cancelamento do registo de reserva, pois a execução, quanto a tal bem, não pode prosseguir para a fase da venda por se impor o cancelamento.
Considera a recorrente que a cláusula de reserva de propriedade registada não obsta a que, nos termos dos artigos 824º do Código Civil e 888º do C.P.C., ordene o Tribunal oficiosamente o cancelamento de todos os registos que incidam sobre o bem penhorado designadamente o registo de reserva de propriedade (ver fls. 109; conclusões 3ª e 6ª); sustenta ainda que no caso de existirem dúvidas sobre a propriedade dos bens objecto de penhora deve agir-se de acordo com o disposto no artigo 119º do C.R.P. caso a penhora já tenha sido realizada (conclusão 4ª)
A decisão ao impor o cancelamento do registo e a suspensão da execução desrespeita, segundo o recorrente, o disposto nos artigos 5º,nº1, alínea b) e 29º do Decreto-Lei nº 54/75, de 12 de Fevereiro, 7º e 119º do C.R.P. e 408º, 409º,nº1, 601º e 879º, alínea a) todos do Código Civil e ainda o artigo 888º do Código de Processo Civil. […]
Apreciando:
3. Compra e venda com reserva de propriedade a favor do alienante. A questão a decidir nestes autos é a de saber se a execução se deve ou não sustar até que o exequente comprove o cancelamento do registo da penhora.
O exequente é titular do registo de reserva de propriedade incidente sobre o aludido veículo.
É ele, portanto, face ao registo, presumidamente, o proprietário da coisa.
É isto que decorre do artigo 409º do Código Civil que prescreve: 1- Nos contratos de alienação é lícito ao alienante reservar para si a propriedade da coisa até ao cumprimento total ou parcial das obrigações da outra parte ou até à verificação de qualquer outro evento. 2- Tratando-se de coisa imóvel, ou de coisa móvel sujeita a registo, só a cláusula constante do registo é oponível a terceiros.
A reserva de propriedade é expressamente prevista no caso de venda a prestações (artigo 934º do Código Civil).
Considera-se que a venda sob reserva de propriedade é realizada sob condição suspensiva, quanto à transferência da propriedade, que assim se mantém na titularidade da vendedora: ver Código Civil Anotado, Antunes Varela, Vol 1º, 4ª edição, pág. 376; Revista de Legislação e Jurisprudência, Ano 103º, pág. 380/383, anotação de Vaz Serra ao Ac. do S.T.J. de 27-5-1969, B.M.J. 187-107, Ac. do S.T.J. de 24-6-1982 (Pedro Cluny), B.M.J. 318-396, Ac. do S.T.J. de 8-1-1991 (Simões Ventura) B.M.J. 403-334.
O comprador adquire uma expectativa de propriedade “que é considerada pela doutrina jurídica como um direito patrimonial actual, como um direito de expectativa. Com a verificação da condição ela reforça-se tornando-se ipso jure um direito pleno e, assim, uma propriedade não condicionada (Vaz Serra, loc. cit, pág. 383 in nota 2 iniciada na pág. 382); de expectativa com eficácia real, atento o disposto no artigo 409º/2 do C.C., fala o Prof. Antunes Varela (ver R.L.J., Ano 122º, pág. 318) que considera o comprador investido numa verdadeira posse (ver hoje sobre penhora de expectativas de aquisição o artigo 860º-A do C.P.C.).
Houve quem defendesse que, face ao disposto no artigo 18º/1 e 3 do Decreto-Lei nº 54/75, de 12 de Fevereiro, a venda, no ramo automóvel, seria feita sob condição resolutiva (ver voto de vencido no Ac. de 24-6-1982 e também no Ac. do S.T.J. de 24-1-1985 - Solano Viana -B.M.J. 343-309). No entanto, como salientou o Prof. Almeida Costa na R.L.J.,Ano 118º, pág. 384, no referido nº3 do DL 54/75 “ claramente se alude a resolução do contrato por incumprimento e não a resolução do direito de propriedade.
Assente que o comprador não adquire a propriedade, mantendo-se esta no alienante, não pode este, enquanto a reserva de propriedade subsistir, penhorar o bem sobre o qual ela incide pois pelo cumprimento da obrigação respondem todos os bens do devedor (artigo 601º do Código Civil e 821º/1 do C.P.C.).
4. Não cancelamento oficioso do registo de inscrição de reserva de propriedade.
Tem acontecido, porém, que, instaurada execução pelo próprio titular da reserva de propriedade, vem este nomear à penhora o bem sobre o qual incide a reserva, omitindo tal referência e alcançando sucesso na sua pretensão mesmo nos casos em que o tribunal ainda assim se apercebe da situação, como, por exemplo, aconteceu nos casos tratados no Ac. da Relação de Lisboa de 18-6-1998 (Fernando Casimiro) C.J.,3, pág. 129 também publicado na Actualidade Jurídica, ano II, nº 18 e no Ac. da Relação de Lisboa de 22-6-1999 (Seara Paixão),C.J.,3, pág. 119).
Entendeu-se nessas decisões que o exequente, quando requer a penhora do bem, tacitamente renuncia à reserva de propriedade; a verdade, porém, é que subsiste o registo da reserva e, por conseguinte, prosseguindo a execução, o adquirente vai comprar bem sobre o qual incide esse ónus.
O Tribunal, após o pagamento do preço, manda oficiosamente cancelar os registos dos direitos reais que caducam nos termos do nº2 do artigo 824º do Código Civil, mas não se afigura que o possa fazer, quando se trate de clausula de reserva de propriedade, visto que ela não se traduz num direito real de garantia, muito embora desempenhe a função de garantia do preço devido pela aquisição do bem.
Não caduca o registo do direito real de propriedade incidente sobre o aludido veículo, de que é titular o exequente por força da aludida cláusula, pois, sendo anterior à penhora, rege o disposto no artigo 824º/2 do Código Civil segundo o qual não caduca o registo de direitos reais que sejam anteriores ao de qualquer arresto, penhora ou garantia.
Ressalva ainda o preceito na sua parte final aqueles direitos reais que, constituídos em data anterior, produzam efeitos em relação a terceiros independentemente de registo o que não é o caso da cláusula de reserva de propriedade de coisa imóvel ou de coisa móvel sujeita a registo a qual só quando registada é oponível a terceiros (artigo 409º/2 do Código Civil).
Assim, “se sobre o bem a transmitir em venda executiva incide um direito de propriedade, há que verificar se se trata de propriedade do executado ou de terceiro.
A situação comum é aquela em que o bem se encontra na propriedade do executado, podendo ser, por ordem judicial, livremente transmitido. Mas sendo o bem vendido em execução propriedade de terceiro, estar-se-á perante uma execução de coisa alheia, e o proprietário, terceiro no processo executivo, pode, nos termos gerais, recorrer designadamente à acção de reivindicação (artigo 1311º do C.C). Esta hipótese poderá não ser tão rara como possa parecer à primeira vista; pense-se na eventualidade de ser vendido em execução um bem que fora adquirido pelo executado com reserva de propriedade (artigo 409ºCC). Em tal caso, o proprietário do bem, que não é o exequente, pode reivindicar a coisa e a venda fica sem efeito (artigo 909º, nº1, alínea d) do CPC), tendo o adquirente direito à restituição do preço e ao pagamento dos danos sofridos”: ver “Venda Executiva. Alguns aspectos das alterações legislativas introduzidas pela nova versão do Código de Processo Civil”, Pedro Romano Martinez in “Aspectos do Novo Processo Civil”, Lex, 1997, pág. 330; no mesmo sentido salientando que o registo da reserva de propriedade subsiste veja-se o Ac. da Relação de Lisboa de 2-6-1999 (João Moreira Camilo) B.M.J. 488-407.
Nem de outro modo se pode entender visto que o registo dá publicidade à identificação do titular do direito de propriedade que, nos termos do artigo 409º/1 do Código Civil, é o alienante que para si reservou a coisa.
Admitindo-se que o exequente pode penhorar bem a favor do qual dispõe de reserva de propriedade, mesmo nesses casos pode ter o exequente interesse em que o registo subsista após a venda. Basta pensar no caso em que, com a venda, ele não obtém o pagamento integral da quantia reclamada; o adquirente fica, em tal circunstância, sujeito a que o exequente se recuse a cancelar o registo enquanto não lhe for pago o valor em dívida.
Mas mais: admitamos, por exemplo, que o exequente não reclamou tudo o que devia; efectuada a venda ele pode, apesar de extinta a execução, invocar a sua qualidade de titular da reserva de propriedade para se recusar a cancelar o registo e com um bom argumento que lhe é dado pelo artigo 409º/1 do Código Civil: é que afinal não estão ainda cumpridas as obrigações da outra parte.
5. Irrelevância como renúncia tácita da cláusula de reserva de propriedade de qualquer acto que se não traduza no cancelamento da inscrição e, bem assim, de qualquer declaração em que se não manifeste a intenção, a seguir executada, de cancelamento.
Mas, pergunta-se, como é isso possível a partir do momento em que o exequente declarou expressa ou tacitamente renunciar ao domínio que reservara?
A resposta parece evidente: é que uma tal situação, assim tão contraditória, só acontece porque se atribui o valor de renúncia a um comportamento ( o pedido de penhora de bem próprio) que não revela essa vontade.
Por outras palavras: no caso de bem vendido com a cláusula de reserva de propriedade o facto que, com toda a probabilidade, revela a renúncia à reserva de propriedade é precisamente o cancelamento do respectivo registo (artigo 217º/1 do Código Civil); a renúncia exprime-se com o cancelamento. E assim, do mesmo modo, como renúncia expressa não vale a mera declaração de renúncia em que se não manifeste a intenção de cancelar o registo ou, ainda mais flagrantemente, em que se manifeste a intenção oposta, ou seja, a de se não proceder ao cancelamento.
É este, aliás, o caso dos autos: o exequente declarou a dado passo dos autos (requerimento de fls. 57 de 22-3-2002) que renunciara à reserva de propriedade, mas não quer proceder ao cancelamento do registo da reserva.
Uma tal renúncia não tem, a nosso ver, como dissemos, nenhum valor; trata-se de uma falsa renúncia, pois o que está em causa é afinal saber se o exequente considera, por renúncia à condição, transmitida a propriedade do veículo para o executado tal como aconteceria se a condição se tivesse verificado (ver artigos 270º e 276º do Código Civil).
6. Sobre a questão da admissibilidade da renúncia por parte do alienante com reserva de propriedade.
Admite-se que o vendedor e comprador “acordem a destruição dos efeitos da cláusula, no caso de o vendedor optar pela exigência do cumprimento. Esta hipótese pode desde logo ser prevista no contrato, pode ser acordada posteriormente ou resultar de actos ou omissões das partes durante a execução que inequivocamente levem a tal conclusão” (A Posição Jurídica do Comprador na Compra e Venda com Reserva de Propriedade, Ana Maria Peralta, Almedina, 1990, pág. 97).
Mas já se considera que a renúncia à propriedade não pode produzir o efeito útil que no caso se pretende: a aquisição da propriedade pelo comprador. A coisa ficaria res nullius se o vendedor renunciasse à propriedade; assim como também se sustenta que não se está perante uma renúncia à reserva com o argumento dado pelo Prof. Raúl Ventura de que “ por força do contrato, o direito de propriedade mantém-se no vendedor, mas ele não tem um direito a esse direito, susceptível - aquele - de renúncia´. Um tal acordo não pode ser destruído unilateralmente, sendo novamente necessário o concurso de ambas as vontades para que tal aconteça (Ana Maria Peralta, loc. cit.,pág. 96).
Aceita-se, porém, que as partes possam por acordo, já se disse, destruir os efeitos da cláusula, no caso de o vendedor optar pela exigência do cumprimento.
O que está efectivamente em causa é a questão de saber se o alienante que vendeu o bem sob condição de um dos efeitos do contrato (a transmissão da propriedade para o comprador) só se verificar se o preço for pago, mantendo-se até então ele proprietário do bem, não pode renunciar a essa condição.
Ora se a transmissão da propriedade se dá ipso facto com o pagamento do preço, não se vê que a propriedade não se possa transmitir imediatamente para o comprador renunciando o vendedor ao diferimento dos efeitos do contrato até pagamento do preço.
O comprador, face a uma tal renúncia, vê efectivamente extinta a expectativa de aquisição, mas porque adquire imediatamente, face à renúncia, a propriedade sobre o bem.
A venda sob reserva de propriedade obsta a que se produza o efeito imediato da compra e venda, a transmissão da propriedade, como resulta do artigo 874º do Código Civil.
Assim, dir-se-á, a aludida cláusula de reserva de propriedade , quando difere mediante condição esse efeito imediato, aproveita ao vendedor (e só reflexamente ao comprador na medida em que, sem ela, provavelmente não se outorgaria o contrato).
Ora, dir-se-á ainda, o comprador não fica prejudicado, antes beneficiado, se o vendedor, por renúncia, permitir que a propriedade se transmita para o adquirente antes do pagamento do preço.
Se não parece aceitável que o alienante possa penhorar um bem que é sua propriedade e prosseguir a execução até à venda subsistindo a reserva porque não foi cancelada, não parece igualmente aceitável que o alienante fique impedido de se ressarcir, mediante renúncia efectiva, com o produto da venda do bem sobre o qual fez incidir a reserva.
Poderia dar-se a situação indesejável, se assim não fosse, de o vendedor com reserva de propriedade, que não tivesse optado pela resolução, na falta de outros bens penhoráveis do devedor, ficar à mercê do comprador que muito provavelmente se recusaria a revogar a cláusula.
É claro que o benefício que se tem em vista, com a aludida cláusula, é o do diferimento da transmissão da propriedade condicionado ao pagamento do preço; a ele corresponde uma situação, que não é favorável para o comprador, a da não aquisição imediata da propriedade sobre o bem objecto de compra e venda. Não é de considerar como prejuízo a sujeição do devedor à penhora do seu património em caso de incumprimento, pois essa é a situação que advém do comum estatuto de proprietário que responde pelas dívidas assumidas com o seu património
Salienta o Prof. Lobo Xavier, que com razão se admite a incompatibilidade entre “ a permanência da coisa vendida na propriedade do vendedor e a execução daquela, em processo movido pelo mesmo vendedor para pagamento do preço. E cremos que com razão apesar de o ponto não ser pacífico. Desde logo, a solução contrária implicaria, em bom rigor, o direito do exequente a receber integralmente o produto da venda executiva - e conduziria assim, quando esse produto fosse superior à parte do preço em dívida a um injusto locupletamento. E, de todo o modo, parece inaceitável a possibilidade de execução de coisa própria do exequente. Isto basta quanto a nós, para resolver a questão, muito embora a solução defendida se não harmonize inteiramente com a letra do artigo 409º,nº1 e, por outro lado, não permita que o vendedor desfrute de protecção idêntica à que para si resultaria da manutenção da sua propriedade sobre a coisa. Quanto a este último ponto, se é certo que a penhora já importa a indisponibilidade material do objecto penhorado e a ineficácia relativa dos actos de disposição que sobre aquele versem, a verdade é que ela não garante o exequente contra a possibilidade de sobrevir, com os seus específicos efeitos, a declaração de falência ou de insolvência do devedor”(Revista de Direito e de Estudos Sociais, Ano XXI, pág. 216 e seguintes).
E prossegue o ilustre professor: “ no estrangeiro tem-se explicado o facto de o vendedor exequente perder o seu direito de propriedade sobre a coisa executada, através da ideia de que, com a execução, o mesmo renunciou tacitamente ao domínio que se reservara. Apesar de criticada, a explicação afigura-se-nos aceitável, para as hipóteses em que admitimos a perda da propriedade. A renúncia pode razoavelmente inferir-se, ou da nomeação à penhora da coisa vendida, por iniciativa do próprio exequente, nos casos em que esta lhe caiba, ou da circunstância de aquele se não opor à mesma nomeação, quando feita pelo executado como é, em regra, no processo executivo ordinário e sumário” (loc. cit).
No entanto a questão que importa tratar é a de saber se tais actos podem valer com esse significado ( renúncia expressa ou tácita) em todas as circunstâncias designadamente quando a cláusula foi objecto de registo. A nosso ver, pelas razões expostas, a resposta é negativa.
7. A cláusula de reserva de propriedade não é direito real de garantia embora exerça uma função de garantia para o alienante.
A cláusula de reserva de propriedade exerce uma função de garantia para o vendedor de pagamento do preço. E, dada a sua natureza creditícia, ela vale apenas no âmbito das relações entre as partes contratantes.
Essa garantia subsiste enquanto o vendedor quiser apenas deixando de subsistir, por vontade do devedor, quando seja realizado o escopo com ela visado: o pagamento do preço.
No entanto, se o vendedor, mantendo-se a reserva, pretendesse ressarcir-se pelo produto integral da venda da coisa penhorada, então a sua função de garantia de natureza meramente obrigacional adquiriria uma outra dimensão qualitativa: ela passaria a estender-se, assumindo feição real, aos adquirentes do bem penhorado. Estes ficariam vinculados à aludida condição, ou seja, eles apenas iriam adquirir a propriedade se o preço fosse totalmente pago.
O credor com garantia real, não obstante a preferência que lhe assiste sobre os demais credores pelo valor da coisa garantida, pode, com a venda, não receber a totalidade do seu crédito, situação esta que é, aliás, relativamente frequente.
Mas isto já não acontece no caso de reserva de propriedade.
Antunes Varela expressamente refere: “ o vendedor pode, compreensivelmente, preferir a manutenção à resolução do contrato, mas não querer, legitimamente, abrir mão do domínio da coisa sem o efectivo pagamento da totalidade do preço...para obter o pagamento coercivo do preço (ou da parte residual do preço), ele não poderá, obviamente, penhorar a coisa vendida, visto que ela lhe continua a pertencer plenamente, ao invés do que sucede , v.g. na alienação fiduciária para garantia do direito brasileiro, em que o credor e proprietário fiduciário é, no fundo, titular de um mero direito real de garantia, embora qualificado” (Código Civil Anotado, Vol II, 4ª edição, 1997, pág. 230; veja-se ainda “Alienação fiduciária em garantia e aquisição de casa própria por Mário Júlio de Almeida Costa, Direito e Justiça, Vol I, nº1, 1980, pág. 41/57).
Se a reserva de propriedade fosse transmissível como as garantias reais transmissíveis (hipoteca e penhor) perderia ela natureza de cláusula contratual que se limita a diferir a transmissão da propriedade para momento posterior ao do contrato (e eventualmente a subordina a algo); ainda assim a possibilidade de transmissão da reserva não lhe daria o estatuto de garantia real (Veja-se sobre a questão da intransmissibilidade da reserva de propriedade o estudo do Prof. Rui Pinto Duarte na Revista da Banca, Nº 22, particularmente pág. 52/54).
Refere ainda este autor que “ do ponto de vista do registo predial e do registo automóvel a reserva de propriedade é tratada como um ónus, ou seja, o adquirente sob reserva é tratado como proprietário e o alienante como titular de um direito de garantia sobre o bem em causa”.
Compreende-se, assim, a razão por que nenhuma dúvida se suscita do ponto de vista registral a conversão definitiva da penhora.
8. A alienação fiduciária em garantia, não consagrada no direito português, instrumentalizada pela conjugação de dois procedimentos: (a) reserva para o mutuante da propriedade da coisa vendida e (b) execução pelo mutuante penhorando a coisa vendida com a possibilidade de conservar, até ao pagamento do preço, a reserva.
A verdade é que do ponto de vista substantivo a referida cláusula não é uma garantia real e como tal não pode ser considerada dado o princípio da tipicidade dos direitos reais.
A sua inscrição no registo permite dar publicidade à situação substantiva; a reserva de propriedade a favor do vendedor sobre o bem alienado.
Por ela se fica a saber quem é o proprietário de determinado bem.
A circunstância de ela desempenhar para o respectivo titular uma função de garantia do pagamento do preço não significa que, por isso, deva ter ela o mesmo tratamento da hipoteca ou de outra garantia real.
No entanto é bom de ver que o exequente que não quis garantir o seu crédito com hipoteca, caso em que nenhuma dúvida se suscitaria quanto à penhora do aludido bem cuja propriedade então se transmitia nos termos gerais para o adquirente, pretende, por esta via, agir como se dispusesse de um crédito hipotecário, mas simultaneamente continuando a beneficiar do regime legal resultante da cláusula de reserva de propriedade.
Objectar-se-á: admitida a penhora sobre o veículo alienado com reserva de propriedade, registada a penhora definitivamente e vendido o veículo e, depois, se for cancelado o registo, que diferença avulta?
Avulta esta diferença que, aliás, não é pequena relativamente aos casos em que se executa crédito garantido por hipoteca que pode incidir sobre veículos automóveis (ver artigo 4º do Decreto-Lei nº 54/75, de 12 de Fevereiro): é que o cancelamento do registo fica na disponibilidade do exequente; se algum interessado pretender adquirir o veículo, hipótese pouco provável, e o fizer fora de algum acordo com o exequente, não é provável que o exequente proceda ao cancelamento; não é provável que o Tribunal determine o cancelamento do registo como se tratasse de direito real de garantia; fazendo-o, porém, não se nos afigura que se pudesse sustentar ficar vedado ao exequente, caso o veículo fosse adquirido por terceiro por preço insuficiente face ao crédito reclamado, não se insurgir, aqui com toda a razão, contra um tal entendimento.
Mas o que fundamentalmente interessa salientar é que, a admitir-se que o tribunal cancelaria o registo de reserva de propriedade considerando-o direito real de garantia (artigo 824º/1 do Código Civil), então o tratamento do credor que alienou bem com reserva de propriedade seria igual ao tratamento de credor com garantia real hipotecária.
Já se salientou no Ac. da Relação de Lisboa de 21-2-2002 (Salvador da Costa) C.J., 1, pág. 112 que a renúncia sobre a reserva de propriedade não é válida nem eficaz por não ser admissível, dado ser contrária ao princípio do consenso contratual do artigo 406º/1 do Código Civil e que o artigo 409º/1 do Código Civil abrange na sua letra e no seu espírito “ a hipótese de conexão entre o contrato de mútuo a prestações e o contrato de compra e venda do veículo automóvel por virtude de o objecto mediato do primeiro constituir o elemento preço do segundo”.
Apesar de tal conexão entre os dois contratos ( de compra e venda e de mútuo) não deixa de relevar que o exequente é o mutuante, e não o alienante; saliente-se também que não pode deixar de ser o devedor quem vai permitir que seja aposta a aludida cláusula, pois o vendedor já não tem nada a receber da aludida transacção; observe-se ainda que o referido preceito (artigo 409º/1 do Código Civil) introduz um regime que é excepcional em relação à regra do direito português da transmissão da propriedade da coisa ou da titularidade do direito com a compra e venda (artigo 879º, alínea a) do Código Civil) e, portanto, insusceptível de aplicação analógica (artigo 11º do Código Civil) admitindo apenas a interpretação extensiva.
Válida ou não uma tal cláusula, certo é que, reservada a propriedade para o mutuante, não deixa de existir, portanto, uma similitude entre esta figura e a mencionada alienação fiduciária em garantia: também aqui o devedor alienante, o fiduciante, transfere para a entidade financiadora, o adquirente fiduciário, a propriedade sobre o bem móvel objecto do negócio ficando com ele em seu poder; na alienação fiduciária em garantia, a entidade financiadora adquire a propriedade resolúvel do bem (seria o veículo, no caso vertente), o qual ingressará no património do devedor se este pagar; mas se não pagar, o credor tem o dever de, não paga a dívida, alienar o bem, em regra, privadamente “ tanto vale a dizer, ele não se consolida no seu património; por igual, nula seria a aposição de uma cláusula de compromisso no contrato de alienação fiduciária em garantia, de modo semelhante ao que sucede com os direitos reais de garantia”: ver Almeida e Costa, Direito e Justiça, loc. cit, pág. 52)
O ponto está em que, face ao não pagamento, o nosso direito não reconhece ao titular da propriedade, o exequente, o dever de alienar o veículo, sua propriedade, uma das especificidades desta garantia real do direito brasileiro.
Por isso, quando o exequente pretende a penhora do bem que é sua propriedade, ele está a actuar como se tal lhe fosse permitido ao abrigo da aludida garantia real.
A nossa lei não admite a cláusula de reserva de propriedade a favor do mutuante, mas tão somente em benefício do alienante (artigo 409º/1 do Código Civil). Ou, por outras palavras, não parece admissível a constituição de uma reserva de propriedade a favor de terceiro
Não será então, por exemplo, admissível que uma instituição de crédito outorgue contrato de mútuo com reserva de propriedade a seu favor simultaneamente com a compra e venda do imóvel a favor do comprador de tal sorte que a propriedade ficaria no mutuante (instituição de crédito) e não no mutuário/comprador como acontece sempre que se procede à compra e venda com mútuo com garantia real (hipoteca) a favor do mutuante.
A reserva de propriedade passaria então a garantir o mutuante, não o vendedor; a nossa lei não tomou ainda uma tal opção que teria, como é fácil de ver, a maior das repercussões no plano do crédito designadamente imobiliário. Admite-se que as entidades mutuantes ficassem, assim sendo, numa posição muito mais confortável do que actualmente garantidas por hipoteca; mas também é verdade que uma tal solução traria outros problemas designadamente os que resultam de o comprador não aceder à propriedade com todos os efeitos daí decorrentes.
Os tribunais têm tratado as questões relacionadas com a venda com reserva de propriedade partindo do pressuposto de que o titular da reserva é o alienante: por exemplo, a propósito da questão de saber quem tem legitimidade para pedir a apreensão do veículo, decide-se uniformemente que ela cabe ao titular do registo de reserva de propriedade a quem cabe propor acção de resolução do contrato (artigo 18º do Decreto-Lei nº 54/75, de 12 de Fevereiro): ver o Ac. da Relação de Lisboa de 6-12-1994 (Bettencourt de Faria), Ac. da Relação do Porto de 2-6-1997 (Paiva Gonçalves) B.M.J. 468-482, Ac. da Relação de Lisboa de 11-12-1997 (Varges Gomes) C.J., 5, pág. 120 ou o Ac. da Relação de Lisboa de 23-11-2000 C.J.,5, pág. 99 que relatámos.
Admitindo (ver referido Ac. de 21-2-2002) que a conexão entre ambos os contratos (de compra e venda e de mútuo) justifica a equiparação do mutuante ao alienante considerando-se, por essa via, válida a aludida cláusula, o que já não parece defensável é que o mutuante que vê inscrita a seu favor a reserva de propriedade trate a coisa sobre a qual tem reserva como coisa hipotecada. A extensão do regime do artigo 409º do Código Civil não pode ir ao ponto de o mútuo assim garantido (com reserva de propriedade) se traduzir afinal na constituição de um direito real de garantia por via interpretativa nem isso, como é evidente, foi defendido nesse ou em qualquer dos arestos que se têm debruçado sobre esta questão.
9. Inadmissibilidade do prosseguimento da execução para venda dos bens com reserva de propriedade a favor do exequente sem o cancelamento do registo de reserva.
Há, portanto, aqui a ter em conta várias questões distintas:
Primeira: no caso de venda com cláusula de reserva de propriedade a favor do alienante: pode ele para pagamento do preço em dívida penhorar o bem que é sua própria propriedade?
A resposta é inequivocamente negativa.
Segunda: pode ele, no entanto, instaurar execução renunciando à cláusula de reserva de propriedade?
A resposta é positiva mas diverge quanto aos termos da renúncia: para uns ela é apenas admissível se houver acordo entre as partes que outorgaram o contrato, outros admitem a renúncia pelo titular da reserva.
Terceira: é admissível renúncia tácita ou ela tem de ser expressa?
A resposta para uns é a de que é admissível renúncia tácita que opera mediante o próprio acto de instauração da execução; para outros, a renúncia, havendo registo, haja ou não declaração anterior do interessado manifestando essa vontade, só se pode exprimir válida e eficazmente pelo cancelamento do registo de reserva de propriedade.
Dois pontos se afiguram inequívocos:
- No caso de venda judicial, subsistindo registo de reserva de propriedade, não há lugar ao seu cancelamento oficioso. - Não é admissível penhora sobre os próprios bens do exequente.
E como corolário: - É inadmissível o prosseguimento da execução para venda de bens do exequente.
Ora, subsistindo o registo de reserva de propriedade e assente que, em caso de venda, não pode ele ser cancelado, o Tribunal, logo que se aperceba desta situação, não pode deixar de obstar ao prosseguimento da execução.
Não pode o Tribunal permitir que prossiga uma execução em termos tais que, pela sua inacção, ele contribua para dar tutela a uma situação em que a aparência é desconforme à realidade: vender como bem do executado um bem sobre o qual o exequente mantém um registo que o Tribunal não pode mandar cancelar e que obsta a que o adquirente adquira a propriedade e que, em momento anterior, produz efeito obstativo de reclamação de créditos por parte dos credores do executado, visto que a penhora não incide sobre bem deste.
10. Uma caso de fraude à lei: o prosseguimento da execução subsistindo a reserva de propriedade a favor do exequente.
Outro tipo de considerações se justifica ainda.
O Tribunal não pode consentir aquilo que seria uma fraude à lei (artigo 280º do Código Civil): proceder-se à alienação de veículo propriedade da entidade mutuante como se ela o pudesse fazer por dispor de uma propriedade resolúvel que lhe impõe a venda no caso de não pagamento pelo devedor fiduciante (Sobre a não autonomia da fraude à lei no direito português veja-se o Tratado de Direito Civil Português, Meneses Cordeiro, Almedina, 1999,I Volume, Parte Geral, pág. 427/430).
Com efeito, permitindo-se o prosseguimento da execução estaria a permitir-se instrumentalizar o processo executivo para a realização coerciva de um direito real de garantia que a nossa lei não reconhece.
O processo, cuja natureza pública é inegável, serviria, em manifesta fraude à lei e com a conivência do Tribunal, para que um credor pudesse ressarcir-se do seu crédito comum como se ele beneficiasse de garantia real sabendo-se que assim não é, deixando-se, depois, ao critério exclusivo do credor, efectuada a venda, actuar como conviesse mais aos seus interesses.
Desrespeitar-se-ia, assim, em grau elevado o princípio da confiança que num Estado de Direito pressupõe que os Tribunais não são conscientemente coniventes com situações lesivas dos interesses daqueles que a eles recorrem de boa fé.
Se a todo o direito corresponde a acção adequada a fazê-lo reconhecer em juízo (artigo 2º do CPC), o princípio da legalidade das formas procedimentais obsta à sua utilização desviante para tutela de aparentes direitos, no caso, direito real de garantia que a nossa lei não reconhece: assim procedendo, desrespeita-se o princípio da tipicidade dos direitos reais criando-se por via interpretativa um novo direito real de garantia. O corolário lógico deste entendimento - que não perfilhamos - seria, portanto, aplicar ao caso a regra constante do artigo 824º/ 2 do Código Civil e consequentemente admitir-se o cancelamento nos termos do artigo 888º do Código de processo civil.
Não se argumente também com a preclusão que resulta do facto de a penhora não ter sido indeferida pois o Tribunal ignorando a situação jurídica do bem indicado à penhoranão poderia deixar de a admitir; por outro lado, o caso não é de indeferimento liminar (artigo 811º-A do C.P.C.) e muito menos de oposição à execução visto que o bem que está penhorado não pertence ao executado, mas à exequente, não tendo aquele nenhum interesse em se opor.
A razão do não prosseguimento da execução pode talvez exprimir- -se de um modo mais simples: de acordo com o princípio geral que proíbe actos inúteis (artigo 137º do C.P.C.) conjugado com a regra geral do direito de proibição da prática de actos em fraude à lei e o princípio da tutela da confiança, não é admissível a utilização do processo executivo para se proceder à venda de bens próprios como se fossem alheios.
11. Sobre a nulidade da cláusula de reserva de propriedade quando, nos contratos de alienação, é o mutuante que a reserva para si e não o alienante
Uma última questão se suscita.
Não pode o Tribunal reconhecer, para os presentes efeitos, a nulidade de uma cláusula como é o caso da reserva de propriedade por ter sido constituída a favor do mutuante e não do alienante?
Não vemos obstáculo a uma tal declaração que não põe em causa a decisão exequenda (decisão, portanto, transitada em julgado) que condenou o Réu no pagamento de determinadas quantias resultantes do não pagamento de prestações atinentes ao crédito mutuado.
Ainda que se possa defender que a nulidade da cláusula implica a nulidade do contrato com as consequências daí inerentes (restituição da coisa e das prestações pagas: artigo 289º do Código Civil; mas veja-se a possibilidade da redução: artigo 292º do Código Civil) o certo é que uma tal declaração levaria, em sede executiva, a que o cancelamento do registo se impusesse prejudicando a questão do reconhecimento ou não da renúncia válida à reserva.
Assim, salvo decisão transitada em julgado em contrário, a declaração de nulidade de uma cláusula pode ser proferida oficiosamente pelo tribunal (artigos 285º, 286º, e 295º do Código Civil).
Este caminho imporia a rejeição da aludida conexão o que nos parece excessivo, pois aceita-se a razoabilidade da aludida interpretação extensiva; o que se não aceita é que se vá para além das vantagens que daí decorrem, ou seja, que por essa via se considere introduzido no nosso ordenamento um novo direito real de garantia.
Nenhuma questão se suscitaria, face à redacção do artigo 409º/1 do Código Civil, se do registo resultasse a dupla alienação e não apenas a cláusula de reserva de propriedade a favor do mutuante. Dupla alienação (vendedor-alienante/mutuante-comprador; mutuante- alienante/mutuário-comprador); mediante o registo da clausula de reserva de propriedade, o mutuante (que pagou ao vendedor o preço) passa a beneficiar da função de garantia proporcionada pela cláusula sem necessidade de efectivação do registo (fictício) intermédio de compra.
A função de garantia proporcionada pela cláusula ao mutuante é que não pode valer como garantia real; não há-de ela valer nem mais nem menos do que valeria inscrita que fosse a favor do alienante.
A não se aceitar a referida conexão então o tribunal não poderia deixar de declarar a nulidade da cláusula e determinar necessariamente antes da fase do concurso de credores o cancelamento do registo de reserva de propriedade e só depois de efectivado é que os autos prosseguiriam evitando-se assim que, para terceiros, a cláusula se comportasse como uma efectiva garantia real.
Do ponto de vista prático uma suspensão da execução sempre se imporia com a diferença de que, no caso de nulidade, o mutuante não teria de despender nenhuma quantia com o cancelamento do registo, porque oficiosamente determinado, o que já não sucede aceitando-se a validade da cláusula, caso em que fica dependente do mutuante o cancelamento fundado na renúncia à cláusula e não na sua nulidade.
12. Conclusão final: necessidade de suspensão da execução.
Chegamos, pois, considerados os argumentos expostos à conclusão de que a execução não pode prosseguir sem que esteja cancelado o registo de reserva de propriedade sendo este um caso em que se justifica a suspensão da execução por tão justificada razão (artigo 279º/1, 2ª parte e 801º do C.P.C.), como muito bem se decidiu o Tribunal recorrido no uso pleno das suas atribuições e competências.
Acompanha-se a orientação decisória dos acórdãos desta Relação, o já mencionado Ac. de 21-2-2002 (Salvador da Costa) C.J., 1, pág. 112 e o Ac. de 30-4-2002 (Mário Rua Dias) C.J.,1, pág. 124”
Refira-se, em nota adicional ao texto transcrito, que a declaração de nulidade da aludida cláusula pressupõe o conhecimento da situação substantiva, ou seja, pressupõe que o mutuante não adquiriu a posição jurídica do vendedor por modo legítimo de aquisição dessa posição. No âmbito da execução, o Tribunal terá apenas de se preocupar com a questão de o titular da reserva que à mesma declara renunciar manifestar por actos - o cancelamento do registo - sob pena de se entender que afinal não houve da sua parte renúncia alguma.
Tudo parece resumir-se a uma simples questão: a boa fé processual impõe que quem declara assumir uma posição nos autos proceda em conformidade com a sua declaração.
Concluindo: I- É inadmissível a penhora de bens do próprio exequente e é isso o que acontece quando este instaura execução sendo titular de registo de reserva de propriedade que não pretende cancelar. II- Não vale a instauração da execução como acto tácito de renúncia, nem tão pouco releva qualquer declaração expressa nesse sentido quando afinal o exequente se recusa a proceder em conformidade cancelando o registo. III- Não pode o Tribunal permitir que prossiga uma execução em termos tais que, pela sua inacção, ele contribua para dar tutela a uma situação em que a aparência é desconforme à realidade: vender como bem do executado um bem sobre o qual o exequente mantém um registo que o Tribunal não pode mandar cancelar e que obsta a que o adquirente adquira a propriedade. IV- Desrespeitar-se-ia, assim, em grau elevado o princípio da confiança que num Estado de Direito pressupõe que os Tribunais não são conscientemente coniventes com situações lesivas dos interesses daqueles que a eles recorrem de boa fé. V- O Tribunal não pode consentir aquilo que seria uma fraude à lei (artigo 280º do Código Civil): proceder-se à alienação de veículo propriedade da entidade mutuante como se ela o pudesse fazer por dispor de uma propriedade resolúvel que lhe impõe a venda no caso de não pagamento pelo devedor fiduciante. VI- Com efeito, permitindo-se o prosseguimento da execução estaria a permitir-se instrumentalizar o processo executivo para a realização coerciva de um direito real de garantia que a nossa lei não reconhece desrespeitando-se o princípio da tipicidade dos direitos reais mediante a criação por via jurisprudencial um novo direito real de garantia de índole similar à alienação fiduciária em garantia. Decisão: nega-se provimento ao recurso confirmando-se a decisão recorrida. Custas pelo exequente. Lisboa, 5 de Julho de 2007 (Salazar Casanova) (Silva Santos) (Bruto da Costa)