ABUSO DE CONFIANÇA
CRIME SEMI-PÚBLICO
QUEIXA
Sumário

I - Somente o crime de abuso de confiança simples, a que se refere o art. 205º, n.º 1, tem natureza semi-pública, revestindo as demais situações previstas no preceito a natureza de crime público.
II - Estando em causa o crime de abuso de confiança especialmente qualificado em razão do valor consideravelmente elevado [art. 205.º, n.º 4, al. b)], de natureza pública, é manifesto que o mesmo não admite desistência de queixa.

Texto Integral

Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação de Lisboa:


         I – RELATÓRIO

         1. No Processo Comum (Tribunal Singular) n.º 1056/02.7PHLRS, do 2º Juízo do Tribunal Judicial da comarca do Montijo, em que é arguido (C) e assistente (M), ambos ali devidamente identificados, a Sra. Juíza, no início da audiência, que teve lugar em 17-10-2006, ditou para a respectiva acta um despacho cujo teor se passa a transcrever no seu essencial:

         «O arguido vem acusado pela prática de crime de abuso de confiança agravado, p. p. no artigo 205º, nº 1 e 4º, al. b) do C.P., por referência ao disposto no art.º 202º, al. b), do mesmo diploma legal, tal crime tem natureza semi-pública permitindo o arquivamento dos autos mediante desistência de queixa nos termos do artº 205º nº 3 do mesmo diploma legal.
            Assim, a desistência da queixa pelo assistente, a aceitação do arguido a não oposição do Ministério Público, julgo válida e legal a desistência de queixa que homologo, declarando extinto o procedimento criminal contra o arguido (C), e determino o oportuno arquivamento dos autos, nos termos do art.º 116º, nº 2 do C.P. e artigo 51º do C.P.P.
            (...).
            Relativamente à desistência do pedido cível, atenta a qualidade das partes e o objecto da acção que se encontra na disponibilidade das mesmas, julgo válida e legal a desistência e, em consequência, absolvo o demandado cível do pedido, ao abrigo do disposto no art.º 295º, nº 1 e 300º, nº 3 do C.P.C.
            (...).».


         2. É deste despacho que vem interposto pela Digna Magistrada do Ministério Público junto da 1ª instância o presente recurso, que conclui assim na respectiva motivação (transcrevendo):

         «1- O arguido foi acusado, como autor material, da prática de um crime consumado de abuso de confiança agravado, p. p. pelo art. 205º n.º 1 e 4, al. b) do Código Penal.
            2- Este crime tem natureza pública.
            3- Os crimes de natureza pública não carecem de apresentação de queixa e consequentemente não admitem desistência de queixa.
            4- A desistência de queixa apresentada pelo assistente não poderia ter sido aceite por não ser admissível dada a natureza do crime.
            5- Assim sendo, o tribunal “a quo” não poderia ter homologado por sentença tal desistência.
            6- Com a homologação de tal desistência foi violado o disposto no art. 51º n.º 2 do Código de Processo Penal e o disposto no art. 205º n.º 4 do Código Penal.
            7- A sentença proferida pelo tribunal “a quo” deverá assim ser revogada e ser designada data para a realização da respectiva audiência de discussão e julgamento.

  ASSIM SE FAZENDO A COSTUMADA JUSTIÇA».


         3. Ainda que notificados para o efeito (fls. 450 e 451), nem o arguido nem o assistente responderam ao recurso.


         4. Subiram os autos a esta Relação e, aqui, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu douto parecer no sentido do provimento do recurso.


         5. Cumprido o disposto no art. 417.º, n.º 2, do Cod. Proc. Penal, não houve resposta.


         6. Colhidos os vistos legais, veio a ter lugar a conferência.

Cumpre, pois, apreciar e decidir.


         II – FUNDAMENTAÇÃO

         7. Resulta claramente dos autos que o arguido, após acusação deduzida pelo Ministério Público[1], veio a ser pronunciado pela prática de um crime de abuso de confiança agravado, p. p. pelos arts. 205.º, n.º 1, e n.º 4, al. b), com referência ao art. 202.º, al. b), todos do Código Penal[2], por factos que terão ocorrido em 2002 (fls. 201-204 e 317-321).

         Como vimos, a M.ª Juíza, no início da audiência, entendeu que tal crime era passível de desistência de queixa, pelo que, tendo esta sido apresentada, e perante a não oposição do arguido e do Ministério Público, decidiu, julgando válida e legal essa desistência, homologá-la, determinando, consequentemente, o oportuno arquivamento dos autos.
         Entende agora[3] o Ministério Público que o crime em questão não admite desistência e, pedindo a revogação do decidido, defende que deve ser designada data para a realização do julgamento.

         Já se vê, assim, que a única questão que importa dirimir traduz-se em saber se a exigência de queixa a que se refere o n.º 3 do art. 205.º vale apenas para o caso do n.º 1 do preceito ou, ao invés, é também aplicável aos casos do n.º 4 da norma (ainda que aqui esteja concretamente em causa a al. b) deste normativo).
         Vendo a questão como a outra face da mesma moeda, e reportando-a à situação dos autos, cabe perguntar se a desistência da queixa no crime de abuso de confiança é apenas admissível no caso do n.º 1 do art.º 205º ou, ao invés, vale também para o caso tipificado na al. b) do n.º 4 do preceito.

         Encaremos a questão, com a advertência de que a sua simplicidade, por um lado, e a resposta, ao que sabemos em sentido unânime, que lhe tem sido dada pela jurisprudência[4], por outro, nos dispensa de longas considerações.

         A versão originária do Código Penal previa para o tipo do abuso de confiança dois graus: o simples e o qualificado em razão do valor consideravelmente elevado da coisa ou da qualidade em que o agente tivesse recebido esta (art.º 300º).
         Nem no crime simples nem no qualificado era legalmente possível a desistência da queixa, o que também sucedia, por exemplo, em relação ao furto (arts. 296.º e 297.º).

         Com a revisão operada em 1995, o Código passou a prever, no que concerne ao abuso de confiança, três graus: o simples, o qualificado (em razão do valor elevado da coisa) e o especialmente qualificado (em função do valor consideravelmente elevado da coisa) [art. 205.º, n.º 1, e n.º 4, als. a) e b), respectivamente].
         Três graus que adoptou também em relação ao furto (arts. 203.º e 204.º, n.º 1 e n.º 2, com as diversas alíneas que integram cada um destes números).
         Quer o n.º 3 do art. 205.º (abuso de confiança simples) quer o n.º 3 do art. 203.º (furto simples) fazem depender o procedimento criminal do exercício do direito de queixa.
         O paralelismo da situação não pode deixar de significar que, tal como no furto, aquela dependência vale apenas para o abuso de confiança do n.º 1 do art. 205.º, que não também para os casos contemplados nas alíneas do seu n.º 4.
         É este, como dissemos, o entendimento da jurisprudência, conforme se alcança, entre outros, dos Acórdãos do STJ, de 15-10-1997[5], da Relação de Évora, de 19-11-2002, e da Relação do Porto, de 08-06-2005[6].
         Em suma: somente o crime de abuso de confiança simples, a que se refere o art. 205º, n.º 1, tem natureza semi-pública, revestindo as demais situações previstas no preceito a natureza de crime público.
         Ora, porque no caso está em causa o crime especialmente qualificado em razão do valor consideravelmente elevado [art. 205.º, n.º 4, al. b)], de natureza pública, é manifesto que o mesmo, ao invés do que foi entendido pela 1ª instância, não admite desistência de queixa.
         Assim, o despacho recorrido – no segmento em que declarou extinto o procedimento criminal por desistência de queixa – não pode manter-se, antes se impondo a realização do respectivo julgamento, caso entretanto nenhuma circunstância tenha advindo que a isso obste.


         III – DECISÃO

         A – Na procedência do recurso, revoga-se a decisão recorrida – na parte em que declarou extinto o procedimento criminal por desistência da queixa –, determinando-se que a mesma seja substituída por outra que, na normal tramitação dos autos, proceda à realização do julgamento, caso entretanto nenhuma circunstância tenha advindo que obste a tal.

         B – Sem tributação.

***
Lisboa,  12 de Setembro de 2007
 (Telo Lucas)
 (Pedro Mourão)
 (Ricardo Silva)

 ________________________________________________________________________       
                 
                

[1] Que entendeu, no caso, fazer uso do mecanismo do art. 16.º, n.º 3, do Cod. Proc. Penal. A tal acusação aderiu o assistente (fls. 213).
[2] Diploma a que pertencem os demais preceitos a referir sem menção de origem.
[3] É de propósito que usamos a expressão do texto. Com efeito, não deixa de merecer alguma estranheza o facto do Ministério Público ter declarado nada ter a opor à desistência da queixa, como se colhe da acta de fls. 427-429, e depois interpor recurso – de uma decisão em relação à qual, insiste-se, nada teve a opor –, ainda que se reconheça que a Magistrada presente em julgamento não é a mesma que subscreve o recurso.
[4] A que mais à frente, no texto, faremos expressa referência.
[5] Em Col... ASTJ, Ano V-III-193.
[6] Em Col...., Ano XXVII-V-255 e Ano XXX-III-211, respectivamente.