COMPRA E VENDA COMERCIAL
VENDA DE COISA ALHEIA
CONVALIDAÇÃO
TRANSMISSÃO DE PROPRIEDADE
Sumário

I- Na venda mercantil, diversamente da venda civil, a alienação de coisa alheia é válida, podendo o comprador exigir indemnização no caso de o vendedor não adquirir a coisa validamente alienada.
II- A propriedade não é transferida imediatamente para o comprador na venda mercantil.
III- Tal efeito, atento o disposto no artigo 467.º, n.º2 do Código Comercial verificar-se-á quando o vendedor adquirir por título legítimo a propriedade da coisa vendida e fazer entrega ao comprador, sob pena de responder por perdas e danos.
IV- Não ocorrendo convalidação do negócio, o vendedor deve restituir ao comprador todas as quantias dele recebidas.

(SC)

Texto Integral


Acordam os Juízes do Tribunal da Relação de Lisboa ( 7ª Secção ).

I – RELATÓRIO.
Intentou Mário […] a presente acção declarativa comum, sob a forma ordinária, contra C.[…]Limitada […]

Essencialmente alegou que :

Em Fevereiro de 2003, comprou à Ré um veículo marca Mercedes, pelo preço de € 51.500, com a entrega de € 5.000, a título de sinal e subsequente pagamento integral, tendo-lhe sido entregue de imediato o veículo.

Contudo, a Ré nunca entregou ao Autor a declaração de venda, o livrete, o título de registo de propriedade, os duplicados das chaves, o livro de revisões e o manual de serviço.

O Autor acabou por ser desapossado do veículo em 26 de Março de 2004 por quem se arrogou proprietário do veículo.

Conclui pedindo a condenação da Ré a :

Reconhecer que vendeu o veículo […] ao A. em 8 de Fevereiro de 2003, pelo valor de € 51.500,00, tendo o A. pago esta quantia e da mesma, a título de sinal € 5.000,00 ;

Reconhecer que foi interpelada pelo A. para lhe entregar a declaração de venda ; o livrete e o título de registo de propriedade, até ao dia 29 de Abril de 2005 e que a R. não o fez;

Reconhecer que pelo facto de:

- ter recebido € 51.500 do A..
- E não ter entregue o livrete; título de registo de propriedade e declaração de venda, ao A. incumpriu no contrato.

d) Na resolução do contrato.
e) No pagamento ao A. de € 56.500,00, correspondendo, desta quantia, € 5.000,00 a quantia igual ao sinal e € 51.500,00 à quantia paga, nela incluídos € 5.000,00 de sinal.
f) No pagamento ao A. dos juros à taxa de 4% ao ano, desde a data da citação, até integral pagamento.

Em alternativa e no caso do pedido que antecede, não proceder:
a 1.) Porque a R. vendeu ao A. um bem alheio ( pois o veículo 35-72-SU, nunca foi propriedade da R. ) deve a R. ser  condenada:
a 2.) Restituir ao A. a quantia integral que este lhe pagou à R. ou seja € 51.500, acrescida dos juros à taxa de 4% ao ano, desde a data da citação, até integral pagamento, quantia esta referente à compra e venda do veículo.
a 3.) Reconhecer que vendeu ao A. o veículo […], do qual a R. nunca foi proprietária e por isso bem alheio.
a 4.)  Reconhecer que vendeu o veículo […] de má fé, porque nunca deteve, o livrete; o título de registo e declaração de venda na sua posse e por isso, não enviou tais documentos a qualquer repartição pública/oficial.
a 5.) Na nulidade de contrato, ou seja, deve o contrato de compra e venda do veículo […] ser declarado nulo, por se tratar de bem alheio em relação à R..

Devidamente citada, veio a R. contestar alegando que :

Não incorreu em incumprimento porquanto a entrega dos documentos constitui uma prestação acessória do contrato de compra e venda que se consumou.

A Ré adquiriu o veículo em causa a […] SA, não tendo esta entregue inicialmente os documentos por motivos alegadamente administrativos de índole temporária.

Tal sociedade acabou por não entregar os documentos à Ré que, desse modo, se viu impossibilitada de os entregar ao Autor.

Conclui pela improcedência da acção.

Mais requereu incidente de intervenção acessória provocada de […] SA , o qual foi julgado procedente ( cfr. fls. 125).

[…] SA apresentou contestação, alegando que adquiriu a viatura a G.[…] Lda., a qual, por sua vez, a adquiriu a E.[…] Lda..

Esta não entregou a documentação da viatura àquela, razão pela qual a interveniente também não a recebeu.

Requereu incidente de intervenção acessória provocada de E.[…] Lda., o qual foi deferido ( cfr. fls. 169).

Contestando, E.[…] Lda. invoca o veículo lhe pertencia, tendo sido entregue à consignação a José […], sócio da G.[…] Lda. e administrador da […] SA, ficando este de avisar a interveniente da existência de interessados, cabendo à interveniente vender o veículo.

Conclui pela improcedência da acção.

Procedeu-se ao saneamento dos autos conforme fls. 220 a 224.

Realizou-se audiência final, tendo a decisão de facto sido proferida conforme despacho de fls. 356 a 358.

Foi proferida sentença, julgando a presente acção procedente, com a condenação da R. no pedido.

Apresentou a Ré recurso desta decisão, o qual foi admitido como de apelação ( cfr. fls. 400 ).

Juntas as alegações de recurso de fls. 407 a 425, formulou a Ré as seguintes conclusões :
1 – Conforme resulta da douta sentença ora recorrida e no seguimento dos factos carreados aos autos e da produção de prova em sede de julgamento, foram dados como provados, entre outros, os seguintes factos:
a)  “ Em meados de 2001, R.[…] entregou a J.[…] o veículo com a matrícula 35 […] à consignação ”;
b) “ Ficando este apenas de informar aquele da existência de possíveis compradores ”;
c) “ Razão pela qual um eventual negócio de compra e venda do veículo sempre seria celebrado pelo Rui Costa e o comprador ”;
d) “ Razão porque não foram entregues os documentos do veículo ”;
e) “ A Ré declarou comprar e P. […] Lda. declarou vender-lhe o veículo ”;
f) “ Em 28 de Janeiro de 2002, P. […] Lda. declarou comprar a J. […] SA declarou vender-lhe o veículo ”;
g) “ Comprometendo-se esta a entregar a P. […] Lda. a viatura e os documentos após esta liquidar o preço ”;
h) “ P. […] Lda. pagou o veículo ”;
i) “ Mas J. […] S.A. não entregou os documentos como combinado ”;
j) “ Afirmando que estava a tratar do assunto, havendo atraso por motivos administrativos ”;
k) “ Os mesmos motivos para atraso na entrega dos documentos foram comunicados à P.[…] Lda. ”
l) “ A Ré informou o Autor que logo que lhe fossem entregues os documentos pela P. […] Lda. procederia à sua entrega ao Autor ”;
m) “ Em Março de 2004, o veículo em causa desapareceu de onde o Autor o havia estacionado, em Montemor-o-Novo ”;
n)  “ Contra a vontade e sem autorização do Autor ”;
o) “ O Autor foi desapossado de veículo por quem legitimamente o veio a vender a Filipe […] ”;
p)  “ O veículo foi registado:
  - em 25.09.2002, Ap.29, a favor de Auto […] Lda.”
  - em 25.09.2002, Ap.30, a favor de E. […] Lda.
  - em 02.04.2004 a favor de Filipe […] tendo cancelamento da matrícula desde 3 de Maio de 2004, “a pedido do proprietário””;
2 - Perante a matéria assente, veio-se a apurar e concluir que quem vendeu a viatura à ora Recorrente – J. […] – não tinha legitimidade para o efeito, pois não era o seu verdadeiro proprietário.
3 - Assim, em virtude de a propriedade do veículo não lhe ter sido legitimamente transferida ao abrigo de um qualquer contrato, já que a E.[…] apenas lhe entregou a viatura à consignação com vista a angariação de um comprador, a referida sociedade J. […] efectuou uma venda de um bem alheio ao ora Recorrente.
4 - Por essa razão, as sucessivas vendas da viatura, designadamente a celebrada entre a R, ora Recorrente, e o Autor, foram por sua vez consideradas vendas de bem alheio.
5 - Como tal, veio a douta sentença, nos termos do § único do artigo 467º do Código Comercial, imputar à ora Recorrente a responsabilidade pelos danos patrimoniais sofridos pelo Autor, condenando-a ao pagamento do preço pago pela viatura, acrescido de juros de mora à taxa legal aplicável.
6 - Sucede, porém, que face aos factos carreados aos autos e dados como assentes, ao contrário do que foi decido pelo douto tribunal “a quo”, a responsabilidade sobre os alegados danos do Autor não recai sobre a ora Recorrente e sim sobre terceiro.
Senão vejamos:
7 - A Ré comprou a viatura ora em causa desconhecendo que J.[…]  não era o seu verdadeiro proprietário.
8 - A J.[…]  prometeu vender e a ora Recorrente prometeu comprar a referida viatura, tendo aquela comprometido a entregar a viatura e os documentos após esta liquidar o preço.
9 - Ora, agindo de total boa fé, a Ré pagou o preço do veículo e recebeu-o, ficando porém a aguardar os seus documentos, pois segundo a J. […] havia um atraso por “motivos administrativos”.
10 - A referida sociedade vendedora, J. […] , nunca informou a ora Recorrente que a viatura não lhe pertencia.
11 - Pelo contrário, agiu sempre como de seu verdadeiro proprietário se tratasse, apenas afirmando que “enviaria os documentos oportunamente”.
12 – A ora Recorrente estava efectivamente convencida de que era o seu verdadeiro proprietário, pois nada lhe fazia crer o contrário.
13 - A ora Recorrente pagara devidamente o preço, pelo que lhe fora devidamente entrega a coisa.
14 - No exercício da sua actividade, a ora Recorrente encontrou um comprador para o veículo, tendo concluído o negócio com o Autor.
15 - Apenas não lhe foi possível entregar os documentos ao Autor, pois só o poderia fazer quando os recebesse da J. […] , tendo nessa altura comunicado ao Autor que os mesmos se encontravam atrasados “por motivos administrativos”, conforme informações fornecidas por aquela.
16 - A Ré, ora Recorrente, ao longo de todo o período a que se reportam os factos tudo fez junto da J. […]  para obter os documentos da viatura e entregá-los ao Autor.
17 – Porém, em Março de 2004 o Autor viu-se desapossado do veículo, contra a sua vontade e autorização, pelo seu verdadeiro proprietário, E. […] Lda.
18 - Assim que recuperou a posse da viatura que lhe tinha sido retirada indevidamente pela J. […] , a […] de imediato procedeu à sua venda a Filipe […], o qual veio, pouco depois, em 2 de Abril de 2004, a efectuar o registo da viatura (cfr. certidão de registo automóvel junta nos autos).
19 - Se dúvidas houvesse quanto ao paradeiro do veículo na altura do desaparecimento do mesmo, veio-se a concluir, e bem, pela douta sentença que “o Autor foi desapossado do veículo por quem legitimamente o veio a vender a Filipe […] ”.
20 - Foi a E.[…] , a verdadeira proprietária, que desapossou o Autor da viatura em causa, única pessoa com legitimidade para vender a Filipe […] e, por conseguinte, a possuidora dos documentos da viatura, só assim sendo possível proceder ao respectivo registo.
23 - Todos esses factos vieram-se a apurar com a produção de prova em sede de julgamento.
24 - Razão pela qual se impunha decisão diversa da ora recorrida.
25 - Na verdade, perante os factos dados como provados, a responsabilidade pelo dano do Autor não recai sobre a Ré, ora Recorrente, mas sobre a E. […] Lda., quem desapossou o Autor do veículo em causa.
26 - Com efeito, nos termos do artigo 1301º do Código Civil, “O que exigir de terceiro coisa por este comprada, de boa fé, a comerciante que negoceie em coisa do mesmo ou semelhante género é obrigado a restituir o preço que o adquirente tiver dado por ela (…)” (bold nosso).
27 - Assim, tendo a “E. […] ”, arrogando-se verdadeira proprietária do veículo, desapossado o Autor da viatura que houvera anteriormente adquirido legitimamente e de boa fé à ora Recorrente, estava obrigada a restituir ao Autor o preço por este pago à ora Recorrente.
28 - Este é o regime que vigora para o proprietário que pretende reivindicar a coisa que terceiro tenha adquirido mesmo de boa fé, dando a possibilidade de exigir a restituição da coisa.
29 - Com efeito, o princípio “posse vale título” não encontra total acolhimento na nossa legislação.
30 - Porém, a lei tenta temperar esta desprotecção do adquirente/ possuidor de boa fé ao atribuir-lhe a possibilidade de exigir do reivindicante a restituição do preço, embora concedendo a este um direito de regresso contra quem é responsável pela colocação da coisa no comércio, contra a sua vontade.
31 - Como tal, reivindicando a […] o veículo em causa, vendo-se assim o Autor privado da posse e uso da viatura que de boa fé adquirira anteriormente, ao Autor caberia exigir àquela a restituição do preço pago à ora Recorrente.
32 - Posteriormente, a E.[…] vendo restituída a posse do veículo mas tendo efectuado o pagamento do valor equivalente ao preço pago pelo comprador de boa fé, teria direito de regresso sobre o responsável pela colocação da coisa no comércio, contra a sua vontade, neste caso, a J.[…].
33 - Assim sendo, recai sobre a E.[…] e não sobre a ora Recorrente a responsabilidade pelo dano provocado ao Autor em virtude do desapossamento da viatura - facto esse, frise-se, levada a cabo pela […] – e, por conseguinte, a responsabilidade pela restituição do preço.
34 - Este é o mecanismo adequado atribuído ao adquirente de boa fé que vê ser-lhe exigida a coisa por quem é seu verdadeiro proprietário, já que na verdade é este quem termina por tomar a posse da coisa reivindicada.
35 - Caso contrário, se sobre a ora Recorrente pendesse a obrigação de restituir o preço da coisa vendida de boa fé, sem que esta lhe viesse a ser restituída, haveria uma desprotecção desmesurada e injustificada do vendedor de boa fé.
36 - Não estamos perante uma situação linear, tipificada no regime de venda de bem alheio previsto no artigo 892º do Código Civil, em que o vendedor por agir de má fé ao vender coisa de que não é proprietário, bem o sabendo, é responsável pela restituição do preço indevidamente cobrado.
37 - No presente caso, o vendedor – ora Recorrente – desconhecia que não tinha legitimidade para vender a viatura ao Autor, pois houvera adquirido de forma titulada por meio de contrato de compra e venda, de boa fé, mediante o pagamento do preço devido, a quem, como se veio a descobrir no âmbito dos presentes autos, não era seu legitimo proprietário.
38 - Para a ora Recorrente, a questão incidia apenas na obtenção dos documentos da viatura, cuja entrega não era constitutiva do direito de propriedade.
39 - Tratando-se de um contrato pelo qual se transfere a propriedade de um bem, esta, nos termos do artigo 408º nº 1 do C.C., dá-se por mero efeito do contrato, o que traduz que, com a celebração do mesmo, a ora Recorrente adquiriu, imediatamente, a propriedade da viatura em causa.
40 - Assim sendo, no momento posterior em que celebra com o Autor a compra e venda do mesmo veículo, este seria na verdade da sua propriedade, tendo por conseguinte, toda a legitimidade para realizar a sua venda ao Autor.
41 - Mais ainda, quando o registo automóvel tem fins essencialmente identificativos, conforme o disposto no artigo 1º do Decreto-Lei 54/75 de 12 de Fevereiro, ao estabelecer que “o registo de automóveis tem essencialmente por fim individualizar os respectivos proprietários e, em geral, dar publicidade aos direitos inerentes aos veículos automóveis”.
42 - Não sendo, por isso, o registo constitutivo do direito.
43 - Neste sentido, encontramos o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 18.07.2001, que desde já se passa a reproduzir: “I - Não existe em relação ao registo automóvel norma semelhante à do artigo 7º do Código de Registo Predial, segundo o qual o registo definitivo constitui presunção de que o direito existe e de que pertence ao titular inscrito, nos precisos termos em que o registo o define. II – Também, tal dispositivo não pode aplicar-se subsidiariamente ao registo automóvel, dado o disposto nos artigos 1 e 29, ambos do Decreto-Lei nº 54/75 de 12 de Fevereiro. III – Na verdade, o registo automóvel tem fins essencialmente identificativos e não de segurança do comércio jurídico, como acontece com o registo predial”. (sublinhado nosso ).
44 - Assim, tanto o Autor como a Ré, ora Recorrente, são terceiros de boa fé.
45 - Deste modo, tendo a E.[…] optado por reivindicar a restituição da coisa junto do Autor, a este último caberia exigir da E.[…] a restituição do preço por este pago à ora Recorrente.
46 - Posteriormente a E.[…] teria direito de regresso sobre o responsável pela colocação da coisa no comércio, contra a sua vontade, neste caso, a J.[…], a qual vendeu dolosamente um bem alheio, bem sabendo que não tinha legitimidade para o fazer.
47 - Nessa altura, então, a E.[…], alheado ao regime aplicado aos contratos de compra e venda comercial de bem alheio, poderia exigir da J.[…] o pagamento do quantum indemnizatório correspondente ao valor restituído ao Autor.
48 - Veja-se o Acórdão do STJ de 11-4-2000, em que ao abrigo do disposto no artigo 467º do Código Comercial, “o vendedor de bem alheio - J.[…] - é responsável por perdas e danos perante o dono da coisa  - E.[…] – a menos que a adquira e restitua a este” (bold nosso)
49 - Como tal, não obstante o dono da coisa ter visto restituída a viatura, esta não foi efectuada por via do vendedor, tendo o dono da coisa sido obrigado a suportar uma diminuição no seu património ao restituir ao Autor o preço por este pago pela viatura.
50 - Assim sendo, e salvo melhor opinião, é entendimento da Ré, ora Recorrente, que os factos dados comprovados em virtude da produção da prova em sede de julgamento determinam a aplicação ao caso concreto do disposto no artigo 1301º do Código Civil, bem como impõem diversa interpretação e aplicação do disposto no artigo 467º do Código Comercial.
51 - Por tudo o exposto, à presente acção nunca deveria ter sido dado provimento, por não ser a ora Recorrente a verdadeira responsável pelos danos provocados ao Arguido, devendo assim a douta sentença ser revogada, impondo-se uma decisão de absolvição da Ré do pedido, sob pena de violação do disposto no artigo 1301º do Código Civil e no § único do nº 2 do artigo 467º do Código Comercial.
O A. não contra-alegou.
 
II – FACTOS PROVADOS.
Encontra-se provado nos autos que :
1- Em meados de 2001, Rui […] entregou a José […] o veículo referido em 14. à consignação (28º);
2- Ficando este apenas de informar aquele da existência de possíveis compradores (29º);
3- Razão pela qual um eventual negócio de compra e venda do veículos sempre seria celebrado pelo Rui […] e o comprador (30º);
4- Razão porque não foram entregues os documentos do veículo (31º);
5- A Ré declarou comprar e P. […]Lda. declarou vender-lhe o veículo referido em 14 (9º);
6- Em 28 de Janeiro de 2002, P. […]  Lda. declarou comprar e J. […] SA declarou vender-lhe o veículo referido em 14. (10º);
7- Comprometendo-se esta a entregar a P. […] Lda. a viatura e os documentos após esta liquidar o preço (11º);
8- P. […]  Lda. pagou o veículo (12º);
9- Mas J. […] SA não entregou os documentos como combinado (13º);
10- Afirmando que estava a tratar do assunto, havendo atraso por motivos administrativos (14º);
11 - Os mesmos motivos para atraso na entrega dos documentos foram comunicados à Ré pela P. […] Lda. (16º);
12- A Ré informou o Autor que logo que lhe fossem entregues os documentos pela P. […] Lda., procederia à sua entrega ao Autor (17º);
13- Aquando do referido em 6., José […]  informou o representante de P. […] Lda. que lhe enviaria os documentos oportunamente (18º);
14- O amigo do A., ANTÓNIO JOSÉ,  no dia 8/02/03, encarregue para tal pelo  Autor, declarou comprar à Ré e este declarou vender ao A. o veículo que se passa a identificar:
a) […] SU
b) Marca - Mercedes Benze
c) Modelo […]
d) Ano de fabrico - 2001
e) Combustível - gasóleo
f) Cilindrada - 02685
g) Do tipo - ligeiro de passageiros
h) Lotação - de 5 lugares
i) Peso bruto - 02080
j) Chasi - nº. […]
k) Estado – usado ( documento de fls. 13, cujo teor se dá por integralmente reproduzido) (A);
15 - O preço estipulado no  acordo referido em 14.   foi de 51.500 € (cinquenta e um  mil e quinhentos euros) tendo o pagamento sido efectuado, nos termos seguintes:
a) Sinal    5.000 Euros pagos  através do cheque nº. 5 [.]
b) Uma prestação de 25.000 Euros
 através do pagamento em espécie, com a entrega do veículo                                     Mercedes  220 CDI, de matrícula 43-22-LR.
c) Uma prestação no valor de 7.500 Euros, paga através do cheque   nº. […] do BPI
d) Uma prestação no valor de 7.500 Euros paga através do cheque nº. 2228471774 do BPI
e) Uma prestação no valor de 6.500 Euros paga através do cheque nº. 6228471748 do BPI (B );
16- Sendo os 1.500 Euros, que acrescem aos 50.000 Euros, devidos a juros, pelo facto dos cheques serem post – datados (C );
17- A solicitação do A. e do ANTÓNIO […]   a R. facturou a venda do veículo que o  A.  lhe  declarou comprar, em nome do Autor (D);
18- A Ré entregou ao Autor o veículo referido em 14.  ( E);
19 – A Ré nunca teve,  nem entregou ao Autor,  o livrete, o título de registo nem a declaração de venda do veículo referido em 14. ( I);
20 - Cada vez que o Autor se deslocava à sede da Ré, esta referia-lhe que os documentos estavam demorados nas repartições oficiais (1º);
21-O certo é que, apesar das insistências do A. nunca a R. lhe entregou:
            - Duplicados das chaves.
            - Livro de revisões
            - Manual de serviço (2º);
22- Se a Ré tivesse referido ao Autor que nunca teve o livrete, o registo de propriedade e a declaração de venda do veículo referido em 14., o Autor nunca teria pago à Ré as quantias referidas em 15. (8º);
23 – O Autor utilizou e gozou o veículo entre 8.2.2003 até Março de 2004 (3º);
24- Em Março de 2004, o veículo em causa desapareceu de onde o Autor o havia estacionado, em Montemor-o-Novo (4º);
25- Contra a vontade e sem autorização do Autor (5º);
26- Entre 6 de Março de 2003 e 31 de Maio de 2004, a Ré emitiu e entregou ao Autor as declarações juntas a fls. 17 a 30, cujo teor se dá por integralmente reproduzido,  nos termos das quais, para os devidos efeitos e em especial para fazer fé perante as autoridades de trânsito,  declara que vendeu ao Autor o veículo referido em 14. (H);
27- Com data de 14 de Abril de 2005, António José  remeteu à Ré e esta recebeu a carta de fls. 32/33, cujo teor se dá por integralmente reproduzido,  nos termos da qual pede à Ré que proceda à entrega da declaração de venda, livrete, título de registo de propriedade, duplicado das chaves, manual de serviço e livro de revisões até ao dia 27.4.2005 sob pena de “Se não o fizerem incumpriram no contrato, pelo que o Sr. Mário João considera o contrato resolvido, ou então, venderam-lhe um bem alheio” (F);
28- O veiculo referido em 14. foi registado:
- em 25.9.2002, Ap. 29, a favor de Auto[ …]  Lda.;
- em 25.9.2002, Ap. 30, a favor de E.[…]  Lda.;
- em 2.4.2004 a favor de Filipe […] 2400 Leiria,
tendo cancelamento da matrícula desde 3.5.2004 “ a pedido do proprietário” ( documentos de fls. 154, 155 e 177 (G).
 
III – QUESTÕES JURÍDICAS ESSENCIAIS.
São as seguintes as questões jurídicas que importa dilucidar nestes autos :
1 – Venda comercial de bem alheio. Regime aplicável à situação sub judice.
2 – Da invocação do artº 1301º, do Cod. Civil.
Passemos à sua análise :
1 – Venda comercial de bem alheio. Regime aplicável à situação sub judice.
Alega, essencialmente, a recorrente :
A Ré comprou a viatura em causa desconhecendo que J.[…] não era o seu verdadeiro proprietário.
No exercício da sua actividade, a ora Recorrente encontrou um comprador para o veículo, tendo concluído o negócio com o Autor.
Apenas não lhe foi possível entregar os documentos ao Autor, pois só o poderia fazer quando os recebesse da J. […], tendo nessa altura comunicado ao Autor que os mesmos se encontravam atrasados “ por motivos administrativos ”, conforme informações fornecidas por aquela.
A Ré, ao longo de todo o período a que se reportam os factos, tudo fez junto da J.[…] para obter os documentos da viatura e entregá-los ao Autor.
Em Março de 2004, o Autor viu-se desapossado do veículo, contra a sua vontade e autorização, pelo seu verdadeiro proprietário, E.[…] Lda.
Se sobre a ora Recorrente pendesse a obrigação de restituir o preço da coisa vendida de boa fé, sem que esta lhe viesse a ser restituída, haveria uma desprotecção desmesurada e injustificada do vendedor de boa fé.
Não estamos perante uma situação linear, tipificada no regime de venda de bem alheio previsto no artigo 892º do Código Civil, em que o vendedor por agir de má fé ao vender coisa de que não é proprietário, bem o sabendo, é responsável pela restituição do preço indevidamente cobrado.
 No presente caso, o vendedor – ora Recorrente – desconhecia que não tinha legitimidade para vender a viatura ao Autor, pois houvera adquirido de forma titulada por meio de contrato de compra e venda, de boa fé, mediante o pagamento do preço devido, a quem, como se veio a descobrir no âmbito dos presentes autos, não era seu legitimo proprietário.
Para a ora Recorrente, a questão incidia apenas na obtenção dos documentos da viatura, cuja entrega não era constitutiva do direito de propriedade.
Tratando-se de um contrato pelo qual se transfere a propriedade de um bem, esta, nos termos do artigo 408º nº 1 do C.C., dá-se por mero efeito do contrato, o que traduz que, com a celebração do mesmo, a ora Recorrente adquiriu, imediatamente, a propriedade da viatura em causa.
Isto na medida que o registo automóvel tem fins essencialmente identificativos, conforme o disposto no artigo 1º do Decreto-Lei 54/75 de 12 de Fevereiro, ao estabelecer que “o registo de automóveis tem essencialmente por fim individualizar os respectivos proprietários e, em geral, dar publicidade aos direitos inerentes aos veículos automóveis”.
Assim sendo, no momento posterior em que celebra com o Autor a compra e venda do mesmo veículo, este seria na verdade da sua propriedade, tendo por conseguinte, toda a legitimidade para realizar a sua venda ao Autor.
Apreciando :
Não subsistem dúvidas de que, ao tempo da realização do contrato de compra e venda concluído entre a R. e o A., o veículo automóvel que constituiu o seu objecto era propriedade da firma E. […]  Lda., entidade em nome da qual se encontrava registado.
Com efeito,
Quando J. […]S.A. procedeu à venda dessa viatura automóvel, com a matrícula 35, a P. […], Lda., fê-lo ilicitamente, uma vez que a mesma lhe havia sido entregue pela legítima prop Lda. – apenas com vista à angariação de interessados na compra, sem lhe terem sido conferidos quaisquer poderes relativamente à sua alienação.
Não havendo J.P. […] S.A. assumido, em momento algum, a qualidade de proprietária da viatura[1], desse facto resulta que a mesma celebrou com a compradora P. […] Lda. um contrato de compra e venda de bem alheio.
Nemo dat quod non habet.
Tal negócio é assim nulo, em conformidade com o disposto no artº 892º, do Cod. Civil.
Dispõe este preceito que : “ É nula a venda sempre que o vendedor careça de legitimidade para a realizar ; mas o vendedor não pode opor a nulidade ao comprador de boa fé, como não pode opô-la ao vendedor de boa fé o comprador doloso. “.
A nulidade deste contrato de compra e venda de coisa alheia inquina as subsequentes transmissões da viatura automóvel em referência, não conferindo a nenhum dos adquirentes – incluindo a Ré - o título de proprietário do veículo.
Acontece que, conforme se sublinhou na decisão recorrida, no que concerne ao contrato celebrado entre a R. e o A., encontramo-nos perante um negócio que se situa na esfera comercial, pelo menos do lado da vendedora, atento o disposto no artº 463º, nº 1, do Código Comercial, sendo regulado, quanto a todos os contraentes, pelas disposições do Código Comercial, conforme determina o art.º 99º, deste diploma legal.
Dispõe o art.º 467º, do Código Comercial :
“ Em comércio são permitidas :
( … ) 2º - A venda de cousa que for propriedade de outrem.
Parágrafo único : No caso do nº 2 deste artigo o vendedor ficará obrigado a adquirir por título legítimo a propriedade da cousa vendida e a fazer a entrega ao comprador, sob pena de responder por perdas e danos “.
Conforme salienta João Calvão da Silva in “ Compra e Venda de Coisas Defeituosas. Conformidade e Segurança “, pags. 17 a 18 : “ …na venda mercantil, diferentemente da venda civil, a alienação de coisa alheia é válida, com o comprador a poder agir, pela indemnização, apenas se o vendedor não cumprir a obrigação legal ( mas in radice contratual ) de aquisição e entrega da coisa. Indemnização do interesse contratual positivo ou dano do não cumprimento da obrigação de adquirir e entregar a coisa validamente vendida…”.
Refere Adriano Anthero, in “ Comentário ao Código Comercial Português “, Volume III, pag. 25 : “ A razão porque o código permite neste número a venda de coisas que forem propriedade de outrem, é que, além de se facilitarem desse modo as operações comerciais, muitas vezes torna-se impossível ou, pelo menos, inconveniente, obrigar o comerciante a exigir do seu vendedor a prova da sua propriedade. Proibir tais vendas seria desconhecer as necessidades reais do comércio, criar um obstáculo perigoso à rapidez e desenvolvimento das suas operações, e até ferir o próprio interesse dos comerciantes. “.
Assim sendo, este contrato de compra e venda, de natureza comercial, realizado por quem não era o legítimo proprietário do bem vendido, sendo válido[2], não transfere imediatamente a propriedade do bem para o comprador.
Tal efeito acontecerá em momento posterior[3], por efeito do mesmo contrato de compra e venda, quando o vendedor vier a adquirir na sua esfera jurídica, por qualquer título, o objecto do negócio[4].
A venda de bem alheio por parte da Ré gerou, em relação a esta, a obrigação de aquisição da respectiva propriedade.
Não o fazendo, e incumprindo tal obrigação, incorria a Ré em responsabilidade contratual[5].
Acontece que in casu a Ré nunca logrou proceder à convalidação do negócio, o que teria permitido a transferência da propriedade sobre a viatura para o comprador, em conformidade com o disposto no artº 895º, do Cod. Civil.
Assim sendo, recai sobre a R., enquanto entidade vendedora dum bem de que não era legítima proprietária, a obrigação de restituição de todas as quantias pecuniárias recebidas das mãos do A., em cumprimento das prestações contratuais concernentes ao negócio[6], conforme especialmente prevê o art.º 894º, nº 1, do Cod. Civil, segundo o qual : “ Sendo nula a venda de bens alheios, o comprador que tiver procedido de boa fé tem o direito de exigir a restituição integral do preço, ainda que os bens se hajam perdido, estejam deteriorados ou tenham diminuído de valor por qualquer outra causa. “.
Pelo que há lugar à condenação da Réu no pedido formulado, não assistindo razão à apelante. 
2 – Da invocação do art.º 1301º, do Cod. Civil.
Alegou a apelante, a este propósito :
A “ E.[…]  ”, arrogando-se verdadeira proprietária do veículo, desapossou o Autor da viatura que houvera anteriormente adquirido legitimamente e de boa fé à ora Recorrente, pelo que estava obrigada a restituir ao Autor o preço por este pago à ora Recorrente.
Este é o regime que vigora para o proprietário que pretende reivindicar a coisa que terceiro tenha adquirido mesmo de boa fé, dando a possibilidade de exigir a restituição da coisa.
 Com efeito, o princípio “posse vale título” não encontra total acolhimento na nossa legislação.
 Porém, a lei tenta temperar esta desprotecção do adquirente/ possuidor de boa fé ao atribuir-lhe a possibilidade de exigir do reivindicante a restituição do preço, embora concedendo a este um direito de regresso contra quem é responsável pela colocação da coisa no comércio, contra a sua vontade.
 Como tal, reivindicando a E.[…]  o veículo em causa, vendo-se assim o Autor privado da posse e uso da viatura que de boa fé adquirira anteriormente, ao Autor caberia exigir àquela a restituição do preço pago à ora Recorrente.
 Posteriormente, a E.[…] vendo restituída a posse do veículo mas tendo efectuado o pagamento do valor equivalente ao preço pago pelo comprador de boa fé, teria direito de regresso sobre o responsável pela colocação da coisa no comércio, contra a sua vontade, neste caso, a J. […] .
 Assim sendo, recai sobre a E.[…] e não sobre a ora Recorrente a responsabilidade pelo dano provocado ao Autor em virtude do desapossamento da viatura - facto esse, frise-se, levada a cabo pela […] – e, por conseguinte, a responsabilidade pela restituição do preço.
 Apreciando :
O preceituado no art.º 1301º, do Código Civil, não se aplica às coisas móveis sujeitas a registo, como é o caso da venda de veículos automóveis[7].
Assim sendo, falece desde logo, por este motivo, toda a argumentação expendida pela recorrente neste tocante.
Por outro lado, importa salientar que não se verificou na situação sob judice qualquer acto de reivindicação, por parte da […], relativamente ao bem que se encontrava na posse do A..
Não há prova de que a […] se tenha dirigido ao A. exigindo-lhe a entrega do automóvel em questão ou fazendo valer, perante ele, quaisquer tipo de direitos.
Diferentemente, o que aconteceu foi um mero acto de subtracção, não tutelado pelo direito, contra o qual nenhum dos interessados reagiu e que, nessa medida e por esse motivo, não é susceptível de gerar quaisquer consequências neste processo.
A apelação terá necessariamente que improceder.

IV - DECISÃO :
Pelo exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar improcedente a apelação, confirmando a sentença recorrida.
Custas pela apelante.

Lisboa, 18 de Setembro de 2007.
                
   ( Luís Espírito Santo)
 ( Isabel Salgado)
( Roque Nogueira ).

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[1] Nunca logrou J. P. Caetanos, S.A. a convalidação do negócio, nem consta dos autos que o tivesse sequer tentado fazer.
[2] O acto não é afectado, entre as partes, pela falta de registo, pois este não reveste natureza constitutiva ( cfr. acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 24 de Fevereiro de 1977, in BMJ nº 264, pag. 179 ).
[3] Vide Prof. Galvão Telles, in “ Contratos Civis “, publicado no BMJ nº 93, pag. 126, onde refere : “ A venda é válida ; ninguém pode pedir a sua anulação ; simplesmente não transfere logo a propriedade, que não pertencia ao vendedor. Essa transferência só virá a dar-se mais tarde, eventualmente, quando o vendedor, por qualquer título, adquirir o objecto ; mas no preciso instante de tal aquisição a propriedade transmite-se ipso iure ao comprador, por mero efeito do contrato de compra e venda, sem necessidade de nova manifestação de vontade tendente a esse fim : o que denota a força translativa da convenção. È esta a solução adoptada pela nossa lei com relação à venda mercantil, como se vê do artº 467º, nº 2, do Código respectivo, que declara em comércio permitida a venda de coisa que for propriedade doutrem. “
[4] Vide acórdão da Relação de Coimbra de 22 de Novembro de 2005 ( relator Hélder Roque ), publicado in www.dgsi.pt.
[5] Vide Paulo Olavo Cunha, in “ Venda de Bens Alheios “,  publicado na Revista da Ordem dos Advogados nº 47, Setembro de 1987,  onde refere a fls. 462 a 463 : “ Se o vendedor não adquirir a propriedade da coisa que vendeu, então o contrato de compra e venda não produzirá efeitos, com excepção da obrigação contratual do devedor. “.
[6] Vide, neste sentido, acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 11 de Abril de 2000, publicado in Colectânea de Jurisprudência/STJ, Ano VIII, tomo II, pags. 37 a 38, onde se conclui : “ …o quantum indemnizatório devido cifra-se, pelo menos, no valor do veículo vendido…”.
[7] Vide acórdão da Relação de Coimbra de 28 de Abril de 1987, in Colectânea de Jurisprudência, Ano XII, tomo II, pags. 97 a 98.