RENDA
ÓNUS DA PROVA
ARRENDAMENTO
DESPEJO
RESOLUÇÃO DO CONTRATO
REVELIA
Sumário

O ónus da prova do pagamento de renda cabe ao locatário, por se tratar de facto extintivo do direito do autor (artigo 342.º/2 do Código Civil) ainda que se trate de acção de resolução do contrato de arrendamento por falta de pagamento de renda, não importante inversão do ónus da prova o facto de o réu ter sido julgado à revelia.

(SC)

Texto Integral

Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa

Veio nos presentes autos Ana […] pedir que seja declarado resolvido o contrato de arrendamento que celebrou com o Réu […], e decretado o despejo do local arrendado. Pede ainda a condenação do Réu a pagar-lhe as rendas vencidas no montante de € 18.243,36 bem como as vincendas até efectiva entrega do locado.

Alega que o Réu, desde Agosto de 2002 que deixou de lhe pagar as rendas mensais.

O Réu foi citado editalmente, não tendo sido oferecida contestação.

Realizado o julgamento foi proferida sentença que julgou a acção não provada e improcedente.

                                                                Inconformada recorre a Aª, concluindo e em síntese que:
– A Aª alegou e provou ter celebrado com o Réu um contrato de arrendamento, mediante a renda mensal de 100.000$00.
– Alegou também que o Réu deixou de pagar a renda a partir de Agosto de 2002.
– Não provou, é certo, que ele não pagou, mas não precisava de o fazer já que o ónus da prova do pagamento incumbia ao Réu.
– De resto, verificando-se que o Réu nunca foi encontrado no locado, com vista à sua citação, presume-se que ali não vive e que não pagou a renda.

O Mº Pº em representação do Réu revel defende a bondade da decisão recorrida.

                                                                     *
                                                                                                                                                 Foi dado como provado que:
A)  Por contrato de 1/1/92 a Aª deu de arrendamento ao Réu a fracção [] na Brandoa.
B)   Tal contrato foi celebrado pelo período de cinco anos com início na referida data.  
C)   A renda deveria ser paga na residência da senhoria ou onde esta indicasse e a Aª indicou uma conta bancária.
D) Inicialmente a renda contratada foi de 100.000$00 mensais.

                                                             *
Cumpre apreciar.
No essencial, a questão objecto do presente recurso consiste em determinar se é ao senhorio que incumbe a prova do não pagamento da renda pelo arrendatário, ou se é a este que cabe o ónus do respectivo pagamento.

Na sentença entendeu-se que o ónus da prova incumbia à senhoria, ora Aª, nos termos do art.º 342º nº 1 do CC.

Digamos desde já que discordamos de tal entendimento.

O art.º 342º nº 1 estabelece que “àquele que invocar um direito cabe fazer a prova dos factos constitutivos do direito alegado”.

Neste sentido, a Aª, teria, nos presentes autos, de invocar e provar a existência de um contrato de arrendamento, do qual decorria para o arrendatário a obrigação de pagar uma renda de determinado montante, como contrapartida do gozo do locado. Teria igualmente de alegar e provar as condições de pagamento, tendo em atenção a presunção decorrente do art.º 1039º nº 2 do CC.

A Aª alegou e provou ter celebrado um contrato de arrendamento com o Réu, pelo qual cedeu o gozo do 8º andar esquerdo do prédio acima descrito, tendo como contrapartida a obrigação do Réu de efectuar o pagamento de um renda de 100.000$00 mensais. A renda deveria ser depositada numa conta bancária indicada pela Aª.

Alega por fim a Aª que o Réu deixou de pagar as rendas.

É certo que o não pagamento da renda é fundamento para a resolução do contrato de arrendamento. É nesta base que a sentença recorrida entende que o ónus da prova do não pagamento incumbia à Aª.
                                                                                                                                                       Não se deve, contudo, esquecer o teor do nº 2 do mesmo art.º 342º: “a prova dos factos impeditivos, modificativos ou extintivos do direito invocado compete àquele contra quem a invocação é feita”.

O direito invocado, ou seja, o direito à resolução do arrendamento, assenta no incumprimento do Réu, face ao não pagamento das rendas. Logo, invocado tal tipo de incumprimento, será ao devedor que incumbe a prova do pagamento, destruindo os fundamentos do direito invocado e extinguindo este.

 E a razão é simples. A prova de um facto negativo, muito em especial no caso do pagamento, é extremamente problemática. Com efeito, como provar que determinada circunstância não ocorreu? Ao invés, torna-se fácil ao devedor a prova do pagamento, bastando para tal exibir o respectivo recibo.

Existem situações em que a prova de um facto negativo se pode fazer pela prova de outros factos mas estes positivos. Independentemente do ónus probatório, é possível a quem conteste a aquisição da propriedade por usucapião demonstrar que o alegado possuidor não tinha essa qualidade, ou porque se trata de um terreno rústico que não foi cultivado e se encontra durante largos anos coberto de mato e ao abandono. Do mesmo modo, pode-se provar que determinada pessoa não estava em determinado local a dada hora provando-se que ela se encontrava a essa mesma hora noutro local diferente. Nestes exemplos, a parte contrária pode provar um facto negativo através de evidências físicas concretas.

O que queremos dizer com isto é que, mesmo na prova de facto negativo, podem ocorrer casos em que a não existência de um facto decorre da prova da existência de outros factos positivos.

Contudo, existem igualmente situações em que a prova de facto negativo se resume pura e simplesmente à prova de uma negação. O caso do não pagamento é o mais sintomático. Provar que o devedor não pagou não tem outro conteúdo que não seja o provar que determinado facto não aconteceu, sem que tal prova possa ser feita através da concorrência de outros factos que conduzam inelutavelmente a tal conclusão.
Trata-se de provar a inexistência de qualquer coisa, ou acção, o que, para lá da extrema dificuldade que pressupõe, parece distorcer o percurso lógico que deve informar um são raciocínio jurídico.



                                                                                                                                                É essa diferença que faz com que, por vezes, o ónus probatório incumba a quem invoca um facto negativo. Para nos mantermos no âmbito do arrendamento, é ao senhorio que invoque a falta de residência permanente do inquilino que incumbe a respectiva prova. Mas aqui, tal prova pode ser feita mediante factos positivos, por exemplo, o facto de o inquilino ter a sua residência habitual noutra casa, os baixos consumos de electricidade, água e telefone etc. Ou seja, eventos que podem ser constatados a nível perceptivo.
No não pagamento, como vimos, não é assim.

Como sublinham Pires de Lima e Antunes Varela – Código Civil Anotado I, p. 222 - “o significado essencial do ónus da prova não está tanto em saber a quem incumbe fazer a prova do facto como em determinar como deve o tribunal decidir no caso de se não fazer prova do facto”.

É provável que na decisão recorrida tenha sido ponderada a circunstância de o Réu ser revel, tendo sido citado editalmente. Isso impede que, mesmo na ausência de contestação, possa ser aplicável qualquer tipo de cominação.

Contudo, chegados ao termo do julgamento, deparamos, de acordo com a factualidade decidida, com a situação de, não tendo sido provado que o Réu não pagou as rendas, também não ter sido provado que as pagou.

Dizer-se, como o faz o Mº Pº nas suas alegações, que a prova do pagamento só teria de ser feita se tal pagamento tivesse sido invocado, e embora se entenda a lógica que subjaz a tal afirmação, não parece ser argumento a sufragar.

Estamos perante um arrendamento habitacional. O Réu teve de ser citado editalmente porque, após as mais diversas diligências, não se descobriu o seu paradeiro. Muito em especial, tornou-se manifesto que não habita há muito no local arrendado.

Se é verdade que a revelia impede a cominação, já não concordamos que tenha por efeito a inversão do ónus probatório. O Réu não pode ser sancionado por não ter invocado o pagamento, uma vez que não contestou a acção, fruto da situação de revelia. Mas continua a ser seu o ónus de provar o facto extintivo, ou seja o pagamento das rendas.  

Entendendo-se que num caso como o presente é ao inquilino que incumbe provar que pagou as rendas – neste sentido e entre muitos outros, ver o recente Acórdão desta Relação de Lisboa, de 19/4/2007, disponível no site da DGSI – a falta de prova de tal pagamento implica a procedência da acção. O que havia que provar não era que o inquilino não pagou, mas sim que pagou.
                                                                                                                                                        Se assim não fosse, como se observa lucidamente nas alegações da recorrente, a maioria das acções em que se peça a resolução do arrendamento com base na falta de pagamento das rendas, e desde que ocorra revelia absoluta do Réu inquilino, estaria condenada ao insucesso dada a extrema dificuldade, a que acima nos referimos, de provar o não pagamento.

Tal como se refere no Acórdão da Relação do Porto de 20/11/97, citado pela recorrente, a revelia absoluta, embora impeça a cominação de confissão fáctica por ausência de contestação, não implica a inversão do ónus da prova.

Assim, não se provando o pagamento das rendas, que constitui a principal obrigação do arrendatário, como contrapartida do gozo da coisa locada, existe fundamento para a resolução do contrato nos termos do art.º 64º nº 1 a) do RAU.

Não se apurou contudo a data em que se iniciou o incumprimento nem o montante da renda ao longo dos anos: com efeito resultando provado que inicialmente, a renda contratada foi de 100.000$00 mensais”, pressupõe-se que a renda terá sido posteriormente actualizada.


Assim, acorda-se em julgar procedente a apelação e atento o disposto nos arts. 64º nº 1 a) do RAU e 1045º nºs 1 e 2 do CC, declara-se resolvido o arrendamento dos autos, decretando-se o despejo imediato do local arrendado, que deverá ser entregue livre e devoluto de pessoas e bens.
Mais se condena o Réu a pagar à Aª as rendas vencidas e as que se vencerem até ao trânsito em julgado do presente acórdão e, caso a entrega não seja efectuada, a pagar à mesma Aª a título de indemnização o montante das rendas em dobro até à efectiva entrega do locado, tudo a liquidar em sede de execução da sentença.

Custas pelo Réu.

Lisboa, 4 de Outubro de 2007

António Valente
Ilídio Sacarrão Martins
Teresa Pais