LITIGÂNCIA DE MÁ FÉ
PESSOA COLECTIVA
Sumário

Prevê o artigo 458.° do C.P.C. que quando a parte for um incapaz, uma pessoa colectiva ou uma sociedade, a responsabilidade das custas, da multa e da indemnização recai sobre o seu representante que esteja de má fé. A pessoa colectiva é susceptível de ser condenada como litigante de má fé, porque para tal é requisito ser parte – artigo 456º -1 do C.P.C.
FG

Texto Integral

Acordam os Juízes na 1ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:
I-RELATÓRIO
TRANSPORTADORA LDA., intentou a 11 de Março de 2004 acção declarativa de condenação com processo comum na forma ordinária contra TRANSPORTES S.A., invocando sucintamente que as partes celebraram em 28 de Março de 2000 um contrato, documentado por escrito particular, intitulado prestação de serviços, pelo qual a Autora se obrigou para com a Ré a efectuar transporte nas suas viaturas de mercadorias, a partir de e com destino a terminais da Ré, nos itinerários, horários e demais condições estabelecidas. Os serviços pressupunham a partida diária simultânea a partir dos terminais de carga da Ré situados no Cacém (Sintra) e na Maia, de duas viaturas de mercadorias disponibilizadas pela Autora. A Autora pagava à Ré por cada viagem 50 mil escudos. O contrato vigorava por um ano, podendo ser denunciado antes do termo por qualquer das partes, com 60 dias de antecedência. No acordo havia uma cláusula desde o seu início sobre a resolução do contrato por qualquer das partes sem justa causa, que foi objecto de uma alteração em 31 de Maio de 2001, mediante o que se estabeleceu que a resolução nessas condições “sujeitava o infractor a pagar à outra parte a quantia correspondente a 20 vezes o valor da viagem contratada, e uma penalização adicional de 5 vezes o valor do serviço diário no último semestre de 2001 e primeiro trimestre de 2002“. Diz a Autora que os acordos foram pontualmente cumpridos pela Ré, sem reclamações da Autora e que por carta de 23 de Janeiro de 2002 a Ré comunicou à Autora que “ por alterações do nosso processo de trabalho, no que diz respeito às ligações entre os nossos terminais do Cacém e da Maia, e vice versa, prescindimos da totalidade dos vossos serviços a partir de 1 de Fevereiro de 2002”.
Face a tal, a Autora exigiu da Ré a indemnização acordada, que liquidou, mas a Ré não pagou. Daí a Autora pedir que a Ré lhe pague de capital euros 12.470,00, e juros vencidos desde 8-2-2002, que liquida, e vincendos até integral e efectivo pagamento, a 12% ao ano – o que tem a ver com a Portaria nº 262/99, de 12-4, e portanto trata-se de juros à taxa supletiva legal para as operações comerciais).

Citada a Ré, contestou, explicando os “ motivos estruturais do processo de trabalho da Ré “, dizendo que o trajecto operado pela Autora entre o Cacém e a Maia sofreu uma anormal quebra de serviço, tirando daí que já não se justificava a manutenção dos serviços prestados pela Autora. Qualifica a resolução do contrato que operou como de por justa causa, situação que alega não estar prevista no contrato, e por esse ponto de vista nem carecer de pré-aviso.
Porém, com o envio pela Ré da carta rescisória, a Autora, exigiu por escrito o pagamento da indemnização por rescisão sem justa causa, como se vê da carta que a Autora junta a fls. 24.
Face à exigência pela Autora do pagamento de tal indemnização, a Ré tentou negociar com a Autora, de modo a não pagar a indemnização pedida, ponderando até rescindir com outras clientes noutros itinerários onde não havia contrato escrito, e onde portanto a Ré, rescindindo unilateralmente, entendia que nada pagaria, tudo de molde a melhor suportar a crise económica que o sector dos transportes atravessava em 2002. Mas a Autora não quis retomar o contrato, exigindo a indemnização, extrajudicialmente, e depois mediante esta acção.

A Autora replicou, e nos artigos 40º e ss. da peça alega que “ a Ré conhece a falsidade dos factos que invoca, bem como a falta de fundamento da excepção que deduz. Pelo que litiga de forma frontal e evidente contra a obrigação de lealdade e de boa fé que deve ser posta na lide processual… Como consequência directa de tal actuação dolosa a Autora vê-se obrigada a incorrer no dispêndio da quantia de euros 1.500 em honorários a profissionais forenses e a técnicos ao seu serviço, incluindo as despesas incorridas com deslocações e comunicações.”
Pede então a Autora a condenação da Ré como litigante de má fé a pagar à Autora a título de indemnização 1.500 euros e uma multa de montante não inferior a 20UC.
Mas a Ré, a fls. 83 e ss., reage, repete que os factos invocados pela Ré assentam na quebra do serviço no itinerário Cacém-Maia, fundamento que reputa verdadeiro. Conclui pela improcedência, por infundamentado, do pedido de condenação como litigante de má fé em multa e indemnização.

A réplica foi mantida. Saneou-se o processo. Elencaram-se os factos assentes e teceu-se a base instrutória, em sede de audiência preliminar.

Procedeu-se a julgamento. Prolatou-se sentença, a qual julgou a acção inteiramente procedente por provada e condenou a Ré no pedido indemnizatório, com os juros vencidos e vincendos, conforme supra se expôs.
Foi a Ré condenada como litigante de má fé a “ pagar a multa de 8 UC, e no pagamento de uma indemnização à Autora no valor de euros 1.500 devidos pelos honorários suportados com a constituição de advogado, e despesas por este havidas no patrocínio desta acção, com deslocações e comunicações.
Da condenação como litigante de má fé em multa e indemnização, recorre a Ré, de apelação, e efeito devolutivo, recurso recebido, na modalidade e efeito atribuídos.
*
Nas alegações de recurso apresenta a Ré as seguintes conclusões:
1. Foi a Apelante condenada por litigância de má-fé com fundamento na alínea a) do nº 2 do artigo 456º do C.P.C., isto é, pela dedução de oposição cuja falta de fundamento não devia Ignorar.
2. Como decorre dos factos dados como provados pelo Douto Tribunal "a quo", a R. defendia convicta, séria e fundadamente a sua posição quanto ao fundamento da denúncia.
3. Não alterou conscientemente a verdade ou omitiu factos essenciais à normal apreciação da causa.
4. A R., ora Apelante, confirmou desde o início, a existência dos referidos contratos, bem como do teor e o envio da carta com a intenção de por termo aos mesmos.
5. Termo esse motivado pela alteração de circunstâncias relativa à diminuição da carga transportada pela A. (facto dado como provado em 18), que por sua vez impunha à Ré as tais "alterações ao nosso processo de trabalho no que diz respeito às ligações entre os nossos Terminais do Cacém e da Maia,(. . .)", que a Ré alega na carta de denúncia do contrato de 23.01.2002.
6. A Apelante, limitou-se, pois, tão-somente a dar a sua interpretação, no seu entender- objectivamente fundada, dos factos, ao abrigo do direito de contradição e defesa que lhe assiste.
Em relação à alegação do abuso de direito, o mesmo se sucede.
8. Tendo a Decisão Recorrida considerado como provada a diminuição do peso, em quilogramas, da mercadoria transportada, é forçoso igualmente considerar, até pela regra de experiência, que a A., no exercício da sua actividade de transportadora, sabia ou devia ter conhecimento desse mesmo facto.
9. Por tudo isto, a Apelante tinha (e mantém) fundada e justificada convicção de que a recusa da A. na prorrogação os contratos ficou a dever-se, única e exclusivamente, à intenção de aproveitar-se da situação de fragilidade da parte contrária para obter para si uma indemnização à custa desta, contra os limites impostos pela boa-fé, sendo que a Apelante se limitou a agir, ao longo de todo o processo, de modo a fazer de certo modo vingar a sua interpretação dos factos, porque tinha fundadas razões para tal.
10. Deve, pois, afastar-se o juízo segundo o qual a Apelante deduziu oposição cuja falta de fundamentos não devia ignorar, para efeito de condenação por litigância de má fé ao abrigo da alínea a) do n.o 2 do artigo 456.° do C.P.C., quer a título doloso quer a título negligente.
Caso assim não se entenda, o que não se concede e por mero dever de patrocínio se acautela, sempre se dirá que,
11. Prevê o artigo 458.° do C.P.C. que "quando a parte for um incapaz, uma pessoa colectiva ou uma sociedade, a responsabilidade das custas, da multa e da indemnização recai sobre o seu representante que esteja de fé".
12. A pessoa colectiva não susceptível de condenação como litigante de má fé, recaindo a multa sobre o seu representante, por ser a actividade deste que conta.
13. Atendendo a que o representante não interveio na presente acção, porquanto o seu depoimento, enquanto parte, não ter sido requerido pela A., não é possível concluir por um juízo de que este "esteja de má fé na causa" (art. 458.° do C.P.C.), impondo-se a revogação da decisão em conformidade.

Conclui pela revogação da sentença na parte recorrida.
A Ré não alega. A decisão, na parte recorrida, foi sustentada.

II- ENQUADRAMENTO JURÍDICO
É entendimento pacífico ser pelas conclusões das alegações do recurso que se afere e delimita o objecto e o âmbito do mesmo – artigos 690º- 1 e 684º- 3 do C.P.C., exceptuando aquelas questões que sejam de conhecimento oficioso - art. 660º - 2 – fim do mesmo diploma.
Verifica-se que nas conclusões a Recorrente esquece que igualmente foi condenada ao abrigo da al. d) do nº 2 do artigo 458º do C.P.C.. Porém a Recorrente na introdução que faz nas alegações, transcrevendo o despacho recorrido, junta as duas situações – a da al. a) e a da al. d), através da conjunção conclusiva “ pelo que “, não autonomizando, depois, formalmente, a situação da al. d), mas alegando e concluindo, em amálgama. É inequívoco que pretende abranger as duas situações.

III - OBJECTO DO RECURSO
O conceito de má fé envolve matéria de facto e matéria de direito, correspondendo àquela o apuramento e a fixação das ocorrências materiais sobre que pretende assentar-se a existência da má fé, e a esta a qualificação jurídica dessas ocorrências adentro da figura legal da má fé (1).
O Tribunal da Relação tem competência para conhecer tanto de questões de direito como de questões de facto.
Da análise do conjunto das conclusões da Recorrente verifica-se que não indicou quais os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados, como o artigo 690º A- 1 a) lhe impunha, nem cumpriu com o disposto na al. b) do mesmo artigo caso indicasse como fundamento o erro da apreciação das provas em julgamento.
O que a Recorrente faz é discordar do exame crítico da prova, bem como da indicação, interpretação e aplicação das normas que na 1ª instância se fez ( artigo 659º- 2 e 3 do C.P.C.).
Assim mantemos o factualismo provado na 1ª instância, como saído do julgamento, que o recurso não impugna.
Significa tal que o Tribunal ad quem assume a matéria de facto apurada na 1ª instância considerada relevante, podendo mediante presunções judiciais, fundadas nas máximas da experiência, nos princípios da lógica o nos juízos correntes de probabilidade, deduzir outros factos a partir dos factos apurados na 1ª instância, mas em regra não pode alterar as presunções aplicadas na 1ª instância - Amâncio Ferreira, in Manual dos Recursos em Processo Civil, Almedina, 7ª ed., pág. 229.

IV - A MATÉRIA PROVADA é a de fls. 185 a 188, pontos 1 a 20, para que se remete.

V-AINDA O OBJECTO DO RECURSO
Da análise do conjunto das conclusões da recorrente – artigos 684º, nº 3 e 690º do CPC, resulta que a apreciação do recurso se deve enquadrar no tratamento das questões seguintes:
1ª Atendendo a que o representante da Ré, pessoa colectiva, não interveio na presente acção, porquanto o seu depoimento, enquanto parte, não foi requerido pela A., não é possível concluir por um juízo de que este "esteja de má fé na causa" (art. 458.° do C.P.C.), porque é a actividade do representante que conta, e consequentemente não pode haver condenação por litigância de má fé da Ré, pessoa colectiva.
2ªA Ré defendia convictamente a sua posição quanto ao fundamento da denúncia. Não alterou conscientemente a verdade ou omitiu factos essenciais à normal apreciação da causa. Confirmou desde o início, a existência dos referidos contratos, bem como do teor e o envio da carta com a intenção de pôr termo aos mesmos.
3ª Termo esse motivado pela alteração de circunstâncias relativa à diminuição da carga transportada pela A. (facto dado como provado em 18), que por sua vez impunha à Ré as tais "alterações ao nosso processo de trabalho no que diz respeito às ligações entre os nossos Terminais do Cacém e da Maia,(. . .)", que a Ré alega na carta de denúncia do contrato de 23.01.2002.
4ª A Apelante, limitou-se a dar a sua interpretação, alegadamente fundada, dos factos, ao abrigo do direito de contradição e defesa que lhe assiste. Em relação à alegação do abuso de direito, o mesmo se sucede.
5ª Tendo a Decisão Recorrida considerado como provada a diminuição do peso, em quilogramas, da mercadoria transportada, é forçoso igualmente considerar, até pela regra de experiência, que a A., no exercício da sua actividade de transportadora, sabia ou devia ter conhecimento desse mesmo facto.
6ª A Apelante limitou-se a agir, ao longo de todo o processo, de modo a fazer de certo modo vingar a sua interpretação dos factos, porque tinha fundadas razões para tal.
7ª A Ré litigou ou não de má fé.

VI - FUNDAMENTAÇÃO:

A 1ª questão
A 1ª questão não é subsidiária, uma vez que, merecendo resposta positiva, a Recorrente pretende a revogação da sentença na parte em que a condenou como litigante de má fé, objecto do recurso.
Prevê o artigo 458.° do C.P.C. que "quando a parte fôr um incapaz, uma pessoa colectiva ou uma sociedade, a responsabilidade das custas, da multa e da indemnização recai sobre o seu representante que esteja de má fé".
Ao contrário do que a recorrente infere, a pessoa colectiva é susceptível de ser condenada como litigante de má fé, porque para tal é requisito ser parte – artigo 456º -1 do C.P.C.. No caso da parte que litiga com má fé ser uma sociedade, a responsabilidade das custas, multa e indemnização é que recai sobre o seu representante que esteja de má fé. Não tem a ver com o legal representante, que no caso não foi ouvido em sede de depoimento de parte, que nem sequer foi requerido. O que é necessário é encontrar no presente processo quem, concretamente da parte da Ré, com dolo ou negligência grave, convenceu o Senhor Juiz de que a Ré deduziu oposição cuja falta de fundamentos não devia ignorar, e fez do processo ou dos meios processuais uso manifestamente reprovável.
Quem subscreve a procuração de fls. 44 da Recorrente é a mesma pessoa que subscreve os contratos de fls. 10 a 21, clausulados e alterações em representação da Recorrente, mas pela assinatura é insusceptível de se saber o nome. Quem subscreve a carta de fls. 22 a prescindir os serviços da Autora é G, onde não alude a qualquer contrato escrito. Ao que se conclui dos factos apurados, pretendia-se pôr termo à relação, sem pagar qualquer indemnização que se desconhecia estar firmada em acordo válido e em vigor. Quem assina a carta de fls. 45-46, aludindo a lapso, é o mesmo G. Quem assina o a/r de citação de fls. 35 é L. Quem é ouvido em julgamento como testemunha é este mesmo G, que se identifica como sendo empregado da Ré, há 15 anos, e ao tempo do julgamento diz exercer as funções de director comercial adjunto desde há 2 anos.
Respondeu às perguntas 2ª a 5ª, produzindo um depoimento muito titubeante, sempre que confrontado com as contradições das cartas que subscreveu. Foi essa mesma testemunha que terá desencadeado a iniciativa a que se refere a pergunta 6ª, como se explica na fundamentação da decisão de facto a fls. 181, certamente com receio se vir a ser sancionado na Ré por ter posto termo a um contrato de modo atabalhoado que implicava uma indemnização, podendo, para reduzir um veículo no itinerário em causa, escolher outra empresa que não a Autora. Em julgamento também não explicou a escolha da Autora. Por parte da Ré a pessoa mais em evidência no caso material é este G, empregado da mesma, que teve a ver com as cartas da denúncia, com as negociações entre as partes, mas desligado do processo e da actuação da Ré no mesmo, uma vez que não é administrador da Ré, e não foi ele a subscrever a procuração de fls. 44.
O Sr. Juiz na sentença, sobre o ponto da má fé, a fls. 193, escreve:
De tudo o que fomos expondo resulta incontornável a ideia de que a R. foi surpreendida pelas consequências inesperadas dos seus actos.
Admitimos que a R. inicialmente não tenha previsto essas consequências, mas uma vez instaurada a presente acção, veio ainda assim fundamentar a sua defesa de forma quase desesperada e muito débil, para tentar evitar males maiores.
Tentou, mas não conseguiu.
Não conseguiu, porque não tinha razão nenhuma.
Mais, fica claro que a R. sabia que não tinha razão nenhuma.
Como se costuma dizer no foro: "tentou atirar o barro à parede para ver se colava". Mas, não colou ...
Ao agir deste modo, deduziu defesa de que tinha a obrigação de saber que não tinha qualquer fundamento, tendo assim entorpecido a acção da justiça e protelado sem fundamento a prolação da sentença.

A dedução da defesa da Ré, a condução do processo, apenas podem ser assacadas não a este G, mas eventualmente ao Mandante, não estando em causa a actuação do Ilustre Mandatário. Por parte do mandante ( Ré ) não se sabe quem subscreveu a procuração de fls. 44.
É certo que se trata de factos pessoais da R. mas desconhecendo-se a dimensão e estrutura organizativa da empresa da R., a identidade dos legais representantes da R. que eventualmente tivessem tido intervenção na resolução do contrato que ligava a Ré à Autora, e a daqueles que transmitiram ao respectivo mandatário forense os elementos de facto relevantes, é difícil determinar o representante ou representantes da Ré que no processo tenham estado de modo a poderem ser concretamente responsabilizados pela eventual má fé da Ré. Os autos não contêm elementos que possam identificar quem pode ser responsabilizado pela condenação prolatada sobre má fé na 1ª instância.
Já se entendeu que, desconhecendo-se esta pessoa concreta, citando-se Alberto dos Reis, C.P.C. Anotado, vol. II, 3ª edição, Coimbra Editora, pág. 271 – no passo: “Quando seja parte na causa um incapaz ou uma pessoa colectiva, a actividade processual que conta é a do respectivo representante. É este que age em nome do representado; se no exercício da acção ou da defesa puder descobrir-se dolo substancial ou instrumental, há-de imputar-se ao representante, e não ao próprio incapaz ou à pessoa colectiva”, não podia haver lugar à condenação (2) da pessoa colectiva.

Mas não entendemos assim. Alberto dos Reis, na pág. seguinte, esclarece melhor o seu pensamento aplicando-o nos casos em que a actividade processual foi exercida unicamente pelo Representante. O que pode não suceder. Assim sendo, o encargo das consequências da condenação como litigante de má fé é a suportar pela parte.

No caso sub iudice, não se apurando quem foram ou quem foi dos representantes da Ré o responsável pela actuação processual sancionada, há condenação na mesma, se houver lugar a ela, não ficando afastada liminarmente a condenação como litigante de má fé da parte, pessoa colectiva, cujo legal representante não foi ouvido em depoimento de parte, e bem assim naqueles casos em que do processo não se pode concluir pela identificação do concreto autor ou mentor da conduta processual ilícita.

2ª a 5ª questões:
Nos termos do artigo 2º do C.P.C. a cada direito corresponde uma acção adequada a fazê-lo reconhecer em juízo, e a protecção jurídica através dos tribunais implica o direito de obter em prazo razoável uma decisão judicial que aprecie a pretensão, com direito a caso julgado e à execução da mesma (3). O que significa que só na altura em que o tribunal emite a sentença é que vem a saber se a pretensão do Autor é fundada e a defesa do Réu é conforme ao direito(4).
O direito de acção é abstracto. A lei reconhece o princípio geral da licitude do exercício dos meios processuais, mas limita-o no concreto, exigindo que essa utilização seja sincera, que a parte esteja convencida da justeza da sua pretensão. É necessário que o litigante esteja de boa fé ou suponha ter razão. Revelada a má fé, a parte exerceu uma actividade ilícita. Não se trata de abuso de direito. Não há direito. Esta construção não colide com o princípio de que é lícito intentar acções ou deduzir defesas objectivamente infundadas, porque o princípio deve entender-se nestes termos: Contando que a parte esteja convencida que lhe assiste razão (4).
Vejamos:
Na contestação a Ré explica a rescisão do contrato com a Autora, invocando justa causa, e dizendo que se ficou a dever a motivos estruturais, respeitantes ao processo de trabalho da Ré, que o trajecto em causa sofreu uma anormal quebra de serviço. No fundo era m reajustamento para fazer face à crise do sector, que a levava a deixar de trabalhar para a Autora, uma alteração de circunstâncias base do negócio. Nunca a Ré escondeu que não pretendia pagar indemnização alguma, e até apelidou de abuso de direito a posição da Autora em exigir essa indemnização, quando esta alegava o acordo escrito para tal exigência.
As perguntas da base instrutória são poucas. Estando o grosso dos factos relevantes confessado ou provado por documento. A 1ª pergunta tem a ver com o cálculo da indemnização peticionada. As perguntas 3ª e 6ª têm a ver com o alegado abuso de direito da Autora ao accionar a Ré As 2ª, 4ª e 5ª têm a ver com a justa causa ou falta de causa para a actuação da Ré.
Não se fazem perguntas específicas para a má fé da Ré.
Em sede de sentença, na primeira instância, apreciou-se a pretensão da Autora, qualificando-se a situação como de resolução sem justa causa por parte da Ré, com direito á acordada indemnização por parte da Autora. Não se considerou provada qualquer causa justificativa para a actuação inadimplente, egoística, rescisória da Ré - quer o abuso de direito, quer a justa causa na resolução.
Considera-se, e bem - o que já transitou em julgado - , que:
A A. limitou-se a cuidar dos seus interesses económicos ao exigir a indemnização contratualmente devida, assim como a R. também o pretendia fazer quando decidiu resolver os contratos.
Nestas circunstâncias não se pode falar em abuso de direito por parte da A., porque não há nenhum motivo legítimo para fazer prevalecer os interesses económicos da R. sobre os da A ..
Em suma, a R. deve ser responsabilizada pelas opções de gestão económicas que faz no exercício da sua actividade social, devendo cumprir aquilo a que contratualmente se obrigou.

Já em sede de tratamento do pedido de condenação da Ré como litigante de má fé: a douta sentença refere:
Resta apenas apreciar o pedido de condenação da R como litigante de má-fé.
De tudo o que fomos expondo resulta incontornável a ideia de que a R. foi surpreendida pelas consequências inesperadas dos seus actos.
Admitimos que a R. inicialmente não tenha previsto essas consequências, mas uma vez instaurada a presente acção, veio ainda assim fundamentar a sua defesa de forma quase desesperada e muito débil, para tentar evitar males maiores.
Tentou, mas não conseguiu.
Não conseguiu, porque não tinha razão nenhuma.
Mais, fica claro que a R. sabia que não tinha razão nenhuma.
Como se costuma dizer no foro: "tentou atirar o barro à parede para ver se colava". Mas, não colou ...
Ao agir deste modo, deduziu defesa de que tinha a obrigação de saber que não tinha qualquer fundamento, tendo assim entorpecido a acção da justiça e protelado sem fundamento a prolação da sentença.
Agiu, portanto, como litigante de má-fé ( Art. 456° n. 1 e n. 2 al.s a) e d) do C.P.C. ), devendo ser condenada a pagar uma multa e uma indemnização à parte contrária.

6ª e 7º questões:
Dispõe o artigo 456º-2 do C.P.C. que diz-se litigante de má fé quem, com dolo ou negligência grave:
a)- tiver deduzido pretensão ou oposição cuja falta de fundamentos não devia ignorar;
d)- tiver feito do processo ou dos meios processuais um uso manifestamente reprovável, com o fim de conseguir um objectivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, entorpecer a acção da justiça, ou protelar sem fundamento sério o trânsito em julgado da decisão.
Face a este normativo, fica claro que só o dolo ou a negligência grave relevam para o efeito de considerar uma parte como litigante de má fé.
Pode pensar-se que a Ré tinha os contratos escritos, sabia que havia uma cominação para a rescisão sem justa causa. Atrapalhou-se. Vagueou entre uma rescisão com justa causa; invocando abuso de direito por parte da Autora, levou a julgamento uma prova débil e titubeante…Era evidente, perante o contrato, e a prova débil, que a Ré claudicaria, e a Ré devia sabê-lo. ( Foi este o raciocínio da 1ª instância, sem aplicar presunções judiciais. )
Por outro lado pode pensar-se assim:
A Ré defendeu-se como pôde, nunca pretendendo pagar a indemnização, negando o direito da Autora à mesma. Impugnou a mesma – artigos 17º e 35º da pi. Houve julgamento, o que por via dessa impugnação sempre teria de haver. Registou-se um adiamento – acta a fls. 165 motivado pela não presença no dia aprazado de uma testemunha da Autora, sendo esse adiamento fundado na conveniência da produção da prova em conjunto e no acordo de ambos os Excelentíssimos Advogados presentes. Não houve reclamação do despacho sobre a matéria de facto. A Ré ficou vencida quanto ao fundo e mérito da causa e não recorreu da sentença nesta parte. A Ré foi condenada nas custas, como não podia deixar de ser, face ao direito aplicado. Os juros de mora em cujo pagamento a Ré foi condenada correm, como peticiondo, desde 12-3-2002, à taxa supletiva para as operações comerciais.
Com isto, cabe verificar que não está apurado que a Ré - Recorrente tenha agido com dolo ou negligência grave, e em relação à al. a) do normativo supra, só se pode dizer que a Ré agiu sempre convencida de que lhe assistia razão, e em relação ao disposto na al.d) não se pode dizer que tenha actuado como aí previsto(5). Fundou a sua pretensão, e bateu-se por esse factualismo, embora expresso de modo muito sintético. Esperou pelo julgamento da causa. Esperou pela sentença. Não recorreu da mesma quanto ao fundo. Não protelou o trânsito em julgado da sentença; não tomou mão de meios dilatórios, como requerimentos a pedir prazo, aclarações, nem provocou qualquer adiamento de diligência. Esperou que o tribunal aplicasse o direito ao caso. Demorou tempo… é certo, mas não entorpeceu a acção da justiça, nem impediu a descoberta da verdade, juntando os documentos que tinha, e arrolando como testemunha a pessoa, seu trabalhador, que os subscreveu, que prestou efectivamente depoimento. A mora no cumprimento vai traduzir-se em juros. Certamente terá património, e vai pagar de acordo com a decisão judicial. Se protelou no tempo, isso le sairá do património de acordo com o direito.
A sentença recorrida nesta parte, fundamenta-se antes na prova débil ( o que tem a ver com a prova - produção e valoração -, e não com a parte ou com o Ilustre Mandatário ), e numa defesa audaciosa, intrépida, temerária.
O que se pretende condenar no instituto da má fé é a lide dolosa ou maliciosa. A lide temerária – aquela em que a parte foi para juízo sem tomar em consideração as razões ponderosas que comprometiam a sua pretensão – é compatível com a boa fé no litígio (6) (1).
Conclui-se então que a Ré não agiu como litigante de má fé.
Não se altera qualquer presunção aplicada na 1ª instância - Amâncio Ferreira, in Manual dos Recursos em Processo Civil, Almedina, 7ª ed., pág. 229.

VII–DECISÃO
Pelo que fica exposto, acorda este Tribunal da Relação em julgar procedente a apelação, revogando-se a sentença recorrida na parte em que condenou a Ré como litigante de má fé em multa e indemnização.
Sem custas nesta instância – artigo 2º 1 g) do C.C.J..
Lisboa,

( Rui Correia Moura )
( Rosário Gonçalves )
( Maria José Simões )
______________________________________________________
(1) – Ac. S.T.J. de 5 de Abril de 1979, in B.M.J., 286º, pág. 200.
(2) – Ac. T.R.L. de 12-7-2007, in no site da DGSI.
(3) O direito de acção é um dos vários direitos que está compreendido no direito fundamental de acesso aos tribunais (art.º 20º da C.R.P.).
2. É hoje concepção dominante que o direito de acção é um direito subjectivo autónomo e distinto do direito material que se pretende fazer actuar em juízo, pelo que o seu exercício não está dependente de qualquer requisito prévio de demonstração da existência do direito substancial.
3. Mas para o seu exercício, em concreto, existe uma exigência de ordem moral: é necessário que o litigante esteja de boa fé ou suponha ter razão. Porque se litiga com má fé, exerce uma actividade ilícita e, como tal, incorre em responsabilidade civil processual subjectiva com base na culpa (art. 457º do CPC), por um exercício abusivo do direito de acção ou de defesa.
4. Fora do caso de litigância de má fé, quem litiga sem direito, mas o faz convicto de que tem razão substancial, ainda que não a tenha, não comete qualquer ilícito, respondendo apenas objectivamente pelas custas (art. 446º do CPC)- Ac. T.R.L. de 16-12-2003 in site da DGSI.
(4) – Alberto dos Reis, C.P.C. Anotado, vol. II, 3ª edição, Coimbra Editora, pág. 259.
(5) A situação da al. a) tem a ver com o fundo da causa, com a relação jurídica material, com o direito substantivo, preenchendo o conceito de má fé substancial. A da al. d) diz respeito à relação jurídica processual e preenche o conceito de má fé instrumental – Amâncio Ferreira, in Manual dos Recursos em Processo Civil, 7ª edição, Almedina, pág. 31.
(6) – Alberto dos Reis, C.P.C. Anotado, vol. II, 3ª edição, Coimbra Editora, pág. 261.