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TÍTULO EXECUTIVO
LETRA DE CÂMBIO
DESCONTO BANCÁRIO
Sumário
I – A tese defendida – título executivo, sem prejuízo de a causa da obrigação dever ser invocada no requerimento inicial da execução e poder ser impugnada pelo executado –, para poder ser aplicada na sua plenitude, pressupõe que haja uma coincidência absoluta entre o exequente e executado na acção executiva, o sacador e o aceitante na letra de câmbio e o credor e devedor na relação causal, já não se nos afigurando a mesma possível no plano das relações mediatas, em que o portador legítimo não é interveniente no negócio subjacente, não sendo titular de um crédito para com o aceitante, sendo igualmente muito discutível que o seja para com o sacador do título, com base no seu mero desconto ou reforma. II – O Exequente vem, na qualidade de seu legítimo portador, dar tais letras à execução, unicamente na sua roupagem de documentos cambiários, ou seja, com as características e natureza próprias dos mesmos, visando a cobrança coerciva das obrigações cartulares deles emergentes, independentemente e para além dos negócios e obrigações que lhe estão subjacentes e que são a sua causa remota, sendo esse cenário que resulta, com clareza, do requerimento executivo inicial. III – Ora, a ser assim, o executado somente tinha de se pronunciar acerca dos direitos cambiários reclamados na acção executiva e dos respectivos suportes documentais, já não tendo fundamento nem legitimidade para, no quadro dos embargos de executado, vir discutir os contornos e conteúdo do negócio ou negócios subjacentes, por tal extravasar manifestamente a causa de pedir dos autos, convindo recordar que nem o banco Exequente, nem a outra executada vieram responder à oposição deduzida pelo aqui Agravante. IV – Por outro lado e tendo presente essa delimitação objectiva da causa de pedir e do pedido da execução, o tribunal recorrido, ao introduzir nos autos a relação causal e os direitos dela emergentes, sem que as partes tivessem alegado factos mínimos que pudessem suportar tal posição, extravasou os poderes que lhe estão legalmente conferidos e não permitiu que os executados opinassem, previamente, sobre tal matéria, violando, dessa forma, o disposto nos artigos 3.º, número 3, 664.º e 661.º, número 1 do Código de Processo Civil. V – A entidade bancária exequente não teve qualquer intervenção no negócio ou negócios causais ou subjacentes às letras em questão, encontrando-se numa posição de terceiro relativamente a esses eventuais contratos celebrados e ao próprio acordo de emissão daqueles títulos. VI – O desconto bancário é, para o Assento n.º 17/94 de 11/10/1994 e publicado no DR, 1.ª Série, de 3/12/1994, um “contrato pelo qual o titular de um crédito (o descontário) o cede a um banco (o descontado) que, dele fica sendo titular e cobra no seu vencimento, recebendo em troca antecipadamente, o respectivo valor, deduzido do correspondente juro (prémio) e outras despesas” (contrato de endosso em branco e em garantia de um título bancário), que se distingue do título cambiário e da relação cartular que este representa, possuindo tal “contrato de desconto bancário (…) natureza formal, para cuja validade e provas é exigida a existência de um escrito que contenha a assinatura do descontário, embora tal possa ter a natureza de documento particular”. VII – Ora, tendo em atenção a doutrina desse Assento, que classifica o desconto bancário como um negócio jurídico formal, facilmente se conclui que as letras de câmbio dos autos, ainda que cambiariamente prescritas, nunca poderiam titular o mesmo, só podendo o Banco exequente lançar mão desse negócio jurídico, desde que se socorresse “da carta – contrato, do empréstimo ou mútuo, como desconto bancário e (…) a letra de câmbio” fosse “ junta como elemento de prova da realização do empréstimo” sendo então “evidente que optou pela demanda causal e não pela acção cambiária”. VIII – Tal desconto bancário aconteceu entre a executada e o exequente e não entre este e o embargante e aqui agravante, não podendo, por tal motivo, vinculá-lo juridicamente. IX – Face à noção jurídica de reforma da letra de câmbio, afigura-se-nos que nos movemos sempre e tão-somente no plano cambiário, não se podendo afirmar que a substituição, com amortização parcial do seu valor, de uma letra anterior por uma outra nova, com os mesmos intervenientes, constitua um qualquer negócio jurídico autónomo, causal e subjacente a tal emissão, que possa fundar, coexistir com a relação cambiária, nomeadamente, para efeitos de propositura de uma acção executiva independente daquela outra instaurada com base nas letras reformadas e visando cobrar coercivamente os mesmos montantes que se acham tituladas por aquelas. X – Ainda que assim não se entenda, afigura-se-nos que as quatro últimas letras de câmbio nunca podem constituir título executivo suficiente contra o aqui Agravante, dada a mera referência a operação praticada no exercício do seu comércio bancário (art.º 362.º do C. Comercial), conjuntamente com a expressão reforma valor ser manifestamente inconclusiva, ignorando-se, em absoluto, se tal expressão se refere às reformas das letras e, mesmo que assim seja, em que circunstâncias e condições é que as mesmas ocorreram e que intervenção concreta teve o executado nelas. (JES)
Texto Integral
Acordam neste Tribunal da Relação de Lisboa:
I – RELATÓRIO
B, SA, devidamente identificado a fls. 58 dos autos, intentou, em 21/02/2005, uma acção executiva para pagamento de quantia certa, sob a forma de processo comum contra SOCIEDADE e A, igualmente identificados a fls. 60 e 61 destes mesmos autos, conforme cópia dessa peça processual que se encontra junta a fls. 57 e seguintes destes autos e cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.
Fundou o Banco Exequente esse pedido executivo na subscrição por parte do executado A, no lugar do aceite, das seguintes letras:
1) Letra no valor de Esc. 2.150.000$00, emitida em Alverca, com data de emissão de 9/04/2001 e com data de vencimento de 31/07/2001, sendo sacador da mesma a executada SOCIEDADE e sacado o executado A;
2) Letra no valor de Esc. 300.000$00, emitida em Alverca, com data de emissão de 14/08/2001 e com data de vencimento de 30/10/2001, sendo sacador da mesma a executada SOCIEDADE e sacado o executado A;
3) Letra no valor de Esc. 400.000$00, emitida em Alverca, com data de emissão de 14/08/2001 e com data de vencimento de 30/10/2001, sendo sacador da mesma a executada SOCIEDADE e sacado o executado A;
4) Letra no valor de Esc. 2.200.000$00, emitida em Alverca, com data de emissão de 14/08/2001 e com data de vencimento de 10/11/2001, sendo sacador da mesma a executada SOCIEDADE e sacado o executado A;
5) Letra no valor de Esc. 2.200.000$00, emitida em Alverca, com data de emissão de 14/08/2001 e com data de vencimento de 25/10/2001, sendo sacador da mesma a executada SOCIEDADE e sacado o executado A.
(…)
O Executado A veio, em 6/6/2006, deduzir embargos de executado nos termos constantes de fls. 2 e 3 destes autos, tendo arguido, em síntese, a excepção peremptória da PRESCRIÇÃO nos seguintes termos:
1) Como resulta dos próprios títulos executivos, estes venceram-se, respectivamente:
- A letra de 2.150.000$00 venceu-se em 31.07.01;
- A letra de 2.200.000$00 venceu-se em 25.10.01;
- A letra de 300.000$00 venceu-se em 30.10.01;
- A letra de 400.000$00 venceu-se em 30.10.01;
- A letra de 2.200.000$00 venceu-se em 10.11.01;
2) Todavia, a execução só veio a ser instaurada no ano de 2005 – em 31.03.05 –, conforme carimbo de entrada na Secretaria-Geral, aposto no requerimento inicial;
3) Quando haviam decorrido mais de 3 anos contados do vencimento de cada uma das letras;
4) Decorreu, assim, o prazo de prescrição de três anos, sobre os vencimentos das letras, estabelecido no art. 70° da Lei Uniforme sobre Letras e Livranças (LULL), antes da execução ter sido instaurada, sem que tivesse ocorrido qualquer facto interruptivo da prescrição;
(…)
*
O banco embargado, apesar de notificado para contestar a oposição deduzida à execução por parte do Executado (fls. 12), não o veio a fazer dentro do prazo legal.
*
O juiz titular do processo proferiu então saneador-sentença datado de 09/11/2006 e constante de fls. 14 e seguintes, onde considerou verificada a prescrição da obrigação cartular titulada pelas referidas letras de câmbio mas entendeu que estas ainda constituíam título executivo, não nos termos do artigo 46.º, alínea d) do Código de Processo Civil mas antes face ao estatuído na sua alínea c)(…)
*
O Embargante e executado veio, a fls. 27 e em 28/11/2006, interpor recurso de apelação desse despacho judicial.
O juiz do processo admitiu, a fls. 28, o recurso interposto, mas como de agravo, tendo determinado a sua subida imediata, nos próprios autos e fixado o efeito suspensivo.
O recorrente apresentou alegações de recurso (fls. 31 e seguintes) e formulou as seguintes conclusões:
“1 - Todas as letras dadas à execução estão prescritas, conforme o disposto no art. 70.º da LULL – Lei Uniforme sobre Letras e Livranças;
2 - As letras prescritas apenas passam a valer como simples quirógrafos, caso em que, a obrigação exigida não é a cambiária, mas antes a causal, subjacente ou fundamental;
3 - Daí que, porque prescritas, não tenham força bastante para importar, só por si, a constituição ou o reconhecimento de obrigação pecuniária do ora recorrente;
4 - E, por isso, não constituem títulos executivos, à luz do disposto no n.º 1 do art.º 46.º, alínea c) do Código de Processo Civil;
5 - Sendo certo que a reforma de 1995 do Código de Processo Civil, ao ampliar o elenco dos títulos executivos, não alterou a LULL, nem afastou o regime aí consagrado;
MESMO QUE ASSIM NÃO FOSSE ENTENDIDO, sempre se conclui que
6 - De nenhuma das letras consta a obrigação causal;
7 - Pelo que se referem tão só à obrigação cambiária que delas resulta;
8 - E no requerimento executivo, nenhum facto foi alegado donde possa inferir-se a existência da obrigação subjacente a qualquer uma das letras;
9 - Antes, a tal propósito, foram alegadas noções de direito a que não cumpria responder (art.º 490.º do Código de Processo Civil);
10 - Sendo certo que, no caso sub judice, não opera presunção alguma a favor do credor -exequente, por não terem sido alegados quaisquer factos que permitam a ilação sobre a existência de obrigação causal de qualquer das letras exequendas (artigos 349.º e 350.º, n.º 1 do Código Civil);
11 - Prescritas as letras, não podem constituir títulos executivos válidos que sirvam de base à execução, atento o disposto no art.º 45.º, número 1 do Código de Processo Civil, conforme Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça citados;
12 - Ao decidir-se em contrário, como se decidiu, foram desrespeitados os normativos citados.
TERMOS EM QUE, nos mais de direito e sempre com o douto suprimento de V. Exas., deve a decisão recorrida ser revogada e substituída por outra que julgue procedente a oposição e extinta a execução quanto ao ora recorrente, assim se fazendo a costumada JUSTIÇA”
*
Notificada o exequente e embargado (fls. 45) para responder a tais alegações, não o veio a fazer dentro do prazo legal.
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O tribunal recorrido sustentou o despacho agravado, nos termos constantes de fls. 46, bem como rectificou o despacho de admissão do recurso interposto pelo recorrente, no que respeita à sua classificação (apelação em vez de agravo).
*
Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
II – OS FACTOS
O tribunal de 1.ª instância considerou provados os seguintes factos:
1) A exequente é portadora de letra emitida pela importância de 2.150.000$00, à qual foram apostas as seguintes menções:
- "2001-04-09", como data de emissão;
- "2001-07-31", como data de vencimento e
- "Alverca", como local de emissão;
2) Na letra referida em 1) figura como sacado A;
3) A letra referida em 1) foi aceite por A que a assinou transversalmente na parte anterior;
4) Em tal letra figura como sacador “Sociedade”;
5) No verso de tal letra foi aposto carimbo de “Sociedade, a gerência", seguida da assinatura manuscrita de M;
6) A exequente é portadora de letra emitida pela importância de 300.000$00, à qual foram apostas as seguintes menções:
- "2001-08-14", como data de emissão;
- "2001-10-30", como data de vencimento e
- "Alverca", como local de emissão;
7) Na letra referida em 6) figura como sacado A;
8) A letra referida em 6) foi aceite por A que a assinou transversalmente na parte anterior;
9) Em tal letra figura como sacador “Sociedade”;
10) No verso de tal letra foi aposto carimbo de “Sociedade, a gerência", seguida da assinatura manuscrita de M;
11) Na letra consta a menção "reforma valor 400.000$00";
12) A exequente é portadora de letra emitida pela importância de 400.000$00, à qual foram apostas as seguintes menções:
- "2001-08-14", como data de emissão;
- "2001-10-30", como data de vencimento e
- "Alverca", como local de emissão;
13) Na letra referida em 12) figura como sacado A;
14) A letra referida em 12) foi aceite por A, que a assinou transversalmente na parte anterior;
15) Em tal letra figura como sacador “Sociedade”;
16) No verso de tal letra foi aposto carimbo de “Sociedade, a gerência", seguida da assinatura manuscrita de M;
17) Na letra consta a menção "reforma valor 455.000$00";
18) A exequente é portadora de letra emitida pela importância de 2.200.000$00, à qual foram apostas as seguintes menções:
- "2001-08-14", como data de emissão;
- "2001-11-10", como data de vencimento e
- "Alverca", como local de emissão;
19) Na letra referida em 18) figura como sacado A;
20) A letra referida em 18) foi aceite por A, que a assinou transversalmente na parte anterior;
21) Em tal letra figura como sacador “Sociedade”;
22) No verso de tal letra foi aposto carimbo de “Sociedade, a gerência", seguida da assinatura manuscrita de M;
23) Na letra consta a menção "reforma valor 2.360.000$00";
24) A exequente é portadora de letra emitida pela importância de 2.200.000$00, à qual foram apostas as seguintes menções:
- "2001-08-14", como data de emissão;
- "2001-10-25", como data de vencimento e
- "Alverca", como local de emissão;
25) Na letra referida em 23) figura como sacado A;
26) A letra referida em 23) foi aceite por A, que a assinou transversalmente na parte anterior;
27) Em tal letra figura como sacador “Sociedade”;
28) No verso de tal letra foi aposto carimbo de “Sociedade, a gerência", seguida da assinatura manuscrita de M;
29) Na letra consta a menção "reforma valor 2.370.000$00";
30) A acção executiva apensa, que se destina ao pagamento da quantia inscrita nas letras, foi proposta no dia 21 de Fevereiro de 2005;
31) Na exposição de factos que consta do anexo C4 do requerimento executivo, a exequente alegou que é portadora das letras por virtude de operação praticada no exercício do seu comércio bancário (art.362.° do C. Comercial).
NOTA: Este Tribunal da Relação de Lisboa, conforme aliás requerido pelo recorrente nas suas alegações de recurso, já procedeu à rectificação da matéria de facto dada como provada pelo tribunal da 1.ª instância, nos termos dos artigos 666.º, número 2 e 667.º do Código de Processo Civil, dado haver uma repetição de factos, por manifesto lapso informático, mal se compreendendo, nessa matéria, o despacho de fls. 46, em que, apesar daqueles dispositivos legais, o juiz do processo considerou o seu poder jurisdicional esgotado, negando-se a efectuar a correcção desses erros de escrita.
*
III – O DIREITO
É pelas conclusões do recurso que se delimita o seu âmbito de cognição, nos termos do disposto nos artigos 690.º e 684.º n.º 3, ambos do Código de Processo Civil, salvo questões do conhecimento oficioso (artigo 660.º n.º 2 do Código de Processo Civil).
Importa referir que o Banco Exequente não interpôs recurso da sentença proferida no quadro dos presentes autos no que toca à verificação da excepção peremptória da prescrição das obrigações cambiárias tituladas pelas cinco letras de câmbio, nos termos e para os efeitos do artigo 70.º da L.U.L. Livranças, matéria que, sendo favorável ao embargante, se mostra definitivamente firmada.
A única questão suscitada no âmbito do presente recurso de apelação é, tão-somente, a seguinte: o tribunal recorrido, perante a prescrição das letras de câmbio enquanto títulos de crédito, consubstanciadores das correspondentes obrigações cambiárias, podia ou não reconhecer aquelas ainda como títulos executivos, ao abrigo do artigo 46.º, número 1, alínea c) do Código de Processo Civil (“À execução podem servir de base: c) Os documentos particulares, assinados pelo devedor, que importem constituição ou reconhecimento de obrigações pecuniárias, cujo montante seja determinado ou determinável por simples cálculo aritmético, ou de obrigação de entrega de coisa ou de prestação de facto?”)?
Importando definir, desde logo, título executivo, acção executiva e a relação que se estabelece entre uma e outra realidade, ouçamos, a esse propósito, o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 14/04/2005, em que foi relator Carlos Valverde, processo 2070/2005-6, publicado em www.dgsi.pt:
“Por definição, o título executivo é o documento que pode segundo a lei, servir de base à execução de uma prestação, já que ele oferece a demonstração legalmente bastante do direito correspondente (cfr. Castro Mendes, Lições de Direito Civil, 1969, pág. 143).
Do ponto de vista formal, o título é o documento em si próprio e, do ponto de vista material, é a demonstração legal do direito a uma prestação (cfr. o mesmo Autor, A causa de Pedir na Acção Executiva – Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, Volume XVIII, págs. 189 e segs.).
Como se sabe, o Processo Executivo visa realizar coercivamente um direito já afirmado. Ora, como “toda a execução tem por base um título, pelo qual se determinam o fim e os limites da acção executiva” – artº.45º, nº 1 do C.P.C. – facilmente se percebe que aquela afirmação deve necessariamente constar do título executivo.
E também só essa prévia afirmação do direito permitirá entender o comando do artigo 55.º, nº 1 do mesmo Código: “A execução tem de ser promovida pela pessoa que no título executivo figura como credor e deve ser instaurada contra a pessoa que no título tinha a posição de devedor”.
Como se vê, “... pela análise do título se há-de determinar a espécie de prestação e da execução que lhe corresponde (entrega de coisa, prestação de facto, dívida pecuniária), se determinará o quantum da prestação e se fixará a legitimidade activa e passiva para a acção” (Anselmo de Castro, A Acção Executiva Singular, Comum e Especial, pág. 11).
É dizer, em suma, que deverá existir necessária concordância entre o título executivo e o pedido formulado no requerimento inicial da execução, pois esse título “... é o documento (título hoc sensu) donde consta (não donde nasce) a obrigação cuja prestação se pretende obter por via coactiva (por intermédio do Tribunal)” (Antunes Varela, R.L.J., Ano 121º, pág. 147).
Conforme já salientava Alberto dos Reis, “...desde que a execução não é conforme ao título, na parte em que existe divergência, tudo se passa como se não houvesse título: nessa parte a execução não encontra apoio no título” (Código do Processo Civil Explicado, pág. 26).
E, sempre que isso aconteça, ou seja, “... se a discordância entre o pedido e o título consistir em excesso de execução, isto é, em se pedir mais do que o autorizado pelo título”, cabe ao juiz indeferir liminarmente o requerimento executivo na parte em que exceda o conteúdo do título, mandando prosseguir a execução pela parte que efectivamente lhe corresponda” (Lopes Cardoso, Manual da Acção Executiva, pág. 29).
Se a discordância entre o pedido e o título for absoluta, o indeferimento será, naturalmente, total.
Quanto à causa de pedir em acção executiva, há quem entenda que ela se reconduz ao próprio título accionado (cfr. Alberto dos Reis, Comentário, I, pág. 98, Lopes Cardoso, ob. cit., págs. 23 e 29 e Acórdão do STJ de 24-11-83, BMJ 331/469), enquanto outros sustentam que ela é antes constituída pela factualidade essencial de onde emerge o direito, reflectida embora no próprio título (cfr. Castro Mendes, A Causa de Pedir..., págs. 189 e segs., Lebre de Freitas, Acção Executiva, 2.ª Edição, págs. 64 e 65, A. Varela, RLJ, 121º/148 e segs. e Acórdão do STJ de 27-1-98, CJ, STJ, I, pág. 40). Como quer que seja, os próprios defensores da 2ª teoria não retiram qualquer relevo ao título executivo, limitando-se a enquadrá-lo no seu meio próprio, que é o processual, do mesmo passo que enquadram a factualidade causal no seu meio próprio, que é o substantivo (cfr. Acórdão do STJ de 27-7-94, CJ, STJ, III, pág. 70).”
Os artigos 45.º a 52.º do Código de Processo Civil estatuem acerca dos documentos que podem ser qualificados como títulos executivos e que, nessa medida, são susceptíveis de fundar uma acção executiva, conferindo o artigo 46.º, número 1, alínea c) do mesmo diploma legal natureza executiva, quer aos título de crédito, como as letras, como aos demais documentos particulares, em que se constitua ou reconheça obrigações pecuniárias de montante determinado ou determinável.
Convirá, então, definir, a nossa posição relativamente ao problema que se suscita no quadro do presente recurso e que se traduz na possibilidade de títulos de crédito prescritos (e, portanto, insusceptíveis, enquanto tal, de servir de fundamento a uma acção executiva – cf. artigos 814.º, alínea g) e 816.º do Código de Processo Civil) poderem ainda como documentos particulares suportar a execução do crédito emergente da relação subjacente à relação cambiária representada por aqueles documentos.
O professor Lebre de Freitas, em a “Acção Executiva – Depois da reforma”, 4.ª Edição, Coimbra Editora, 2004, páginas 61 e seguintes afirma o seguinte:
“Quando o título de créditode crédito mencione a causa da relação jurídica subjacente, não se justifica nunca o estabelecimento de qualquer distinção entre o título prescrito e o documento particular, enquanto ambos se reportem à relação jurídica subjacente.
Quanto aos títulos de crédito prescritos dos quais não conste a causa da obrigação, tal como quanto a qualquer outro documento particular nas mesmas condições, há que distinguir consoante a obrigação a que se reportam emerja ou não de um negócio jurídico formal. No primeiro caso, uma vez que a causa do negócio jurídico é um elemento essencial deste, o documento não poderá constituir título executivo (arts. 221º, 1 e 223º, 1 do CC). No segundo caso, porém, a autonomia do título executivo em face da obrigação exequenda e a consideração do regime do reconhecimento da dívida (art. 458º, 1 do CC) leva a admiti-lo como título executivo, sem prejuízo de a causa da obrigação dever ser invocada no requerimento inicial da execução e poder ser impugnada pelo executado; mas, se o exequente não a invocar, ainda que a título subsidiário, no requerimento inicial, não será possível fazê-lo na pendência do processo, após a verificação da prescrição da obrigação cartular e sem o acordo do executado (art.º 272º do CPC), por tal implicar alteração da causa de pedir" (cf., neste mesmo sentido, Pinto Furtado, “Títulos de Crédito”, Almedina, 2000, páginas 79 a 83 e os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 30/01/2001, em CJ, Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, Tomo I, página 86, do Tribunal da Relação do Porto, de 02/06/1998, publicado no BMJ 478,459 e do Tribunal da Relação de Lisboa de 14/04/2005, já acima citado, de 17/02/2005, em que foi relatora Fátima Galante, processo 9795/2004-6, de 21/04/2005, em que foi relator Bruto da Costa, processo 9012/2004-8 e de 21/05/2002, em que foi relatora Maria do Rosário Morgado, processo 0030577 – contra, Lopes Cardoso, “Manual da Acção Executiva”, páginas 80 e seguintes, por entender que, nesses casos, tem de ser proposta uma acção declarativa).
A tese acima defendida, para poder ser aplicada na sua plenitude, pressupõe, em nosso entender, que haja uma coincidência absoluta entre o exequente e executado na acção executiva, o sacador e o aceitante na letra de câmbio e o credor e devedor na relação causal, já não se nos afigurando possível no plano das relações mediatas, em que o portador legítimo não é interveniente no negócio subjacente, não sendo titular de um crédito para com o aceitante, sendo igualmente muito discutível que o seja para com o sacador do título, com base no seu mero desconto ou reforma (as situações abordadas naqueles Arestos traduzem-se, salvo erro, em relações cambiárias imediatas).
Ora, aderindo a tal posição, nos moldes restritos acima descritos, importa, por um lado, analisar as cinco letras de câmbio prescritas, para verificar que as quatro últimas contêm a menção “Reforma valor de Esc.”, ao passo que a primeira, no montante de Esc. 2.150.000$00 e com data de vencimento em 31/07/2001, é totalmente omissa quanto à causa (ainda que meramente imediata) da sua emissão.
Por outro lado, interessa considerar o que o Banco Exequente articulou no seu Requerimento executivo (faça-se notar que o mesmo, certamente por lapso, não tem artigo 2.º):
“1.º A exequente é dona e legítima portadora, por virtude de operação praticada no exercício do seu comércio bancário (ver art.º 362.º do C.Com.) de cinco letras saques da 1.ª executada e aceites do 2°, com se indica: vencida em 31-07-2001 de €. 10.724,15; vencida em 30-10-2001 de €. 1.995,19; vencida em 30-10-2001 de €. 1.496,39; vencida em 25-10-2001 de €. 10.973,35; e vencida em 10-11-2001 de €. 10.973,35.
3° Feita a apresentação dos títulos a pagamento nas datas dos respectivos vencimentos, os mesmos não foram pagos nessa oportunidade, nem posteriormente.
4° Face aos títulos a exequente tem o direito de exigir dos executados o valor das letras, os juros de mora já vencidos e os juros vincendos sobre o capital à taxa legal até integral pagamento.
5° Os juros devidos são contados, desde a data dos vencimentos dos títulos à referida taxa legal até integral reembolso da quantia exequenda, estando liquidados até esta data, €. 4 871,19.
6° Estão pois os executados a dever à exequente a quantia de €. 41.033,62 a que acrescerão os juros de mora vincendos sobre o capital em dívida contados à taxa legal, valores que a exequente pretende lhe sejam pagos mediante presente execução.”
Face a tal quadro fáctico e processual e tendo a decisão impugnada se fundado exactamente na referência expressa e formal à causa da relação jurídica subjacente nos documentos particulares em que se transformaram as letras de câmbio prescritas dadas à execução, não se compreende como o tribunal da 1.ª instância veio a considerar, apesar da referida omissão, aquela primeira letra de câmbio, enquanto documento particular que reconhece obrigações pecuniárias de montante determinado, título executivo.
Importa, a este respeito, fazer realçar a aparente contradição em que incorre a sentença impugnada, ao afirmar o seguinte: “No caso presente, quatro das letras dadas à execução contém a menção "reforma valor", seguida do valor em causa.
Acresce que a exequente, na exposição de factos que consta do anexo C4 do requerimento executivo, aí alegou que é portadora das letras por virtude de operação praticada no exercício do seu comércio bancário (art.º 362.º do C. Comercial).
É certo que em tal articulado não se chegaram a explicitar, de forma directa, as concretas fontes da obrigação exequenda (v. g. compra e venda, troca ou empréstimo), mas, ao remeter-se (pelo menos implicitamente) para as letras juntas e tendo-se feito nas mesmas menção expressa e literal a "reforma" (de outras letras, entenda-se), dúvidas não restam de que, quer representem o valor de transacções comerciais propriamente ditas, quer respeitem a reformas de letras anteriores com as mesmas conexionadas, respeitam a dívidas de quem se obrigou a pagá-las e a obrigações de natureza comercial entre os sujeitos subscritores previamente estabelecidas.”
Começando o juiz do tribunal recorrido por referir que só quatro das cinco letras de câmbio tinha a menção “reforma valor”, procura depois fundar a exequibilidade em questão no requerimento inicial executivo (operação bancária), voltando depois, por falta de alegação do negócio jurídico concreto que justificou a respectiva emissão, aos aludidos documentos, para onde aquele articulado remete implicitamente, radicando-se, especialmente, na menção expressa e literal de “reforma valor”, que não existe, contudo, na primeira letra de câmbio, num raciocínio algo tautológico, que não pode colher manifestamente no que toca ao título cambiário prescrito em análise.
Pensamos, contudo, poder ir mais longe nesta apreciação da questão e defender que, em nenhuma das cinco letras de câmbio se acha referida a relação jurídica subjacente à relação cambiária emergente daqueles títulos de crédito, não podendo a expressão “reforma valor” ter esse significado e alcance.
Conforme Fernando Olavo, em Direito Comercial, Volume II, 2.ª parte, Fascículo I, “Títulos de crédito em geral”, 2.ª Edição, Coimbra Editora, 1978, páginas 10 a 83, “ (…) os títulos de crédito nasceram e desenvolveram-se para facultar a rápida e segura circulação dos direitos que neles se incorporam. Por isso mesmo se chamam também títulos circuláveis ou títulos negociáveis. (…) Sendo rápida e segura a transmissão destes títulos, torna-se por isso possível a mobilização dos direitos que incorporam, para o efeito de obter crédito através da sua realização antecipada (v. g. desconto de letras) (…) Há, com efeito, títulos que incorporam direitos de crédito propriamente ditos, como a letra (…) não é um mero documento probatório, nem mesmo só constitutivo, mas sim também dispositivo, por aquela incorporação não se verificar apenas no momento em que o título é emitido, antes existir de maneira permanente, visto o documento ser necessário ao exercício e por consequência à transmissão do direito. (…) Assim, para a transmissão da letra, indispensável se torna o título, porque o endosso respectivo deve lavrar-se no próprio título ou em folha anexa que o prolonga, conforme os artigos 11.º e 13.º da Lei Uniforme. (…) o detentor de uma letra é considerado portador legítimo se justifica o seu direito por uma série ininterrupta de endossos (art.º 16.º), para além de que, uma vez legitimado dessa forma, para cobrar o crédito, deve apresentar a letra ao devedor (artigos 34.º e 38.º). (…) O direito incorporado no título de crédito (…) é um direito literal, quer dizer, um direito cujo conteúdo, extensão e modalidade vale exclusivamente em conformidade com o teor do próprio título (artigo 17.º da L.U.L. Livrança) (…) A literalidade, conforme se trate de títulos causais ou de títulos abstractos que vivem independentemente da causa, é mais ou menos intensa (…) Assim, a letra e a livrança, que são títulos abstractos, têm de enunciar directamente tudo quando se mostra indispensável para definir o direito cartular (artigos 1.º e 75.º da Lei Uniforme), porque não podem reportar-se à causa (…) A autonomia do direito do portador está consagrada no artigo 16.º da Lei Uniforme sobre letras e livranças (…) enquanto estabelece que o portador do título não é obrigado a restituí-lo ao titular desapossado a não ser que o tenha adquirido de má-fé ou haja cometido uma falta grave na aquisição, pois revela assim que os vícios que afectam uma aquisição anterior não prejudicam a do portador de boa-fé ou sem culpa grave. Por seu turno, o artigo 17.º da Lei Uniforme sobre letras e livranças (…) consagra a autonomia do título (além da literalidade com que está relacionada), já que preceitua que as relações pessoais do devedor com os portadores anteriores – portanto relações de origem extracartular, pois se derivassem do título respeitavam também ao portador actual – não podem ser opostas a este, salvo se ele, ao adquirir o título tiver procedido conscientemente em detrimento do devedor. (…) títulos abstractos são os adequados a preencher diversas causas - funções económico – jurídicas e que vivem de certo modo independentemente dos negócios jurídicos que lhes dão origem, como a letra (…) Pode mesmo distinguir-se, por detrás de um título de crédito abstracto, uma causa remota, que é o negócio jurídico que em concreto actua em cada caso e que se designa por negócio subjacente, fundamental ou causal, e uma causa próxima, o acordo expresso ou implícito que determina a emissão do título e que se denomina convenção executiva ou, tratando-se de letras e livranças, pactum de cambiando”. (…) Assim, manifesto se torna, pelo menos no que toca aos títulos abstractos, independentes do negócio causal que o direito neles incorporado é distinto do originado por esse negócio. E a reforçar esta ideia concorre ainda a circunstância de ser diferente o regime de um e do outro, enquanto o primeiro é literal e autónomo, o segundo não, podendo ainda divergir relativamente ao prazo, às regras de satisfação, à prescrição, etc. (…) Os títulos de crédito abstractos, embora originados por um negócio jurídico subjacente, vivem independentemente da causa, e por isso admite-se em princípio que coexistam par a par a relação cartular e a subjacente, o direito e acção cartular e o direito e acção subjacente. (…) como a obrigação cambiária coexiste e é independente da obrigação causal, a prescrição daquela não pode afectar esta última, que subsiste portanto e pode ser exigida pelo credor com fundamento no negócio subjacente”. (cf., também, a este propósito, Pinto Furtado, “Títulos de Crédito”, obra citada, páginas 27 e seguintes).
Este quadro legal e doutrinário, que define e caracteriza a letra de câmbio, quando cruzado com os factos dados como provados, com os documentos que os suportam e com o teor do requerimento executivo permite-nos presumir, com alguma segurança e fazendo apelo às regras da experiência comum, o seguinte: a executada SOCIEDADE e o executado A celebraram entre si um ou diversos negócios jurídicos não identificados minimamente nos autos (relação ou relações subjacentes), que constituíram na esfera jurídica do segundo um débito ou débitos a favor da primeira, tendo ambos acordado em emitir letras de câmbio com vista a liquidar, nos prazos estabelecidos originalmente nas mesmas, tal dívida ou dívidas (convenção executiva), vindo o apelante a aceitar tais títulos de crédito, que foram sacados pela empresa credora e depois apresentados no Banco exequente para desconto, tendo este adiantado à executada os montantes constantes das letras, mediante a cobrança do respectivo juro e, nessa medida, ficado legitimamente em poder das mesmas, que, para o efeito, lhe foram endossadas (conforme ressalta dos versos dos documentos em questão) pela sacadora.
Chegada a data de vencimento dessas letras, o executado A não as liquidou (1.ª letra) ou só pagou parte do seu montante (2.ª a 5.ª letras), o que implicou que estas últimas fossem, em circunstâncias não apuradas, reformadas, ou seja, ocorresse a liquidação por parte do executado de parte do seu valor e, mediante um novo acordo entre todas ou algumas das entidades envolvidas, em circunstâncias e condições não alegadas e apuradas, houvesse lugar à subsequente emissão de novas letras, com novas datas de vencimento e valores diversos dos das letras originais e assim sucessivamente, até que os referidos títulos de crédito não obtiveram pagamento nem foram objecto dessa operação bancária de redesconto.
A primeira conclusão que pode ser extraída é a de que o Exequente vem, na qualidade de sua legítima portadora, dar tais letras à execução, unicamente na sua roupagem de documentos cambiários, ou seja, com as características e natureza acima enunciadas, visando a cobrança coerciva das obrigações cartulares deles emergentes, independentemente e para além dos negócios e obrigações que lhe estão subjacentes e que são a sua causa remota, sendo esse cenário que resulta, com clareza, do requerimento executivo inicial, que se mostra, na parte que nos interessa, acima transcrito.
Ora, a ser assim, o executado somente tinha de se pronunciar acerca dos direitos cambiários reclamados na acção executiva e dos respectivos suportes documentais, já não tendo fundamento nem legitimidade para, no quadro dos embargos de executado, vir discutir os contornos e conteúdo do negócio ou negócios subjacentes, por tal extravasar manifestamente a causa de pedir dos presentes autos, convindo recordar que nem o banco Exequente, nem a outra executada vieram responder à oposição deduzida pelo aqui Agravante.
Por outro lado e tendo presente essa delimitação objectiva da causa de pedir e do pedido da execução, o tribunal recorrido, ao introduzir nos autos a relação causal e os direitos dela emergentes, sem que as partes tivessem alegado factos mínimos que pudessem suportar tal posição, extravasou os poderes que lhe estão legalmente conferidos e não permitiu que os executados opinassem, previamente, sobre tal matéria, violando, dessa forma, o disposto nos artigos 3.º, número 3, 664.º e 661.º, número 1 do Código de Processo Civil.
Em segundo lugar, pode afirmar-se, sem sombra de dúvidas, que essa entidade bancária não teve qualquer intervenção no negócio ou negócios causais ou subjacentes às letras em questão, encontrando-se numa posição de terceiro relativamente a esses eventuais contratos celebrados e ao próprio acordo de emissão daqueles títulos.
Não tendo estabelecido o Banco exequente qualquer relação de natureza material com o executado (muita embora pudesse cobrar junto do mesmo, em função do aceite por este aposto nas mesmas, os montantes representados pelas letras), não vemos com pode surgir agora o mesmo, na sequência da extinção do crédito cambiário, como exequente de um crédito que não é seu mas sim da executada SOCIEDADE.
Dir-se-á, contudo, que o Banco exequente estabeleceu tal relação, em termos substantivos e cambiários com o referido executado, bem como com a executada, pois procedeu, por um lado, ao desconto das ditas letras, tendo ficado legítimo portador delas, na sequência do endosso que a sacadora lhe fez no verso das mesmas, e, por outro, à posterior reforma de tais títulos, nos moldes acima descritos e constantes dos últimos quatro, estando aquele primeiro negócio jurídico subentendido no endosso efectuado pela sacadora para o banco, quando conjugado com a menção a “reforma – valor”.
Poder-se-á dizer que a causa mediata ou remota da emissão das letras dos autos são esses desconto e reforma, operações que, segundo o exequente, foram efectuadas nos termos do artigo 362.º do Código Comercial?
Muito embora pensemos que tais operações de desconto e respectivo endosso e reforma nunca podem ser juridicamente qualificados como relação subjacente à emissão dos títulos de crédito em questão, impõe-se analisar um pouco melhor esta matéria.
Citando Abílio Neto e Carlos Moreno, no seu “Código Comercial Anotado”, Petrony, Lisboa, 1978, páginas 390 e 391, em anotação ao artigo 362.º do Código Comercial, eis a distinção entre operações comerciais e operações de crédito, para os efeitos que aqui interessam:
“Ramos Pereira (O Sistema de Crédito e a Estrutura Bancária em Portugal, I; págs. 107 e seguintes) oferece um classificação de operações bancárias que perfilhamos (…). Assim, como escreve aquele Autor, podem distinguir-se três categorias fundamentais de operações bancárias:
a) Operações comerciais – (…)
b) Operações de crédito – nesta categoria englobam-se as operações em que os bancos assumem a qualidade de cedente ou de recipiendário de fundos por crédito, recebendo ou pagando, por isso, normalmente um “juro”.
No âmbito desta classe, haverá que distinguir as operações activas de crédito, em moeda nacional ou estrangeira, por meio das quais o banco assume a qualidade de credor; as operações passivas de crédito igualmente em moeda nacional ou estrangeira, pelas quais o banco se torna devedor; e as operações relativas à emissão e amortização de notas. (…)
No âmbito das operações activas são de citar o desconto ou redesconto de títulos de crédito comercial (letras, livranças, warrants, etc.); o desconto ou redesconto de certificados de depósito a prazo, de bilhetes de Tesouro, de promissórias emitidas por organismos públicos e aceites bancários; o desconto de cupões de títulos públicos ou privados; a aquisição de cheques emitidos por outras instituições de crédito, ou passados sobre elas, expressas em moeda nacional ou estrangeira; a emissão de cartas de crédito e as aberturas de crédito, documentários ou não, em moeda nacional ou estrangeira; a concessão de empréstimos e outros créditos, em conta-corrente ou não, sem garantia especial ou caucionados por letras aceites, por penhor de títulos de crédito público ou privado, de acções de empresas, de certificados de depósito ou de metais precioso, por hipoteca de bens imóveis, etc.; e finalmente a outorga de crédito por garantia ou aval.
c) Operações financeiras (…)”
Estamos, portanto, perante operações activas de crédito desenvolvidas pelo banco exequente no âmbito da sua actividade comercial, importando perceber os seus exactos contornos.
No que respeita ao desconto bancário, a nossa doutrina e jurisprudência tem-se dividido quanto à sua exacta natureza jurídica e teor, bastando compulsar para o efeito o Assento n.º 17/94 de 11/10/1994 e publicado no DR, 1.ª Série, de 3/12/1994, para tomar contacto com as diversas teses em confronto.
Esse Aresto, depois de definir o desconto bancário como um “contrato pelo qual o titular de um crédito (o descontário) o cede a um banco (o descontado) que, dele fica sendo titular e cobra no seu vencimento, recebendo em troca antecipadamente, o respectivo valor, deduzido do correspondente juro (prémio) e outras despesas”, qualifica-o como um contrato de endosso em branco e em garantia de um título bancário, que se distingue do título cambiário e da relação cartular que este representa e decide que “o contrato de desconto bancário tem natureza formal, para cuja validade e provas é exigida a existência de um escrito que contenha a assinatura do descontário, embora tal possa ter a natureza de documento particular” (cf., também, acerca do desconto bancário e das diversas posições jurídicas acerca dele, a jurisprudência indicada a fls. 39 a 45 por Abel Delgado, em “Lei Uniforme sobre Letras e Livranças”, Anotada, 6.ª Edição, 1990, Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 03/12/1991, publicado em BMJ 412, 498, Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 3/01/1975, publicado no BMJ 244, 323 e Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 31/01/1975, publicado em BMJ, 246, 190).
Ora, tendo em atenção a doutrina desse Assento, que classifica o desconto bancário como um negócio jurídico formal, facilmente se conclui, de acordo com o que já deixámos acima exposto, que as letras de câmbio dos autos, ainda que cambiariamente prescritas, nunca poderiam titular o desconto bancário em causa, só podendo o Banco exequente lançar mão desse negócio jurídico, como afirma o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 22/05/1979, publicado na CJ, 1979, 785, desde que se socorresse “da carta – contrato, do empréstimo ou mútuo, como desconto bancário e (…) a letra de câmbio” fosse “ junta como elemento de prova da realização do empréstimo” sendo então “evidente que optou pela demanda causal e não pela acção cambiária”.
Recorde-se, finalmente, que tal desconto bancário aconteceu entre a executada e o exequente e não entre este e o embargante e aqui agravante, não podendo, por tal motivo, vinculá-lo juridicamente.
Passemos agora à análise da reforma das últimas quatro letras de câmbio para, na procura do seu enquadramento jurídico, encontrar igualmente posições jurídicas diferentes e que tem evoluído e alargado o respectivo conceito, parecendo, contudo, que a maioria da doutrina e jurisprudência vai no sentido a seguir indicado:
“I – O elemento fundamental da reforma de uma letra é a sua substituição por outra, o que poderá ser motivado por diversas circunstâncias como a amortização parcial do débito, o simples diferimento da data do vencimento, a alteração do montante, a intervenção de novos subscritores ou a eliminação de algum dos anteriores.
II – A simples reforma não implica a extinção, por novação, da primitiva obrigação cambiária, sendo indispensável, para esse efeito, a alegação e prova de expressa ou inequívoca manifestação de vontade no sentido de se contrair uma nova obrigação em substituição da antiga.
III – Tal declaração negocial não se presume, designadamente se não houve restituição do título inicial ou se este contém alguma garantia especial não incluída no novo título. Também o facto de ter havido pagamento parcial de uma letra, acompanhado ou não de reforma ou menção nela expressa, não lhe retira a força de título executivo” (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 26/03/1996, em BMJ 455, 522) (ver ainda, Abel Delgado, obra citada, páginas 230 e seguintes e França Pitão, Letras e Livranças – Lei Uniforme sobre Letras e Livranças anotada, Almedina, 2002, páginas 235 e seguintes).
Tendo como pano de fundo essa noção de reforma da letra de câmbio, afigura-se-nos que nos movemos sempre e tão-somente no plano cambiário, não se podendo afirmar que a substituição, com amortização parcial do seu valor, de uma letra anterior por uma outra nova, com os mesmos intervenientes, constitua um qualquer negócio jurídico autónomo, causal e subjacente a tal emissão, que possa fundar, coexistir com a relação cambiária, nomeadamente, para efeitos de propositura de uma acção executiva independente daquela outra instaurada com base nas letras reformadas e visando cobrar coercivamente os mesmos montantes que se acham tituladas por aquelas.
Ainda que assim não se entenda, afigura-se-nos que as quatro últimas letras de câmbio nunca podem constituir título executivo suficiente contra o aqui Agravante, dada a mera referência a operação praticada no exercício do seu comércio bancário (art.º 362.º do C. Comercial), conjuntamente com a expressão reforma valor ser manifestamente inconclusiva, ignorando-se, em absoluto, se tal expressão se refere às reformas das letras e, mesmo que assim seja, em que circunstâncias e condições é que as mesmas ocorreram e que intervenção concreta teve o executado nelas.
Sendo assim, pelas razões expostas, não andou bem o tribunal recorrido ao proferir a sentença de fls. 14 e seguintes nos moldes sem que o fez, impondo-se, nessa medida, a sua revogação.
IV – DECISÃO
Por todo o exposto, nos termos do artigo 713.º do Código de Processo Civil, acorda-se neste Tribunal da Relação de Lisboa em julgar procedente o presente recurso de apelação interposto por A e, nessa medida, revogar a decisão recorrida, decidindo-se absolver o recorrente e executado do pedido executivo contra ele formulado nos autos principais (acção executiva).
Sem custas – artigo 2.º, alínea g) do Código das Custas Judiciais.