ADMINISTRAÇÃO DA HERANÇA
PRESTAÇÃO DE CONTAS
REGIME APLICÁVEL
Sumário

I - A acção de prestação de contas pelo cabeça-de-casal segue os termos do processo especial-geral de prestação de contas, regulado nos art.ºs 1014.º e seguintes do CPC, com a única especificidade de correr termos por dependência do processo de inventário.
II - Em tal acção é aplicável o regime estabelecido no art.° 1016. n.º 4 do CPC, nos termos do qual, se as contas prestadas pelo R. apresentarem saldo a favor do autor, pode este requerer que o aquele seja notificado para, em dez dias, pagar a importância do saldo, sob pena de imediata execução, não ficando prejudicada, por isso, a oposição que o A. tenha contra as contas apresentadas.
(FA)

Texto Integral

Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa

H. propôs contra L., na sua qualidade de cabeça-de-casal das heranças objecto do Inventário n.º pendente no tribunal judicial de Torres Vedras, e por apenso ao referido processo de inventário, a presente acção de prestação de contas.
Tendo em conta que já estava pendente acção de prestação de contas em relação ao período compreendido entre 16-03-2001 e 11-11-2002, pediu a notificação do R. para prestar contas da sua administração desde 11 de Novembro de 2002 até à data de propositura da presente acção, que terá sido intentada a 26 de Novembro de 2004.
O Réu, citado para apresentar contas ou contestar a acção, veio, em 14 de Janeiro de 2005, alegar a inexistência de receitas e despesas da herança, nos períodos de 11 de Novembro de 2002 a 31 de Dezembro de 2002, e de 1 a 13 de Janeiro de 2005, tendo apresentado conta corrente das receitas e despesas relativas aos anos de 2003 e 2004.
A fls. 21 o A. requereu a justificação das verbas da referida conta corrente e que o R., em 10 dias, procedesse ao pagamento da parte do saldo das contas apresentadas que lhe cabia, no montante de € 16.127,81, com base no disposto no art.° 1016 n.º 4 do C.P. Civil.
A fls. 38 e ss., o R. veio apresentar a justificação documental das verbas constantes da conta corrente.
O A. contestou, a fls. 60 e ss., as verbas constantes da conta corrente apresentada pelo R. e requereu novamente a justificação das aludidas verbas, bem como que o A. pagasse a parte do saldo das contas apresentadas que lhe cabe.
Este pedido de pagamento pelo cabeça-de-casal da quota-parte do A., no saldo das contas apresentadas pelo R. foi indeferido por decisão, ora certificada a fls. 5 e 6, com a seguinte fundamentação:

A prestação de contas pelo cabeça-de-casal é dependência do processo de inventário, no qual o cabeça-de-casal tenha sido nomeado, seguindo os termos de um processo especialíssimo para a prestação de contas, por contraposição ao processo especial-geral consagrado nos art.s 1014° a 1018° do C.P. Civil.
Assim sendo, as disposições do processo especial-geral de prestação de contas, só serão aplicáveis na falta de disposição especial que regule o caso.
No caso, não existe falta de regulamentação, sendo aplicável à distribuição do saldo apurado nas contas prestadas pelo cabeça-de-casal o preceituado no art.° 2093.º, n.º 3 do C. Civil. Assim, o preceituado no art.° 1016.º n.º 4 do CPC, não é aqui aplicável.

Inconformado, o autor agravou do assim decidido, tendo apresentado alegações onde formula as seguintes conclusões:

a) - A norma do n° 3 do art° 2093° do Cód. Civil não exclui a aplicabilidade da do n° 4 do art° 1016° do Cód. de Processo Civil às contas prestadas por dependência do processo de inventário;
b) - Os pedidos formulados ao abrigo do disposto no art° 1016° n° 4 citado nos autos de prestação de contas que correm por dependência de processos de inventário devem ser decididos em conformidade com as circunstâncias concretas de cada caso, quando os apresentantes das contas deduzam oposição invocando a necessidade de retenção da totalidade ou de parte do saldo positivo por eles indicado para os "encargos do novo ano";
c) - No caso sob apreciação, o ora Rec.te deduziu pedido ao abrigo do disposto no n° 4 do art° 1016° do Cód. de Processo Civil, o ora Rec.do não se opôs ao mesmo, não incluiu nas contas qualquer verba tida por ele como necessária para os "encargos do novo ano", nem invocou tal necessidade em parte alguma;
d) - A douta decisão recorrida carece em absoluto de fundamentação de facto e infringiu o disposto no art° 1016° n° 4 do Cód. de Processo Civil;
Nestes termos, deve revogar-se a douta decisão recorrida e substituir-se esta por outra que defira o pedido deduzido pelo ora Rec.te ao abrigo do disposto no art° 1016° n° 4 do Cód. de Processo Civil.

Não foram apresentadas contra-alegações.
Foi mantida a decisão recorrida.

Sendo o objecto dos recursos delimitado pelas conclusões, está em causa no presente agravo saber se o ora agravado que, para tanto demandado, apresentou contas da sua administração de cabeça-de-casal de determinadas heranças, deve ser condenado no pagamento da quota-parte do saldo das contas que apresentou, aplicando-se o disposto no art.° 1016.º n.º 4 do CPC.

Os factos a considerar são os que decorrem do relatório que antecede. No essencial, o próprio enunciado da questão identifica os seus pressupostos de facto.

O Direito

Como se referiu, está apenas em causa saber se o regime estabelecido no art.° 1016. n.º 4 do CPC é aplicável na acção de prestação de contas relativas á administração da herança.
Nos termos do referido preceito legal, se as contas prestadas pelo R. apresentarem saldo a favor do autor, pode este requerer que o aquele seja notificado para, em dez dias, pagar a importância do saldo, sob pena de imediata execução, não ficando prejudicada, por isso, a oposição que o A. tenha contra as contas apresentadas.
O que agora se discute é se o regime assim estabelecido é aplicável ao saldo das contas apresentadas pelo cabeça-de-casal na acção em que este intervém como réu.

Como se viu, na decisão recorrida entendeu-se que a acção de prestação de contas do cabeça-de-casal seguia os termos de um processo especialíssimo de prestação de contas, por oposição ao processo especial-geral de prestação de contas onde se integra o questionado art.° 1016.º n.º 4 do CPC. Posto o que, considerando que o preceituado no art.° 2093, n.º 3 do C. Civil, regulava especificamente a questão, não havia que recorrer ao regime estabelecido naquele art.° 1016.º n.º 4 do CPC.

Salvo sempre o devido respeito e melhor opinião, não se subscreve tal entendimento.
Antes de mais, julga-se ser claro que as contas a prestar pelo cabeça-de-casal seguem os termos do processo especial-geral regulado nos art.ºs 1014.º e seguintes do CPC. É o que decorre, designadamente da inserção sistemática do art.° 1019.º – que se refere, entre outras, às contas do cabeça-de-casal – na Secção I – “Contas em geral” – do capítulo V – “Da prestação de contas” – do Código de Processo Civil. Sendo que os processos especialíssimos de prestação de contas, aplicáveis às contas a prestar pelos representantes legais dos incapazes e do depositário judicial, se encontram regulados na Secção II do mesmo capítulo.
E é o que decorre, sobretudo, do facto de a única especificidade do processo de prestação de contas do cabeça-de-casal ser a estabelecida no referido art.° 1019.º do CPC, sendo limitada à dependência do seu processamento em relação ao processo onde foi feita a nomeação do cabeça-de-casal, o processo de inventário. Ora, tanto quanto nos parece, esta regra de dependência da acção de prestação de contas do cabeça-de-casal em relação ao processo de inventário, não contende com a sua tramitação processual, nem, como se referiu, a lei prevê qualquer diferença específica nessa tramitação.
A acção de prestação de contas pelo cabeça-de-casal segue, pois, os termos do processo especial-geral de prestação de contas, com a única especificidade de correr termos por dependência do processo de inventário. Daqui não decorre, pois, a não aplicação do regime estabelecido no art.° 1016.º, n.º 4 do CPC na acção de prestação de contas intentada contra o cabeça-de-casal.
Posto isto, julga-se que o preceituado no art.° 2093.º do C. Civil também não afasta a aplicação daquele art.° 1016.º.
Aquele art.° 2093.º do C. civil, depois de no seu n.º 1 estabelecer que o cabeça-de-casal deve prestar contas anualmente e de, no seu n.º 2, resolver algumas questões práticas dessa prestação de contas, estipula no seu n.º 3 que, havendo saldo positivo, é o mesmo distribuído pelos interessados, segundo o seu direito, depois de deduzida a quantia necessária para os encargos do novo ano.
Ou seja, o preceito em análise prevê a prestação anual de contas por parte do cabeça-de-casal, respeitantes a uma administração que se vai prolongar no tempo e, verificados esses pressupostos, estabelece a distribuição pelos interessados, e conforme o seu direito, do saldo positivo que seja apurado, depois de deduzido o montante necessário para encargos do novo ano.
Na parte em que estabelece a distribuição do saldo positivo que seja apurado, este preceito limita-se a confirmar a regra geral em sede de acção de prestação de contas. Pois que, nos termos da segunda parte do art.° 1014.º do CPC, a acção de prestação de contas tem por objecto o apuramento e aprovação das receitas obtidas e das despesas realizadas por quem administra bens alheios e a eventual condenação no pagamento do saldo que venha a apurar-se. E já era assim que este preceito era entendido, mesmo na data em que lhe faltava este segmento normativo, introduzido pela revisão processual de 1995/96.
Assim, o referido n.º 3 do art.° 2093.º do C. Civil só é efectivamente inovador quando, por um lado, estabelece que o saldo a distribuir é deduzido da quantia necessária para os encargos do novo ano de administração que se siga e, em medida menor, ao estabelecer que a distribuição do saldo é feita pelos interessados segundo o seu direito, regra que sempre decorreria dos princípios gerais.
Aceita-se que este preceito legal tenha em vista a distribuição do saldo das contas apurado a final mas, não esquecendo que estamos a falar de prestações anuais de contas, não se vê que isso obste à aplicação do preceituado no art.° 1016.º n.º 4 do CPC, permitindo-se ao autor da acção que requeira o pagamento da sua quota-parte no saldo das contas apresentadas pelo cabeça-de-casal. Estamos perante duas situações diferentes, sendo que o pagamento antecipado do saldo reconhecido, feito ao abrigo do preceituado no art.° 1016.º n.º 4 do CPC, para além de poder dispensar a distribuição de rendimentos da herança ao abrigo do art.° 2092.º do C. Civil, acaba por redundar numa realização mais pronta da justiça no caso, sem que daí resulte qualquer desvantagem processual

Obviamente que se coloca a questão de salvaguardar a quantia necessária para futuros encargos da administração, mas isso não tem a ver com a admissibilidade da aplicação do art.° 1016.º do CPC, mas apenas com a determinação do saldo susceptível de ser distribuído. E era ao requerido, cabeça-de-casal, que cabia invocar a necessidade de dedução de qualquer montante no saldo a distribuir.
De resto, esta questão da necessidade de fazer face aos encargos do novo ano deixou de fazer qualquer sentido, uma vez que, entretanto, já decorreram quase três anos sobre o último ano envolvido na prestação de contas na presente acção, situação que também aponta no sentido de ser admitida a aplicação no caso do preceituado no art.º 1016.º n.º 4 do CPC.
Entende-se, pois, que não deve ser mantida a decisão recorrida, havendo que dar seguimento à pretensão do requerente.
Para tanto importa saber qual o valor do saldo das contas efectivamente reconhecido pelo cabeça-de-casal, não sendo inequívocos os elementos a este respeito constantes do processo. No processado do presente recurso mostram-se juntos dois mapas de contas, com saldos diferentes, tendo o agravante formulado a sua pretensão com base no primeiro saldo que foi apresentado, sendo que as informações complementares disponíveis não são, a nosso ver, suficientes para formular uma conclusão.
Que há-de ser formulada no tribunal recorrido, dando-se ali seguimento à apreciação da pretensão deduzida pelo A., ao que nada obsta, uma vez que a decisão recorrida se fundou em razões meramente formais, ora julgadas improcedentes.

Termos em que se acorda em dar provimento ao agravo revogando-se a decisão recorrida que deverá ser substituída por outra que, dando por assente a admissibilidade processual da pretensão do ora agravante no sentido de lhe ser paga a sua quota-parte no saldo das contas apresentadas pelo cabeça-de-casal, proceda à sua apreciação.

Não são devidas custas – art.° 2.º al. g) do CCJ.

Lisboa, 08-11-2007

( Farinha Alves )

( Tibério Silva )

( Ezagüy Martins )