PENSÃO DE SOBREVIVÊNCIA
Sumário

1) A acção declarativa para o reconhecimento do direito a alimentos para efeitos de pensão de sobrevivência, por no momento da morte do beneficiário a pessoa se encontrar nas condições previstas no art. 2020.º do Código Civil, é de simples apreciação.
2) Não se pode aplicar o disposto na parte final do n.º 2 do art. 41.º do Estatuto das Pensões de Sobrevivência, por padecer de inconstitucionalidade material, dada a violação do princípio da igualdade, previsto no art. 13.º da Constituição da República Portuguesa.
3) A norma jurídica a aplicar, por analogia, nos termos do art. 10.º do Código Civil, será uma semelhante ao do art. 6.º do Decreto Regulamentar n.º 1/94, de 18 de Janeiro.
4) Se o titular vier a requerer a atribuição da pensão de sobrevivência por morte de beneficiário da Caixa Geral de Aposentações, nos seis meses posteriores ao trânsito em julgado da respectiva sentença, o direito à pensão de sobrevivência é devido a partir do início do mês seguinte ao do falecimento do beneficiário.
O.G.

Texto Integral

Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa:
I. RELATÓRIO
Maria instaurou, em 7 de Junho de 2001, contra Caixa Geral de Aposentações e Caixa Nacional de Pensões (Instituto de Solidariedade e Segurança Social), acção declarativa, sob a forma de processo ordinário, pedindo que lhe fosse reconhecido o direito a alimentos, nos termos do disposto no art. 2020.º do Código Civil, e o direito às prestações, por morte de António.
Para tanto, alegou em síntese, que António da Silva, sendo pensionista da Caixa Geral de Aposentações e beneficiário da Segurança Social, faleceu no dia 17 de Março de 2001, tendo vivido ininterruptamente, desde finais de 1994 até à sua morte, em condições análogas às dos cônjuges, com a A. Com a referida morte, ficou em situação de carência económica, não tendo familiares que a possam ajudar.
Contestaram as RR., designadamente por impugnação.
Realizada a audiência de discussão e julgamento, por três vezes, na sequência de duas anulações declaradas por acórdãos deste Tribunal, de 20 de Janeiro de 2005 e de 28 de Novembro de 2006, foi proferida, em 18 de Maio de 2007, sentença, que, julgando a acção procedente, reconheceu “à Autora o direito a alimentos, nos termos do art. 2020.º do Código Civil” e condenou “as Rés a pagar à Autora as pensões de sobrevivência, devidas por óbito de António, vencidas desde o início do mês seguinte ao óbito do beneficiário” (fls. 518).
Inconformada com a sentença, recorreu a Ré Caixa Geral de Aposentações, que, tendo alegado, formulou no essencial as seguintes conclusões:
a) A sentença viola, além do mais, o disposto no n.º 2 do art. 41.º do EPS.
b) A sentença extravasou o limite da sua competência, pois bastava pronunciar-se pelo reconhecimento, ou não, do direito peticionado.
c) O exercício e as condições ou pressupostos do direito é levado a cabo perante a autoridade administrativa.

Pretende, com o seu provimento, a substituição da decisão por outra que reconheça à Autora o direito à pensão de sobrevivência, a partir do dia 1 do mês seguinte à data do trânsito em julgado da sentença.

Contra-alegou a Autora, no sentido de ser negado provimento ao recurso.

Corridos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.

Neste recurso, está essencialmente em discussão o termo inicial da prestação social a prestar pela Caixa Geral de Aposentações.

II. FUNDAMENTAÇÃO

2.1. Foram dados como provados os seguintes factos:
1. A A. nasceu no dia 4 de Junho de 1925, na freguesia de Donas, concelho do Fundão.
2. António faleceu no dia 17 de Março de 2001, no estado de viúvo, com 86 anos de idade.
3. À data da sua morte, António era beneficiário da segurança social, com o n.º 119033971, e pensionista da Caixa Geral de Aposentações, com o n.º 2101772.
4. Nessa data, recebia uma pensão de reforma do Centro Nacional de Pensões, no montante mensal de 54 660$00, e uma pensão de reforma da Caixa Geral de Aposentações, cujo montante anual, em 2000, ascendeu a 1 479 800$00.
5. A A. não tem ascendentes, descendentes ou irmãos vivos.
6. A A. viveu com António, pelo menos, desde finais de 1994, no 2.º andar de uma casa, sita na Rua Luís Travassos, n.º 20, Donas, Fundão.
7. Desde essa data, a A. e António dedicaram-se um ao outro, partilhando cama, mesa e habitação, contribuindo ambos para as despesas domésticas, permanecendo, saindo e passeando juntos.
8. Amparavam-se e protegiam-se um ao outro na sua vida quotidiana.
9. Auxiliavam-se e assistiam-se mutuamente em caso de doença ou necessidade.
10. Trocavam gestos de carinho.
11. Em tudo agiam e comportavam-se reciprocamente como se fossem marido e mulher.
12. Como tal eram vistos e considerados por toda a gente, nomeadamente pelos vizinhos, familiares e amigos.
13. Tal situação manteve-se até à morte de António.
14. A A. vive exclusivamente da pensão de reforma que aufere do Centro Nacional de Pensões, no montante de € 147,39 (29 550$00).
15. A A. necessita de despender, mensalmente, em alimentação, calçado e vestuário quantia concretamente não apurada.
16. A A. gasta, mensalmente, em medicamentos, quantia não apurada.
17. A A. vive na casa do filho de António, pela qual não paga renda, nem os gastos com energia eléctrica, água e outros com encargos habitacionais.
18. O falecido não deixou quaisquer bens imóveis, nem móveis, nem valores.

2.2. Delimitada a matéria de facto, que não vem impugnada, importa agora conhecer do objecto do recurso, balizado pelas respectivas conclusões, e cuja questão jurídica emergente respeita, essencialmente, ao termo inicial da prestação social a suportar pela apelante.
Na sentença recorrida, reconheceu-se o direito da apelada à prestação social, a partir do início do mês seguinte ao óbito do beneficiário, isto é, a partir de 1 de Abril de 2001, dado o óbito ter ocorrido em 17 de Março de 2001 (facto n.º 2.).
A apelante, porém, insurgindo-se contra esse entendimento, defende que o direito à pensão de sobrevivência é devido “a partir do dia 1 do mês seguinte à data do trânsito em julgado da sentença”, por efeito do disposto no art. 41.º, n.º 2, do Estatuto das Pensões de Sobrevivência.
Por sua vez, a apelada, concordando com a sentença, contrapõe a aplicação do disposto no art. 6.º do Decreto Regulamentar n.º 1/94, de 18 de Janeiro.
Desenhados, assim, os termos da questão jurídica controvertida, que posição tomar?

A acção instaurada corresponde a uma acção de simples apreciação, na medida em que a mesma tem, como objecto, a declaração da existência de um direito - art. 4.º, n.º 2, alínea a), do Código de Processo Civil (CPC).
Na verdade, a acção proposta destinou-se a obter uma sentença que fixasse, a favor da apelada, o direito a alimentos para efeitos de pensão de sobrevivência, por no momento da morte do beneficiário se encontrar nas condições previstas no art. 2020.º do Código Civil (CC).
A instauração da acção judicial era indispensável para a habilitação à pensão de sobrevivência, atento o disposto no n.º 2 do art. 41.º do DL n.º 142/73, de 31 de Março, diploma que aprovou o Estatuto das Pensões de Sobrevivência (EPS), com a alteração, entretanto, introduzida pelo DL n.º 191-B/79, de 25 de Junho.
É dentro deste contexto que se deve compreender a sentença proferida nos autos, nomeadamente a “condenação” no pagamento das pensões de sobrevivência, desde o início do mês seguinte ao do óbito do beneficiário. Não se trata, efectivamente, da condenação numa prestação, que pressupõe ou prevê a violação de um direito, mas antes da declaração da existência do direito, cuja atribuição, verificados certos requisitos, resulta directamente da lei.
Tal segmento decisório, para além de equívoco, acaba por ser até redundante, sem contudo constituir um excesso de pronúncia, com as consequências daí advindas, nos termos do disposto no art. 668.º do CPC.
Todavia, estando em causa o direito a alimentos para a obtenção da pensão de sobrevivência e, por outro lado, existindo dúvidas quanto ao momento a partir da qual a prestação social é devida, importa que sobre tal matéria haja pronúncia e se declare o respectivo direito, sem que tal constitua ofensa à repartição da respectiva competência material.

2.3. Entrando no cerne da questão suscitada na apelação, vejamos o caso já equacionado.
Como já se intuiu, não se encontra controvertido o direito a alimentos da apelada, dado esta reunir as condições previstas no art. 2020.º do CC. A questão controvertida cinge-se, antes, ao termo inicial da prestação social a cargo da apelante.
Prescreve, então, o art. 41.º, n.º 2, do EPS:
Aquele que no momento da morte do contribuinte estiver nas condições previstas no artigo 2020.º do Código Civil só será considerado herdeiro hábil para efeitos de pensão de sobrevivência a pensão de sobrevivência depois de sentença judicial que lhe fixe o direito a alimentos e a pensão de sobrevivência será devida a partir do dia 1 do mês seguinte àquele em que a requeira, enquanto se mantiver o referido direito.”

No regime de segurança social (SS), dando expressão normativa ao disposto no art. 8.º do DL n.º 322/90, de 18 de Outubro, que definiu e regulamentou a protecção na eventualidade da morte dos beneficiários do regime geral da segurança social, regulou-se no art. 6.º do Decreto Regulamentar n.º 1/94, de 18 de Janeiro:
“A pensão de sobrevivência é atribuída a partir do início do mês seguinte ao do falecimento do beneficiário, quando requerida nos seis meses posteriores ao trânsito em julgado da sentença, ou a partir do início do mês seguinte ao da apresentação do requerimento, após o decurso daquele prazo.”

A sentença que esta norma reporta é a que fixa o direito a alimentos ou declara a qualidade de titular das prestações por morte (arts. 3.º e 5.º do Decreto Regulamentar n.º 1/94).
Segundo os normativos transcritos, existe uma clara discrepância quanto ao termo inicial da pensão de sobrevivência, no caso da união de facto, conforme se trate do regime de protecção social da função pública ou do regime geral da segurança social.
Efectivamente, na primeira situação (EPS), a pensão de sobrevivência seria devida a partir do dia 1 do mês seguinte àquele em tivesse sido requerida, naturalmente depois do trânsito em julgado da respectiva sentença (arts. 29.º e 30.º, n.º 1, do EPS). Na segunda situação (SS), a pensão de sobrevivência seria devida a partir do início do mês seguinte ao falecimento do beneficiário, desde que requerida nos seis meses posteriores ao trânsito em julgado da sentença.
A atribuição da pensão de sobrevivência, assim diferenciada, é susceptível de gerar uma injusta e insustentável desigualdade, tanto mais agravada quanto mais tempo possa demorar a acção declarativa de reconhecimento do direito do respectivo titular.
Apesar do legislador dispor, na elaboração e conformação da lei, de um poder normativo discricionário, não pode, no entanto, consagrar normas violadoras de direitos ou valores fundamentais, designadamente os consagrados na Constituição.
Nesse âmbito, avulta o princípio da igualdade, com carácter geral, afirmado no art. 13.º da Constituição da República Portuguesa.
O sentido do princípio da igualdade tanto pode ser negativo, proibindo privilégios e discriminações, como positivo, conferindo tratamento igual ou semelhante de situações iguais ou semelhantes (JORGE MIRANDA, Manual de Direito Constitucional, Tomo IV, 3.ª edição, pág. 238 e 239).
O princípio da igualdade, tendo subjacente uma concepção de justiça dominante na comunidade, rejeita todas as distinções arbitrárias ou discriminatórias, quando as situações concretas confrontadas são iguais ou semelhantes.
A Lei n.º 7/2001, de 11 de Maio, que adoptou medidas de protecção das uniões de facto, consagra, neste âmbito, o direito universal à “protecção na eventualidade de morte do beneficiário, pela aplicação do regime geral da segurança social e da lei” – alínea e) do art. 3.º.
Por outro lado, e desde logo por imperativo constitucional, incumbe ao Estado organizar um sistema de segurança social unificado, para protecção dos cidadãos na doença, velhice, invalidez, viuvez e orfandade, bem como no desemprego e em todas as situações de falta ou diminuição de meios de subsistência ou de capacidade para o trabalho (art. 63.º, n.º s 2 e 3).
Nesse âmbito, foram estabelecidas as bases de segurança social, através da Lei n.º 32/2002, de 10 de Dezembro, nos termos das quais se fixaram certos princípios gerais, como o da igualdade (não discriminação dos beneficiários) e da equidade social (tratamento igual se situações iguais e tratamento diferenciado de situações desiguais) - arts. 6.º, 8.º e 10.º.
Para além disso, importa ainda tomar em consideração outras manifestações da vontade do legislador, mais recentes do que a expressa no EPS, nomeadamente o que se dispôs no art. 10.º do DL n.º 223/95, de 8 de Setembro, diploma esse que regula a atribuição do subsídio por morte, prestação pecuniária, de concessão única, integrada no regime de protecção social da função pública.
No seu preâmbulo, para além da caracterização do subsídio como uma “prestação de segurança social”, realça-se ainda “a progressiva harmonização entre o regime geral de segurança social e o regime da função pública, preconizado na Lei n.º 28/84, de 14 de Agosto, tendente à unificação do sistema de segurança social, e a necessidade de simplificar o processo de atribuição do subsídio por morte e de o aproximar do referente à pensão de sobrevivência”.
Dispõe, então, o art. 10.º do DL n.º 223/95:
1 – O prazo para requerer o subsídio por morte é de um ano a contar da data do falecimento do funcionário ou agente (…).”
“2. A pessoa que estiver nas condições previstas no artigo 2020.º do Código Civil deve fazer prova, dentro do prazo estabelecido no número anterior, de que se encontra pendente a respectiva acção judicial.”

A regulação do requerimento para a habilitação ao subsídio por morte de funcionário ou agente público, embora não coincida nem com o regime do EPS nem com o da Segurança Social, aproxima-se substancialmente do último, não estando o respectivo requerimento dependente, em absoluto, do trânsito em julgado da sentença da acção judicial.
Neste contexto, ponderando a evolução legislativa mais recente, assim como os imperativos constitucionais, não se pode aplicar, no caso vertente, o disposto na parte final do n.º 2 do art. 41.º do EPS, por padecer de inconstitucionalidade material, dada a violação do princípio da igualdade, previsto no art. 13.º da Constituição da República Portuguesa.
Na situação em análise, existe pois uma clara e injustificada discriminação, para a mesma eventualidade, a morte do beneficiário, social e juridicamente inaceitável. A situação de carência económica em caso de morte de um dos membros da união de facto é essencialmente a mesma, quer a concessão da respectiva prestação social obedeça ao regime geral da segurança social ou ao regime da função pública.
Nesta conformidade, a norma jurídica a aplicar, por analogia, nos termos do art. 10.º do CC, será uma norma semelhante à do art. 6.º do Decreto Regulamentar n.º 1/94, de 18 de Janeiro.
Deste modo, se a apelada vier a requerer a atribuição da pensão de sobrevivência por morte de António Calhoca da Silva, beneficiário da Caixa Geral de Aposentações, nos seis meses posteriores ao trânsito em julgado da sentença, o direito à pensão de sobrevivência será devido a partir do início do mês seguinte ao do falecimento do beneficiário, ou seja, desde 1 de Abril de 2001.

Com o mesmo resultado decidiram, entre outros, os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de 22 de Abril de 2004 (Processo n.º 04B676), de1 de Março de 2007 (Processo n.º 07A136) e de 25 de Setembro de 2007 (Processo n.º 07A2648), acessíveis em www.dgsi.pt.
Diferentemente, porém, decidiu o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 22 de Março de 2007 (Processo n.º 07A493), igualmente acessível em www.dgsi.pt.
Ainda no sentido defendido no presente aresto, decidiu o Tribunal da Relação de Lisboa, através do acórdão de 11 de Outubro de 2007 (Processo n.º 8.213/07-6), também acessível em www.dgsi.pt.
No sentido da referida inconstitucionalidade material, pronunciou-se também o Tribunal Constitucional, designadamente nos acórdãos n.º 522/2006, de 26 de Setembro de 2006, n.º 233/2007, de 28 de Março de 2007, e n.º 484/2007, de 17 de Outubro de 2007, acessíveis em www.tribunalconstitucional.pt.

2.4. Em conclusão, pode extrair-se de mais relevante:
1) A acção declarativa para o reconhecimento do direito a alimentos para efeitos de pensão de sobrevivência, por no momento da morte do beneficiário a pessoa se encontrar nas condições previstas no art. 2020.º do Código Civil, é de simples apreciação.
2) Não se pode aplicar o disposto na parte final do n.º 2 do art. 41.º do Estatuto das Pensões de Sobrevivência, por padecer de inconstitucionalidade material, dada a violação do princípio da igualdade, previsto no art. 13.º da Constituição da República Portuguesa.
3) A norma jurídica a aplicar, por analogia, nos termos do art. 10.º do Código Civil, será uma semelhante ao do art. 6.º do Decreto Regulamentar n.º 1/94, de 18 de Janeiro.
4) Se o titular vier a requerer a atribuição da pensão de sobrevivência por morte de beneficiário da Caixa Geral de Aposentações, nos seis meses posteriores ao trânsito em julgado da respectiva sentença, o direito à pensão de sobrevivência é devido a partir do início do mês seguinte ao do falecimento do beneficiário.

Nestes termos, não relevando as conclusões da apelação, o recurso não pode proceder, sendo de manter a decisão recorrida, ainda que com diferente fundamentação.

2.5. A apelante goza da isenção do pagamento das custas, por efeito do disposto na alínea a) do n.º 1 do art. 2.º do Código das Custas Judiciais, aprovado pelo DL n.º 224-A/96, de 26 de Novembro.
Ao patrono nomeado à apelada são devidos os honorários fixados na Portaria n.º 1386/2004, de 10 de Novembro.

III. DECISÃO
Pelo exposto, decide-se:
1) Negar provimento ao recurso, confirmando a sentença recorrida.
2) Atribuir ao patrono da Autora os honorários fixados na Portaria n.º 1386/2004, de 4 de Novembro.
Lisboa, 8 de Novembro de 2007

(Olindo dos Santos Geraldes)
(Fátima Galante)
(Ferreira Lopes)