ASSEMBLEIA DE CONDÓMINOS
DELIBERAÇÃO SOCIAL
NULIDADE
Sumário

I - A deliberação da assembleia de condóminos que autoriza a abertura de um restaurante numa fracção autónoma que, nos termos do título constitutivo da propriedade horizontal, está destinada a comércio é nula por violar o disposto na alínea c) do nº 2 do artigo 1422º do Cód. Civ..
II - A deliberação que contraria o Regulamento do Condomínio em vigor é anulável.
(M.G.A)

Texto Integral

Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa:

M e marido, I, R e mulher, A e V e marido, N, intentaram acção declarativa de condenação com processo comum e forma ordinária contra A, S.A., H, S.A. e G, representadas judiciariamente pela administradora do condomínio do prédio sito nos nº da Rua do Carmo, em Lisboa, T, Lda.. Alegaram, em síntese, que: os autores e as rés são os condóminos do prédio urbano constituído em propriedade horizontal sito na Rua do Carmo, em Lisboa; nos dias 9 e 30 de Março de 1995 foi aprovado em assembleia geral um Regulamento do Condomínio, que contemplava, nomeadamente, normas sobre a repartição das despesas e encargos do prédio pelos condóminos; nos dias 17.2.04, 5.7.04 e 22.7.04, reuniu a assembleia geral ordinária de condóminos, tendo a administradora do condomínio considerado aprovado o orçamento que apresentara para o ano de 2004, o modo de distribuição da respectiva despesa pelos condóminos, a ser feito de acordo com a permilagem e a alteração do uso da fracção “C”; tais deliberações são anuláveis, porquanto a acta que delas dá conta não contém a indicação dos condóminos presentes, não indica a qualidade e poderes de intervenção da pessoa que votou pela ré e condómina A, não está assinada pelos presentes e por quem presidiu à reunião; a deliberação de aprovação do orçamento é anulável porque, de facto, apenas foram aprovadas as despesas de administração e de consumo de água; a deliberação de aprovação da repartição das despesas e encargos do prédio de acordo com a permilagem é anulável por contrariar o disposto nos nº 2 e 3 do artigo 1424º do Cód. Civ. e o Regulamento do Condomínio, pois que há despesas que respeitam apenas às lojas e aos escritórios e outras que concernem só às habitações; a deliberação de aprovação da alteração do uso da fracção “C” é nula e de nenhum efeito, por não foi tomada por unanimidade; o uso que a ré A faz da maioria dos votos necessários para aprovar quaisquer deliberações é contrário à boa fé, porque prejudica os condóminos das habitações em benefício dos condóminos das lojas e dos escritórios. Concluíram os autores pedindo que sejam declaradas nulas e de nenhum efeito as três referidas deliberações.
Intitulando-se ré, contestou a T. Excepcionou, em primeiro lugar, a sua falta de personalidade judiciária e a sua ilegitimidade passiva, alegando que, se enquanto administradora do condomínio tem capacidade judiciária e de representação daquele, já lhe falta personalidade judiciária; mas só tem capacidade judiciária e de representação do condomínio, não a tendo relativamente às rés – aliás, não citadas – que são meros condóminos. Excepcionou, em segundo lugar, a “prescrição/caducidade” das deliberações tomadas nas reuniões da assembleia geral de 17.2.04 e 5.7.04, por terem decorrido já os 60 dias previstos no nº 4 do artigo 1433º do Cód. Civ.. Invocou, ainda, que: o orçamento para 2004 fora, efectivamente, aprovado, nunca tendo os autores questionado as respectivas verbas, mas tão só o modo da sua repartição pelos condóminos; o Regulamento do Condomínio também diz que a alteração da repartição dos encargos deve ser deliberada em assembleia pelo menos por dois terços do número de condóminos, tendo sido o que ocorreu quando se deliberou a repartição de acordo com a permilagem; a fracção “C” está destinada a comércio, em que se compreende a restauração, não tendo sido deliberada qualquer alteração do uso da fracção; apenas se colocou a questão à consideração dos condóminos por razões de natureza estética, se segurança e/ou salubridade; os poderes para representar um condómino em assembleia não têm de constar da acta, mas apenas da procuração que é entregue à administração e fica arquivada nas pastas do Condomínio; as procurações que as rés A e H passaram ao seu representante na assembleia existem, o mesmo sucedendo com a lista de presenças devidamente assinada. Concluiu a T pela sua absolvição da instância ou, assim não se entendendo, do pedido.
Os autores replicaram, pugnando pela improcedência das excepções deduzidas.
No despacho saneador, o Sr. Juiz considerou não se verificar a excepção de ilegitimidade passiva, pois a acção foi instaurada contra a administração do condomínio. Relegando para final o conhecimento da excepção peremptória de caducidade, o Sr. Juiz procedeu à condensação do processo.
Realizada audiência de discussão e julgamento, foi proferida sentença que declarou nulas as deliberações relativas ao critério de repartição das despesas comuns e à alteração do destino da fracção “C”, condenando as rés, representadas pela administradora do condomínio a reconhecerem aquela declaração.

De tal sentença recorreu a T, formulando as seguintes conclusões:
a) O direito de propor acção para anulação das decisões tomadas nas assembleias realizadas nos dias 17 de Fevereiro e 5 de Julho de 2004 caducou por decurso dos 60 dias, a que se refere o art° 1433°, n° 4 do C.C.;
b) Sendo que, no dia 17 de Fevereiro de 2004, foram aprovadas as contas de 2003;
c) E no dia 5 de Julho de 2004, as rubricas da Administração e da Epal, apenas ficando por decidir a forma de distribuição desta rubrica e demais do orçamento;
d) Como tal, atendendo ao facto de a acção ter sido proposta no dia 15 de Setembro de 2004, é manifesta a sua caducidade, no que compete às deliberações tomadas nestas duas assembleias;
e) Sendo que o Meritíssimo Juiz do Tribunal "a quo", a fls. 389 a 391 dos autos, até deu como provados os quesitos 1° a 6° da BI, constantes de fls. 313, os quais respeitam, precisamente, à matéria supra mencionada;
f) Regista-se, assim, manifesta desconformidade entre a matéria dada como provada e a que consta da decisão ora recorrida, quer no que tange à excepção de caducidade deduzida pelos Apelantes, quer quanto à demais matéria de impugnação;
g) Diz o Meritíssimo Juiz do Tribunal recorrido ter baseado a sua decisão no art° 9° do Regulamento, de fls. 371, mas depois não o aplica à presente situação. Pois,
h) Refere o mesmo, no seu n° 2, "A repartição dos encargos referida na alínea anterior será feita por centro de contas, englobando, cada centro, as despesas respeitantes a um grupo de fracções autónomas que devam suportar os mesmos encargos".
i) E o n° 3 acrescenta: "A repartição dos encargos poderá ser alterada, quando houver razões justificativas e assim for deliberado em assembleia, pelo menos por dois terços do número mínimo de condóminos";
j) Todavia, o Juiz do Tribunal recorrido ignorou este último preceito e julgou ilegal a deliberação de alteração do critério de repartição de custos, fruto de discussão ao longo das três sessões da assembleia, nas quais foram apresentadas várias propostas e contrapropostas por parte de todos os condóminos, incluindo dos próprios Autores, ora Apelados, que foram os primeiros a propor a sua alteração (vidé docs 5, 9 e 10 juntos à P.I.);
l) Os quais só reagiram após votarem vencidos, apresentando a acção de cuja decisão ora se recorre;
m) Pois, até lá, a administração sempre aplicou o disposto no n° 2 do Regulamento, ou seja, distribuição das despesas por centro de custos;
n) Todavia, atendendo ao facto de o n° 3 do art° 9° do Regulamento permitir a alteração do critério de repartição de encargos, à circunstância de todos os condóminos manifestarem essa mesma pretensão e apresentarem as suas razões justificativas e ao facto de os mesmos terem pedido a suspensão da assembleia para o efeito, a administração pôs, assim, à discussão e votação todas as propostas que foram sendo apresentadas nas várias sessões;
o) Acautelando-se, contudo, em verificar que as deliberações reuniam, pelo menos, os dois terços de votos, de acordo com o Regulamento, que foi, de resto, o que sucedeu na última sessão da assembleia de condomínio de 22-07-2004, na qual foi proposta a substituição do critério existente pelo de repartição das despesas por permilagem, sem quaisquer centros de custos;
p) O que foi aprovado por 723%0 de permilagem ou capital total do prédio, com os votos contra dos ora Apelados, representativos de 247%0;
q) Donde não se entende a razão de ser da decisão proferida nestes autos, a qual declarou ilegal e, por consequência, nula a deliberação de alteração de critério de repartição de encargos, a qual foi tomada de acordo com o disposto no n° 3 do art° 9° do Regulamento do prédio;
r) A vontade colectiva a que o Meritíssimo Juiz do Tribunal recorrido foi, assim, afastada, mas pelo quorum exigido para o efeito, nada tendo de ilegal tal deliberação;
s) Matéria esta que, aliás, foi dada como provada na resposta aos quesitos n°s 16, 17 e 18 da BI;
t) A outra questão em apreço nesta acção respeita à aludida alteração do uso da fracção, designada pela letra "C", a qual o Meritíssimo Juiz considerou, também, ilegal;
u) Sucede, porém, que não foi alterado qualquer uso ou finalidade a que a referida fracção se destina;
v) Mas tão-só exposta à assembleia a pretensão de que o proprietário daquela fracção o visava fazer;
x) Conforme consta, aliás, dos factos provados sob os quesitos n°s 19 e 20 da BI;
z) Mais afirma a sentença ora recorrida: "Foi alterado o seu uso na sua finalidade. Tal situação careceria de autorização de 2/3 do valor total do prédio e tal ponto, antes de mais, teria e deveria ter constado da ordem de trabalhos, o que, verdadeiramente, não aconteceu, como dimana do item XII - de "Os factos" - art°s 1422° n° 2 alínea c) e 1432° do Código Civil”;
aa) Acontece que, como já se disse, não há qualquer ilegalidade na deliberação sub judice: primeiro, porque no título constitutivo (doc. 4 junto à p.i.) apenas consta que a fracção "C" se destina a comércio, não a restringindo a qualquer tipo de uso específico, como é o caso da restauração, actividade que é, também, ela comercial; segundo, porque, mesmo que se tratasse de uma alteração, efectiva, ao uso do fim a que se destina a fracção, sempre estaria aprovada por uma maioria representativa de dois terços do valor total do prédio;
bb) Dois terços corresponde a 666,66%0 e os votos concordantes pela abertura da loja "C" ao ramo da restauração foram de 723%0;
cc) Estando, assim, cumprido o quorum deliberativo exigido no art° 1422°, n° 4 do C.C.;
dd) Lavrando de lapso, manifesto, os fundamentos de facto e de direito aduzidos pelo Meritíssimo Juiz do Tribunal "a quo", bem assim a decisão de fls, de que ora se recorre, as quais, como já se pugnou, justificou e provou foram tomadas com a devida legalidade, com o quorum exigido, de acordo com o Regulamento do condomínio e com a lei.
Os autores contra-alegaram, considerando que a decisão recorrido deve ser mantida.

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São os seguintes os factos que a 1ª instância deu como provados:
1. M e M T são donos da fracção designada pela letra “T”, correspondente ao lado direito do piso 6, do prédio urbano constituído em regime de propriedade horizontal, sito na Rua do Carmo, da freguesia do Sacramento, concelho de Lisboa, descrito na 5ª Conservatória do Registo Predial de Lisboa sob a ficha nº da freguesia do Sacramento e inscrito na matriz urbana sob o artigo 186º.
2. E I é dona da fracção daquele mesmo prédio designada pela letra “U”, correspondente ao lado esquerdo do piso 6.
3. E R e A são donos da fracção “V”, correspondente ao lado direito do piso 7.
4. E V e N são donos da fracção “X”, correspondente ao lado esquerdo DUPLEX dos pisos 7 e 8.
5. Tais fracções destinam-se a habitação.
6. A, S.A. é dona das fracções autónomas designadas pelas letras “A”, “B”, “C”, “E”, “F”, “I” e “J” daquele prédio e comproprietária, em partes iguais com H, S.A. das fracções designadas pelas letras “D”, “G”, “H”, “L”, “M”, “O”, “P”, “Q”, “R” e “S”.
7. A escritura de constituição em regime de propriedade horizontal do prédio referido em 1. foi lavrada em 26-10-1994, no 10º Cartório Notarial de Lisboa, a fls. 5 verso do Livro 71-I
8. Tal prédio é constituído por 22 fracções autónomas, estando 4 delas destinadas a habitação (as pertencentes aos autores), 10 destinadas a comércio e 8 a escritórios.
9. As fracções têm as seguintes permilagens: A-35%; B-35%; C-38%; D-35%; E-69%; F-49%; G-44%; H-75%; I-64%; J-49%; L-22%; M-30%; N-30%; O-44%; P-30%; Q-30%; R-30%; S-44%; T-54%; U-59%; V-55%; e X-79%.
10. Do título constitutivo da propriedade horizontal não consta nenhuma regra relativa à repartição de despesas por condóminos.
11. No dia 17-2-2004, teve lugar assembleia geral de condóminos do edifício mencionado.
12. E que foi convocada pela T, Lda., com o seguinte ponto da ordem de trabalhos: “Aprovação do orçamento para o ano de 2004”.
13. Tal orçamento foi organizado pela T, nos termos de fls. 64 a 67.
14. Da acta relativa à assembleia geral aludida, cuja cópia consta a fls. 57 a 62, nada consta relativamente a presenças.
15. Nessa assembleia encontravam-se fisicamente presentes: M, da T, e a advogada, Dra. C; pela ré A, o Dr. S, contabilista das rés; a autora M, por si e em representação da autora I; a ré G; e a autora V.
16. Tal assembleia geral foi retomada em 5-7-2004, consoante consta de cópia da acta de fls. 73 a 76.
17. E nessa data estiveram presentes: M, das rés; S; a autora M; o autor M; e a autora V.
18. Essa assembleia foi retomada no dia 22-7-2004.
19. Por deliberação tomada na assembleia geral de condomínio do mesmo prédio verificada no dia 9-3-1995, foi aprovado por unanimidade dos votos do capital investido o respectivo Regulamento do Condomínio para o prédio em questão, consoante as actas das assembleias relativas dos dias 9 e 30 de Março de 1995, cujas cópias se acham juntas a fls. 86 a 100.
20. Tal Regulamento nenhumas alterações sofreu até ao presente.
21. O artigo 9º desse Regulamento prevê que:
“1. As despesas necessárias à limpeza, conservação e fruição das partes comuns e ao pagamento de encargos com o pessoal e serviços de interesse comum são repartidas pelos condóminos segundo as permilagens dos valores das suas fracções autónomas relativamente ao valor global do edifício.
2. A repartição de encargos referida na alínea anterior será feita por centro de contas, englobando, cada centro, as despesas respeitantes a um dado grupo de fracções autónomas que devam suportar os mesmos encargos.
3. A repartição dos encargos poderá ser alterada, quando houver razões justificativas e assim for deliberado em Assembleia, pelo menos por dois terços do número de condóminos.”.
22. A presente acção deu entrada na Secretaria Geral das Varas/Juízos Cíveis e de Pequena Instância Criminal de Lisboa no dia 20 de Setembro de 2004, tendo a petição inicial sido expedida pelo correio, cujo carimbo tem a data de 15-9-2004.
23. Em 17-2-2004, foram aprovadas verbas relativas às despesas com “administração do condomínio”, com os votos favoráveis da ré A e a abstenção dos condóminos das fracções 6º-A; 6ºB, 7ºA e 4ºC e foram aprovadas as despesas com EPAL por unanimidade.
24. Nessa assembleia, não foi aprovado o modo como se dividiam as despesas da EPAL.
25. E registou-se falta de consenso no tocante à distribuição de quotas de participação nas despesas a atribuir aos condóminos, quando se pretendia definir o modo de distribuição das despesas com a EDP e outras relativas ao orçamento de 2004.
26. A assembleia terminou sem votação do orçamento de 2004, suspendendo-se sem dia marcado.
27. Na reunião de 5-7-04, o orçamento de 2004 não foi posto à votação, nem foi aprovado qualquer método de distribuição de despesas pelos condóminos.
28. Da respectiva acta não constam as presenças.
29. A acta da assembleia de condóminos de 22-7-2004 inscreve e consigna o conteúdo de intervenções efectuadas pela Sra. D. M (T); Sras. Dra. C, V e Dr. M, estando, pela ré A, o Sr. Arquitecto H.
30. Foi aprovada a proposta deste Sr. Arquitecto no sentido de distribuir “o orçamento em razão das permilagens sem criar quaisquer centros de custos para lojas, escritórios e habitações”, com os votos favoráveis da ré A, titular de 723% em representação das fracções de escritórios e lojas, e os votos contra dos representantes das habitações (247%).
31. A acta relativa à assembleia de condóminos realizada no dia 5-7-2004 regista que: “No âmbito dos outros assuntos de interesse geral a D. M apresentou à assembleia a pretensão que o condómino da loja 3 tem em abrir um restaurante de pequenas refeições de comida natural, matéria que colocou à votação, votando a favor o representante das fracções não habitacionais, com a permilagem de 723% (setecentos e vinte e três, por mil) e contra os referidos condóminos de habitação, com a permilagem de 247% (duzentos e quarenta e sete, por mil), fazendo estes a seguinte declaração de voto ditada pela Srª Drª C: “Opomo-nos a qualquer alteração da finalidade da utilização das fracções presentemente prevista no título de propriedade horizontal”.
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A primeira questão a tratar respeita à caducidade do direito dos autores de impugnar as deliberações da assembleia geral de condóminos tomadas nos dias 7.2.04 e 5.7.04 e relativas (só estas constituindo objecto do recurso) à aprovação das contas de 2003 e à aprovação das rubricas do orçamento para 2004 respeitantes às despesas com a administração e a EPAL.
Isto porque a acção entrou em juízo no dia 15.9.04, decorridos mais de 60 dias sobre as datas em que as deliberações foram tomadas, ultrapassando o prazo de caducidade previsto no nº 4 do artigo 1433º do Cód. Civ..
Mas sem razão.

A deliberação de aprovação das contas de 2003 – com os votos favoráveis da ré A e os votos contra das 1ª, 2ª e 4ª autoras – não foi objecto de impugnação pelos autores (ao menos na presente acção), pelo que não se coloca a questão da caducidade do respectivo direito.
A “deliberação” de aprovação das despesas com a administração e a EPAL, orçamentadas para 2004, não tem autonomia perante a deliberação de aprovação do orçamento para 2004.
Com efeito, a proposta de orçamento apresentada pela T na reunião da assembleia geral de 17.2.04 (e que acompanhou as convocatórias para essa assembleia) é um documento único, embora pudesse naturalmente vir a ser objecto de alteração, nomeadamente decorrente da discussão em assembleia. Mas a aprovação ou rejeição só faz sentido perante um orçamento e não perante despesas isoladamente consideradas, que não reflectem os encargos globais do condomínio que é necessário levar em conta na repartição pelos condóminos, assim se fixando o valor da prestação de cada um. Por outro lado, compreende-se que na acta relativa à sessão da assembleia geral de 17.2.04 se tenha reflectido a aprovação daquelas despesas parcelares: é que, tendo a discussão do orçamento sido feita por rubricas (o que se afigura adequado) e não tendo a discussão terminado nessa sessão (pois que a assembleia foi suspensa e adiada a sua continuação a fim de permitir a obtenção de determinados elementos e a elaboração de dadas propostas), mostrava-se de toda a conveniência deixar expressos os aspectos que já tinham sido ponderados e aqueles que continuavam a ser discutidos, até para evitar que, na sessão seguinte, se voltassem a tratar aspectos já debatidos. Aliás, a referida assembleia destinava-se – como constava do ponto 2 da ordem de trabalhos e se prevê no nº 1 do artigo 1431º do Cód. Civ. – à aprovação do orçamento para 2004 e não à aprovação de quaisquer concretas despesas que, como se disse já, não têm relevo individualmente consideradas.
Assim sendo, nesta matéria, a deliberação a impugnar – e efectivamente impugnada – só pode ser a que aprovou um dado orçamento, no seu conjunto, entendido como um instrumento em que se prevêem receitas e despesas. Ora, tal deliberação só foi tomada na sessão da assembleia geral de 22.7.04.
Tendo a presente acção sido proposta em 15.9.04, não caducou o direito de os autores a impugnarem.

Importa, em segundo lugar, analisar se as deliberações impugnadas padecem de algum vício e, em caso afirmativo, qual. E para tanto há que distinguir a deliberação de 5.7.04, por um lado, e as deliberações de 22.7.04, por outro.

Relativamente à primeira dessas deliberações, os autores invocavam que a mesma não fazia parte da ordem de trabalhos da assembleia e que não podia ser tomada sem a unanimidade dos condóminos, por se tratar de alteração ao título constitutivo da propriedade horizontal e nos termos do artigo 1419º do Cód. Civ.. Na sentença, o Sr. Juiz considerou que converter a finalidade da fracção “C” – destinada no título de constituição da propriedade horizontal a comércio – para restauração era ilegal, porque violava o disposto nos artigos 1419º e 1422º nº 4 do Cód. Civ.; e que, carecendo a alteração da finalidade da fracção de autorização de 2/3 do valor total do prédio, o assunto não fizera parte da ordem de trabalhos constante da convocatória para a assembleia geral.
Nas suas alegações, a T sustenta que: não foi alterado o uso ou finalidade da fracção “C”, pois que apenas foi exposta à assembleia a pretensão de que o proprietário daquela fracção o visava fazer; aliás, a actividade de restauração é uma actividade comercial; mas, mesmo que a deliberação se traduzisse numa alteração à finalidade da fracção, ela estaria legitimada pela aprovação por mais de 2/3 dos votos, como impõe o nº 4 do artigo 1422º do Cód. Civ..
Como resulta do ponto 31. da matéria de facto, e ao contrário do que sustenta a T a pretensão do condómino da loja 3 (que corresponde à fracção “C”, pertencente à ré A) de abrir um restaurante de pequenas refeições de comida natural não foi apenas exposta à assembleia; a pretensão foi submetida à votação da assembleia, tendo recebido votos a favor em percentagem superior a 2/3.
Entendemos, porém, que a deliberação tomada – nos termos em que foi retratada na acta e desconhecendo se houve discussão sobre esse ponto que clarificasse a intenção com que a referida pretensão foi levada à assembleia, não obstante a declaração de voto da 1ª autora – não pode ser entendida, por escassez de elementos que permitam interpretação com tal alcance, como uma alteração à finalidade da loja 3 constante do título constitutivo da propriedade horizontal. Aliás, se fosse esse o significado da deliberação, padeceria a mesma de nulidade, por vício de forma, pois que a alteração só por escritura pública poderia ser feita (artigos 1419º nº 1 e 220º do Cód. Civ.); a que acresceria o vício consistente na ausência de unanimidade para a alteração, pois que o nº 4 do artigo 1422º do Cód. Civ. só tem aplicação quando o título constitutivo da propriedade horizontal não disponha sobre a finalidade da fracção, o que não é o caso.
O sentido que se nos afigura passível de ser retirado de tal deliberação é que foi autorizada a abertura de um restaurante de pequenas refeições de comida natural na loja 3. Ou seja, em causa está apenas o uso que o proprietário da fracção “C” lhe pretende dar.
Saber se tal autorização/uso violam a proibição prevista na alínea c) do nº 2 do artigo 1422º do Cód. Civ. equivale, in casu, a saber se na expressão “comércio” constante do título constitutivo da propriedade horizontal se compreende a actividade de restauração.
E esta questão há-de merecer resposta negativa, como cabalmente se justifica no Ac. RL de 30.1.07, in http://www.dgsi.pt.JTRL Proc. nº 7344/2006-1, em que se cita, nomeadamente, diversa jurisprudência, e para o qual remetemos. É que a interpretação do título constitutivo da propriedade horizontal no que respeita ao destino das respectivas fracções autónomas – no caso, o comércio - deve fazer-se por apelo ao significado corrente da expressão e a um critério económico, que é o de intermediação nas trocas. Já a noção de indústria apela a uma ideia de produção e transformação de bens, ideia que se encontra presente na actividade de restauração, que implica a confecção de alimentos através da preparação culinária de produtos comestíveis de origem animal ou vegetal.
A instalação de um restaurante – ainda que para servir pequenas refeições de comida natural – na loja 3, que o título constitutivo da propriedade horizontal destina a comércio, viola, pois, a alínea c) do nº 2 do artigo 1422º do Cód. Civ.
E o mesmo sucede com a deliberação que a autoriza, violadora de norma imperativa - que os condóminos não podem arredar senão pela via da alteração do título constitutivo da propriedade horizontal (nos termos do disposto no artigo 1419º do Cód. Civ.) – como decorre da exigência de uma maioria qualificada para autorizar a alteração do uso de uma fracção autónoma no caso de não constar do título o destino da fracção (artigo 1422º nº 4 do Cód. Civ.).
A deliberação em causa é, consequentemente, nula (artigos 280º e 294º do Cód. Civ.) – cfr. Sandra Passinhas, A Assembleia de Condóminos e o Administrador na Propriedade Horizontal, Almedina, Coimbra, 2002:253.

Relativamente às deliberações de 22.7.04 (a deliberação “implícita”, no dizer dos autores, que aprovara o orçamento para 2004 e a deliberação que aprovara que tal orçamento fosse repartido pelos condóminos em razão da permilagem de cada um), os autores pediam que as mesmas fossem anuladas porquanto: para além das despesas de administração e água, as demais despesas não foram discutidas nas reuniões; no que se refere à repartição dos encargos pelos condóminos, foi desrespeitado o Regulamento do Condomínio; da acta da reunião não constam as presenças; e tal documento não está assinado pelos presentes e por quem presidiu à sessão. Na sentença, o Sr. Juiz considerou que não se verificava qualquer irregularidade quanto às actas, não apreciou a circunstância de não terem sido discutidas várias das despesas orçamentadas, nada disse quanto à referida deliberação “implícita, mas considerou que a deliberação que repartiu as despesas comuns de acordo com o critério da permilagem violava o Regulamento do Condomínio e, por isso, a declarou nula.
Nas suas alegações, a T defende a legalidade de tal deliberação, pois que a mesma foi tomada por mais de 2/3 dos votos, ao abrigo do disposto no nº 3 do artigo 9º do Regulamento do Condomínio.
Interpretados isoladamente, os nº 1 e 2 do artigo 9º do Regulamento do Condomínio apresentam-se de difícil conciliação. É que a regra de que as despesas necessárias à limpeza, conservação e fruição das partes comuns e ao pagamento dos encargos com o pessoal e serviços de interesse comum são repartidas por “centros de contas” (englobando cada centro as despesas respeitantes a um dado grupo de fracções autónomas que devam suportar os respectivos encargos) não permitiria aplicar, dentro de cada centro, o critério da permilagem, pois que esse grupo de fracções não cobriria a totalidade do edifício. E, ao invés, a repartição de todas as despesas e encargos estritamente de acordo com a permilagem não permitiria a subsequente repartição por centro de contas. Afigura-se, assim, que a interpretação daquelas cláusulas deve ser procurada através de um critério sistemático que a ambas configura sentido e exequibilidade prática. Cremos, pois, que a regra instituída pelo Regulamento do Condomínio é a de que as despesas necessárias à limpeza, conservação e fruição das partes comuns e ao pagamento dos encargos com o pessoal e serviços de interesse comum são repartidas por “centros de contas” (englobando cada centro as despesas respeitantes a um dado grupo de fracções autónomas que devam suportar os respectivos encargos) e, dentro de cada centro, são repartidas pelo respectivo grupo de condóminos através de critério proporcional ao da permilagem de cada fracção.
A implementação de tal regra, julga-se, levou a T a elaborar a proposta de orçamento para 2004 que consta de fls. 64 a 67 (vd. ponto 13. da matéria de facto) e constituiu a base do orçamento aprovado para o ano anterior, que os próprios autores juntaram e consta a fls. 101-102. Da sua análise pode perceber-se terem sido contemplados quatro centros de contas: um correspondente a todas as fracções autónomas (que englobava a totalidade das despesas com a administração, água, material eléctrico, extintores, responsabilidade civil, seguro do imóvel e despesas gerais e fundo de maneio); outro atinente aos escritórios e habitações (que compreendia parte das despesas com electricidade, limpeza e elevadores); outro respeitante aos escritórios e galerias (que englobava as despesas com portaria e acidentes de trabalho); e um último correspondente às galerias (que incluía parte das despesas com electricidade e limpeza, de valor, aliás, muito superior às despesas com tais itens imputadas ao centro de contas 2). Acompanhava a proposta de orçamento para 2004 o valor que cada condómino teria de pagar mensalmente. Embora não tenha sido clarificado o cálculo desses valores (em ordem a concluir que teria sido integralmente respeitado o Regulamento do Condomínio na interpretação que acima perfilhámos dos nº 1 e 2 do respectivo artigo 9º), é patente que o valor a pagar por cada uma das fracções habitacionais é inferior ao que resultaria da simples aplicação do critério da permilagem à totalidade das despesas do condomínio, sendo superior o valor a pagar pelas lojas.
Sucede que tal proposta veio a ser rejeitada por unanimidade na sessão da assembleia geral de 22.7.04, após anterior rejeição de uma proposta da 4ª autora, de duas propostas do 1º autor e de uma proposta da 1ª autora. Foi, então, aprovada a proposta a que alude o ponto 30. da matéria de facto, por maioria superior a 2/3.
Tal deliberação desrespeitou, porém, o estipulado no Regulamento de Condomínio, pois que a totalidade das despesas orçamentadas foi repartida pelos condóminos sem se atentar a quaisquer centros de contas, ou seja, única e exclusivamente, em função da permilagem da fracção de cada um.
No caso, é irrelevante que a deliberação tenha sido tomada por uma maioria superior a 2/3. Com efeito, o que se prevê no nº 3 do artigo 9º do Regulamento do Condomínio é que o critério de repartição dos encargos definido nos nº 1 e 2 do mesmo artigo pode ser alterado quando houver razões justificativas e tal for deliberado pela assembleia pelo menos por 2/3 do número de condóminos, ou seja, prevê-se a possibilidade de alterar o próprio Regulamento do Condomínio em matéria de repartição de encargos. Realidade diversa é deliberar para um ano concreto uma repartição de encargos diferente da prevista no Regulamento do Condomínio, sem previamente se proceder à alteração deste, que, em consequência, se mantém em vigor.
Por outro lado, também as razões justificativas (que nem sequer foram expressas) que se podem aduzir para alterar regras – gerais e abstractas - de repartição de encargos não são necessariamente as mesmas que podem presidir a uma concreta deliberação, num contexto em que intervêm certos condóminos, com permilagens e interesses diferentes, e num quadro de determinadas despesas.
A deliberação em causa merecia, pois, ser anulada nos termos do nº 1 do artigo 1433º do Cód. Civ..
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Por todo o exposto, acordamos em julgar improcedente a apelação, mantendo, consequentemente, a decisão recorrida.
Custas pelas apelantes/rés.

Lisboa, 15 de Novembro de 2007
Maria da Graça Araújo

José Eduardo Sapateiro

Carlos Valverde