ALIMENTOS DEVIDOS A MENORES
MENORIDADE
Sumário

O Fundo de Garantia de Alimentos Devidos a Menores garante, nos termos da lei face ao incumprimento, não apenas as prestações vincendas após notificação do Tribunal mas ainda as prestações vencidas, não se mostrando afastada a regra constante do artigo 2006.º do Código Civil nem pela Lei n.º 75/98, de 19 de Novembro nem pelo Decreto-Lei n.º 164/99, de 13 de Maio

(SC)

Texto Integral

ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA


I - Relatório:

1. V. […] mãe do menor R. […] veio dar conta ao Tribunal “a quo” que o pai do menor não tem cumprido com o pagamento mensal da prestação de alimentos a que ficou obrigado, no valor de 150,00 Euros, mostrando-se em dívida as prestações correspondentes ao ano de 2006 e segs. 

2. Após a efectivação das respectivas diligências no âmbito destes autos, e a comprovação de que o pai do menor se encontra impossibilitado de proceder ao pagamento da pensão em dívida, o Tribunal “a quo” exarou sentença condenando o Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social, IP, nos seguintes termos:

- “a pagar ao menor, mensalmente, a título de alimentos, a prestação de 150,00 Euros, a qual deve ser actualizada anualmente de acordo com os índices de inflação, enquanto se mantiverem os pressupostos subjacentes à sua atribuição”.

Mais decidiu que a prestação é devida desde a data de entrada em juízo da presente acção: Maio de 2006.  

3. Inconformado, o Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social Agravou, tendo formulado, em síntese, as seguintes conclusões:

1. A decisão recorrida determina que o FGADM preste ao menor alimentos desde Maio de 2006, e condena-o a assegurar o pagamento de um débito acumulado pelo progenitor.
2. Porém, tal entendimento não tem suporte legal porquanto é diferente a natureza das obrigações.
3. Não há qualquer semelhança entre a razão de ser das duas prestações em causa, pelo que não pode proceder-se à aplicação analógica do regime do artigo 2006.° do CC, dada a diversa natureza das prestações.
4. Decorre do n.º 5, do art. 4.°, do DL nº 164/99, uma delimitação temporal expressa, segundo a qual "o centro regional de segurança social inicia o pagamento das prestações,
Caixa de texto: 6 por conta do Instituto, no mês seguinte ao da notificação da decisão do tribunal.".
5. Sendo certo que o legislador não desconhecia o art. 2006.° do CC, é forçoso concluir que pretendeu com aquela norma determinar o momento em que a obrigação se constitui para o Instituto.
6. Mais, a ratio legis dos diplomas que regulam o Instituto de Garantia de Alimentos Devidos a Menores - FGADM, é a de suprir necessidades de alimentos actuais dos menores.
7. É também este o motivo pelo qual "O montante fixado pelo Tribunal perdura enquanto se verificarem as circunstâncias subjacentes à sua concessão (…)", e "Compete a quem receber a prestação a renovação anual da prova".
8. E tanto assim é que, "se for considerada justificada e urgente a pretensão do requerente", o juiz pode estabelecer uma prestação de alimentos provisória "após diligências de prova", cf. o n.º 2, do art. 3º, da Lei n.º 75/98, acautelando-se, deste modo, a situação do menor face a uma possível demora na tramitação do incidente.
9. Acresce que a prestação não tem um carácter incondicional: depende da existência e da manutenção dos pressupostos exigidos por lei para a sua atribuição.
10. Ora, somente após a sentença judicial é que os mesmos se encontram preenchidos, pelo que, só a partir da data da mesma se constitui para o Instituto a obrigação de prestar alimentos.
11.
Caixa de texto: 7Não existe, portanto, uma transferência pura e simples para o Instituto da obrigação que recai sobre o obrigado a alimentos, que não se extingue.
12. Assim, deve ser dado provimento ao presente recurso, revogando-se a decisão recorrida e proferindo-se nova decisão que defina que a obrigação de prestar alimentos ao menor se constitui para o FGADM só a partir do mês seguinte ao da notificação da decisão do Tribunal.

                               
4. Foram apresentadas contra-alegações pelo MP, pugnando em sentido diverso do expendido pelo Apelante e em concordância com a sentença proferida.

5. Corridos os Vistos legais,
Cumpre Apreciar e Decidir.


II - Enquadramento Fáctico:

- A matéria factual provada é a que resulta dos autos e que aqui se considera integralmente reproduzida, nos termos do preceituado no art. 713º, nº 6, do CPC, não se vislumbrando vantagens na sua reprodução, porquanto a questão a decidir é estritamente jurídica.


III - Enquadramento Jurídico:

1. A questão colocada pelo Instituto de Gestão Financeira é a de saber a partir de que data é que se mostra devida a obrigação de assegurar ao menor o pagamento de um débito acumulado pelo seu progenitor.

Mostra-se, pois, em discussão, a questão da fixação da data a partir da qual se deve iniciar o pagamento dos montantes em dívida pelo pai do menor a este, determinando se são ou não também devidos pelo Recorrente os montantes dos débitos acumulados e já vencidos.

Efectivamente, não se põe em causa que o progenitor do menor actualmente não possui condições económicas para satisfazer a respectiva pensão de alimentos. Tal como se mostra assente que, em face da impossibilidade económica daquele, cabe à Agravante assegurar o pagamento de tal pensão, no valor actualizado de 150,00 Euros mensais.

Porém, a partir de que data é que o deve fazer é o que se discute em sede de recurso.

Vejamos como solucionar o presente diferendo.

2. Como uma função social do Estado a Constituição da República Portuguesa consagra expressamente, no seu art. 69º, o direito das crianças à protecção, entendida tal norma programática como o dever do Estado de assegurar a garantia da dignidade da criança e, nessa medida, a sua formação e desenvolvimento integral num ambiente sadio, proporcionando-lhe, para o efeito, as condições mínimas de subsistência essenciais ao seu desenvolvimento e à prossecução de uma vida digna.

E o direito a alimentos constitui inequivocamente um direito que merece tutela, porquanto se traduz num pressuposto inerente ao próprio direito à vida, este com igual consagração constitucional.

Na sequência das normas internacionais de protecção à criança estabelecidas na Convenção sobre os Direitos da Criança, adoptada pela ONU em 1989, e assinada em 26 de Janeiro de 1990, e nas Recomendações do Conselho da Europa, em que se atribui especial relevância à consecução da prestação de alimentos a crianças e jovens até aos 18 anos de idade, também o Estado Português sentiu a necessidade de criar mecanismos legais, no ordenamento jurídico interno, tendentes a suprir as deficiências que se têm registado nesta área relativamente à satisfação da prestação de alimentos por parte daqueles a quem foi fixada a respectiva obrigação de os assegurar, e que, na prática, não procedem ao seu pagamento, privando a criança desse direito essencial a alimentos.

Foram sobretudo razões que radicam nas mutações profundas que têm vindo a registar-se a nível das estruturas familiares e sociais, com o desagregar da família tradicional e a alteração de padrões de comportamentos sociais, e o aumento de flagelos como o desemprego, as doenças e incapacidades prolongadas, as situações de toxicodependência, e o número elevado de maternidade e paternidade na própria adolescência, com o correspondente enfraquecimento no cumprimento dos deveres inerentes ao poder paternal, que determinaram que o Estado interviesse neste sector fundamental em que está em causa assegurar o desenvolvimento e crescimento da criança.

3. É pois, neste contexto, que o Estado aparece a garantir o pagamento das quantias em dívida sempre que o judicialmente obrigado a prestar os referidos alimentos não se encontre em condições sócio-económicas de poder satisfazer mensalmente as respectivas prestações de alimentos devidas ao menor.

E para prossecução deste objectivo criou o Fundo de Garantia dos Alimentos Devidos a Menores, gerido pelo Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social, nos termos do Decreto-Lei nº 164/99, de 13 de Maio.

Nos termos deste diploma, para intervenção do referido Fundo, e de acordo com o preceituado nos seus arts 2º e 3º, exigem-se os seguintes requisitos legais cumulativos:

- o não pagamento das quantias devidas pela pessoa judicialmente obrigada a prestar alimentos ao menor;
- e a falta de rendimentos líquidos superiores ao salário mínimo nacional por parte de quem está obrigado a esse pagamento. [1]

4. A propósito da natureza da obrigação aqui em causa há quem defenda que estamos perante “obrigações autónomas, independentes, apenas sucedendo que uma das razões para o nascimento da obrigação do Estado é a falta de cumprimento da referida obrigação”. [2]

E enquanto obrigações autónomas e distintas, assentariam, tais obrigações, em razões de índole diversa.

A do progenitor, deriva de uma obrigação natural, radicada na filiação biológica, de onde emergem os respectivos poderes-deveres em relação aos filhos, nos quais se integra o dever de assistência com a obrigação de prestar alimentos aos filhos menores e prover ao seu sustento (cf. arts. 1874º, 1878º, 1879º, todos do CC), ao passo que a intervenção do Estado se apresenta tão só norteada por factores de ordem social e constitucional de protecção à infância e de bem-estar da criança.

Pese embora essa derivação temos para nós que a obrigação a que o Fundo está vinculado tem carácter substantivo, nascendo no momento em que o Tribunal reconhece que o devedor deu início ao incumprimento, só se dissociando pelo cumprimento do dever legalmente imposto.

Tendo a obrigação do Fundo de Garantia de Alimentos Devidos a Menores uma função de garantia relativa à obrigação do progenitor faltoso em prestar alimentos ao menor a que o progenitor estava obrigado e não satisfez e que também não foi possível cobrar coercivamente.[3]

Quer isto dizer que a responsabilidade do Fundo pelo pagamento das prestações alimentares é residual, uma vez que é aos pais que cabe, em primeira linha, a satisfação desse encargo. Mas assume o papel de um verdadeiro garante, pois só quando tal se mostre inviável, devido a insuficiência económica ou ausência do obrigado a alimentos, é que o Estado, através desse Fundo, assume o pagamento dessas prestações.

Destarte, é possível concluir no sentido de que a prestação do Fundo não possui carácter autónomo mas sim o de substituir o devedor, procurando, por essa via, conforme já se referiu, o Estado garantir as necessidades prementes do menor.

5. Da análise do Decreto-Lei nº 164/99, de 13 de Maio, conexionado com a Lei nº 75/98, de 19 de Novembro, resulta evidenciado, conforme se salientou em ponto anterior, que a preocupação do legislador foi, indo de encontro a imperativos supranacionais de protecção às crianças e jovens menores, a de proporcionar-lhes os meios económicos para poderem desenvolver-se, tanto física, como intelectualmente, mas desde que  judicialmente reconhecidos e fixados.

Por sua vez estabelece o art. 1º da Lei nº 75/98, de 19/11, que “quando a pessoa judicialmente obrigada a prestar alimentos a menor residente em Portugal não satisfizer as quantias em dívida (...) e o alimentado não tenha rendimento líquido superior ao salário mínimo nacional nem beneficie nessa medida de rendimentos de outrem a cuja guarda se encontre, o Estado assegura as prestações previstas na presente lei até ao início do efectivo cumprimento da obrigação”.

Ora, da análise de ambos os diplomas não se vislumbra, em qualquer dos seus normativos, restrições impostas pelo legislador no sentido de só permitir que tal garantia, instituída com os objectivos visados, apenas abranja as prestações vincendas do obrigado relapso.

E contrariamente à opinião expendida pelo Recorrente, também não se vislumbra qualquer indicação limitativa das prestações consoante a sua data de vencimento. [4]

Donde, poder-se dizer que, o que desencadeia a aplicação do Dec. Lei nº 164/99 é sobretudo o facto de existirem prestações de alimentos vencidas e não pagas e insusceptíveis de serem realizadas coercivamente, devido às dificuldades económicas existentes no seio familiar do menor em causa.

E porque não se vislumbra no seu enquadramento legal nenhuma referência expressa à obrigatoriedade de as prestações só poderem ser as futuras e não já as vencidas e não pagas, entendemos que estas também são devidas.

6. Por outro lado, como se observa no Acórdão desta Relação de Lisboa supra citado, a seguir-se o entendimento do Recorrente, ficaria, em certa medida, na disponibilidade deste, a definição do momento em que seriam contabilizadas as prestações de alimentos em dívida: “bastaria para tal recorrer ou protelar com diversos expedientes processuais o momento do trânsito em julgado da sentença”.

Não se vê, pois, em que medida se poderá harmonizar uma tal concepção com o espírito e a letra do DL 164/99 que consagra uma prestação social dessa natureza, pois seria o mesmo que dizer que, durante o período de incumprimento, o menor não carecia de alimentos que lhe assegurassem a subsistência mínima, embora, simultânea e contraditoriamente, a intervenção do Fundo ocorra precisamente em face da situação de carência resultante desse incumprimento. [5]

7. Acresce que, em matéria geral de alimentos, preceitua o art. 2006º do CC que, estando os alimentos fixados pelo Tribunal ou por acordo, os alimentos serão devidos desde o momento em que o devedor se constituiu em mora, sem prejuízo do disposto no art. 2273º (ressalva relativa ao legado de prestação periódica de alimentos, aqui sem qualquer aplicação).

Sendo este o regime geral e, de resto, o único compreensível, não se vê a razão de o legislador da Lei nº 75/98 e do Dec. Lei nº 164/99 não ter estabelecido uma regra específica relativamente a só serem levadas em conta as prestações vincendas, se fosse esta a sua intenção.

Ora, se um dos critérios para assegurar a intervenção do Fundo de Garantia é o incumprimento do devedor dos alimentos, tal incumprimento, como é óbvio, só se pode aferir em relação às prestações já vencidas. Em relação às vincendas apenas se poderá fazer um juízo de probabilidade, assente no anterior incumprimento e na situação sócio-económica desse devedor.

Tão pouco se pode argumentar no sentido de que o disposto no art. 4º nº 5 desse Dec. Lei nº 164/99, pretende estabelecer tal especificidade. O que tal normativo consagra é a data do início do pagamento pelo Fundo das respectivas prestações, e não as prestações que tal pagamento envolverá.

Pelo exposto, se nega provimento ao presente Agravo.


IV – Em Conclusão:

1. Sempre que o devedor de alimentos não possa satisfazer as prestações de alimentos é o Estado, através do Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social, quem garante ao menor os alimentos devidos, cabendo o pagamento da respectiva pensão de alimentos ao Fundo de Garantia dos Alimentos Devidos a Menores.
2. Esta obrigação de garantia de alimentos por parte do Estado é norteada por factores de ordem social e constitucional de protecção à infância e de bem-estar da criança.
3. O referido Instituto, através do Fundo criado para esse efeito, deve assegurar o pagamento das prestações devidas ao menor já vencidas e não pagas pelo pai do menor.


V - Decisão:

- Termos em que se acorda em negar provimento ao presente Agravo e, em consequência, confirma-se a decisão recorrida.

- Sem Custas.

Lisboa, 15 de Novembro de 2007.


Ana Luísa de Passos Geraldes

    António  Manuel Valente

    Ilídio Sacarrão Martins

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[1] Cf. a este propósito o art. 189º do Decreto-Lei nº 314/78, de 27 de Outubro, e o art. 1º da Lei nº 75/98, de 19 de Novembro.
[2]  Cf., a este propósito e nesta parte, o Acórdão da Relação de Coimbra, de 26/06/2001 proferido no âmbito do Proc. de Agravo nº 1.386/01.
[3] Neste sentido, Acórdão da Relação de Lisboa, de 12/7/2001, in www.dgsi.pt., confirmado pelo Acórdão do STJ., de 31/1/2002 – Revista nº 41601 - 2ª.
[4] Neste sentido cf. Acórdão proferido no âmbito do Agravo nº 8.537/2007, desta Relação e Secção (Relator: António Valente).
[5] Ibidem, Acórdão citado que, nesta parte, aqui seguimos de perto.