TRÁFICO DE ESTUPEFACIENTE
CONSUMO MÉDIO INDIVIDUAL
Sumário

A interpretação mais acertada, após a entrada em vigor da Lei nº 30/00, de 29/11, é aquela que sustenta que a aquisição e a detenção para consumo de estupefacientes em quantidade que exceda a necessária ao consumo médio individual durante o período de dez dias se integra na previsão do disposto no artigo 21º do DL 15/93 (depois passível de conjugação com o artigo 25º).

Texto Integral


Acordam na 9.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa


1. – No Proc. de Instrução nº 421/06.5GEOER, do 2º Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Oeiras, o Ministério Público, não se conformando com o despacho que decidiu não pronunciar o arguido O. por entender que os factos por si praticados não integram um crime de tráfico de menor gravidade, previsto e punido pelo disposto no artigo 25° alínea a), por referência ao artigo 21º n.° 1 e à tabela 1-C do DL 15/93, vem interpor o presente recurso extraindo da respectiva motivação, as seguintes conclusões:
1. A circunstância de o arguido ser encontrado na posse de 7,754gr de cannabis e de 0,853gr de cocaína, independentemente do destino que lhes tinha reservado, integra a prática de um crime de tráfico de estupefaciente de menor gravidade, previsto e punido pela previsão conjunta dos artigos 21° n° 1 e 251 alínea a) e da Tabela 1-C do DL 15/93.
2. Ao descriminalizar a conduta do consumo de estupefaciente, por via da entrada em vigor da Lei 30/2000 e da revogação do artigo 40º do DL 15/93, não pretendeu o legislador deixar de censurar legalmente este tipo de comportamento, razão pela qual lhe conferiu com conteúdo sancionatório situado ao nível da contra-ordenação.
3. Admitindo como pressuposto básico do sistema a censurabilidade da conduta do consumo, actualmente mais ténue por mais vocacionada para a questão do tratamento do consumidor, quis o legislador, por força do estatuído no nº 2 do artigo 2º da Lei 30/2000, circunscrever ao regime contra-ordenacional a detenção de estupefaciente para consumo de porções de produto inferiores a limites legalmente fixados, integrando as restantes condutas numa detenção ilícita que merece censura criminal ao nível do artigo 21º do DL 15/93, (conferindo-se a este preceito uma interpretação actualista no que respeita à excepção de punição nele contida e agora referenciado para o primeiro preceito citado).
4. Esta interpretação é aquela que se revela consonante com a natureza do crime de tráfico que, sendo de perigo abstracto, é passível de integrar condutas que não revistam um dano efectivo ou um perigo concreto de dano, mas a mera execução de um acto que é por si perigoso, sendo que, no presente caso, essa conduta passa pela simples detenção de substâncias em quantidade superior àquelas necessárias para assegurar o consumo médio individual por um período de 10 dias, e o perigo que dela decorre advém da maior probabilidade de propagação do produto estupefaciente na sociedade.
5. Interpretação contrária a esta implicaria que se passasse para a esfera do julgador o ónus de ser ele a determinar, de acordo com critérios não só probatórios mas de convicção e de experiência pessoais, a criminalização ou não da detenção de quantidades de estupefaciente superiores ao estabelecido para o consumo médio por 10 dias relativamente aos quais mais prova não se fizesse relativamente ao respectivo destino do que as intenções declaradas pelo arguido – e que não deixam de invocar o consumo próprio.
Por todo o exposto, revogando-se a douta decisão recorrida e proferindo-se outra que pronuncie o arguido pela prática do crime de tráfico de estupefacientes por que vem acusado, será feita a devida JUSTIÇA.

*
Neste Tribunal a Exma. Procuradora-Geral Adjunta teve vista dos autos, proferindo douto parecer no sentido de perfilhar o entendimento sufragado:
- no Acórdão de 25/6/03, proferido no processo n.° 4089/02 3ª secção relatado pelo Exmo. Conselheiro Dr. Franco de Sá, inserto in www.dgsi.pt;
- no Acórdão de 7/04/05 relatado pelo Exmo. Conselheiro Dr. Costa Mortágua , inserto in www.sti.pt ;
- no Acórdão de 10/11/2005 do TRL processo 4732/2005 da 9ª secção em
que foi relator o Dr. João Carrola in www.dgsi.pt/jtrl;
- no Acórdão de 3/5/2007 proferido no processo 10048/06-5 que foi relatora a Dra. Margarida Blasco, in wwwdgsi.pt/jtrl;
- no Acórdão de 11/2/04 in CJ 2004, tomo I, pág. 215, nos termos dos quais "a detenção de substancia estupefaciente para consumo próprio, em quantidade superior à necessária para o consumo médio individual durante 10 dias, constitui crime p. e p. pelo artigo 40° n.° 2 do DL 15/93 de 22/1. De facto o artigo 28° da Lei 30/2007, de 29/11, deve ser interpretado restritivamente em termos de se entender que ele apenas revogou aquele artigo 40° quanto às condutas que foram convertidas em contra-ordenações, por força do nº 2 do artigo 2° da mesma lei".
Pelo exposto emite-se parecer no sentido de que o presente recurso merece provimento, sendo de revogar o despacho recorrido e substituir por outro que após reabertura do debate instrutório e prévio cumprimento do disposto no n.° 1 do artigo 303° do CPP, pronuncie o arguido pelo crime p. e p. pelo artigo 40° nº 2 do DL 15/93 de 22/1 , com referência à tabela I C anexa ao diploma legal.
*
Colhidos os vistos, cumpre decidir.
*

2. – É pacífica a jurisprudência do S.T.J. no sentido de que o âmbito do recurso se define pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, sem prejuízo, contudo, das questões do conhecimento oficioso.
E a questão fulcral a avaliar no presente recurso, resume-se em saber se a mera detenção de estupefacientes em quantidade superior à necessária para o consumo médio individual durante o período de dez dias (face ao disposto nos artigos 21°, 25° e 40° do DL 15/93 de 22/1 e artigos 2º nº 1 e 2 e 28° da Lei 30/2000 de 29/11) insere a penalização da conduta ou deve ter-se por ilícito de mera ordenação social.
Tais dificuldades resultam da redacção dada ao artigo 2° e ao artigo 28° da Lei 30/2000 de 29/11, porque na realidade a detenção de droga em quantidade excedente à necessária para o consumo médio individual para um período de dez dias, destinando-se o produto exclusivamente a consumo do detentor não é literalmente e expressamente contemplada nas disposições do DL n.° 15/93 e da Lei 30/2000.
No douto despacho recorrido entende o Mm° Juiz de Instrução Criminal que o facto de o arguido ter na sua posse 7,9gr de cannabis em resina e 0,9gr de cocaína não integra a prática de ilícito criminal, entes sendo matéria passível de reacção contraordenacional, por integradora do artigo 20 da Lei 30/2000.
Sustentando tal conclusão, refere-se, no essencial, que não é actualmente admissível censurar e punir criminalmente o consumo, a aquisição e a detenção para consumo de estupefacientes, já que a norma do artigo 40° do DL 15/93 foi expressamente revogada com a entrada em vigor da Lei 30/2000, e que o espírito que foi consagrado neste último diploma passou pela despenalização do consumo de estupefaciente e pelo entendimento de que o toxicodependente é uma pessoa doente cujo tratamento cumpre privilegiar e efectivar. Nesta linha de pensamento, e sendo o toxicodependente tanto mais doente quanto maior seja a sua necessidade de consumo, é equacionável que se encare a possibilidade do seu tratamento se as porções de estupefaciente que detiver na sua posse forem também maiores e, como tal, excederem a previsão do artigo 2° n.° 2 da Lei 30/2000, já que, de outra forma, estaria o consumidor a ser mais severamente punido do que o era na vigência da lei anterior, em que distinções sobre a quantidade de estupefaciente destinado ao consumo apenas serviam para delimitação da punição penal.
Acrescenta o Mm° Juiz que o entendimento perfilhado no despacho acusatório, e no que respeita à detenção da cocaína cuja quantidade não excedia a porção média individual de consumo para 10 dias, implicaria o juízo de valor contrário, que se traduziria na consideração de que a quantidade detida não é determinante para a qualificação penal da conduta.
Vejamos:
Quanto à não descriminalização da aquisição e detenção para consumo próprio de estupefacientes em quantidade, que exceda a necessária para o consumo médio individual durante o período de 10 dias, há que, antes de mais, analisar o exacto âmbito de aplicação do regime instituído pela Lei nº 30/2000, de 29/11 e as repercussões da sua entrada em vigor.
O referido diploma, que entrou em vigor em 1 de Julho de 2001 (cfr. artº 29º) tem o seu objecto definido no artº 1º nº 1: “definição do regime jurídico aplicável ao consumo de estupefacientes e substâncias psicotrópicas (...).
Preceitua o seu artº 2º, sob a epígrafe “Consumo”:
“1. O consumo, a aquisição e a detenção para consumo próprio de plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas referidas no artigo anterior (I a IV anexas ao D.L. nº 15/93 de 22/01) constituem contra-ordenação.
2. Para efeitos da presente lei, a aquisição e a detenção para consumo próprio das substâncias referidas no número anterior não poderão exceder a quantidade necessária para o consumo médio individual durante o período de 10 dias.”
Há ainda que atentar no artº 28º do diploma em análise, que estabelece: “São revogados o artigo 40º, excepto quanto ao cultivo, e o artigo 41º do Decreto-Lei nº 15/93, de 22 de Janeiro, bem como as demais disposições que se mostrem incompatíveis com o presente regime.”.
Face à revogação expressa do artº 40º do D.L. nº 15/93, de 22/01, operada pelo artº 28º da Lei nº 30/00 de 29/11 e à redacção do nº 2 do artº 2 deste último diploma, coloca-se a questão de saber qual o enquadramento jurídico actual da aquisição e detenção para consumo próprio de estupefacientes em quantidade, que exceda a necessária para o consumo médio individual durante o período de 10 dias.
Desde a entrada em vigor da Lei nº 30/2000, de 29/11, que esta questão tem sido objecto de intenso debate na doutrina e na jurisprudência, delineando-se a seu respeito três posições fundamentais:
- uma sustenta que a aquisição e detenção de estupefacientes para consumo cuja quantidade exceda o consumo médio individual durante o período de dez dias 10 dias é igualmente punida como contra-ordenação (Ac. da Relação do Porto de 18/06/03, acessível em www.dgsi.pt) posição sufragada no despacho recorrido.
Como doutrina a favor desta interpretação, Manuel Monteiro Guedes Valente “Consumo de Drogas; Reflexões sobre o quadro legal”, 3ª edição Revista e Actualizada, Almedina, 2006; José Robin de Andrade, Reflexões sumárias sobre o fundamento da descriminalização do consumo de droga, publicado no Fórum Iustitiae, Direito &Sociedade, Ano II, n° 17; Eduardo Maia Costa, Detenção de estupefacientes, finalidade da detenção, dever de investigação pelo tribunal, Revista do Ministério Público n° 95, Ano 24, Julho-Setembro de 2003; Inês Bonina “Descriminalização do consumo de estupefacientes – Detenção de quantidade superior a dez doses diárias”, Revista do Ministério Público n° 89, Ano 23, Janeiro – Março de 2002; José de Faria Costa “Algumas breves notas sobre o regime jurídico do consumo e do tráfico de droga”, publicado na Revista de Legislação e Jurisprudência, n° 3030, ano 134°; João Conde Correia “Aspectos jurídicos da lei da droga: As Fontes, muita jurisprudência e alguma doutrina”, Lusíada – Revista de Ciência e Cultura, série de Direito, n°s 1 e 2, 2002; A. G. Lourenço Martins, “Droga – Nova Política Legislativa”, Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano II, fascículo 3°, Julho - Setembro, 2001; Maria Fernanda Palma “Consumo e tráfico de estupefacientes e Constituição: absorção do "Direito Penal de Justiça" pelo Direito Penal Secundário?”, Revista do Ministério Público n° 96, Ano 24°, Outubro – Dezembro 2003; bem como decisões de vários tribunais superiores, designadamente:
- Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de 28 de Setembro de 2005, proferido no processo 1831/05; de 14 de Novembro de 2001, proferido no processo 3031/01; de 15 de Março de 2006, proferido no processo 119/06;
- Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 10 de Maio de 2006, proferido no processo 0547038; disponível in www.dgsi.pt.
- Acórdãos do Tribunal da Relação de Guimarães, de 18 de Outubro de 2006, de 6 de Março de 2006, proferido no processo 2538/05, disponível in www.dgsi.pt; de 23 de Setembro de 2002, proferido no processo 381/02, com sumário disponível também in www.dgsi.pt.; de 8 de Março de 2004, Col. Jur. Tomo II, pag. 290; de 10 de Março de 2003, Col. Jur. II, pag. 287;
*
- outra defende que para tais situações, continua em vigor o artº 40º nº 2 do D.L. nº 15/93 de 22/01, por via de interpretação restritiva do artº 28º da Lei nº 30/2000 de 29/11 – Tese sufragada por Cristina Líbano Monteiro «O consumo de droga na política e na técnica legislativa», publicado na Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Ano II, 1° fascículo, 2001, pag. 67 e Eduardo Maia Costa, Breve Nota Sobre o Regime Punitivo do Consumo de Estupefacientes(Revista do Ministério Público n° 87, ano 22, pag. 147), bem como decisões de vários tribunais superiores, designadamente:
- Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de 2 de Fevereiro de 2006, proferido no processo 2871/05; de 25 de Junho de 2003, proferido no processo 4089/02; de 7 de Abril de 2005, proferido no processo 446/05; de 24 de Novembro de 2004, proferido no processo 3239/04; de 6 de Novembro de 2003, proferido no processo 3254/03; de 16 de Fevereiro de 2006, proferido no processo 111/06; de 3 de Julho de 2003, proferido no processo 1799/03.
- Acórdãos dó Tribunal da Relação do Porto, de 16 de Fevereiro de 2005, proferido no processo 0414603; de 12 de Janeiro de 2005, proferido no processo 0314384; de 12 de Outubro de 2005, proferido no processo 0416952; de 9 de Fevereiro de 2005, proferido no processo 0410428; de 6 de Julho de 2005, proferido no processo 0445840; de 11 de Fevereiro de 2004, proferido no processo 0111514; de 24 de Maio de 2006, proferido no processo 0640988; de 26 de Novembro de 2003, proferido no processo 0315028, todos disponíveis in www.dgsi.pt. E ainda acórdão de 16 de Novembro de 2005, in Col. Jur; Tomo V, pag. 221;
- Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 16 de Fevereiro de 2005, proferido no processo, 8446/2006; de 8 de Julho de 2003, proferido no processo 2725/2003; de 10 de Novembro de 2005, proferido no processo 4732/2005; de 1 de Outubro de 2002, proferido no processo 22745 (sumário); de 21 de Novembro de 2002, proferido no processo 3569 (sumário), todos disponíveis in www.dgsi,pt., e ainda acórdão de 4 de Abril de 2006, Col. Jur, Tomo II, pag. 131; de 21 de Novembro de 2002, Col. Jur. Tomo V, pag. 124 e de 25 de Fevereiro de 2003, Col. Jur. Tomo I, pag. 141;
- Acórdãos do Tribunal da Relação de Coimbra, de 17 de Junho de 2004, Col. Jur. Tomo III; pag. 62; de 16 de Junho de 2004, Col. Jur. Tomo III, pag. 49.
*
- uma terceira entende que após a data de entrada em vigor do mencionado diploma, da conjugação dos art°s 21°, 25° e 40° do Decreto Lei n.° 15/93 e dos art°s 2° n°s 1 e 2, e 28 da Lei n.° 30/2000, resulta que as situações de detenção para consumo, cuja quantidade exceda o consumo médio individual durante o período de dez dias, é sancionada como um ilícito criminal seja por via do artº 21°, seja por via do artº 25°, seja, se estiver reunido o cabido condicionalismo, por via do artº 26°, todos do Decreto Lei nº 15/93.
A favor desta interpretação, temos as decisões proferidas nos seguintes arestos:
- Acórdão do Tribunal Constitucional n° 295/2003, de 12 de Junho de 2003, publicado no DR. – II Série de 23 de Janeiro de 2004;
- Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça (Acórdãos nos processos 111106, 3283/04 e 3599/02, respectivamente de 16.02,2006, de 26.01.2005 e de 21.05.2003);
- Acórdãos do Tribunal da Relação de Lisboa (Acórdãos dos processos 5788/06 e 3926106, respectivamente de 19.12.2006 e de 17.10.2006);
- Acórdãos do Tribunal da Relação do Porto, de 7 de Dezembro de 2005, Col. Jur. Tomo V, pag. 225; de 9 de Dezembro de 2004, proferido no processo 0415058, e de 24 de Outubro de 2003, proferido no processo 0342387, ambos disponíveis in www.dgsi.pt;
- Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 14 de Dezembro de 2004, proferido no processo 1776/04, disponível in www.dgsi.pt.
*
Afasta-se, desde já a primeira das posições apontadas, ou seja a tese sufragada pelo despacho recorrido.
Na verdade, esta previsão e punição da conduta como contra-ordenação, funda-se no entendimento de que o nº 2 do artº 2º da Lei nº 30/00, de 29/11, ao estabelecer o limite da “quantidade necessária para o consumo médio individual durante o período de 10 dias”, apenas pretendeu fornecer um critério legal, meramente orientador, de distinção entre o consumo e o tráfico de estupefacientes.
Pelo que a consagração desse critério não obsta à punição como contra-ordenação, nos termos do nº 1 do mesmo preceito, da aquisição e detenção para consumo próprio de estupefaciente em quantidade superior à prevista no nº 2.
Ora, este entendimento é de rejeitar, face à clareza da redacção do nº 2 do artº 2º da Lei nº 30/00, de 29/11, de onde parece resultar, sem margem para dúvidas, a seguinte posição legal: para efeitos da lei em apreço – que prevê e pune como contra-ordenação o consumo, a aquisição e a detenção para consumo próprio de estupefacientes – o estupefaciente adquirido ou detido não poderá exceder a quantidade necessária ao consumo médio individual durante o período de 10 dias.
Se exceder, e ainda que a substância estupefaciente se destine ao consumo próprio do agente, a conduta escapa ao âmbito de aplicação da Lei nº 30/00 de 29/11, não sendo, pois, qualificável como simples contra-ordenação.
Aliás, a terminologia utilizada no nº 2º do artº 2º da Lei nº 30/00 de 29/11, ao aludir ao “consumo médio individual”, assemelha-se à que foi adoptada no nº 3 do artº 26º e no nº 2 do 40º nº 2 do D.L. nº 15/93 de 22/01, sendo certo que, relativamente a estas normas, se defendeu, que aí se estabelecesse um critério meramente orientador e não vinculativo, em termos interpretativos.
Como bem salienta o Digno Magistrado do MºPº, “não foi intenção do legislador deixar aberta a possibilidade de integração da conduta ao nível do ilícito contra-ordenacional do consumo a toda e qualquer detenção de estupefaciente, mas apenas aquelas que se situam abaixo do nível socialmente aceitável e que foi por si fixado em 10 doses diárias, nos termos que já haviam sido definidos pela Portaria anteriormente em vigor.
Interpretação contrária, designadamente aquela perfilhada pelo Mm° Juiz de Instrução Criminal na decisão sub judice, transferiria para o julgador o ónus de ser ele a definir a natureza da conduta por referência a critérios totalmente abertos e já fora da cobertura legal.
Senão vejamos: se não se aceita como limite máximo de detenção aquele previsto para o consumo médio pelo período de dez dias, então tem de se aceitar que não há limites quantitativos para a detenção destinada ao consumo próprio. Daqui resulta que, em tese, é possível que uma pessoa detenha um, dois, três quilogramas de cocaína e que, referindo que os destina ao seu consumo e não sendo feita prova sobre a intenção de destino diferente, não venha ser alvo de procedimento criminal. Mas deixando de parte esta situação caricaturada, então onde estão definidos os limites do julgador para integração da conduta? Variará em consonância com os hábitos de consumo do toxicodependente? E, nesse caso, terão esses hábitos de ser provados pelo Ministério Público para se sustentar o arquivamento ou a acusação do processo? Variará em função da convicção do julgador alicerçada, não em provas concretas de actuação do arguido para além da detenção, mas na convicção de que, até determinada quantidade de estupefaciente, é legítimo concluir que o destino era o seu consumo próprio? São estas, entre outras de cariz mais prático (como sejam a efectivação de uma detenção por flagrante delito), as interrogações que se equacionam no confronto da posição jurídica defendida na douta decisão recorrida”.
Entende-se, que a interpretação mais acertada, após a entrada em vigor da Lei nº 30/00, de 29/11, é aquela que sustenta que a aquisição e a detenção para consumo de estupefacientes em quantidade que exceda a necessária ao consumo médio individual durante o período de dez dias se integra na previsão do disposto no artigo 21º do DL 15/93 (depois passível de conjugação com o artigo 25º).
*
E, no caso dos auto, a quantidade de estupefaciente que o arguido detinha, mesmo que apenas para seu consumo (7,754gr de cannabis em resina e 0,853gr. de cocaína), ultrapassa largamente a necessária para o seu consumo médio individual durante o período de 10 dias, referida no artº 2º nº 2 da Lei nº 30/2000 de 29/11 – cfr., também, o artº 9º da Portaria nº 94/96 de 26/03 e mapa a ela anexo.
Mas, e ao contrário do que entende o Mmo. Juiz a quo, não temos como seguro o destino exclusivo para consumo.
Na verdade, conforme resulta das declarações prestadas pelo arguido em sede de instrução a folhas 100 dos autos, este tinha adquirido a cocaína apreendida pela primeira vez, sendo que, parte dela, tinha sido já por si consumida, mais referindo não ser consumidor de cocaína, tendo apenas tido experiências esporádicas com tal tipo de estupefaciente.
Ora, ponderando que o arguido não é consumidor habitual de tal estupefaciente, mas antes e apenas de haxixe, que já o tinha consumido ocasionalmente por cedência de outros (visto que nunca o tinha comprado), não é credível admitir a subsequente declaração do destino exclusivo de consumo, tanto mais e no que respeita à cannabis encontrada, resulta do auto de notícia que consta a folhas 3 dos autos que o produto apreendido estava fragmentado em vários pedaços, o que conjugado com as regras de experiência comum, é de molde a considerar que destinasse este produto a partilhar com outras pessoas que, nas mesmas circunstâncias em que ele próprio anteriormente consumiu, lho solicitassem. E, como pertinentemente observa o Digno Magistrado do MºPº, a compra de grandes quantidades de haxixe para mero consumo próprio faz sentido, por ser economicamente mais vantajoso, quando se trata de uma peça de estupefaciente inteira. Se a mesma se encontra repartida, possivelmente destina-se à entrega a terceiros, já dimensionada ao preço a que corresponde.
Conclui-se, assim, não haver fundamento legal para determinar a não pronúncia do arguido pelo crime de tráfico de estupefacientes que lhe é imputado pelo MºPº.
*

3 – Pelo exposto, acorda-se em conceder provimento ao recurso e, em consequência, revogar a decisão recorrida que deverá ser substituída por outra que pronuncie o arguido pela prática do crime de tráfico de estupefacientes por que vem acusado.
Sem tributação