CASAMENTO URGENTE
INEXISTÊNCIA DO CASAMENTO
FALTA
DECLARAÇÃO
VONTADE
Sumário

I – A manifestação da vontade dos nubentes de contraírem casamento, produzida no próprio acto da celebração deste, é que constitui o seu núcleo essencial. Sem essa declaração conjunta de vontades não há casamento, ou por outras palavras, verifica-se a inexistência jurídica deste. Esta situação não deve confundir-se com a de a declaração ter sido feita, por um ou por ambos os cônjuges, com falta de vontade ou com a vontade viciada por erro ou coacção.
II - A inexistência é a sanção correspondente à falta de declaração expressa da vontade de ambos os nubentes, de um deles apenas, ou até do procurador de um deles. Uma vez manifestada a vontade de ambos os nubentes, o casamento ingressa na ordem jurídica, mesmo que não haja realmente vontade válida do declarante, e fica apenas sujeito ao regime da anulabilidade.
III - Não deve confundir-se o regime de inexistência do casamento decorrente da falta de declaração de vontade, com o regime de anulabilidade do casamento, nos termos dos artigos 1631°, al. b), 1635°, 1640° e 1641° do Código Civil, resultante da falta de vontade ou de vontade viciada por erro
(F.G)

Texto Integral


ACORDAM NA 6ª SECÇÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA
I - RELATÓRIO
Carlos e outros, intentaram esta acção, com processo ordinário, contra Maria, e L, pedindo se declare inexistente o casamento urgente realizado no Hospital, no dia 14 de Janeiro de 2002, entre A e Maria, por ter faltado a declaração de vontade do nubente, averbando-se essa inexistência ao respectivo registo e procedendo-se às demais providências previstas na lei do registo.
Para tanto, em síntese, alegam que A, que faleceu aos oitenta e sete anos de idade, no dia 14 de Janeiro de 2002, no Hospital onde se encontrava internado por lipotimia, vómitos, ureia e creatinina bastante elevadas e acentuada leucocitose com neutrofilia, na véspera do óbito, quando se encontrava em estado de coma e, portanto, sem condições de formar ou manifestar a sua vontade e em cerimónia que decorreu no hospital de modo concertado para em segredo dela afastar a sua família, contraiu com a Ré Maria casamento urgente realizado pelo Réu L, adjunto do conservador do registo civil.

Citada, a Ré Maria contestou para concluir pela improcedência da acção devendo, em consequência, ser declarado válido o casamento celebrado entre si e o falecido A e para ainda concluir por dever o Réu L ser parte ilegítima na acção.
Para o efeito, em síntese, alega que por mais de vinte anos viveu, como se fossem marido e mulher, com o falecido A que consigo se casou, como foi seu maior e último desejo, com exacta consciência e vontade livre que manifestou, de forma clara e inequívoca, na cerimónia de casamento que decorreu com o falecido calmo, lúcido, consciente, orientado, desperto, localizado no tempo e no espaço e com plena consciência do acto que queria e que estava a realizar com respeito por todas as normas substantivas e processuais que regem o casamento urgente.

Citado, o Réu L contestou para concluir pela sua absolvição da instância, por ilegitimidade para acção, e, se assim se não entender, para concluir pela improcedência da acção e deduziu reconvenção para pedir a condenação dos autores a, solidariamente, pagarem-lhe, a titulo de indemnização, € 30.000,00.

Seguiu-se réplica, tendo sido mandada desentranhar a que os Autores apresentaram para responder à contestação da Ré Maria, e no despacho saneador decidiu-se pela inadmissibilidade da reconvenção deduzida pelo Réu L, como se decidiu, por ser parte ilegítima, absolver este Réu da instância e decidiu-se ainda nada mais obstar ao conhecimento do mérito da causa.

Assim, prosseguiu a acção apenas contra a Ré.
Organizada a selecção da matéria de facto, com base instrutória, veio a realizar-se o julgamento, após o que foi proferida sentença que julgou a acção improcedente por não provada, absolvendo a Ré do pedido.

Inconformados, vieram os AA. Apelar da sentença tendo, no essencial, formulado as seguintes conclusões:
1. Numa correcta e ponderada apreciação das provas apresentadas, nomeadamente do relatório médico, junto como parecer técnico nos autos, do Dr. Álvaro, os factos constantes das alíneas jj); mm); oo); tt); vv); bbb) e ccc) teriam que ser dados como não provados.
2. Com efeito, face aos elementos científicos em confronto, era perceptível que o nubente marido não podia expressar, a sua vontade de casar fosse de forma expressa ou outra, com livre consciência, pelo que estava necessariamente em causa os factos dados como provados nas alíneas xx) e aaa), induzidos por força das referidos referidas conclusões, constantes das alíneas anteriores, ao revés da normal e natural experiência de vida neste tipo de situações.

Contra-alegou a Ré para, no essencial, concluir:
1. A matéria de facto impugnada pelo Recorrentes foi considerada provada tendo por base os referidos Relatórios Clínicos e de Enfermagem elaborados pelo Hospital Fernando Fonseca (Amadora-Sintra), bem como o depoimento das testemunhas Dr. J, médico que assistiu o falecido Sr. A durante todo o seu internamento naquele Hospital e que culminou com o seu falecimento em 14.01.2002, assim como no depoimento do Adjunto do Conservador da Conservatória do Registo Civil que celebrou o casamento da Recorrida e seu falecido marido, bem como de outras testemunhas que constam do assento de casamento em questão, não tendo sido nenhum dos referidos depoimentos impugnados pelos Recorrentes.
2. Tendo os Recorrentes fundamentado o seu pedido de declaração de inexistência do casamento celebrado entre a Recorrida e o seu falecido marido, A, na falta de declaração deste (art° 1628°, al. c) do Código Civil), cabia-lhes provar, que o nubente não declarou, por qualquer modo admissível por lei, a sua vontade de casar com a Recorrida, o que não fizeram.
3. Em conformidade com o exposto, deverá ser negado provimento à presente apelação, confirmando-se integralmente a douta sentença recorrida, assim se fazendo a habitual

Corridos os Vistos legais,
Cumpre apreciar e decidir.

São as conclusões das alegações de recurso que definem o seu objecto, como resulta dos arts. 684º, nº 3 e 690, nº 1 do CPC. Deste modo, cumpre apreciar se existe fundamento para declarar inexistente o casamento por falta de declaração de vontade do nubente.

II – FACTOS PROVADOS

1. O Autor C é filho de A e de L, cfr. al. A) do despacho de selecção de matéria de facto;
2. Os Autores Maria, Luís e T são os únicos sucessores e, respectivamente, viúva e filhos, de J, irmão germano do primeiro Autor, cfr. al. B) desse despacho;
3. José faleceu no passado dia 30 de Janeiro de 2003, cfr. al. C) desse despacho;
4. A mãe do Autor C e do falecido José, L, faleceu no dia 13 de Maio de 1978, deixando viúvo A, cfr. al. D) desse despacho;
5. Este veio a falecer, aos 87 anos de idade, no Hospital Fernando da Fonseca (Amadora-Sintra), no dia 14 de Janeiro de 2002, cfr. al. E) desse despacho;
6. A e a Ré casaram um com o outro no dia 13 de Janeiro de 2002, casamento esse de carácter urgente, cfr. al. F) desse despacho;
7. Após o falecimento, os filhos foram informados de que o seu pai contraíra casamento. com a aqui Ré Maria, na véspera do óbito, cfr. decisão sobre o quesito 1°;
8. A R. Maria nada lhes disse acerca do casamento, nem quando visitaram o pai no dia 14, nem após o falecimento, nem antes do funeral, cfr. decisão sobre o quesito 4°;
9. A, pai do Autor C, respectivamente sogro e avô dos restantes Autores, foi internado no Hospital Fernando da Fonseca (Amadora-Sintra), em 29 de Dezembro de 2001, por lipotimia, vómitos, ureia e creatinina bastante elevadas e acentuada leucocitose c/neutrofilia, cfr. decisão sobre o quesito 9°;
10. Tinha 87 anos, sofria de insuficiência renal crónica, doença pulmonar crónica obstrutiva e anemia grave, cfr. decisão sobre o quesito 10°;
11. Encontrava-se já acamado havia duas semanas cfr. decisão sobre o quesito 11°;
12. Durante o internamento, o seu estado de saúde foi-se deteriorando de forma progressiva, cfr. decisão sobre o quesito 12°;
13. No dia 13 de Janeiro foi passada uma declaração médica de prognóstico reservado e risco de vida, cfr. decisão sobre o quesito 13°;
14. E, no dia seguinte, 14 de Janeiro, em coma profundo, apresentava francas dificuldades respiratórias, cfr. decisão sobre o quesito 15°;
15. Durante os dias que antecederam a morte - e designadamente no dia 13 de Janeiro - o doente manteve-se monitorizado com oxigénio (óculos nasais), algaliado, com soro em curso, cfr. decisão sobre o quesito 16°;
16. Algumas vezes, durante período de internamento, o doente apresentava estados de confusão e de agitação, permanecia prostrado, não colaborante, mostrava desorientação, verborreia, sonolência, ficava imobilizado no leito, cfr. decisão sobre o quesito 18°;
17. A Ré viveu com o falecido A, como se marido e mulher fossem, durante mais de 20 anos, coabitando na mesma casa, comendo, passeando e dormindo juntos, como se fossem casados, cfr. decisão sobre o quesito 25°;
18. O falecido A nos últimos anos da sua vida manifestou por vezes à Ré o seu desejo de casar com a mesma, cfr. decisão sobre o quesito 26°;
19. No entanto sempre foi adiando essa intenção por razões familiares, nomeadamente para não entrar em choque com o Autor C e seu falecido irmão, J, filhos do falecido A, que se opunham a essa união, cfr. decisão sobre o quesito 27°;
20. Apesar de todos terem perfeito conhecimento que o falecido A e a Ré viviam como se marido e mulher fossem há mais de 20 anos, cfr. decisão sobre o quesito 28°;
21. Em Novembro de 2001, o falecido A foi submetido a um transplante da córnea no Hospital dos Capuchos, em Lisboa, sendo que nenhum dos seus filhos o acompanhou, lhe prestou assistência ou sequer o visitou no hospital aquando dessa intervenção cirúrgica, cfr. decisão sobre o quesito 33°;
22. Foi a Ré quem ao longo dos anos lhe prestou a companhia e assistência que necessitava, cfr. decisão sobre o quesito 34°;
23. Muitas vezes pedia ajuda à sua filha mais nova para o transportar a consultas médicas e hospitais ou para lhe fazer companhia e dar assistência quando por algum motivo não o podia fazer e o seu falecido marido necessitava, cfr. decisão sobre o quesito 35°;
24. O qual nunca o visitou no Hospital Amadora-Sintra durante todo o tempo que esteve internado e que culminou com o seu falecimento em 14 de Janeiro de 2002, cfr. decisão sobre o quesito 37°;
25. Ao longo dos mais de 20 anos de vida em comum, a Ré sempre tratou o seu marido, A, com todo o respeito, lealdade, carinho e amizade, sempre cooperando e cuidando afectuosamente do mesmo, cfr. decisão sobre o quesito 42°;
26. Factos que sempre foram testemunhados por todas as pessoas que com o casal se relacionava e, nomeadamente, pelos filhos, noras e netos do mesmo, cfr. decisão sobre o quesito 43°;
27. Já em Dezembro de 2001, a Ré e o seu falecido marido tinham dado inicio à instauração do seu processo de casamento na Conservatória do Registo Civil de Sintra, área da sua residência, onde chegaram a entregar as suas certidões de nascimento para efeito, cfr. decisão sobre o quesito 44°;
28. Casamento que na altura só não fizeram por, entretanto, em 29/12/2001, o A ter sido internado no Hospital Amadora Sintra, cfr. decisão sobre o quesito 45°;
29. Durante o internamento do falecido A, este, apercebendo-se do seu débil estado de saúde físico, dizia constantemente à Ré que não queria falecer sem casar com ela, pedindo-lhe para tratar dos papéis e acelerar o processo, cfr. decisão sobre o quesito 46°;
30. Perante as insistências do seu falecido marido, do desejo que este transmitia em casar com ela e de ter sido informada pelo médico assistente que o seu companheiro corria risco de vida, cfr. decisão sobre o quesito 47°;
31. A Ré, através da signatária da contestação, procedeu ao levantamento das referidas certidões de nascimento na Conservatória do Registo Civil de Sintra e entregou-as na Conservatória do Registo Civil da Amadora, através da qual foi celebrado o seu casamento, cfr. decisão sobre o quesito 48°;
32. O casamento foi celebrado no quarto do Hospital onde o falecido A se encontrava internado, cfr. decisão sobre o quesito 50°;
33. Com a porta aberta, para que todos os que quisessem pudessem assistir, cfr. decisão sobre o quesito 51°;
34. Com a respectiva proclamação afixada, cfr. decisão sobre o quesito 52°;
35. E na presença de várias testemunhas, cfr. decisão sobre o quesito 53°;
36. Apesar da saúde física do A se encontrar debilitada, no dia 13 de Janeiro de 2002, aquando do seu casamento, estava o mesmo perfeitamente consciente, cfr. decisão sobre o quesito 54°;
37. Durante o período que esteve internado no Hospital Amadora-Sintra, entre 29/12/2001 e 14 de Janeiro de 2002, data do seu falecimento, o referido Antero da Silva Ferreira foi assistido pelo Dr. José Lourenço, cfr. decisão sobre o quesito 55°;
38. No dia do casamento 13 de Janeiro de 2002 - o referido Dr. J conversou durante algum tempo com o referido A, nomeadamente, até sobre o casamento que este pretendia celebrar naquele dia, cfr. decisão sobre o quesito 56°;
39. Tendo verificado o seu perfeito estado mental e a sua vontade livre e esclarecida para celebrar aquele acto, cfr. decisão sobre o quesito 57°;
40. E em consequência subscreveu e assinou a declaração comprovativa de que o mesmo se encontrava em situação clínica de prognóstico reservado, com risco de vida, cfr. decisão sobre o quesito 58°;
41. No referido dia 13 de Janeiro de 2002, data do casamento, apesar do seu estado físico débil (até atenta a sua já avançada idade de 87 anos), o falecido A, estava perfeitamente consciente do acto que queria e iria celebrar: o seu casamento, cfr. decisão sobre o quesito 59°;
42. Nesse dia, à semelhança dos dois dias imediatamente anteriores, o falecido A, apresentava melhoras, cfr. decisão sobre o quesito 60°;
43. No dia do casamento (13 de Janeiro de 2002), o falecido A encontrava-se com o tubo do soro aplicado no braço, cfr. decisão sobre o quesito 61º;
44. Apesar de no acto da cerimónia se encontrar deitado, já nesse mesmo dia se tinha levantado e estado sentado num cadeirão que se encontrava no seu quarto, cfr. decisão sobre o quesito 63°;
45. Esteve a conversar nesse dia e à semelhança de dias anteriores com as pessoas que o visitaram e nesse dia conversou com outro doente com quem partilhava o quarto e que também se encontrava internado naquele Hospital, cfr. decisão sobre o quesito 64°;
46. O falecido A tinha exacta consciência e vontade livre de celebrar casamento com a Ré, cfr. decisão sobre o quesito 65°;
47. Era este, aliás, o seu maior e último desejo, cfr. decisão sobre o quesito 66°;
48. A sua lucidez, vontade livre e perfeito estado mental era claramente visível no dia do casamento, cfr. decisão sobre o quesito 67°;
49. A sua vontade de casar com a Ré foi também transmitida, ainda antes do início da cerimónia, ao Sr. Adjunto da Conservatória do Registo Civil da Amadora, Dr. L, que celebrou o casamento, tendo a pergunta deste respondido: "Vou-me casar com Maria…", cfr. decisão sobre o quesito 68°;
50. No acto da celebração do casamento, após as primeiras solenidades, quando o referido Sr. Adjunto lhe perguntou se aceitava a Ré, Maria, por sua mulher, o falecido A de forma clara e inequívoca respondeu. "Sim, aceito", cfr. decisão sobre o quesito 69°;
51. Tendo seguidamente colocado a sua aliança de casado, cfr. decisão sobre o quesito 70°; zz) e beijado a Ré Maria, cfr. decisão sobre o quesito 71°;
52. Aquela declaração de vontade, manifestada por palavras, de forma clara e inequívoca foi ouvida quer pelo referido Sr. Adjunto da Conservatória, quer pelas quatro testemunhas indicadas no assento de casamento quer pelas restantes pessoas que ao acto estiveram presentes, cfr. decisão sobre o quesito 72°;
53. O falecido A, aquando do seu casamento, não estava confuso, nem agitado, nem prostrado, nem desorientado, nem mostrava quaisquer sinais de agitação, verborreia, sonolência e nem sequer se encontrava imobilizado, cfr. decisão sobre o quesito 73°;
54. Ao invés, estava calmo, lúcido, consciente, orientado, desperto, localizado no tempo e no espaço e com plena consciência do acto que queria e que estava a realizar, isto é, o seu casamento com a Ré Maria, conforme foi testemunhado por todas as pessoas presentes, cfr. decisão sobre o quesito 74°;
55. O falecido A apenas entrou em coma no dia 14 de Janeiro de 2002, cfr. decisão sobre o quesito 75°;
56. Os Autores e o falecido J, tiveram conhecimento da celebração do casamento da Ré e do Sr. A no dia 15 de Janeiro de 2002, ou seja, no dia seguinte ao do falecimento deste, cfr. decisão sobre o quesito 77°.

III – O DIREITO

1. Da impugnação da matéria de facto
Nas suas alegações os recorrentes impugnaram a seguinte matéria de facto:
(…)

1.1. A decisão da primeira instância sobre a matéria de facto pode ser alterada nas situações previstas o art. 712º/1 do CPC, nomeadamente se do processo constarem todos os elementos probatórios em que se baseou a decisão recorrida quanto à matéria de facto em causa.
Na base da discordância dos Apelantes está a diferente apreciação e valoração do relatório médico, junto aos autos, do Dr. Á.
Como é sabido, o uso dos poderes conferidos à Relação, não importando a postergação dos princípios da imediação, da oralidade, da concentração e da livre apreciação das provas, deve restringir-se aos casos de flagrante desconformidade entre os elementos de prova disponíveis e a decisão quanto à matéria de facto, nomeadamente nos concretos pontos impugnados, conforme vem sendo entendimento reiterado da jurisprudência(1).
Não se pode perder de vista que em matéria de reapreciação da prova pelo Tribunal da Relação, nos termos do art. 712º do CPC, o legislador optou por permitir apenas a revisibilidade dos concretos pontos de facto controvertidos relativamente aos quais sejam manifestas divergências por banda do Recorrente.
Como também ficou bem vincado no Preâmbulo do DL nº 39/95 de 15/2, um dos objectivos fundamentais da gravação das audiências e da prova foi o de possibilitar às partes a “reacção contra eventuais – e seguramente excepcionais – erros do julgador na livre apreciação das provas e na fixação da matéria de facto relevante…”. Neste contexto, o regime não se destina a permitir a modificação de toda e qualquer decisão, mas, fundamentalmente, a detectar e corrigir os erros mais evidentes.
Importa, ainda, ter presente que a garantia do duplo grau de jurisdição não pode subverter o princípio da livre apreciação das provas, constante do art. 655º do CPC. De acordo com o princípio da livre apreciação da prova, previsto no art. 655º do CPC, a prova é apreciada pelo julgador segundo a sua experiência e a sua prudência, sem subordinação a regras ou critérios preestabelecidos. Ainda de acordo com este princípio que se contrapõe ao princípio da prova legal, as provas são livremente valoradas, sem qualquer grau de hierarquização, nem preocupação quanto à natureza de qualquer delas, respondendo o julgador de acordo com a sua convicção, excepto se a lei exigir para a prova do facto, qualquer formalidade especial, caso em que esta não pode ser dispensada. Só neste caso está o julgador obrigado a observar a hierarquização legal(2).
Assim, na modificação da decisão da 1ª instância sobre a matéria de facto deve actuar-se com prudência, só devendo suceder quando se demonstre através dos concretos meios de prova que foram produzidos, que existiu um erro na apreciação do seu valor probatório.

1.2. Os Apelantes fundamentam a requerida alteração da matéria de facto constante dos arts. 54º, 57º, 59º, 65º, 67º e 69º, 72º, 73º, 74º, na deficiente apreciação e valoração do relatório clínico junto aos autos da autoria do Dr. Á, elaborado em Dezembro de 2002 e que, com base nos Relatórios Clínicos e de Enfermagem elaborados pelo Hospital Amadora-Sintra no período de internamento de A, ocorrido entre 29.12.2001 a 14.01.2002, opina sobre o seu estado de saúde mental, aquando da celebração do casamento.
Importa, desde logo, referir que, como decorre do referido Relatório, o Dr. Á não prestou qualquer assistência médica ao falecido Antero Ferreira.
Por outro lado, os Apelantes não põem em crise o depoimento das testemunhas que sobre esta matéria se pronunciaram, designadamente das que assistiram à celebração do casamento.
Para a matéria em causa dada por provada contribui decisivamente o depoimento da testemunha Dr. J… e que acompanhou a evolução do estado de sáude do falecido Antero da Silva Ferreira, de prognóstico reservado. Explicou, aliás, este clínico que, o facto do falecido A estar clinicamente melhor nos dias que precederam o seu óbito, consciente, orientado, colaborante e até com alta prevista para o dia 13.01.2002, ou para o dia seguinte, não significa que não continuasse em risco de vida atenta a sua já muita idade (87 anos) e os problemas de saúde de que padecia.
Foram, ainda, atendidos os Diários Clínicos do falecido Antero, de fls. 43 a fls. 46 verso, assim como o seu Diário de Enfermagem de fls. 150 a fls. 159 verso, que corroboram o depoimento prestado pelo Dr. J quanto ao estado mental do Sr. A. Assim, pode ler-se no referido Diário Clínico, no dia 11.01.2002, o seguinte: “Doente consciente , orientado e colaborante com alguma pieira. Não tem tido febre. Também o Diário de Enfermagem, refere que nesse dia o doente “mantém o mesmo estado (...) Fez penso e levante para o cadeirão".
(…)
Em suma, de acordo com o já referido princípio da livre apreciação da prova, de nada vale sobrevalorizar determinado documento, no caso um “relatório médico”, elaborado após o falecimento do nubente e subscrito por quem, afinal nunca lhe prestou assistência médica, em detrimento dos depoimentos prestados pelas testemunhas e dos documentos também juntos aos autos, como o Diário de Enfermagem e o Diário Clínico.
Não pode confundir-se, portanto, o erro na apreciação da matéria de facto, com a mera discordância quanto ao convencimento do julgador e é só isso que, afinal, aqui está em causa, pelo que em consequência, se indefere a pretendida alteração da decisão quanto à matéria de facto, que se mantém inalterada.

2. Do casamento urgente
Na generalidade dos casamentos e conforme o impõe o nº 1 do artigo 1587º do Código Civil, "a capacidade matrimonial dos nubentes é comprovada por meio do processo preliminar de publicações, organizado nas repartições do registo civil a requerimento dos nubentes ou do pároco respectivo”. De resto, o artigo 1610º do Código Civil determina que "a celebração do casamento é precedida de um processo de publicações, regulado nas leis do registo civil e destinado à verificação da inexistência de impedimentos".
No entanto, casos há em que tal tramitação é afectada por certas circunstâncias, absolutamente excepcionais, como será o caso, justamente, do casamento urgente celebrado "in articulo mortis" (caso dos autos). Nestes casos, e conforme o dispõe o nº 1 do artigo 1599º do Código Civil, o casamento "...pode celebrar-se independentemente do processo preliminar de publicações e da passagem do certificado da capacidade matrimonial dos nubentes".
Determina, assim, o artigo 1622º do Código Civil, no que respeita aos casamentos urgentes que, quando haja fundado receio de morte próxima de algum dos nubentes, ou iminência de parto, é permitida a celebração do casamento independentemente do processo preliminar de publicações e sem a intervenção do funcionário do registo civil, sendo lavrado um assento provisório, posteriormente homologado pelo funcionário de registo civil (vide arts. 1622º e 1623º do CCivil).
Portanto, requisito de viabilidade do casamento urgente será o fundado receio de morte próxima.
No caso, como se sabe, A e a Ré casaram um com o outro no dia 13 de Janeiro de 2002, casamento esse de carácter urgente.

3. Do casamento inexistente
Pedem os AA. que seja declarada a inexistência do casamento celebrado entre A e Maria, com fundamento na falta da declaração de vontade do nubente, nos termos do artigo 1628°, al. c), do Código Civil.
Efectivamente, como se estabelece no artigo 1628°, al. c), do Código Civil, é juridicamente inexistente o casamento em cuja celebração tenha faltado a declaração da vontade de um dos nubentes ou de ambos os nubentes, ou mesmo em que tenha faltado a declaração da vontade do procurador de um deles.

Como afirma Rodrigues de Bastos, citado na sentença recorrida a propósito deste preceito legal, a "manifestação da vontade dos nubentes de contraírem casamento, produzida no próprio acto da celebração deste, é que constitui o seu núcleo essencial. Sem essa declaração conjunta de vontades não há casamento, ou por outras palavras, verifica-se a inexistência jurídica deste. Esta situação não deve confundir-se com a de a declaração ter sido feita, por um ou por ambos os cônjuges, com falta de vontade ou com a vontade viciada por erro ou coacção”.
Portanto, “a inexistência é a sanção correspondente à falta de declaração expressa da vontade de ambos os nubentes, de um deles apenas, ou até do procurador de um deles. Uma vez manifestada a vontade de ambos os nubentes, o casamento ingressa na ordem jurídica, mesmo que não haja realmente vontade válida do declarante, e fica apenas sujeito ao regime da anulabilidade"(3).
O casamento inexistente é pura materialidade de facto, sem nenhuma significação jurídica, ao contrário do acto nulo, que teve sua vida jurídica. Embora os actos inexistentes sejam um nada jurídico, muitas vezes, possuem efeitos materiais que precisam ser extinguidos por meio de um decreto judicial. Neste caso pode dizer-se que a inexistência é uma nulidade de pleno direito, sendo invocável por qualquer pessoa e a todo o tempo(4).
Ao invés, do que sucede na anulabilidade em que a declaração manifestada em contrair casamento não corresponde à vontade de contrair casamento, seja porque essa vontade falta devido a causa que determine a falta de consciência do acto (por erro acerca da identidade física do outro nubente, por ter sido extorquida por coacção física ou ainda devido a simulação do acto - cfr. artigo 1635° do Código Civil), seja porque essa vontade se acha viciada devido a erro relevante (cfr. artigo 1636° do Código Civil), na inexistência não há qualquer manifestação de declaração de vontade em contrair casamento.
Pereira Coelho a este respeito refere que, quanto ao regime da inexistência “basta dizer que o casamento inexistente não produz efeitos – nem mesmo putativos -, e que a inexistência do casamento pode ser invocada a todo tempo, e por qualquer interessado, independentemente de declaração judicial." Outrossim, a ausência de efeitos do casamento inexistente é absoluta. A própria presunção de paternidade deixa de ocorrer no casamento inexistente. O casamento inexistente é o nada (nihil est) e o nada não pode ser regulado pela lei. (5)
Logo, não deve confundir-se o regime de inexistência do casamento decorrente da falta de declaração de vontade, com o regime de anulabilidade do casamento, nos termos dos artigos 1631°, al. b), 1635°, 1640° e 1641° do Código Civil, resultante da falta de vontade ou de vontade viciada por erro.

3.1. No caso, como se referiu, foi alegada a inexistência do casamento com fundamento na al. b) do art. 1628º do CCivil, invocando-se a falta de declaração da vontade do nubente A.
Argumentam os AA que o nubente A, encontrava-se numa situação comatosa, impedido de falar sem condições de formar ou manifestar a sua vontade.
Mas a verdade é que os AA. não lograram provar a inexistência, a falta de declaração de vontade por parte do nubente A.
Efectivamente, perante a matéria de facto, nada permite concluir que tenha faltado a manifestação dessa declaração de vontade no acto do casamento de Maria com o A.
Ao invés, afigura-se que essa foi a vontade de A.
Note-se que a Ré viveu com o falecido A, como se marido e mulher fossem, durante mais de 20 anos, vindo aquele, nos últimos anos da sua vida, como ficou provado, a manifestar por vezes à Ré o seu desejo de casar com a mesma, intenção que foi adiando para evitar conflitos com os familiares, que se opunham a essa união.
Ao longo dos mais de 20 anos de vida em comum, a Ré sempre tratou o seu marido, A, com todo o respeito, lealdade, carinho e amizade, sempre cooperando e cuidando afectuosamente do mesmo.
Em Dezembro de 2001, a Ré e o seu falecido marido tinham dado inicio à instauração do seu processo de casamento na Conservatória do Registo Civil de Sintra, área da sua residência, onde chegaram a entregar as suas certidões de nascimento para efeito, casamento que na altura só não fizeram por, entretanto, em 29/12/2001, A ter sido internado no Hospital Amadora Sintra.
Também está adquirido nos autos que, durante o internamento do falecido A, este, apercebendo-se do seu débil estado de saúde físico, dizia constantemente à Ré que não queria falecer sem casar com ela, pedindo-lhe para tratar dos papéis e acelerar o processo.
Assim, em 13 de Janeiro de 2002, o casamento foi celebrado no quarto do Hospital onde o falecido A se entrava internado, com a porta aberta, para que todos os que quisessem pudessem assistir, com a respectiva proclamação afixada e na presença de várias testemunhas.
Apesar da saúde de A se encontrar debilitada, no dia 13 de Janeiro de 2002, aquando do seu casamento, estava consciente, conversou com o médico que o assistia, Dr. J, nomeadamente, sobre o casamento que este pretendia celebrar naquele dia.
Nesse dia, à semelhança dos dois dias imediatamente anteriores, o falecido A, apresentava melhoras. Estava calmo, lúcido, consciente, orientado, desperto, localizado no tempo e no espaço e com plena consciência do acto que queria e que estava a realizar, isto é, o seu casamento com a Ré Maria.
Essa sua vontade de casar com a Ré foi também, sem qualquer reserva e de forma livre, transmitida, ainda antes do início da cerimónia, ao Sr. Adjunto da Conservatória do Registo Civil da Amadora, Dr. L, que celebrou o casamento, tendo à pergunta deste respondido: "Vou-me casar com Maria". E no acto da celebração do casamento, após as primeiras solenidades, quando o referido Sr. Adjunto lhe perguntou se aceitava a Ré, Maria, por sua mulher, o falecido A respondeu. "Sim, aceito", declaração essa que foi ouvida quer pelo referido Sr. Adjunto da Conservatória, quer pelas quatro testemunhas indicadas no assento de casamento quer pelas restantes pessoas que ao acto estiveram presentes. De seguida o falecido Antero colocou a sua aliança de casado. E beijou a Ré Maria.
Ora, deste relato factual resulta com clareza que o falecido A manifestou a sua intenção de contrair casamento com a Ré e assim o declarou, tudo em cumprimento do disposto no art. 156°, al. b), 1ª parte, do Código do Registo Civil, sendo certo que a exigência da declaração expressa de vontade não significa que os cônjuges se tenham de exprimir exactamente com as palavras mencionadas na alínea f) do n.° 1 do artigo 189.° Código do Registo Civil, “que não devem ser havidas, hoc. senso, como termos sacramentais. Os nubentes podem ter manifestado a vontade por outros termos, contanto que a declaração seja expressa, no sentido definido pelo artigo 217.°" (6).

4. Ainda que o fundamento da falta de vontade ou falta de consentimento, não seja invocada pelos AA, uma vez que o julgador não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito, como decorre do disposto no art. 664º do CPC, importa referir que a matéria adquirida nos autos não permite concluir que a declaração do nubente no acto do casamento não corresponde à sua vontade, ou estava afectada por algum vício do consentimento que o impedia de compreender o sentido dessa mesma declaração e assim conduzir à anulabilidade prevista no art. 1631º, b) do CCivil.
Com efeito, o consentimento, que se presume, como decorre do disposto no art. 1634º do Ccivil, é incondicional e inaprazável, tem que ser pessoal, tem de ser perfeito e livre e actual, já que a vontade dos nubentes só é relevante quando manifestada no próprio acto da celebração do casamento (cfr. arts. 1617º, 1618º, 1619º e 1620 do Ccivil), sendo o casamento anulável, além do mais, quando o nubente, no momento da celebração, não tinha a consciência do acto que praticava, por incapacidade acidental ou outra causa, nos termos previstos no art. 1635º do Ccivil.
Mas, no caso, tão pouco os factos provados permitem que se conclua estar o nubente incapacitado de entender e de querer, no momento da celebração do casamento. Ao invés, todos os factos apontam no sentido de, embora o estado de saúde de Antero Ferreira estar a deteriorar-se de forma progressiva, apresentando, algumas vezes, durante período de internamento, estados de confusão e de agitação, o certo é que também ficou provado que a sua vontade de casar com a Ré foi transmitida antes do início da cerimónia, ao funcionário da Conservatória do Registo Civil que celebrou o casamento, tendo respondido, à pergunta do referido funcionário se aceitava a Ré, Maria, por sua mulher, "sim, aceito".

Não se olvida que A foi internado no Hospital Fernando da Fonseca (Amadora-Sintra), em 29 de Dezembro de 2001, por lipotimia, vómitos, ureia e creatinina bastante elevadas e acentuada leucocitose c/neutrofilia. Tinha 87 anos, sofria de insuficiência renal crónica, doença pulmonar crónica obstrutiva e anemia grave e que durante o internamento, o seu estado de saúde foi-se deteriorando de forma progressiva, apresentando, algumas vezes, durante período de internamento, estados de confusão e de agitação, permanecia prostrado, não colaborante, mostrava desorientação, verborreia, sonolência, ficava imobilizado no leito e que durante os dias que antecederam a morte - e designadamente no dia 13 de Janeiro - o doente manteve-se monitorizado com oxigénio (óculos nasais), algaliado, com soro em curso.
Aliás, só por correr risco de vida é que foi possível celebrar o casamento urgente, como decorre do disposto no art. 156º do CRCivil que exige, para que seja possível a celebração de um casamento urgente, que haja fundado receio de morte próxima, o que não significa que quem esteja nesta situação de "morte próxima" não possa estar de perfeita lucidez e ter consciência e vontade livre para celebrar casamento, como aconteceu, tanto quanto os factos provados atestam, com o nubente Antero Ferreira.
Por tudo quanto exposto fica, não podem deixar de improceder as conclusões do presente recurso.

IV – DECISÃO
Termos em que, julgando improcedente a apelação, mantem-se a sentença recorrida.
Custas pelos AA.
Lisboa, 29 de Novembro de 2007.

(Fátima Galante)
(Ferreira Lopes)
(Manuel Gonçalves)
___________________________________
1 - Entre muitos, o Ac. RP de 19.9.2000, CJ, ano XXV, 4º-186. Ac. RC de 3/10/2002, tomo 4, pág. 27; Ac. RL de 21.4.2005 (Granja da Fonseca) ou de 21.04.2005 (Manuela Gomes), www.dgsi.pt/jtrl.
2 - Vide Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, IV, pags. 544 e segs.
3 - Rodrigues Bastos, Notas ao Código Civil, Vol. VI, pag. 67
4 - Eduardi dos Santos, Anulação do Casamento, 1978, pag. 10/11.
5 - Pereira Coelho, Curdo de dDireito de Família
6 - cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Vol. IV, 2ª Edição, pág. 158.