GARANTIA BANCÁRIA
Sumário

1 – A garantia bancária autónoma supõe três ordens de relações jurídicas: (i) relação entre o garantido (dador da ordem) e o beneficiário (credor principal); (ii) relação entre o garantido e o garante (banco) e (iii) relação entre o garante e o beneficiário.
2 – Correlativamente estão em jogo três negócios jurídicos: o contrato – base, em que são partes o dador da ordem (garantido) e o credor principal (beneficiário); o contrato pelo qual o banco (garante) se obriga para com o dador da ordem, mediante certa retribuição, a prestar-lhe o serviço em fornecer a garantia prometida; e o contrato de garantia.
3 – O contrato de garantia bancária autónoma precede o estabelecimento duma relação contratual entre o banco e o devedor principal, em cujo âmbito se insere (i) a obrigação assumida pelo banco de emitir determinada carta de garantia; (ii) obrigação assumida pelo dador da ordem de pagar ao banco uma certa comissão; e (iii) obrigação assumida pelo dador da ordem de reembolsar o banco de todo o pagamento que este venha a efectuar a solicitação do beneficiário da ordem.
4 – O dador da ordem compromete-se ainda a não invocar perante o banco, os meios de defesa que lhe cabem nas relações com o beneficiário.
5 – A garantia não poderá ser invocada pelo beneficiário senão em conformidade com os seus próprios termos, pelo que o garante só tem que pagar o que consta do título de garantia e em harmonia com o teor respectivo. Mas, desde que o beneficiário respeite esse teor e reclame o que à face do título de garantia lhe é devido, o banco não tem outro remédio senão pagar: deve pagar ao primeiro pedido, imediatamente, sem discussão, salvo se o beneficiário, ao reclamar o pagamento, proceder com manifesta má fé.
6 – In casu, tendo o Banco cumprido aquilo a que se obrigara perante a Ré (dador da ordem), prestando as garantias pretendidas, encontra-se esta obrigada perante aquele a pagar tudo o que venha a ser liquidado por conta das garantias bancárias.
G.F.

Texto Integral

Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa:
1.
CAIXA, S.A., instaurou a presente acção declarativa de condenação, com processo comum na forma ordinária, contra [A], actualmente [Sociedade Portuguesa], pedindo a condenação da Ré a pagar-lhe a quantia de € 810.994,15, acrescida dos respectivos juros de mora vencidos e vincendos a partir de 15/06/2004 até integral pagamento.

Fundamenta a sua pretensão, no facto de, no exercício da sua actividade bancária e a pedido da Ré, ter prestado três garantias bancárias, respectivamente, no valor de 40.000.000$00, 45.000.000$00 e 50.000.000$00, a favor da [ESSO], destinadas a caucionar a aquisição de produtos petrolíferos.
Após interpelação da [ESSO], em 03/08/1990, a Autora honrou tais garantias em 24/08/1990, tendo procedido ao pagamento de 135.000.000$00, tendo procedido a Autora, nessa mesma data, à utilização dos dois depósitos a prazo de 40.000.000$00, cada, que caucionavam as duas primeiras garantias de 40.000.000$00 e 45.000.000$00, ficando, assim, o valor global em dívida referente às garantias bancárias honradas, e da responsabilidade da Ré, reduzido a 55.000.000$00, quantia que a Ré ainda não restituiu à Autora.
Acrescenta serem-lhe ainda devidas as comissões referentes às garantias bancárias.

A Ré contestou, por excepção, invocando a prescrição do crédito de juros e de comissões e, por impugnação, alegando, em síntese, que as garantias não assumiam a modalidade “on first demand”, pelo que a Autora, antes de pagar, deveria ter sabido se o débito em causa existia e qual era a sua dimensão, sendo certo que entre a Ré e a beneficiária da garantia existia, em Agosto de 1990, um diferendo relacionado com as quantidades e preços dos combustíveis fornecidos, pelo que conclui pela improcedência da acção e pela sua absolvição do pedido.

A Autora replicou, pugnando pela improcedência da excepção de prescrição deduzida.

Dado que o estado do processo permitia a apreciação do pedido deduzido e da excepção peremptória invocada, o Exc. mo Juiz passou a conhecer imediatamente do mérito da causa, tendo proferido saneador – sentença, decidindo:
a) - Julgar improcedente a excepção de prescrição de créditos de juros e de comissões deduzida pela Ré;
b) – Na procedência da acção, condenar a Ré a pagar à Autora a quantia de € 280.791,82, acrescida de juros de mora à taxa legal estabelecida no DL n.º 32/89, de 25/01, e Avisos n. os 3/93 e 7/93; DL n.º 1/94, de 04/01 e Avisos mensalmente divulgados pela Junta de Crédito Público; Portaria nº 1167/95, de 23/09; Portaria nº 262/99, de 12/04 e Aviso DGT 10097/04 e Portaria n.º 597/05 e Avisos DGT semestralmente divulgados, desde 25/08/1990, no tocante à quantia de € 274.423,71, e desde a data de vencimento das comissões, no tocante ao remanescente, até integral pagamento.

Inconformada, recorreu a Ré, formulando as seguintes conclusões:
1ª – Na audiência preliminar, por se ter entendido, embora desacertadamente, que o processo continha todos os elementos para conhecer imediatamente do mérito da causa, foi proferida decisão que julgou a acção procedente.
2ª – A sentença não está juridicamente correcta, dado que foi proferida sem qualquer rigor ou cuidado, encontrando-se carecida de fundamentação legal e factual.
3ª – A decisão proferida pelo Tribunal a quo violou acintosamente, entre outros, o vertido nos artigos 659º, 668º, n.º 1, alíneas b) e c) do CPC, 627º, n.º 2, 631º e 632º do Código Civil.
4ª – Porquanto a mesma é injusta e violadora dos mais elementares princípios jurídicos, causando à ora recorrente uma sensação de iniquidade, levando ao descrédito pelo nosso sistema judicial, no caso de não vir a ser reparada a verdade e a justiça que é devida pelo Tribunal Superior.
5ª – Quando se recorre da decisão proferida sobre a matéria de facto e de direito, é elemento essencial as provas produzidas;
6ª – No caso em apreço, são os documentos juntos aos autos e única e exclusivamente pela própria Apelada que contrariam a tese por ela desenvolvida;
7ª – Não havendo qualquer outra prova em sentido contrário;
8ª – Não constando do texto das garantias, nenhuma cláusula do tipo “on first demand” são as mesmas acessórias da obrigação principal do devedor, porque têm o mesmo âmbito, dependem da validade da mesma, nos termos previstos nos artigos 627º, n.º 2, 631º e 632º, todos do Código Civil;
9ª – Razão pela qual era exigível que o garante, ora Apelada, exigisse à beneficiária a comprovação de que emergia o seu pedido;
10ª – A exclusão da natureza de garantia bancária autónoma e automática onera o garante de indagar da justeza, fundamento e legitimidade da pretensão do beneficiário;
11ª – Independentemente de se tratar de garantia autónoma e automática, a boa fé negocial e o dever de colaboração impunham à Apelada a obrigação de esclarecer e indagar o peticionado pela beneficiária;
12ª – O que efectivamente a Apelada não cumpriu;
13ª – Pelo que a decisão jamais poderia ser a de procedência da acção;
14ª – Aliás, na decisão recorrida (página 11, fls. 221), afirma-se que “do texto das garantias acima transcrito não consta qualquer cláusula do tipo «on first demand», como, por vezes, sucede ser convencionada. Pelo contrário (...)”;
15ª – Pelo que haver-se-ia que concluir inexoravelmente pela absolvição da Ré, ora Apelante, do pedido;
16ª – A decisão, ora recorrida, deu desacertadamente como provado que a Apelada aferiu da existência do direito reclamado pela ESSO PORTUGUESA;
17ª – Quando, na verdade, dos autos não consta qualquer prova documental nesse sentido, sendo que a que existe vai efectivamente no sentido inverso;
18ª – A Apelada “honrou” inadvertida e negligentemente as garantias;
19ª – Pelo que jamais poderá ser a Apelante responsável pelos actos pouco ou nada zelosos e muito negligentes da Apelada.
20ª – A Apelada não teve o cuidado e dever de se informar junto do garantido, ora Apelante, sobre o montante em débito e sobre se havia ou não incumprimento ou mora, tal como a beneficiária “ESSO” lhe havia participado.
21ª – Perante o descrito circunstancialismo factual, haver-se-á de concluir pela inexistência de direito de regresso da Apelada sobre a Apelante.
22ª – A garantia acessória está funcionalmente ligada ao crédito garantido, sendo afectada pelas vicissitudes da relação contratual que está na sua génese, desde logo não sendo válida se o não for a obrigação principal e sendo lícito ao garante opor ao credor todos os meios de defesa que pudessem ser opostos pelo devedor garantido.

A Apelada contra – alegou, defendendo a bondade da decisão recorrida.

Cumpre apreciar:
2.
Sendo o objecto do recurso delimitado pelas conclusões da Apelante, verifica-se, desde logo, que esta circunscreveu o seu âmbito ao segmento do saneador – sentença, na parte em que foi condenada a pagar à Autora a quantia de € 280.791,82, acrescida de juros de mora à taxa legal estabelecida no DL n.º 32/89, de 25/01, (...), desde 25/08/1990, no tocante à quantia de € 274.423,71, e desde a data de vencimento das comissões, no tocante ao remanescente, até integral pagamento, pelo que a decisão sobre a alegada excepção da prescrição do crédito de juros e de comissões transitou (artigo 684º, n.º 3 CPC).

E as questões a decidir são as seguintes:
a) – Se as três garantias bancárias prestadas pela Autora a pedido da Ré a favor da [ESSO], destinadas a caucionar a aquisição de produtos petrolíferos, se devem qualificar como garantias «on first demand» ou simplesmente garantias acessórias da obrigação principal do devedor;
b) – Se, perante a natureza das garantias bancárias, existirá direito de regresso da Autora/Apelada sobre a Ré/Apelante ou, por outras palavras, se a Ré está obrigada a reembolsar a Autora pelo pagamento por esta efectuado por força das aludidas garantias.
3.
Na 1ª Instância, consideraram-se provados os seguintes factos, admitidos por acordo e provados por documentos:
1º - A Autora é sucessora, por incorporação, do [Banco], matriculado na Conservatória do Registo Comercial de Lisboa sob o n.º 56, conforme escritura de fusão celebrada em 12/07/2001 na Nota Privativa da Caixa, fusão registada na Conservatória do Registo Comercial de Lisboa sob a Ap. 17/20010723 (cfr. documento de fls. 9 a 25).
2º - A Ré solicitou ao [Banco] que este prestasse garantia bancária no valor de 40.000.000$00, pelo prazo de um ano, a favor da [ESSO], destinada a caucionar a aquisição de produtos petrolíferos.
Mais declarou a Ré que “(…) fica bem entendido que esse Banco, no caso de vir a ser chamado a efectuar qualquer pagamento em virtude da garantia (…) solicitada, não terá de apreciar a justeza do direito de reclamação do beneficiário, devendo efectuar o pagamento à primeira interpelação, de nossa conta e sob a nossa responsabilidade.
Obrigamo-nos a reembolsar esse Banco por todos os pagamentos que for chamado a efectuar por força da garantia (…) bancária prestada, das comissões e encargos que o Banco costuma cobrar nestas operações, bem como dos eventuais juros de mora contados a partir da data dos referidos desembolsos (…)”, (cfr. doc. de fls. 26).
3º - O [Banco] , em 03/05/1990, prestou a favor da [ESSO] garantia bancária, a que foi dado o n.º 990990011849, nos seguintes termos:
“O [Banco] (…), em nome e a pedido de [Antas] (…), vem, pelo presente documento, prestar uma garantia bancária a vosso favor até ao limite de 40.000.000$00 (…), a qual se destina a caucionar a aquisição de produtos petrolíferos desde a data da sua emissão até ao termo da sua validade em 03/05/1991.
Responsabiliza-se este Banco, dentro do valor da presente garantia, por fazer a entrega a V. as Exc. as de quaisquer quantias que se tornem necessárias até àquele limite, se a citada firma, faltando ao cumprimento das suas obrigações, com elas não entrar em devido tempo (…)” (cfr. doc. de fls. 27).
4º - Para caucionar a garantia bancária prestada foi constituído um depósito a prazo no valor de 40.000.000$00.
5º - A Ré solicitou ao [Banco] que este prestasse garantia bancária no valor de 45.000.000$00, pelo prazo de um ano, a favor da [ESSO], destinada a caucionar a aquisição de produtos petrolíferos.
Mais declarou a Ré que “(…) fica bem entendido que esse Banco, no caso de vir a ser chamado a efectuar qualquer pagamento em virtude da garantia (…) solicitada, não terá de apreciar a justeza do direito de reclamação do beneficiário, devendo efectuar o pagamento à primeira interpelação, de nossa conta e sob a nossa responsabilidade.
Obrigamo-nos a reembolsar esse Banco por todos os pagamentos que for chamado a efectuar por força da garantia (…) bancária prestada, das comissões e encargos que o Banco costuma cobrar nestas operações, bem como dos eventuais juros de mora contados a partir da data dos referidos desembolsos (…)” (cfr. documento de fls. 28).
6º - O [Banco], em 11/05/1990, prestou a favor da [ESSO] garantia bancária, a que foi dado o n.º 990990012680, nos seguintes termos:
“O [Banco] (…), em nome e a pedido de [Antas] (…), vem pelo presente documento prestar uma garantia bancária a vosso favor até à importância de 45.000.000$00 (…), a qual se destina a caucionar a aquisição de produtos petrolíferos desde a data da sua emissão até ao termo da sua validade em 11/05/1991.
Responsabiliza-se este Banco, dentro do valor da presente garantia, por fazer a entrega a V. as Exc. as, de quaisquer quantias que se tornem necessárias até àquele limite, se a citada firma, faltando ao cumprimento das suas obrigações, com elas não entrar em devido tempo (…)” (cfr. documento de fls. 29).
7º - Para caucionar esta segunda garantia bancária prestada foi constituído um outro depósito a prazo também no valor de 40.000.000$00.
8º - A Ré solicitou ao [Banco] que este prestasse garantia bancária no valor de 50.000.000$00, pelo prazo de um ano, a favor da [ESSO], destinada a caucionar a aquisição de produtos petrolíferos.
Mais declarou a Ré que “(…) fica bem entendido que esse Banco, no caso de vir a ser chamado a efectuar qualquer pagamento em virtude da garantia (…) solicitada, não terá de apreciar a justeza do direito de reclamação do beneficiário, devendo efectuar o pagamento à primeira interpelação, de nossa conta e sob a nossa responsabilidade.
Obrigamo-nos a reembolsar esse Banco por todos os pagamentos que for chamado a efectuar por força da garantia (…) bancária prestada, das comissões e encargos que o Banco costuma cobrar nestas operações, bem como dos eventuais juros de mora contados a partir da data dos referidos desembolsos (…)” (cfr. documento de fls. 30).
9º - O [Banco], em 21/05/1990, prestou a favor da [ESSO] garantia bancária, a que foi dado o n.º 990990013525, nos seguintes termos:
“O [Banco] (…), em nome e a pedido de [Antas] (…), vem pelo presente documento prestar uma garantia bancária a vosso favor até à importância de 50.000.000$00 (…), a qual se destina a caucionar a aquisição de produtos petrolíferos.
Responsabiliza-se este Banco, dentro do valor da presente garantia, por fazer a entrega a V. as Exc. as, de quaisquer quantias que se tornem necessárias até àquele limite, se a citada firma, faltando ao cumprimento das suas obrigações, com elas não entrar em devido tempo (…)” (cfr. documento de fls. 31).
10º - Para caucionar esta terceira garantia bancária, foi subscrita pela Ré e avalizada por terceiro uma livrança no valor de 60.000.000$00 (cfr. documento de fls. 32).
11º - Por carta datada de 03/08/1990, a [ESSO] comunicou ao [Banco] que:
“(…) Dado que a empresa [Antas] faltou ao cumprimento das suas obrigações para com a [ESSO] e tendo a mesma manifestado já a sua total impossibilidade para solver em tempo útil os seus débitos, que montam a 147.761.620$00, vimos, ao abrigo das citadas garantias, solicitar a V. as Exc. as que procedam a uma entrega de 135.000.000$00 a favor da [ESSO] (…)” (cfr. documento de fls. 33).
12º - Tais garantias foram honradas em 24/08/1990, tendo o [Banco] procedido ao pagamento de 135.000.000$00 à [ESSO], (cfr. documento de fls. 34).
13º - O [Banco], na referida data de 24/08/1990, procedeu à utilização dos dois depósitos a prazo de 40.000.000$00, cada, que caucionavam as garantias de Esc. 40.000.000$00 e de Esc. 45.000.000$00.
14º - A Ré não reembolsou à Autora a quantia de Esc. 55.000.000$00.
15º - A Ré também não pagou ainda à Autora os seguintes montantes correspondentes a comissões referentes às garantias honradas:
a) - relativamente à garantia n.º 990990011849, o montante de 315.890$20 correspondente a parte do valor da comissão, devido desde 25.08.1990,
b) - relativamente à garantia n.º 990990012680, a comissão vencida em 11.08.1990 no valor de Esc. 805.033$00 e
c) - relativamente à garantia n.º 990990013525, a comissão vencida em 21.08.1990 no valor de Esc. 579.173$00.
16º - Por carta datada de 09/08/1990, a Ré comunicou ao [Banco] que, “Em resposta à vossa carta de 6 de Agosto de 1990 (Garantias/JP) (…) Não temos qualquer contestação a apresentar, no que concerne à liquidação à ESSO. (…)”, (cfr. documento de fls. 75).
17º - Por carta datada de 03/08/1990, a Ré comunicou à [ESSO] que “(…) Ao saldo indicado de 147.761.620$00, damos a nossa conferência. (…). Nesta data, enviamos ao BNU carta, em que solicitamos que honrem as citadas garantias” (cfr. documento de fls. 76).
18º - Por carta datada de 16/11/1990, a Ré comunicou ao [Banco] que “(…) Com efeito, nunca foi propósito desta empresa deixar de honrar o cumprimento das suas obrigações. (…) Nada, pois, de qualquer ideia ou propósito de querer fugir às responsabilidades assumidas, sendo certo, por outro lado, que nunca nos alheámos das nossas responsabilidades perante o B.N.U (…) (cfr. documento de fls. 77).
4.
As garantias bancárias tiram a sua origem da liberdade contratual. Ao que se supõe, nenhuma lei de qualquer país as regula de forma expressa e específica, pelo menos em termos inquestionáveis.

As garantias em referência são chamadas, indiferentemente, , garantias bancárias autónomas, garantias (bancárias) automáticas, puras, incondicionais, abstractas, independentes, à primeira solicitação, à primeira interpelação ou de pagamento imediato.

Compreende-se a finalidade prática da garantia autónoma quando, por hipótese, o interessado deseja uma garantia tão forte como o depósito de dinheiro ou de valores.

Dados os inconvenientes desse depósito, dispõe-se a aceitar no lugar dele, outra garantia, mas que o coloque em situação tão segura como a que lhe adviria de um depósito feito nas suas mãos.

Essa outra garantia será prestada por um banco, em termos de funcionamento automático, logo à primeira solicitação do interessado, sem este ter de justificar o pedido e sem que o banco possa opor-lhe quaisquer objecções.

O beneficiário abdica do depósito, mas no pressuposto de ser substituído por uma garantia que, chegado o momento oportuno, ele possa efectivar imediatamente, poupando-se aos incómodos e demoras de um procedimento judicial, e colocando nas suas mãos, a posteriori, aqueles fundos que renunciou a receber a priori(1).

A outra parte não pode deixar de se mostrar de acordo, visto tratar-se de sucedâneo prático de um depósito que tem vantagem em não efectuar.

Por outro lado, o banco, correndo um risco maior, também percebe do seu cliente uma comissão mais elevada; procura naturalmente acautelar em termos convenientes o eventual exercício do direito de regresso contra ele; e foge a imiscuir-se nos litígios entre garantido e o beneficiário, como terá de reembolsar o beneficiário, sem necessidade de o banco tomar posição a favor de um ou de outro.

Na verdade, o garante paga ao credor sem discutir; depois o devedor tem de reembolsar o garante, também sem discutir. E será, por último, entre o devedor e o credor que se estabelecerá a controvérsia, se a ela houver lugar, cabendo ao devedor o ónus de demandar judicialmente o credor para reaver o que houver desembolsado, caso a dívida não existisse e ele portanto não fosse, afinal, verdadeiro devedor.

Depois destes considerandos, Galvão Telles(2) define a garantia autónoma como o contrato pelo qual o banco que a presta se obriga a pagar ao beneficiário certa quantia em dinheiro, no caso de inexecução ou má execução de determinado contrato (o contrato – base), sem poder invocar em seu benefício quaisquer meios de defesa relacionados com esse mesmo contrato.

Ou, por outras palavras, garantia autónoma é “o contrato pelo qual um banco, por mandato do seu cliente, se obriga a pagar certa importância à outra parte (beneficiário), ficando esta com o direito potestativo de exigir a execução dessa garantia, sem que lhe possam ser opostos quaisquer meios de defesa baseados nas relações entre o banco e o ordenador ou entre este e o beneficiário(3)”.

Existe uma certa tendência para confundir a garantia autónoma com a fiança; mas essa tendência é errónea.

Sem dúvida, as duas correspondem a preocupações semelhantes, na medida em que ambas têm uma função específica de garantia; não podem, todavia, assimilar-se, porque as separam traços fundamentais.

A fiança é o contrato pelo qual uma pessoa se obriga para com o credor a cumprir a obrigação de outra pessoa, no caso de esta o não fazer. O fiador compromete-se a pagar a dívida de outrem – o devedor principal. O seu compromisso é acessório.

No caso de garantia autónoma, o garante não se obriga a satisfazer uma dívida alheia. Ele assegura ao beneficiário determinado resultado, o recebimento de certa quantia em dinheiro, e terá de proporcionar-lhe esse resultado, desde que o beneficiário diga que não o obteve da outra parte, sem que o garante possa entrar a apreciar o bem ou mal fundado desta alegação.

O objecto da fiança confunde-se com o objecto da dívida afiançada, no sentido de que o fiador tem de pagar o que o afiançado deixou de satisfazer. O objecto da garantia autónoma é distinto do objecto da obrigação decorrente do contrato – base.

Daqui resulta que o garante autónomo ou independente, ao contrário do fiador, não é admitido a opor ao beneficiário as excepções de que se pode prevalecer o garantido. Faz-se muitas vezes uma declaração expressa nesse sentido, afirmando-se no título da garantia não poder o garante invocar as excepções derivadas do contrato – base. Essa declaração não é indispensável, mas tem a vantagem prática de explicitar melhor que não se trata de uma fiança. Em regra, tal declaração aparece rotulada de renúncia, mas verdadeiramente não se trata de renúncia – ou melhor, exclusão – de um direito que assistisse em princípio ao garante, e sim de uma consequência necessária da natureza autónoma da garantia(4).

O contrato de garantia bancário à primeira solicitação é consensual, inominado, atípico, não – real, não – sinalagmático, monovinculante e gratuito.

Trata-se de um contrato consensual, por a respectiva validade não depender da observância de uma determinada forma. É um contrato inominado e atípico: não tem nomen juris nem goza de regulamentação legal. Não – real: verifica-se independentemente da tradição de uma coisa. Não sinalagmático: não dá lugar a obrigações recíprocas. Monovinculante: do contrato resultam obrigações apenas para o banco. É um contrato gratuito, porque com ele o beneficiário nunca sofre sacrifícios(5).

A garantia autónoma é uma figura triangular, supondo três ordens de relações jurídicas:
a) – Relação entre o garantido (dador de ordem) e o beneficiário;
b) – Relação entre o garantido e o garante (banco);
c) – Relação entre o garante e o beneficiário (credor principal).

As primeiras e as últimas são de natureza externa, no sentido de que nelas participa o beneficiário; as segundas são de índole interna, no sentido de que nelas não participa o beneficiário, travando-se entre os outros sujeitos.

Correlativamente estão em jogo três negócios jurídicos: o contrato – base, em que são partes o dador de ordem e o beneficiário; o contrato pelo qual o banco se obriga para com o dador de ordem, mediante certa retribuição, a prestar-lhe o serviço consistente em fornecer a garantia pretendida; e o contrato de garantia.

A garantia não poderá ser invocada pelo beneficiário senão em conformidade com os seus próprios termos. O banco só tem que pagar o que consta do título de garantia e em harmonia com o teor respectivo. Mas, desde que o beneficiário respeite esse teor e reclame o que à face do título de garantia lhe é devido, o banco não tem outro remédio senão pagar: deve pagar ao primeiro pedido, imediatamente, sem discussão.

Há um caso extremo em que o banco pode e deve recusar o pagamento: é o que ocorre quando o beneficiário, ao reclamar o pagamento, procede com manifesta má fé.

Não basta que o banco alegue a má fé. Torna-se necessário que ela seja patente, não oferecendo a menor dúvida, por decorrer de absoluta segurança de prova documental em poder do banco.

Resulta do que se deixou exposto que o contrato de garantia bancária autónoma precede o estabelecimento duma relação contratual entre o banco e o devedor principal. No âmbito dessa relação observa-se, pelo menos, a existência de três obrigações:
a) – Obrigação assumida pelo banco de emitir determinada carta de garantia;
b) – Obrigação assumida pelo dador da ordem de pagar ao banco uma certa comissão;
c) – Obrigação assumida pelo dador da ordem de reembolsar o banco de todo o pagamento que este venha a efectuar a solicitação do beneficiário da garantia autónoma.

Pela terceira obrigação, o dador da ordem compromete-se ainda a não invocar, perante o banco, os meios de defessa que lhe cabem nas relações com o beneficiário. O dador da ordem pagará ao banco tal como este pagar ao beneficiário – sem discutir as relações beneficiário – dador da ordem.

Considerando os factos provados, torna-se claro que foram celebrados três contratos de garantia bancária, também designada de garantia bancária autónoma.

Como se disse, este tipo de contrato ainda não tem consagração legislativa específica em Portugal. Ele tem por fonte legal apenas a iniciativa criadora dos agentes comerciais em ordem a tornar mais fluído e seguro o mundo comercial, isto é, a sua fonte é o princípio da liberdade contratual consagrado no artº 405º C.Civil. E é pelas cláusulas contratuais inseridas no texto da convenção negocial e sua interpretação e das correspondentes declarações de vontade e contexto em que foram proferidas que será possível definir a específica caracterização do contrato de garantia.

In casu, tendo em conta os factos provados, distingue-se perfeitamente o contrato – base celebrado entre o devedor (Antas) e o credor [ESSO] (o beneficiário), consubstanciado num contrato de fornecimento de produtos petrolíferos. O contrato de mandato celebrado entre o mesmo mandante [Antas] (ora garantido) e o [Banco Nacional] (garante), pelo qual o devedor mandata (mandato sem representação) este para emitir a garantia a favor do credor (beneficiário), no caso de incumprimento de pagamento de preço. E finalmente o contrato de garantia, pelo qual o garante, emitindo o competente título, se obriga a pagar ao beneficiário o montante convencionado, caso o devedor não cumpra as suas obrigações.

De entre as situações de garantia autónoma importa fazer referência à figura da garantia «on first demand” ou à primeira solicitação, a qual cria uma situação jurídica por força da qual o garante, ao ser interpelado pelo credor, terá de pagar a quantia garantida sem poder contestar o pagamento do que lhe é exigido.

A garantia à primeira solicitação não é acessória mas autónoma. As condições são mais onerosas para o garante que para o devedor principal; a invalidade da obrigação garantida não determina a da garantia; o garante não pode invocar os meios de defesa que assistam ao devedor principal na relação com o credor principal.

Por outro lado, ao fiador é lícito recusar o cumprimento enquanto o credor não provar o incumprimento da obrigação principal. O beneficiário da garantia autónoma está dispensado de tal prova.

Este tipo de garantia reforça ainda mais o sentido da autonomia/independência da garantia bancária e introduz-lhe a característica da automaticidade, no sentido de que o banco garante fica obrigado a pagar imediatamente a quantia garantida, logo que o beneficiário lho solicite, sem que lhe seja permitido discutir as razões do pedido do pagamento, bastando tão somente ao beneficiário alegar o incumprimento da obrigação principal do devedor.

Reportando-nos ao caso concreto, ficou provado que a Ré [Antas] solicitou, por três vezes, ao [Banco Nacional] que este prestasse garantias bancárias, pelo prazo de um ano, a favor da [ESSO], destinadas a caucionar a aquisição de produtos petrolíferos.

Mais declarou a Ré que “(…) fica bem entendido que esse Banco, no caso de vir a ser chamado a efectuar qualquer pagamento em virtude da garantia (…) solicitada, não terá de apreciar a justeza do direito de reclamação do beneficiário, devendo efectuar o pagamento à primeira interpelação, de nossa conta e sob a nossa responsabilidade.

Obrigamo-nos a reembolsar esse Banco por todos os pagamentos que for chamado a efectuar por força da garantia (…) bancária prestada, das comissões e encargos que o Banco costuma cobrar nestas operações, bem como dos eventuais juros de mora contados a partir da data dos referidos desembolsos (…)”.

Por força do assim estabelecido, o [Banco Nacional] prestou a favor da ESSO as garantias bancárias solicitadas, reproduzindo-se em cada um dos três casos os seguintes dizeres:
“O [Banco Nacional] (…), em nome e a pedido de [Antas] (…), vem, pelo presente documento, prestar uma garantia bancária a vosso favor até ao limite de (....), a qual se destina a caucionar a aquisição de produtos petrolíferos desde a data da sua emissão até ao termo da sua validade.

Responsabiliza-se este Banco, dentro do valor da presente garantia, por fazer a entrega a V. as Exc. as de quaisquer quantias que se tornem necessárias até àquele limite, se a citada firma, faltando ao cumprimento das suas obrigações, com elas não entrar em devido tempo (…)”.

Torna-se, pois, patente, que, no seguimento da relação contratual estabelecida entre o Banco e a Ré, aquele assumiu a obrigação de emitir três cartas de garantia. A Ré, dadora da ordem, assumiu a obrigação de pagar ao Banco umas certas comissões e de o reembolsar de todos os pagamentos que este viesse a efectuar a solicitação do beneficiário das garantias autónomas.

E, como o próprio dador da ordem teve o cuidado de especificar, as obrigações assumidas pelo banco consubstanciavam-se em garantias “on first demand”: “fica bem entendido que esse Banco, no caso de vir a ser chamado a efectuar qualquer pagamento em virtude da garantia (…) solicitada, não terá de apreciar a justeza do direito de reclamação do beneficiário, devendo efectuar o pagamento à primeira interpelação, de nossa conta e sob a nossa responsabilidade.

Entretanto, “(…) dado que a empresa [Antas] faltou ao cumprimento das suas obrigações para com a [ESSO] e tendo a mesma manifestado já a sua total impossibilidade para solver em tempo útil os seus débitos, a (...), a ESSO veio, ao abrigo das citadas garantias, solicitar ao Banco que procedesse às entregas caucionadas a seu favor.

Tais garantias foram honradas, tendo o [Banco Nacional] procedido ao pagamento das quantias caucionadas à ESSO.

De facto, tendo as garantias sido invocadas pelo beneficiário em conformidade com os seus próprios termos, o banco só tinha que pagar o que constava dos títulos de garantia e em harmonia com o teor respectivo.

Mais. Desde que o beneficiário respeitasse, como respeitou, esse teor e reclamasse o que à face dos títulos de garantia lhe era devido, o banco não tinha outro remédio senão pagar: devia pagar ao primeiro pedido, imediatamente, sem discussão.

Aliás, a Ré, por carta datada de 09/08/1990, comunicou ao Banco que, “em resposta à vossa carta de 6 de Agosto de 1990 (Garantias/JP) (…) Não temos qualquer contestação a apresentar, no que concerne à liquidação à ESSO. (…)”.

Por carta datada de 03/08/1990, a Ré comunicou à ESSO que “(…) ao saldo indicado de 147.761.620$00, damos a nossa conferência. (…). Nesta data, enviamos ao BNU carta, em que solicitamos que honrem as citadas garantias”.

Por carta datada de 16/11/1990, a Ré comunicou ao Banco que “(…), nunca foi propósito desta empresa deixar de honrar o cumprimento das suas obrigações. (…) Nada, pois, de qualquer ideia ou propósito de querer fugir às responsabilidades assumidas, sendo certo, por outro lado, que nunca nos alheámos das nossas responsabilidades perante o B.N.U (…).

Tendo o Banco cumprido aquilo a que se obrigara perante o dador da ordem, prestando as garantias pretendidas, encontra-se, ipso facto, o dador da ordem obrigado perante o banco a pagar tudo o que venha a ser liquidado por conta das garantias bancárias autónomas concedidas. E porque ofereceu ainda contra - garantias em benefício do banco, destinada a assegurar o pagamento, o Autor, na referida data de 24/08/1990, procedeu à utilização dos dois depósitos a prazo de 40.000.000$00, cada, que caucionavam as garantias de Esc. 40.000.000$00 e de Esc. 45.000.000$00, não tendo a Ré reembolsado à Autora a quantia de 55.000.000$00.

A Ré também não pagou ainda à Autora os seguintes montantes correspondentes a comissões referentes às garantias honradas:
a) - relativamente à garantia n.º 990990011849, o montante de 315.890$20 correspondente a parte do valor da comissão, devido desde 25.08.1990,
b) - relativamente à garantia n.º 990990012680, a comissão vencida em 11.08.1990 no valor de Esc. 805.033$00 e
c) - relativamente à garantia n.º 990990013525, a comissão vencida em 21.08.1990 no valor de Esc. 579.173$00.

Como tal, face ao princípio “pacta sunt servanda” acolhido no artigo 406º do C.Civil, está a Ré obrigada a pagar à Autora a quantia peticionada de € 280.791,82, correspondente à soma de parte do valor da garantia nº 990990012680, do valor da garantia nº 990990013525, de parte do valor da comissão relativa à garantia nº 990990011849 e dos valores das comissões relativas às garantias nºs 990990012680 e 990990013525.

Por outro lado, porque a Ré não cumpriu culposamente a sua obrigação, dada a presunção de culpa estabelecida no artigo 799º do C.Civil, que não ilidiu, constitui-se a mesma em mora desde a data acordada para o pagamento, ou seja, no caso do reembolso dos valores das garantias, desde 25/08/1990 e, das comissões, desde a data dos respectivos vencimentos (artigo 805º, nº 2, al. a) do C.Civil).

Constituiu-se, assim, na obrigação de indemnizar a Autora pelos prejuízos daí decorrentes, correspondendo tal indemnização aos juros de mora, à taxa supletiva de juros moratórios relativamente a créditos de que são titulares empresas comerciais estabelecida no artº 102º, § 3º do Código Comercial e DL nº 32/89, de 25.01, e Avisos nºs 3/93 e 7/93; DL nº 1/94, de 04.01 e Avisos mensalmente divulgados pela Junta de Crédito Público; Portaria nº 1167/95, de 23.09; Portaria nº 262/99, de 12.04 e Aviso DGT 10097/04 e Portaria nº 597/05 e Avisos DGT semestralmente divulgados (cfr. artigos 804º, nº 1 e 806º, nº 1 do C.Civil).
5.
Pelo exposto, na improcedência da apelação, confirma-se a sentença recorrida.

Custas pela Recorrente.
Lisboa, 29 de Novembro de 2007.
Manuel F. Granja da Fonseca
Fernando Pereira Rodrigues
Fernanda Isabel Pereira
_______________________
1 - Inocêncio Galvão Telles, Revista de Direito e Economia, ano VIII, 281.
2 - Obra citada, 283.
3 - José Maria Pires, Direito Bancário, Volume II, 284.
4 - Galvão Telles, Obra Citada, 284-285.
5 - Seguimos quanto ás modalidades de contrato, Menezes Cordeiro, Direito das Obrigações, Volume I, 415 e seguintes.