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RESPONSABILIDADE CIVIL
NEGLIGÊNCIA GROSSEIRA
CULPA IN VIGILANDO
Sumário
1. Cada um dos arguidos pelas funções que exercia no Externato, o primeiro Director Pedagógico e Presidente do Conselho Pedagógico e os segundos docentes que coordenavam a actividade escolar no âmbito da qual se verificou o acidente, tinha uma posição de garante relativamente aos alunos dessa instituição, posição essa assente na relação de confiança emergente da relação contratual existente, entre tal estabelecimento de ensino e os progenitores dos alunos. 2. Os arguidos não previram o resultado que adveio da omissão de condições de segurança, contudo era-lhes exigível que o fizessem, atentas as funções que exerciam e as normais capacidades inerentes à qualidade de professores. 3. Da factualidade globalmente apurada, resulta um elevado grau de censura, enquadrável na negligência grosseira, já que os arguidos são pessoas com formação, com experiência profissional, atentas as suas idades, e que actuaram com demasiada leveza em relação à segurança dos seus alunos.
Texto Integral
Acordam, em conferência, na 9ª Secção (Criminal) do Tribunal da Relação de Lisboa:
I – Relatório
1. No processo comum nº 71/98.8MALSB do 1º Juízo de Competência Criminal do Tribunal Judicial de Almada, relativo à morte de X., quando contava dez anos de idade, ocorrida em 18 de Março de 1998, na Praia de Olho de Boi, devido a asfixia por submersão, sendo a menor filha de T. e de F., ambos assistentes nos autos,
os arguidos
J.,
M.,
A.
e
B. e o Externato L., enquanto demandado em pedido de indemnização civil, que fez intervir nos autos a Companhia de Seguros F. a qual foi demandada como parte principal,
foram submetidos a julgamento vindo a ser, por sentença prolatada em 21 de Maio de 2007, condenados:
- cada um dos arguidos, pela prática, em co-autoria, de um crime de homicídio por negligência grosseira, p. e p. pelo artº 137º, n.º 1 e 2, do Cód. Penal, na pena de 9 meses de prisão, suspensa na sua execução, nos termos do artº 50º do Código Penal, pelo período de dois anos;
- o demandado Externato L. no pagamento de € 100.000,00 a título de indemnização por danos não patrimoniais, acrescido de juros à taxa legal, desde a notificação do pedido de indemnização e até integral pagamento;
Quanto à Companhia de Seguros F. viria a ser absolvida.
2. Todos os arguidos e o demandado Externato L., inconformados com a mencionada decisão, interpuseram recurso, em 11 de Junho de 2007, extraindo das suas motivações as seguintes conclusões:
(…)
3. Em resposta, o Ministério Público veio dizer, formulando as seguintes conclusões:
(…)
4. Contra-alegaram os assistentes formulando as seguintes conclusões:
(…)
5. Por seu turno, a recorrida F., nos termos constantes de fls. 1327 e segs., que aqui se dão por reproduzidas, veio dizer, em síntese, que o Recorrente Externato, não tem qualquer razão, devendo ser negado provimento ao recurso apresentado, sendo que, qualquer que venha a ser a decisão em sede criminal (condenação ou absolvição dos arguidos), a demandada F. terá sempre de ser absolvida pelos fundamentos invocados pela Mma. Juiz a quo na sentença, mormente atenta a invocada e demonstrada exclusão da cobertura ou porque não existe responsabilidade objectiva da ora alegante.
6. O Exmo. Procurador-Geral Adjunto nesta Relação após o seu visto.
7. Efectuado o exame preliminar foi considerado haver razões para a rejeição do recurso por manifesta improcedência (art.°s 412.°, 414.° e 420.°, n° 1 do Código de Processo Penal) sendo por isso determinada a remessa dos autos aos vistos para subsequente julgamento na conferência (art. 419.°, n° 4, al. a) do Código de Processo Penal), aplicando-se Lei processual penal anteriormente em vigor à data dos factos, já que a aplicar-se a lei actual, tal configura uma “quebra de harmonia e unidade dos vários actos do processo, bem como pode configurar um prejuízo dos seus direitos de defesa” – vd. art.° 5° do C.P.Penal, aprovado pela Lei n.° 48/2007, de 29 de Agosto.
Colhidos os vistos legais, cumpre agora apreciar e decidir.
II – Fundamentação
1. Conforme entendimento pacífico dos Tribunais Superiores, são as conclusões extraídas pelo recorrente, a partir da respectiva motivação, que operam a fixação e delimitação do objecto dos recursos que àqueles são submetidos, sem prejuízo da tomada de posição sobre todas e quaisquer questões que, face à lei, sejam de conhecimento oficioso e de que ainda seja possível conhecer (cfr., entre outros, os Acs. do STJ de 16.11.95, de 31.01.96 e de 24.03.99, respectivamente, nos BMJ 451° - 279 e 453° - 338, e na Col. (Acs. do STJ), Ano VII, Tomo 1, pág. 247, e ainda os arts. 403° e 412°, n° 1, do CPP).
Mediante o presente recurso os recorrentes submetem à apreciação deste Tribunal Superior em síntese as seguintes questões:
a) Insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, com impugnação por omissão da matéria de facto dada como provada;
b) Contradição entre a matéria de facto dada como provada e não provada;
c) Erro notório na apreciação da prova;
d) Incorrecta integração jurídica dos factos provados;
2. Passemos, pois, ao conhecimento das questões alegadas. Para tanto, vejamos, antes de mais, o conteúdo da decisão recorrida:
a) No que concerne a matéria de facto, o Tribunal a quo declarou provados os seguintes factos (transcrição):
1. O Externato L. é um estabelecimento de ensino particular, que funciona ao abrigo do alvará n.º …e que tem alunos do pré-escolar ao 12º ano de escolaridade.
2. O arguido J. foi proposto pela Diocese de Setúbal para Director Pedagógico, tendo sido aceite e autorizado, em 12/12/1996, a exercer as suas funções, sendo, desde então, o responsável do Externato perante o Ministério da Educação.
3. Na qualidade de Director Pedagógico, preside ao Conselho Pedagógico, a quem cabe determinar as actividades pedagógicas: curriculares e de complemento curricular.
4. Em reunião ocorrida em 14/1/1998 a Direcção e o Conselho Pedagógico aprovaram o Plano Anual de Actividades para 1997/1998 que incluía, além do mais, a organização de uma actividade lectiva de complemento curricular denominada "4ª Operação Praia Adoptiva/6ª Limpeza da Praia do Olho de Boi", integrada na "Quinzena da Juventude de Almada", não tendo sido feita qualquer recomendação nem emitidas instruções concretas aos professores sobre tal actividade; também não foi determinado quais e quantos docentes acompanhariam a realização de tal actividade;
5. Os arguidos A., M. e B. são professores e exerciam, à data, a sua actividade por conta do Externato L.
6. Eram membros do Clube de Complemento Curricular de Ambiente e responsáveis pela actividade referida em 4, cabendo-lhes o acompanhamento da mesma.
7. A actividade denominada "4ª Operação Praia Adoptiva/6ª Limpeza da Praia de Olho de Boi" era uma actividade lectiva de complemento curricular organizada pelo C1ube da Natureza, do qual a X. era sócia.
8. No dia 18 de Março de 1998 os arguidos A., B.e M., na qualidade de coordenadores, acompanharam um grupo de 50 alunos na referida actividade de limpeza da Praia de Olho de Boi.
9. Chegaram à praia por volta das 9:00 horas e iniciaram a limpeza, sob orientação destes professores, a quem cabia a responsabilidade pelo desenvolvimento da acção e pela vigilância dos alunos, zelando pela segurança dos mesmos.
10. Os alunos mais velhos do Clube da Natureza do Externato efectuavam uns passeios de canoa com os alunos mais jovens, o que era habitual desde há seis anos, como forma de premiar o seu labor e de lhes incutir o gosto pela modalidade.
11. Cerca das 15h45m do dia 18 de Março de 1998, N., F. e a X., de dez anos de idade, embarcaram numa dessas canoas.
12. A X., aluna do 5° ano, Turma A, do Externato, envergava um colete designado como ajuda de flutuação, propriedade do Externato, que havia sido adquirido a empresa credenciada, estando homologado na Noruega, de onde fora importado.
13. Existia uma forte corrente que embatia com força no casco do batelão "Sant Agostino" que estava atracado no cais de Olho de Boi.
14. Na altura a maré estava no período de enchente e as correntes apresentavam-se fortes, pelo que, a canoa começou a ser arrastada pela corrente para junto do referido batelão.
15. Os três ocupantes remavam procurando abandonar o referido local mas não conseguiam em virtude da corrente de enchente que os arrastava em direcção à plataforma, não logrando controlar a canoa, pelo que acabaram por embater na proa, bastante inclinada, do batelão.
16. Acabaram por saltar para a água, pois praticamente não cabiam debaixo do batelão, mantendo-se à superfície, continuando a ser arrastados pela corrente para debaixo do batelão, pelo que, procuraram nadar para terra, mas devido à forte corrente não conseguiram.
17. Na altura dos factos os docentes A. não avistavam o que se estava a passar nas e com as canoas.
18. Os arguidos A. e B., eram os únicos professores presentes na ocasião referida em 11, falaram com os menores, aconselharam-lhes calma e a arguida B. deslocou-se ao Clube Náutico solicitando que diligenciassem pelo envio de socorro para salvar os menores.
19. Surgiu no local, poucos minutos depois, um pescador, G, que se apercebeu dos gritos vindos da praia e com a sua embarcação, que se encontrava dentro de água, foi em auxílio dos três sinistrados, tendo conseguido recolher o N., mas não logrou aproximar-se das duas meninas.
20. Acto contínuo atirou-se ao rio S., envergando um colete que lhe foi entregue, que conseguiu resgatar F..
21. A X. foi sugada pela corrente de enchente para debaixo da proa do mencionado batelão, vindo a falecer devido a asfixia por submersão, o que se qualifica, médico-legalmente, como morte violenta.
22. Os arguidos A. e B. não se lançaram à água - o arguido A. sido operado ao coração há pouco tempo e a arguida B. não sabia nadar;
23. O arguido M. havia abandonado o local cerca das 15 horas para se deslocar a uma reunião na Escola R., sita no Feijó, onde leccionava;
24. O arguido apenas comunicou aos seus colegas a sua ausência, não comunicou à direcção do Externato a sua ausência, nem diligenciou pela sua substituição;
25. O arguido M. é monitor de canoagem;
26. Não foi feita qualquer recomendação, nem emitidas instruções concretas aos professores sobre a actividade "4.ª Operação Praia Adoptiva/6ª Limpeza da Praia do Olho de Boi".
27. Em concreto, a Direcção do Externato não veiculou quaisquer instruções no sentido de os professores se assegurarem junto das entidades competentes se as condições de navegabilidade eram adequadas à prática da canoagem, nem foram abordados procedimentos a adoptar em caso de acidente.
28. Nem a Direcção do Externato nem os professores responsáveis comunicaram a descrita actividade de canoagem à Capitania do Porto de Lisboa e não providenciaram pela colocação de uma embarcação de apoio.
29. A actividade não foi comunicada ao Clube Náutico de Almada, nem foi com o mesmo celebrado qualquer acordo de colaboração com o Clube da Natureza ou Clube da Canoagem;
30. Os arguidos por força das suas funções – director e docentes – eram responsáveis pela segurança de todos os alunos que participaram na actividade.
31. Não procederam todos eles com o cuidado a que nas circunstâncias da referida actividade estavam obrigados, lhes era exigível e de que eram capazes;
32. Sabiam que a actividade de canoagem é uma actividade perigosa por natureza, que obriga à adopção de medidas de segurança, e que naquelas condições concretas, com alunos jovens e inexperientes, e considerando o número de alunos envolvidos impunha a verificação prévia das condições de navegabilidade e a existência de uma embarcação de apoio.
33. Por outro lado, pese embora fosse da responsabilidade dos arguidos A., B. e . zelar, no local, pela segurança dos cinquenta alunos que integravam a referida actividade: os arguidos A. e B., cientes de que não reuniam condições para, em caso de necessidade, socorrerem os alunos, nem tinham disponíveis meios de socorro, assumiram, no entanto, a vigilância;
34. O arguido M. estava ciente das incapacidades dos seus colegas A. e B..
35. Agiram com desrespeito pelas mais elementares regras da prudência e, embora devessem ter previsto que o seu comportamento omissivo poderia por em perigo a vida dos alunos, nem sequer representaram o resultado da sua conduta.
36. Os arguidos com as suas condutas omissivas criaram um risco relevante que determinou a morte da X..
37. Bem sabiam que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.
38. O professor M. tinha plenos conhecimentos técnicos da modalidade, pois é professor de Educação Física e havia já cerca de 10 anos, que fazia canoagem, descendo cursos como o Tejo e o Guadiana;
39. Desde 1991 e até à data do acidente, os Professores M. e A. efectuavam descidas de canoagem de rios como o Minho, Douro, Paiva, Alva, Mondego, Tejo, Sado, Mira e Guadiana.
40. Os Professores A., B. e M., à data dos factos tinham 51, 40 e 48 anos, e o arguido M. era pessoa experiente e capaz para acompanhar os alunos na actividade;
41. Na Praia de "Olho de Boi" mantinham contactos estritos com o Clube Náutico;
42. Depois do almoço os alunos fizeram uma visita à Quinta da Arialva, que se situa nas proximidades, onde realizaram uma visita guiada às linhas de enchimento de garrafas.
43. Só após a referida visita foram realizados os passeios de canoa, na Praia de Olho de Boi, e sempre junto à margem, com três alunos por canoa, sendo utilizadas duas canoas, indo em cada uma um aluno mais experiente, que manobrava.
44. Ao organizar a actividade de canoagem os professores tomaram as precauções seguintes, que consideraram necessárias e suficientes:
- só permitiram o embarque de crianças que soubessem nadar;
- o embarque só era permitido quando as crianças tivessem colocado o colete de salvação, sendo a colocação supervisionada por um professor;
- eram dadas indicações no sentido da canoa não se afastar da margem, não indo para além dos pontões que delimitam a praia de Olho de Boi, sendo tripulada por um aluno mais velho e com alguma experiência de canoagem.
45. Os clubes de canoagem e pelos agrupamentos de escuteiros não fazem uso de embarcação de apoio;
46. A canoa em causa com 4,73 metros de comprimento, 0,91 metros de boca e 0,26 metros de pontal, com uma arqueação de 0,28 TAB (Moorsom) é uma embarcação de construção artesanal, fabricada pelo Externato, com base em molde emprestado pelo CNOCA e cujo modelo é utilizado pelos clubes de canoagem e agrupamentos de escuteiros do Distrito de Setúbal.
47. É construída em fibra de vidro, casco liso, fundo chato, de boca aberta e cor branca, dispõe de duas caixas-de-ar, cada uma com um furo de 1,5 cm de diâmetro, possuindo a estrutura interior de espaço e cadeiras em plástico fixas para sentar três utilizadores.
48. A canoa não apresentava defeitos de construção, mas os furos existentes nas caixas-de-ar eram susceptíveis de embarcar água pelos respectivos furos.
49. O colete que a menor envergava trata-se de um colete da marca norueguesa "Regatta" de cor amarela, cujo material interior é compacto e flexível, sendo revestido a nylon. Pelas dimensões evidenciadas, trata-se de um colete para criança, tendo uma única forma de ser envergado (não reversível) não dispondo de protecção para manter a cabeça do utilizador fora de água em caso de inanimação (colete de salvamento).
50. Da homologação do colete consta a advertência de que as crianças devem sempre usar coletes de salvamento;
51. Ainda que usasse um outro colete o acidente, nas condições em que ocorreu e devido ao fenómeno de sucção, com grande probabilidade teria as mesmas consequências, já que a X. foi "sugada" para debaixo da embarcação Sant’Agostino.
52. No início da actividade de canoagem as condições de navegabilidade eram boas e adequadas à prática da canoagem;
53. No dia em causa para Cacilhas as praia-mares ocorreram às 5h 49 m e às 18h16m; as baixas-mares ocorreram às 11h28m e às 23h46m.
54. Tal maré foi média;
55. As marés vivas ocorreram no dia 14.03.1998 e 29.03.1998 e a maré morta ocorreu a 22.03.1998.
56. Em 06.03.1998, a empresa “B. , Lda”, requereu autorização ao Capitão do Porto de Lisboa para a entrada do Pontão “Sant’Agostino”, de nacionalidade italiana, propriedade de Societá Italiana … , S.P.A, de 1539 toneladas brutas e 60 metros de comprimento, no Porto de Lisboa no dia 09.03.1998, procedente do Porto de Sines a reboque do “Polença”, propriedade da R.. Mais consta a informação de que o pontão (batelão) seguirá para os estaleiros da Venamar, na Amora, a fim de efectuar diversas reparações.
57. Tal autorização foi concedida, com diversas condições.
58. O batelão deu entrada no Porto de Lisboa em 10.03.1998 às 00H15 e saiu em 24.08.1998 às 17H00 – fls. 1019 e 1020.
59. X. era filha dos demandantes.
60. Tinha a qualidade de aluna externa, frequentava o mencionado estabelecimento de ensino no âmbito do processo de obtenção da escolaridade mínima obrigatória, frequentando as aulas e almoçando no Externato, tomando o jantar e pernoitando em casa dos demandantes.
61. À data dos factos, encontrava-se a frequentar, o 5º ano da escolaridade mínima obrigatória.
62. O outro filho dos demandantes, T., havia frequentado o mesmo estabelecimento de ensino;
63. Mesmo no âmbito das actividades extra-curriculares só era possível a saída da menor das instalações mediante prévia autorização expressa e formal dos demandantes;
64. No dia 18 de Março de 1998, o Externato L., deslocou para a Praia do Olho de Boi, X., juntamente com outros alunos, sem que dispusesse de autorização expressa, emitida por qualquer um dos demandantes, para deslocar a X. para esta iniciativa escolar.
65. A encarregada de educação de X. era a sua mãe, F.;
66. Na data do sinistro a menor tinha ainda alimentos semi-digeridos no estômago;
67. A X. praticava natação há cerca de quatro ou cinco anos, mas tinha pavor de estar sozinha dentro de água, em sítios para si desconhecidos e onde a água fosse escura e com a presença de limos.
68. O demandado violou, através dos seus agentes, o seu dever de vigilância e guarda da menor X. a que estava juridicamente vinculado, na sequência da relação contratual celebrada com os demandados.
69. Agiu com negligência grosseira, contribuindo decisivamente para a ocorrência dos factos e para a morte da X., nas circunstâncias particularmente graves em que a mesma ocorreu.
70. A morte da X. causou perturbação para o equilíbrio físico e psíquico dos demandantes, pela grande e sofrimento que sentiram.
71. Desde essa data, que o demandante tem tido contínuo acompanhamento psiquiátrico por apresentar depressão major grave, mantendo terapêutica anti-depressiva e tranquilizante, tendo realizado psicoterapia durante três anos;
72. A demandante teve acompanhamento psiquiátrico, pelo menos, até ao dia 02.06.1999;
73. Os demandantes sofreram períodos de incapacidade para o trabalho.
74. Em consequência directa destes factos, o demandante T. deixou praticamente e durante dois anos e meio de se dedicar activa e conscientemente à actividade de gerente da sociedade M. S., Limitada;
75. A X. nunca esteve sozinha, porque iam outros dois alunos na canoa, sendo um deles mais velho e experiente, e os Professores estavam na praia a acompanhar a actividade.
76. Logo após o acidente o Professor J. tentou contactar telefonicamente a mãe da X., embora sem sucesso, mas falou com o irmão desta, que se deslocou ao local, e depois no hospital com o pai da X., tendo-se colocado à disposição, em seu nome pessoal e do Externato, para tudo o que fosse necessário.
77. No dia 20 de Março de 1998 foram apresentadas condolências à família, na sua residência, pelos Professores V.P., J.A. e C. C., na qualidade de ex-professoras e Director de Turma do irmão da X..
78. Foi o Professor e director do Externato, J., que providenciou para que a missa do Funeral da X., em que os pais e familiares estiveram presentes, fosse realizada pelo Bispo D. M. .
79. No dia de 22 de Março de 1998 foi celebrada na Igreja Paroquial de Almada missa de corpo presente, presidida por Sua Eminência Sr. D. M.M. e concelebrada pelo Reverendo Cónego A. B. , Vigário Geral da Diocese, pelo Reverendo Padre J.A., capelão do Externato L. e pelo Reverendo Padre J. , Pároco da Paróquia de Almada.
80. A direcção do Externato, professores e alunos velaram, na Igreja, o corpo da X, e estiveram presentes no Funeral.
81. A missa do 7° dia foi celebrada na Capela do Externato L., presidida pelo Reverendo Padre J.A., capelão do Externato, em que participou todo o corpo docente e discente, bem como os avós maternos da X.
82. Desde 1998 e até à saída dos alunos que frequentavam o mesmo ano de escolaridade da X., durante o mês de Março, foi celebrada, na capela do Externato, anualmente uma missa de intercessão por alma da X., em que participava toda a comunidade escolar.
83. A 14 de Janeiro de 1998 realizou-se uma reunião com encarregados de educação na qual foram apresentadas as actividades para o 2° período, inclusive a "4ª Operação Praia Adoptiva/6ª limpeza da Praia de Olho de Boi", que foi marcada para 18/3/98.
84. A mãe da X., encarregada de educação e ora demandante, esteve presente na referida reunião, tendo obtido conhecimento da actividade e do passeio de canoagem;
85. O Clube da Natureza preparou um folheto informativo da actividade, distribuído aos encarregados de educação, de modo a relembrar os mesmos da realização da actividade, onde consta referido a preia-mar ocorreria pelas 7:20 horas e atingiria ao 3 metros e a baixa-mar ocorreria pelas 13:11 horas e atingiria – 1 metro, com o programa de actividade onde não é referido qualquer passeio de canoa.
86. Tal actividade havia já sido realizada em anos anteriores.
87. O local onde se rea1izou a actividade, a Praia de Olho de Boi, situa-se a cerca de 1 km da Ponte 25 de Abril, e nela se encontra sedeado o Clube Náutico que dispõe de meios próprios, nomeadamente de embarcações.
88. O local é utilizado para a prática de desportos náuticos.
89. Além do Clube Náutico, existe nas imediações o Museu de Arqueologia Naval e a sede do Parque Natural da Berlenga;
90. O Clube da Natureza, à data do sinistro, já desenvolvia a sua actividade há mais de 15 anos, e organizava desde há 6 anos a referida actividade de canoagem;
91. O Clube Náutico veio a colocar uma embarcação na água já depois do desaparecimento da X. e decorridos pelo menos, 20 minutos sobre a queda dos menores à água;
92. O Externato L. por contrato de seguro escolar titulado pela Apólice n. 3299362 transferiu a indemnização de danos pessoais para a Companhia de Seguros Fidelidade Mundial;
93. Por contrato titulado pela apólice n.º 8246073 transferiu para a Companhia de seguros F. responsabilidade pelo pagamento de indemnizações que, ao abrigo da lei civil, sejam exigidas ao segurado em consequência de danos decorrentes de lesões corporais e ou materiais causados a terceiros durante o exercício da sua actividade de exploração do estabelecimento de ensino privado.
94. Consta da cláusula 2 do anexo à apólice referida em 93 que estão excluídas do âmbito da apólice celebrada, “os danos: - causados por inobservância das regras de segurança impostas por lei ou disposições administrativas Lucros cessantes e/ou danos decorrentes de paralisação ou interrupção total ou parcial de actividade ou laboração de terceiros; - Resultantes de actividades estranhas ao estabelecimento ou que se revistam de especial perigosidade; - Resultantes de furto ou roubo; - Resultantes do desaparecimento de bens dos utentes; – Causados pelos utentes das instalações; – Por predisposição patológica; - Por alergias alimentares; - Por deficientes condições higieno-sanitárias na confecção de produtos alimentares; - Decorrentes de transmissão de doenças infecto-contagiosas; – Decorrentes de serviços de transporte escolar;
95. Os arguidos não têm antecedentes criminais;
96. O arguido A. é professor de história, vive com uma companheira;
97. Tanto o arguido como a sua companheira auferem mensalmente a título de vencimento a quantia de € 1850,00;
98. Vive em casa própria;
99. É proprietário de um veículo marca Opel modelo corsa
100. O arguido J. vive em casa própria suportando a título de amortização de empréstimo bancário entre €220,00 e € 230,00 mensais;
101. Exerce funções de sub-director do Externato auferindo mensalmente a quantia de € 2900,00;
102. A sua esposa encontra-se desempregada;
103. É licenciado em teologia pela Universidade Católica;
104. É proprietário de um veículo marca Audi modelo A3, com matrícula de 2006;
105. O arguido M. é professor de educação física na escola R., auferindo mensalmente € 1700,00 a título de vencimento;
106. A sua esposa lecciona no Externato L. auferindo mensalmente € 800,00;
107. Contribui com € 500,00 para as despesas de 2 filhos maiores;
108. É proprietário de um veículo de marca Peugeot, modelo 205 com matrícula do ano de 1992;
109. É bacharel em educação física;
110. Vive em casa própria suportando a título de amortização de empréstimo bancário a quantia de € 550,00 mensais;
111. A arguida B., é professora de Educação Visual e tecnológica, no externato L., auferindo a título de vencimento a quantia de € 1900,00;
112. Vive com o marido que se encontra desempregado e um filho maior;
113. Vive em casa própria, é proprietária de um veículo marca Opel modelo Corsa com 6 anos;
114. É licenciada em educação visual e tecnológica.
115. Os arguidos são pessoas responsáveis e profissionais dedicados;
116. Os arguidos A. e B. ficaram muito abalados psicologicamente com o sucedido.”
b) Por seu turno, na decisão revidenda foram declarados como não provados os seguintes factos:
a) Na ocasião referida em 13 as correntes aproximavam-se dos dois nós, ou seja, 3,5 km/hora;
b) Não é o modelo referido em 48 o modelo de colete utilizado na prática de canoagem.
c) A escolha do Externato L. pelos demandantes teve subjacente dois critérios essenciais: a garantia de uma guarda efectiva e segurança da menor e a pretensa qualidade do ensino ministrado por aquela instituição, atentas as características problemáticas ao nível da prestação efectiva de qualidade no ensino e de segurança geral dos estabelecimentos públicos.
d) E, os demandantes apesar do pesado encargo financeiro mensal que envolvia o recurso a este estabelecimento de ensino, optaram pelo mesmo confiando que seria a solução para garantir a total segurança da X.
e) A companhia do irmão mais velho constituía um contributo para a estabilidade e adaptação da X. e, contribuiu para a opção por este estabelecimento de ensino na fase inicial.
f) A X. estava proibida de se ausentar das instalações do Externato durante o período das aulas e das actividades extra-curriculares, como era imposto para a generalidade dos alunos conforme aviso afixado no externato.
g) Existia no Externato um sistema de identificação dos alunos impedidos de saírem das instalações, através da observação no seu cartão de estudante;
h) Qualquer saída das instalações do Externato, apenas se poderia verificar através do acompanhamento efectivo de um dos demandantes ou de pessoa por estes efectiva e devidamente autorizada, para o efeito.
i) Os demandantes não estavam informados desta actividade, nem com ela concordantes.
j) O local não reúne condições, para se deslocarem crianças para o mesmo.
k) Porque, a ele contíguo, encontram-se uma série de barracões, em estado muito degradado, alguns dos quais abandonados e noutros a servirem de meros armazéns.
l) Os menores circularam nas canoas em pleno período de digestão alimentar;
m) A utilização de colete de salvação com gola evitaria, em caso de desmaio ou outro estado de inconsciência, a morte por afogamento dado colocar o corpo automaticamente com o rosto virado para cima.
n) O Externato não realizou qualquer acção positiva que tivesse contribuído para minorar o sofrimento dos Pais da vítima e, particularmente, o seu conforto espiritual.
o) O facto referido em 73 gerou prejuízos para os demandantes;
p) Não existem no local barracões degradados e abandonados;
q) Os professores A. e B. que desde há 6 anos supervisionavam a actividade, tinham pleno conhecimento dos procedimentos e regras que deveriam ser adaptadas.
r) Os Professores A., B. eram pessoas experientes e capacitadas para acompanhar os alunos na actividade.
s) O núcleo de Canoagem e os docentes que o integravam eram acompanhados tecnicamente pelo Comandante F.;
t) O grupo de alunos tinha idades compreendidas entre os 10 e 16 anos;
u) O grupo de alunos tinha idades compreendidas entre os 8 e 14 anos;
v) O Clube da Natureza é uma entidade descentralizada do Externato que goza de alguma autonomia;
w) Os docentes A. e B. certificaram-se previamente se as condições de navegabilidade eram adequadas à prática da canoagem, observando directamente o estado do mar e através de informação recolhida junto do centro náutico;
x) O colete era adequado à constituição física de x.;
y) Só quando o penúltimo grupo de alunos estava na água é que se verificou uma alteração súbita e imprevista das condições da maré, ocorrendo uma forte corrente que embatia com força no casco do batelão que ali estava atracado, o que fez com que a canoa fosse arrastada pela corrente para junto do referido batelão.
z) O Clube Náutico tem sempre embarcações prontas a socorrer em caso de emergência.
aa) A direcção do Externato ofereceu-se para suportar as despesas do funeral da X.”
c) Em sede de motivação da decisão de facto, escreveu-se no acórdão recorrido:
(…)
3 .
4. Finalmente, alegam os recorrentes sofrer a sentença recorrida de incorrecta subsunção dos factos ao direito, não tendo os arguidos incorrido na prática do crime p. p. pelo art. 137° n° 2 do CP.
Assim, e nesta esteira:
4.1. Defendem os recorrentes que à arguida B., cujas funções eram de vigilância e apoio aos alunos na actividade de limpeza da praia, não pode ser imputada qualquer responsabilidade criminal pelo decesso da X., porquanto, no tocante à actividade realizada no espelho de água junto à praia, apenas dava apoio logístico, certificando se os coletes de salvação estavam bem colocados, mais sendo irrelevante o facto desta arguida não saber nadar.
Por outro lado, pugnam os recorrentes que inexiste qualquer norma jurídica, ou regra de experiência comum, que impusesse aos arguidos os procedimentos em cuja omissão a Meritíssima Juiz baseia a sua condenação, pelo que afirmar que os arguidos violaram "normas de cuidado" sem identificar tal suposta norma, e, sobretudo, "a fonte de tal norma", constitui grosseira violação do princípio da legalidade, o que ofende a estatuído nos arts. 30º e 29º nº 1 da CRP.
A este propósito escreveu-se na sentença recorrida o seguinte:
“A cada um dos arguidos vem imputada a prática de um crime de homicídio por negligência grosseira, p. e p. pelo art. 137º, n.º 1 e 2 do Código Penal.
Dispõe o art. 137º, n.º 1, do Cód. Penal que “Quem matar outra pessoa por negligência, é punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa”. Acrescenta o n.º 2 do mesmo artigo que “Em caso de negligência grosseira, o agente é punido com pena de prisão até 5 anos.”
O bem jurídico protegido é a vida humana.
Neste tipo de crime o sujeito activo pode ser qualquer pessoa, a conduta típica consiste em através do emprego de qualquer meio ou mecanismo, causar a morte a outrem e é necessário que a morte seja objectivamente imputável à conduta violadora do dever de cuidado.
O resultado só é objectivamente imputável à conduta quando ela produz um risco proibido de ocorrência do resultado e o processo que provoca aquele resultado é o desenvolvimento daquele risco proibido.
No que deva entender-se por negligência importa atentar no art. 15º do Cód. Penal, de onde resulta que actua com negligência “quem por não proceder com o cuidado a que, segundo as circunstâncias está obrigado e de que é capaz: a) Representar como possível a realização de um facto que preenche o tipo de crime mas actuar sem se conformar com essa realização; b) Não chegar sequer a representar a possibilidade de realização do facto.”
Constituem elementos estruturais desta norma: a falta de cuidado; a previsão ou previsibilidade do facto ilícito como possível consequência da conduta e a não aceitação do resultado. Ou seja, a negligência traduz-se na omissão de um dever objectivo de cuidado (elemento objectivo) e a circunstância de no caso concreto o agente ser capaz de actuar com a diligência devida. Assim, o dever objectivo de cuidado traduz-se no comportamento adequado a evitar possíveis consequências perigosas da conduta. Tal dever pode resultar de normas legais destinadas a prevenir a violação de bens jurídicos ou onde não existam normas legais através da comparação do comportamento que teria adoptado, no lugar do agente, um homem comum inteligente e prudente.
A negligência grosseira constitui um grau aumentado de negligência. Na esteira do entendimento perfilhado por Roxin, citado por Figueiredo Dias na anotação ao art. 137º do Código Penal, no Comentário Conimbricense ao Código Penal, § 18, pág. 113, “o conceito implica uma especial intensificação da negligência não só ao nível da culpa, mas também ao nível do tipo de ilícito. A este último nível torna-se indispensável que se esteja perante uma acção particularmente perigosa e de uma resultado de verificação altamente provável à luz da conduta adoptada. (…) Mas daqui não pode deduzir –se que o tipo de culpa resulta logo dali inevitavelmente aumentado, antes se tem de alcançar a prova autónoma de que o agente, não omitindo a conduta, revelou uma atitude particularmente censurável de leviandade ao de descuido perante o comando jurídico penal.”
No caso dos autos importa ponderar o art. 10º do Código Penal, que equipara à acção a omissão adequada a causar o resultado previsto na norma, onde se dispõe que “1. Quando um tipo legal de crime compreender um certo resultado, o facto abrange não só a acção adequada a produzi-lo como a omissão da acção adequada a evitá-lo, salvo se outra for a intenção da lei. 2. A comissão de um resultado por omissão só é punível quando sobre o omitente recair um dever jurídico que pessoalmente o obrigue a evitar esse resultado. 3. No caso previsto no número anterior, a pena pode ser especialmente atenuada.”
O tipo de ilícito nos tipos negligentes traduz-se na violação do cuidado a que, segundo as circunstâncias, o agente está obrigado, i é, a violação do cuidado objectivamente devido. E o tipo de culpa que se traduz na violação do cuidado a que o agente, segundo os seus conhecimentos e capacidades pessoais, está em condições de prestar – Figueiredo Dias, Direito Penal, Parte Geral, tomo I, Questões fundamentais, a doutrina geral do crime, pág. 633. “Somente quando o tipo de ilícito negligente se encontra preenchido pela conduta tem sentido indagar ainda se o mandado geral de cuidado e previsão podia também ter sido cumprido pelo agente concreto, de acordo com as suas capacidades individuais, a sua inteligência e a sua formação, a sua experiência de vida e a sua posição social” – Ob cit. Pág. 634.
Diz este professor que “a responsabilização de alguém por um delito negligente implica sempre uma “responsabilidade pelo acaso”” O resultado não tem uma função somente limitadora, mas constitutiva do desvalor unitário do ilícito negligente: é a partir deste desvalor que se compreende a finalidade da norma, como é a partir dele que se determina a medida do cuidado devido. A responsabilização é fundada num efectivo desvalor da acção e de resultado.
“O elemento que parece conferir especificidade ao tipo ilícito negligente é a violação pelo agente, de um dever objectivo de cuidado que, no caso sobre ele impendia.” – Ob cit. pág. 638.
Para os autores que destacam a violação do cuidado objectivamente devido como elemento especifico dos tipos de ilícito negligentes, fica a ideia de que “com uma tal violação ao dever é o desvalor de acção próprio do facto negligente que assim se revela; desvalor ao qual haveria de acrescer um desvalor de resultado, traduzido na produção, causação e previsibilidade daquele”
Há quem substitua tal critério pelo da criação pelo agente de uma risco não permitido.
Entende Figueiredo Dias que as duas formulações são equivalentes, pelo menos no sentido de que, sempre que o agente não tenha, com o seu comportamento, criado um risco não permitido, não será possível encontrar a violação de um dever objectivo de cuidado. De igual modo, sempre que o agente crie um perigo não permitido, estará verificada a violação do cuidado objectivamente devido. Contudo, a designação de violação do cuidado objectivamente imposto tem a vantagem de levar em conta não só o desvalor do resultado, mas também a consideração de que o tipo negligente encerra também um desvalor de acção. “Quando se fala da violação do cuidado objectivamente devido como elemento do tipo de ilícito negligente quer-se designar, dito com maior exactidão, a violação de exigências de comportamento em geral obrigatórias cujo cumprimento o direito requer, na situação concreta respectiva, para evitar realizações não dolosas de um tipo objectivo de ilícito.” Ob cit. Pág. 641 §9.
Por cuidado objectivamente devido deve entender-se a “violação de normas de cuidado que servem concreta e especificamente o tipo de ilícito respectivo, não da observância geral do cuidado com que toda a pessoa deve comportar-se no seu relacionamento interpessoal e comunitário”. – ob cit § 10.
A violação do dever objectivo de cuidado deriva de normas jurídicas de comportamento existentes – sejam gerais e abstractas, inseridas em leis ou regulamentos, sejam individuais, contidas em ordens ou prescrições da autoridade competente. A violação de tais normas constituirá indício de conduta contrária ao cuidado objectivamente exigido, mas não pode por si só fundamentá-lo. Efectivamente quando o perigo típico do comportamento pressuposto pela norma jurídica falte, não pode tal comportamento ser contrário ao dever objectivo de cuidado.
Pode também derivar de normas reguladoras de certos tipos de actividade (ex. normas que regulam a actividade de médicos dentistas, advogados). Tratam-se de normas técnicas que não terão o mesmo relevo incriminador que as normas jurídicas, supra referidas, já que poderão ter na base apenas interesses corporativos. Existem ainda normas que regulam certas práticas desportivas, onde poderá concluir-se que apesar da violação formal da norma, a conduta se manteve dentro do âmbito do risco permitido.
Pode ainda assentar na “figura-padrão”.
De facto, como refere Figueiredo Dias “A concretização de normas de cuidado objectivo será tanto mais difícil quanto faltem por completo disposições escritas, jurídicas ou não, reguladoras da actividade respectiva. Aqui torna-se indispensável o apelo aos costumes profissionais comuns ao profissional prudente, ao profissional padrão, e, ainda na sua falta (ex. baby sitting, trabalho doméstico) impõe-se o recurso directo ao cuidado objectivamente imposto pelo concreto comportamento socialmente adequado – o recurso directo àquilo que em expressão feliz Armin Kaufmann chamou “a personificação da ordem jurídica na concreta situação””. Neste caso, o critério traduz-se na não correspondência do comportamento adoptado àquele que em idêntica situação, teria um homem fiel aos valores protegidos, prudente e consciencioso; tal modelo será diferenciado de acordo com o círculo de actividade em causa. O que acima se refere terá que ser posto em conexão com o comportamento levado a cabo, a sua perigosidade, a hierarquia do bem jurídico atingido, a frequência da sua violação, o valor e aceitabilidade socais do comportamento – cfr. Prof. Figueiredo Dias, Ob. cit. § 13, pág. 644.
Contudo, em domínios altamente especializados, que importam especiais riscos para bens jurídicos significativos de outras pessoas, a violação da norma objectiva de cuidado assumirá um particular relevo -cfr. Prof. Figueiredo Dias § 14, pág. 645.
Neste domínio releva uma especial exigência “a de que o agente não deve actuar antes de se ter convenientemente informado ou esclarecido sobre aqueles riscos, sempre que não se encontre em posição de os avaliar correctamente. Se não conseguir alcançar a informação ou os esclarecimentos necessários deve omitir a conduta projectada; se o não faz e o resultado surge em consequência, a violação deste dever pode integrar o tipo de ilícito negligente. Na frase paradigmática de Roxin, “quem não sabe uma certa coisa deve informar-se, quem não pode alguma coisa deve abandoná-la” - citado por Prof. Figueiredo Dias, ob cit p 645, § 14.
A negligência pode ainda consistir na negligência na assunção ou na aceitação. Leva-se aqui em conta a assunção de tarefas ou na aceitação de responsabilidades para as quais o agente não está preparado, porque lhe faltam as condições pessoais objectivadas, os conhecimentos ou mesmo o treino necessários ao correcto desempenho de actividades perigosas. Nestes casos a negligência reporta-se ao momento em que o agente assumiu ou aceitou o desempenho sabendo todavia, que para tanto lhe faltavam os pressupostos anímicos espirituais e ou corporais objectivamente necessários.
Com efeito, “(…) a negligência só poderá definitivamente afirmar-se relativamente àquele que aceitou o desempenho de uma actividade para a qual não se encontrava física e psiquicamente apto quando o risco daí resultante era dele conhecido ou era pelo menos cognoscível.” – cfr. Prof. Figueiredo Dias § 16, p 646.
Em caso de acontecimentos regidos por leis naturais, vale a regra de que todo o risco deve ser evitável se for previsível e não se encontrar permitido como risco de vida geral ou na base de uma ponderação de interesses. As capacidades pessoais inferiores à média não podem relevar logo ao nível do tipo de ilícito negligente, no sentido de excluir a tipicidade da conduta, mas só devem ser consideradas ao nível do tipo de culpa negligente. Enquanto já as capacidades pessoais superiores à média devem ser tomadas em conta no sentido de poderem fundar o tipo de ilícito da negligência - citando Roxin, ob cit, p 652 § 25.
Quanto aos elementos justificadores há que ponderar a ocorrência de consentimento efectivo, traduzido em consentimento na lesão, que respeita apenas ao perigo de resultado. “Ponto é (…) que possa afirmar-se que a vítima aceitou o risco em plena responsabilidade.” – Prof. Figueiredo Dias, ob. cit, pág. 660, § 38.
No que concerne ao tipo de culpa negligente o mesmo “é dado pela censurabilidade da acção ilícita típica em função da atitude interna juridicamente desaprovada que naquela se expressa e fundamenta.
A culpa negligente surge quando no facto se exprime uma atitude interna de descuido ou leviandade perante o Direito e as suas normas. – Prof. Figueiredo Dias, ob cit. Pág. 661, § 1.
A questão da inimputabilidade deve colocar-se e resolver-se de modo idêntico ao que sucede nos factos dolosos. Do mesmo modo, o estado de necessidade desculpante, bem como o excesso desculpante de legítima defesa.
Verifica-se quando o agente não conhecia nem podia conhecer a proibição.
Entende o Prof. Figueiredo Dias que o erro sobre a ilicitude ou proibição é irrelevante, efectivamente, a admitir tal erro, não seria punível a negligência inconsciente.
A culpa resulta, pois, da atitude descuidada ou leviana revelada pelo agente que fundamenta o seu facto. “(…) A questão de saber se o agente se encontrava em condições, segundo os seus conhecimentos e as suas capacidades pessoais, de ter cumprido o dever de cuidado que integra o tipo negligente (ou se encontrava em condições — o que é o mesmo sempre que o delito negligente é um delito de resultado) — de representar e evitar ou afastar o resultado) configura por seu turno, exemplarmente, a questão do tipo de culpa negligente. Por outras palavras, o elemento material do tipo de culpa negligente traduz-se justamente em que o agente, para que seja punível por negligência, tem não apenas de violar o cuidado objectivamente imposto, mas ainda de não afastar o perigo ou evitar o resultado apesar de aquele se apresentar como pessoalmente cognoscível e este como pessoalmente evitável: só nesta medida se pode afirmar que ele documentou no facto qualidades pessoais de descuido ou leviandade pelas quais tem de responder” - Prof. Figueiredo Dias – ob cit, pág. 663, § 5.
Para se concluir que existe culpa não é necessário demonstrar que o agente podia actuar de outro modo na situação. Basta que se conclua que,” de acordo com a experiência, os outros agindo em condições e sob pressupostos fundamentalmente iguais àqueles que presidiram à conduta do agente, teriam previsto a possibilidade de realização do tipo de ilícito e tê-lo-iam evitado.” – Prof. Figueiredo Dias, pág. 664 § 7.
Há que fazer uso aqui de um critério subjectivo, pois no tipo de culpa não há que atender ao homem médio, mas sim, considerar o tipo de homem da espécie e com as qualidades e capacidades do agente.
Entende ainda o Prof. Figueiredo Dias, citando Jescheck, que para imputar a título de culpa negligente uma determinada conduta não podem ponderar-se as impossibilidades pessoais de entender e cumprir o dever objectivo de cuidado, entre elas: defeitos corporais, faltas de inteligência, de saber, de experiência ou de sensibilidade.
Porém aqui devem ressalvar-se os casos de culpa na assunção ou na aceitação, excepto se o agente não possuir capacidade de compreensão necessária para formar um juízo sobre a insuficiência da sua própria capacidade.
Contudo no caso a conduta é imputada a cada um dos arguidos a título de omissão da conduta adequada a evitar o resultado, designadamente não realizando tal actividade ou dotando-se de meios adequados e reduzir o perigo inerente à mesma. Ou seja, nos crimes omissivos o agente não levou a cabo a acção esperada ou imposta.
Quanto à distinção entre acção e omissão, consideram uns autores que, há que levar em conta o ponto de conexão da censurabilidade jurídico-penal se encontra num comportamento activo ou omissivo. Outros consideram que deve ter-se em conta o princípio da subsidariedade, segundo o qual a omissão será relevante quando o comportamento não puder ser perspectivado como uma acção.
Prof. Figueiredo Dias, na esteira do entendimento propugnado por Stratenwerth, e com o qual concordamos, entende que deve ser considerado o critério da ilicitude típica e de imputação objectiva. Ou seja, a distinção há-de fazer-se consoante a forma de criação de perigo para os bens jurídicos protegidos pela norma. Assim, ao agente deve ser imputada uma acção sempre que ele criou (ou aumentou) o perigo que vem a concretizar-se no resultado; uma omissão sempre que ele não diminuiu aquele perigo. O crime de omissão reside na violação de uma imposição legal de actuar, pelo que, em qualquer caso, só pode ser cometido por pessoa sobre a qual recaia um dever jurídico de levar a cabo a acção imposta e esperada. – Prof. Figueiredo Dias ob. cit, pág 679 § 12.
É usual fazer-se a distinção entre crimes omissivos puros ou próprios, que seriam aqueles que a parte especial, expressamente, referencia a omissão como forma de integração típica, descrevendo os pressupostos fácticos donde deriva o dever jurídico de actuar, referindo tal dever e tornando o agente garante do seu cumprimento, e, omissão impura ou imprópria, em que a tipicidade resultaria de uma cláusula geral de equiparação da omissão à acção legalmente prevista e punível na Parte Geral – art. 10º, n.º 1 e 2 do Código Penal – Prof. Figueiredo Dias, ob cit. Pág. 679 § 13.
Já Roxin entende que omissões puras são aquelas omissões típicas que não têm correspondência num delito de acção, aquelas relativamente às quais o delito correspondente de acção não existe; impuras serão aquelas em que é necessária uma cláusula de equiparação da omissão à acção.
A doutrina tradicional entende a omissão pura como aquela cujo tipo objectivo de ilícito se esgota na não realização da acção imposta pela lei e a omissão impura ou imprópria como aquelas em que o agente assume a posição de garante da não produção de um resultado típico.
Prof. Figueiredo Dias segue a doutrina perfilhada por Roxin, com a qual concordamos inteiramente.
Segundo Eduardo Correia, I, pág. 271, “da norma que pretende evitar um resultado nasce para todos não só a proibição de actividades que o produzam, como também o comando de levar acabo todas as actividades que obstem à sua produção”
Prof. Figueiredo Dias entende que tal equiparação vai longe demais no que concerne ao fundamento político-criminal em que deve assentar, defendendo que o fundamento da equiparação deverá ser o de lograr a conclusão através de uma autónoma valoração da ilicitude, que quanto a um certo tipo de ilícito, o desvalor da omissão corresponde no essencial ao desvalor da acção. O que ocorrerá sempre que sobre o agente impender o dever de evitar activamente a realização típica, isto é, impedir a verificação do resultado típico.
A situação típica nos delitos de omissão é constituída pelos pressupostos fácticos que permitem determinar o conteúdo do dever concreto de actuar. De facto a omissão apenas se torna jurídico-penalmente relevante em função da acção esperada e devida. “Quanto aos crimes impróprios de omissão, estabelecidos por força da cláusula de equiparação do art. 10.°, a situação típica reduz-se à criação de um risco de verificação de um resultado típico: ela existe desde que aquele risco nasce ou é potenciado por força da omissão. Por correspondência com o delito de acção determinarão os restantes elementos relevantes da situação, nomeadamente a finalidade que deve ser alcançada com a acção esperada, o bem jurídico tutelado e os factores acompanhantes jurídico-penalmente relevantes -. Prof. Figueiredo Dias, ob cit, pág 692, § 3.
A isto acresce ainda a ausência da acção devida ou esperada, que no caso do art. 10º do Código Penal, consistirá naquilo que segundo a situação típica é necessário para obstar ao resultado típico.
A falta corpórea ou física de acção.
Qualquer dos professores presentes e encarregados da vigilância, encargo que assumiram cientes das suas limitações, não tinham capacidade para acorrer a salvar a criança caso se mostrasse necessário, não lhes sendo exigível tal conduta, contudo, tinham obrigação de se abster de desenvolver tal actividade por terem conhecimento dessas limitações.
À impossibilidade física deve equiparar-se a incapacidade técnica ou falta de conhecimentos ou de meios de auxílio.
O problema da imputação objectiva nos crimes impróprios de omissão. A acção esperada ou devida deve ser tal que teria diminuído o risco da verificação do resultado típico (§ 9, pág. 695 Prof. Figueiredo Dias, ob cit.) Importa determinar se para se imputar objectivamente um resultado se deve exigir a comprovação de que, se a acção esperada tivesse ocorrido, o resultado não se teria verificado seguramente, ou em face da insegurança da comprovação de processos causais hipotéticos, com uma probabilidade muito próxima da certeza. Parece-nos que não, pois, tal entendimento levaria a que a ordem jurídica deixasse de impor a conduta ao agente e desincentivaria toda a actividade destinada à possível salvação de bens jurídicos ameaçados.
Outra parte da doutrina entende que o resultado deve ser imputado sempre que resulte que a acção teria diminuído o perigo que atinge o bem jurídico. Se tal comprovação não for obtida e persistir a dúvida ela tem de ser valorada a favor do omitente (in dubio pro reo), devendo negar-se a imputação objectiva do resultado.
Roxin defende que não é imputável o resultado quando a diminuição do risco só aparece como possível, segundo uma consideração ex ante, mas já o será se segundo uma consideração ex post se comprovar que o risco teria efectivamente sido diminuído. Efectivamente, tal posição doutrinal vem na esteira do entendimento de que os deveres não visam impedir resultados, mas diminuir a probabilidade da ocorrência do resultado.
Também nas decisões colegiais se aplica tal doutrina pois o membro de órgão que omite uma tomada de posição a favor do cumprimento do dever não diminui o risco de que venha a ser tomada uma decisão favorável à verificação possível, de um resultado típico que assim, também a ele deve ser imputado.
Verifica-se situação semelhante à do processo causal hipotético nos delitos de acção, onde aquele que causou o resultado não pode pôr em questão a sua culpabilidade na base de que em todo o caso um outro teria produzido o resultado.
Resulta do n.º 2 do art. 10º do Código Penal que a omissão é punível sempre que exista um dever jurídico de actuar, pela existência do que costuma designar-se por posição de garante. Daqui resulta que a imputação do resultado só pode recair sobre aqueles que recaia o dever jurídico que pessoalmente o obrigue a evitar tal resultado.
Questão fulcral é determinar de que modo podem delimitar-se os deveres de garantia jurídico-penalmente relevantes.
O dever jurídico tem de assentar numa relação de confiança susceptível de produzir efeitos jurídicos. Não se trata de um dever geral, mas concretos deveres que ligam o garante à protecção do bem jurídico determinado ou à fiscalização de fontes de perigo igualmente determinadas, com a existência de uma situação de dependência ou de domínio pessoal intercedente entre o garante e o bem jurídico carente de protecção ou a fonte de perigo ameaçadora, Sendo-lhe exigível a acção adequada a evitar o resultado.
Diversas posições têm vindo a ser discutidas na doutrina.
Assim, a teoria formal do dever jurídico e das posições de garantia, fruto do pensamento jurídico naturalista e positivista dominante até ao princípio do séc. XX, considerava que tal dever resultava da lei ou de contrato ou da ingerência. A esta teoria têm sido efectuadas criticas, afirmando-se que a circunstância de a lei prever um determinado dever pode não fundamentar sempre a posição de garante da não verificação do resultado típico, em especial quando o dever de actuar resulte de uma lei extra-penal, pois não pode sem mais arvorar-se tal lei em lei penal.
O mesmo se dirá quanto ao contrato. Pois o contrato não tem sempre a virtualidade de só por si fundar uma posição de garante. Como exemplo dir-se-á, aproveitando os exemplos dados pelo Prof. Figueiredo Dias, que se alguém é contratado para velar pela segurança de uma excursão de esquiadores e falta na hora marcada, não pode ser responsabilizado pela morte ou ferimentos de algum dos esquiadores. De igual modo, a invalidade do contrato não retirar a responsabilidade ao omitente, como é o caso da baby sitter que por contrato civilmente inválido se obrigou a cuidar de um bebé na ausência dos pais, o abandona em casa logo que chega a hora aprazada, sem que os seus pais tenham retornado.
Actualmente as doutrinas voltam-se para uma concepção material, que permita fundar a infracção daquele dever num sentido de ilicitude material. Armin Kaufmann propugnou a teoria das funções, segundo a qual os deveres de garantia se fundam ou numa função de guarda de um bem jurídico concreto (criadora de deveres de protecção e assistência) ou numa função de vigilância de uma fonte de perigo (determinante de deveres de segurança e de controlo). No primeiro grupo onde cabem deveres como os dos pais relativamente a um filho menor, ou os dos guardas de um museu relativamente aos objectos de arte ali expostos — o bem jurídico carente de guarda deve ser protegido contra todos OS perigos englobáveis no âmbito de protecção. No segundo grupo — onde entram deveres como o do controlador do tráfego aéreo relativamente à movimentação dos aviões — o garante tem unicamente de fiscalizar fontes de perigo determinadas”
Prof. Figueiredo Dias defende uma teoria material-formal, segundo a qual a concretização dos deveres de garantia deve alcançar-se pela conjugação das teorias material e formal. Entende que “A verdadeira fonte dos deveres e das posições de garantia reside em algo muito mais profundo, a saber, na valoração autónoma da ilicitude material, completadora do tipo formal, através da qual a comissão por omissão vem a equiparar-se à acção na situação concreta, por força das exigências de solidariedade do homem para com os outros homens dentro da comunidade.”
Toda a manifestação de solidarismo tem de se apoiar em um claro vínculo jurídico.
Deveres de protecção e assistência a um bem jurídico carecido de amparo. Os deveres de protecção e assistência podem provir de relações de protecção familiares ou relações análogas, designadamente no âmbito de uma estrutura organizada, ou por outro lado da assumpção voluntária de protecção ou guarda de bens jurídicos determinados. De qualquer modo, têm sempre que existir relações fácticas no sentido de uma proximidade sócio-existencial.
Outro fundamento da posição de garante radica na assumpção de função de guarda e assistência a bens jurídicos do carente de protecção ou de terceiro em favor deste. O que assume relevo não é o contrato, mas sim a assumpção fáctica de uma função de protecção materialmente baseada numa relação de confiança. Dá-se como exemplo a situação do instrutor de natação que vem substituir aquele que se obrigou. Releva a circunstância de o carente de protecção confiar na disponibilidade interventora do garante, sujeitando-se a riscos acrescidos ou dispensando outra protecção. “A posição de garante de autoridades e funcionários só deve afirmar-se quando o concreto bem jurídico carenciado de protecção lhes está confiado de forma mediata, de tal modo que a sua incolumidade dependa, em situações de directa necessidade, da acção daqueles. - Prof. Figueiredo Dias Ob cit, pág. 707 § 33.
Com efeito, a posição de garante existe ainda quando se trate de uma pluralidade de pessoas desde que qualquer dela domine em absoluto a situação e tenha a mesma possibilidade de intervenção. Exigindo-se que o agente esteja numa posição domínio fáctico absoluto e próximo da situação e que possa desenvolver a acção esperada – em regra a acção de salvamento – sem ter de incorrer numa situação perigosa ou danosa para si mesmo. Neste sentido, Prof. Figueiredo Dias Ob cit, pág. 714, § 48.
Efectivamente, um dos exemplos fornecidos fornecido por Prof. Figueiredo Dias no § 50, pág. 714, ob cit, é o dever de vigilância dos professores de crianças e adolescentes menores, nomeadamente em vista da prática de factos negligentes que os alunos possam cometer.
Também quanto a pessoas que dirigem actividades empresariais privadas face a ilícitos cometidos pelos seus subordinados, tem-se entendido existir tal dever de garante. O pessoal dirigente deve cuidar que a fonte de perigos permaneça sob controlo de segurança.
Que fazer quando existe uma pluralidade de deveres de garante. Pode frequentemente verificar-se um entrecruzamento ou uma cobertura, parcial ou total, de uma pluralidade de deveres de garante, com diversa fonte, que no caso convergem. Um concurso de deveres de garante só reforça a exigência de que tenha lugar a acção imposta, esperada ou devida, com evidentes consequências possíveis em tema de medida da pena, eventualmente de negação da atenuação especial do art. 10.°-3. – Prof. Figueiredo Dias, ob cit. Pág. 716, § 52.
Em síntese, constituem elementos objectivos do tipo de ilícito nos crimes de omissão:
- a situação típica, traduzida na ausência da acção imposta, devida ou esperada e impossibilidade individual de acção;
- nos crimes impuros de omissão, o resultado típico objectivamente imputável à omissão; e,
- a posição do omitente de garante de não verificação do resultado.
Importa pois fazer, no caso dos autos, a aplicação dos ensinamentos supra expostos, quanto às situações de negligência no tipo omissivo.
Nestes casos a extensão e fontes do dever de garante são idênticas às que se referiram para os crimes dolosos de omissão, de igual modo, a estrutura da negligência.
A especificidade a salientar resulta de se verificar uma interpenetração do dever de garantia e do dever de cuidado, ambos se determinam e se delimitam reciprocamente.
Como refere Prof. Figueiredo Dias “Assim, por exemplo, saber se o responsável pela obra de construção de uma ponte a revestiu da segurança e da vigilância adequadas a impedir que alguém sofra danos pessoais depende da sua posição de garante. A questão de determinar até onde pode ir na assunção dos perigos depende das regras do cuidado devido.”
Por sua vez a culpa negligente deve ser definida da mesma forma que nos crimes de acção: como atitude interna do omitente, documentada no facto do descuido ou leviandade perante o dever ser jurídico-penal.
Efectivamente,“O elemento material específico do tipo de culpa negligente traduz-se em que o omitente, para que seja punível por negligência, tem não apenas de violar o cuidado objectivamente imposto, mas ainda de não evitar o resultado apesar de aquele se apresentar como pessoalmente cognoscível e este como pessoalmente evitável: só nesta medida se pode afirmar que ele documentou no facto qualidades pessoais de descuido ou leviandade pelas quais tem de responder - Prof. Figueiredo Dias, ob cit. Pág. 728, § 10.
Assim, entre a conduta (ou a ausência de conduta) violadora do dever objectivo de cuidado e a produção da morte tem forçosamente que existir um nexo de ligação suficiente, para poder afirmar-se que o resultado surge no decurso daquela e sua consequência, para além de que um dos elementos fundamentais para que imputação possa afirmar-se, se reconduz à previsibilidade ou possibilidade de previsibilidade, por parte do autor da conduta, de que esta era idónea para produzir a morte de outra pessoa. – Maria Joana de Castro Oliveira, A imputação objectiva na perspectiva do homicídio negligente, Coimbra editora, 2004, pág 63.
Efectivamente, como refere Maria Felino Rodrigues, A teoria Penal da Omissão e a revisão crítica de Jakobs, Almedina, 2000, pág. 27 a omissão relevante no direito penal é a omissão da acção salvadora. Ou seja, no dizer desta autora, a omissão penalmente relevante só pode ser a omissão de uma acção determinada, visto que a omissão em si mesma não existe.
Qual o sentido da ressalva contida no n.º 1, do art. 10º do Código Penal “salvo se outra for a intenção da lei”?
Entende Maria Felino Rodrigues, ob, cit, pág. 35, com a qual se concorda, que tal ressalva porá a cargo do aplicador do direito penal a tarefa de determinar se e quando o desvalor da omissão atinge uma gravidade idêntica ao desvalor da acção que justifique a responsabilidade por omissão imprópria. Isto é, é determinante que a omissão realize o mesmo conteúdo de significação da acção respectiva. Efectivamente, conclui, “Só assim se verifica a equiparação omissão-acção e consequentemente realiza o tipo incriminador por omissão. Contrariamente, impõe-se a conclusão de que outra foi no caso a intenção da lei”.
Quanto ao tipo subjectivo, há que levar em conta que as omissões só podem ser imputadas a título de negligência quando do correspondente tipo de comissão o permita, nos termos gerais previstos no art. 13º do Código Penal – Maria Felino Rodrigues, ob. cit. Pág. 45.
Refere esta autora que “a violação do dever de cuidado ou diligência pode referir-se, designadamente, ao conhecimento da situação típica, à comprovação da capacidade de agir, à representação do resultado típico, à posição de garante, ao meio de agir …”
Segundo a doutrina tradicional, a posição de garante deriva de uma lei, de um contrato ou de um actuar precedente perigoso (ingerência). Ou seja: apenas serão responsabilizados por um crime comissivo omissivo aqueles que, com base numa lei, num contrato ou numa situação de ingerência, tiverem o dever jurídico de actuar evitando o resultado típico.
Trata-se de um critério puramente lógico-formal
Também Maria Paula Bonifácio Ribeiro de Faria, in “A adequação social da conduta no direito penal ou o valor dos sentidos sociais na interpretação da lei penal, Publicações Universidade Católica, Porto 2005, pág. 1121, “Apenas se pode considerar ilícita a omissão do agente sempre que, de acordo com uma valoração global das circunstâncias em que ele é chamado a actuar, se chegue à conclusão, de que, tendo em conta as suas possibilidades de agir, a maior ou menor proximidade ao bem jurídico, a conduta omitida era concretamente exigível. Claro que aqui se volta a perguntar da relação do ilícito com a culpa, e do eventual esvaziamento da culpa, que fica restringida a um juízo de censura”.
Nas circunstâncias apuradas, temos que cada um dos arguidos por si, poderia ter diligenciado pela criação de condições ao desenrolar da actividade diminuindo os riscos a ela inerentes.
De facto, cada um dos arguidos pelas funções que exercia no Externato, tinha uma posição de garante relativamente aos alunos dessa instituição, posição essa assente na relação de confiança emergente da relação contratual existente, entre tal estabelecimento de ensino e os progenitores.
(…)
Por sua vez, os arguidos A. e B, tinham consciência das suas limitações, e não possuíam os conhecimentos técnicos sobre a modalidade, sendo certo que não podiam desconhecer que se uma das crianças caísse à água, não tinham ao seu alcance meios de resgate. Não tinham bóias, não diligenciaram pela colocação de uma embarcação de apoio, a fim de garantir intervenção e socorro imediatos, caso se mostrasse necessário.
E não é a circunstância de terem participado em outras actividades de natureza semelhante, que só por si diminui o dever de cuidado exigível, ou que demonstra que estavam acauteladas as regras de segurança necessárias, para efectivo cumprimento do dever de vigilância. É que não pode olvidar-se que a negligência é, de certo modo, a punição pelo acaso, ou seja, sempre foi feito assim, e sempre correu tudo bem, porém, quando se tornou necessária uma intervenção de urgência, por força de uma situação de perigo de onde resultou o afogamento de uma criança, risco inerente a qualquer actividade náutica, os meios de salvamento não estavam garantidos.
Efectivamente, não se diga que inexistia a obrigação legal de comunicar à Capitania do Porto de Lisboa, e de garantir a presença de uma embarcação de apoio. De facto, o DL 329/95 de 9 de Dezembro, no seu art. 3º, n.º 3, al. b) exclui do seu âmbito de aplicação, as canoas. Contudo, a inexistência de uma obrigação legal, não permite concluir que tenham sido observados os deveres objectivos de cuidado que se impunham, os quais resultam da comparação do comportamento adoptado com o que um homem com as características dos arguidos, inteligente e prudente adoptaria.
Ora, no caso dos autos, os dois arguidos que asseguravam (ou pelo menos tentavam) a efectiva vigilância das 50 crianças que se encontravam no local, não teriam conhecimentos técnicos suficientes quanto à prática de canoagem, não podendo desconhecer que a corrente, quando mais forte, pode arrastar uma embarcação.
Por outro lado, estava atracada no local uma embarcação de grande porte, desconhecendo os arguidos se da mesma adviria algum perigo para as crianças, como sucedeu. Ora, se não dispunham de tal conhecimento, tinham obrigação de se informar, se não podiam informar-se deviam abster-se de levar a cabo a actividade. Ainda que entendessem desenvolver essa mesma actividade, perigosa por natureza, cientes das suas limitações, deviam diligenciar pela presença de meios de salvamento adequados, o mesmo é dizer, uma embarcação de apoio com um monitor. É que os arguidos não estavam sequer munidos de bóias de salvamento, não tinham no local qualquer embarcação de apoio de prontidão.
E não se diga, também, que existe um clube náutico no local com todo o equipamento necessário, porque era aos arguidos que cabia a posição de garante, pois não a tinham transmitido a terceiro, não tendo celebrado um qualquer acordo com essa instituição. Efectivamente, quem logrou retirar da água com vida os dois outros menores, foram um pescador e um nadador salvador que estava no Clube Náutico, mas nada tinha a ver com essa instituição. Ou seja, quem resgatou as crianças foram terceiros que ali se encontravam por mero acaso, e que não tinham qualquer dever de garantir a segurança das mesmas.
De salientar, ainda, que a embarcação pertença do Clube náutico só foi colocada na água, pelo menos, 20 minutos depois do sinistro.
Também não colhe o argumento de que o passeio tinha como limite os pontões existentes na praia de Olho de Boi, que criam uma zona protegida das correntes. È que, sendo uma criança (mais velha é certo) que manobrava a canoa, não é seguro que a mesma cumpra, nos seus exactos termos, as orientações dos professores, e que se mantenha dentro do perímetro determinado. E se o jovem que manobra a canoa não obedecesse, quais os meios de que os professores dispunham no local em caso de acidente? Nenhuns.
De igual modo, o facto de estarem apenas duas canoas na água não significa que inexista qualquer perigo, porque ele existe e é inerente à própria actividade.
Ora, no caso, atentas as limitações dos professores deviam estes ter optado pela não realização da actividade (perigosa), ou não o fazendo, criar todas as condições para diminuir os riscos inerentes à mesma, através da colocação no local de uma embarcação de apoio com monitor, que caso existisse teria logrado retirar as criança, muito provavelmente, logo que a canoa começou a ser arrastada para junto do Batelão.
Também o eventual conhecimento por parte da mãe da menor não exclui a responsabilidade dos arguidos, pois para que tal ocorresse era necessário que a mesma tivesse conhecimento dos moldes concretos como a actividade decorreria, o que não se provou.
Os arguidos não previram o resultado que adveio da omissão de condições de segurança, contudo era-lhes exigível que o fizessem, atentas as funções que exerciam e as normais capacidades inerentes à qualidade de professores.
Acresce que, da factualidade globalmente referida, resulta um elevado grau de censura, enquadrável na negligência grosseira, já que os arguidos são pessoas com formação, com experiência profissional, atentas as suas idades, e que actuaram com demasiada leveza em relação à segurança dos seus alunos.
Em face de todo o exposto, resultam preenchidos todos os elementos objectivos e subjectivos do tipo de crime por que foram pronunciados, tendo os arguidos com as suas omissões conduzido ao resultado morte verificado, praticando o crime de homicídio por negligência grosseira, p. e p. pelo art. 137º, nºs 1 e 2 e 10º, nº 1 e 2, do Código Penal.”
A Mmº Juíza a quo escalpelizou muito bem a situação fáctica subsumindo-a correctamente ao direito penal, não nos merecendo a sua douta, prudente e ponderada análise qualquer desfavorável reparo.
Face ao exposto, com que inteiramente se concorda, improcede, quanto às matérias ora em apreço, a posição dos recorrentes.
4.2. Mais alegam os recorrentes que face ao inscrito nos factos provados nos números 4, 7, 10, 84, 85 e fls. 159 dos autos, a Acta nº 4 de 1997/1998, respeitante à reunião dos responsáveis pelo Clube da Natureza o arguido, J., professor e Director Pedagógico do Externato, não é passível de qualquer sanção criminal. Contrariamente ao inscrito pela Meritíssima Juiz a quo, na decisão recorrida, cabia ao Clube da Natureza organizar a actividade, dada a experiência e conhecimento dos seus membros, actividade que se desenvolvia há seis anos e, por isso, anterior à tomada de posse do arguido A. - 12/12/96 - facto provado sob o nº 2. Há, em consequência, erro de julgamento por errada apreciação da prova, porque eram os membros do Clube da Natureza quem tinha conhecimento e estavam habilitados a levar a efeito a actividade — cfr. facto n° 86.
Com efeito, como aliás se deixou também consignado na sentença sob recurso, “o arguido A., na qualidade de director pedagógico responsável pela orientação das actividades curriculares e extra curriculares, não cuidou de saber em termos concretos como iria ser levada a cabo a actividade extra-curricular prevista, não diligenciou por saber os riscos que essa actividade importaria, sendo certo que não podia desconhecer que qualquer actividade no meio aquático é potencialmente perigosa. Efectivamente, não cuidou de saber se estavam previstos procedimentos a adoptar em caso de emergência, e bem assim, se os professores que iam coordenar, no terreno, essas actividades tinham, apesar de toda a competência e dedicação profissional, capacidade para, em concreto, assegurar o efectivo exercício do dever de vigilância que lhes é imposto pela relação de protecção do bem jurídico em causa.”
Face ao que, e tomando-se ainda em consideração tudo o que já se deixou expendido em 4.1, carece também de razão neste domínio a posição dos recorrentes.
Quanto à suscitada questão relativa à responsabilidade e envolvimento do Clube da Natureza e/ou dos seus membros, apenas se dirá que pese embora possa este Clube ter na prática alguma autonomia de acção o certo é que não a tem no plano jurídico relativamente ao Externato em que se insere, sendo que é este último que goza de personalidade jurídica e de capacidade judiciária. Destarte, é o estabelecimento de ensino em causa e os seus agentes, in casu o seu Director Pedagógico e os três professores envolvidos na actividade de canoagem - actividade lectiva de complemento curricular - realizada em 18 de Março de 1998, na Praia de Olho de Boi, que tem de ser responsabilizados.
4.3. Alegam ainda os recorrentes que ao arguido M., não pode ser imputada a prática do crime p.p. pelo artº 137º n° 2 do CP, por falta de tipicidade, quer objectiva, quer subjectiva, porquanto, havia, previamente, avisado os seus Colegas do Clube da Natureza que tinha uma reunião na Escola R., onde era Professor e Director de Turma, tanto mais que na Praia, ficaram os seus outros dois colegas e alunos mais velhos e experientes na prática de canoagem, ao que acresce que a sua presença não evitaria o resultado típico produzido. A sua presença não evitaria o resultado típico produzido, dado o conjunto de circunstâncias anómalas que rodearam o caso, pelo que sempre teria de se afastar, in casu, o nexo de imputação objectiva (comportamento lícito alternativo). Muito menos se verifica o tipo subjectivo do crime p.p. pelo artº 137° n°2 do CP (previsibilidade do resultado), porquanto importava provar que, in casu, para aquela pessoa em concreto era previsível e evitável que um certo / acontecimento se desse.
A este propósito escreveu-se na sentença recorrida o seguinte:
“Quanto ao arguido M., agiu também com negligência grosseira e contribuiu pela sua omissão para o resultado verificado – morte de X.. Efectivamente, este arguido é monitor de canoagem, e tem nessa matéria os necessários conhecimentos técnicos, contudo, por força das suas funções numa outra escola, teria que se ausentar para uma reunião, como fez. Porém, não comunicou tal facto à Direcção do Externato, estando ciente que cada um dos seus colegas, quer por limitações físicas, quer por desconhecimento técnico, não tinha condições para garantir a segurança dos alunos, ademais, considerando a actividade aquática realizada. Acresce ainda, o número de crianças presentes na actividade, que pelas suas idades, torna acrescido o dever de vigilância, pela normal inquietude juvenil.
Apesar disso, abandonou o local, não diligenciou pela sua substituição ou pela colocação de meios idóneos a garantir a segurança dos menores.
Sendo certo que aqui não ocorrerá qualquer conflito de deveres, pois a obrigação de comparecer a uma reunião cede perante o cumprimento adequado do dever de vigilância, atento o princípio da proporcionalidade.”
Face ao exposto, com que inteiramente se concorda, e tomando-se também aqui em consideração tudo o que já se deixou expendido em 4.1, carece igualmente de razão neste domínio a posição dos recorrentes.
4.4. Defendem também os recorrentes que a morte de X. aconteceu devido a caso de força maior ou caso fortuito (a conjugação da maré de enchente que bate no batelão que tem fundo chato, provocando um fenómeno de sucção absolutamente imprevisível e inevitável), o que constitui causa da exclusão da ilicitude, ao que acresce que não se tendo a Meritíssima Juiz a quo pronunciado sobre tal questão a sentença é nula nos termos do art. 379º no 1, alínea c) do CPP.
A doutrina tem considerado que o caso fortuito é, grosso modo, o evento não previsível, que poderia ter sido evitado se tivesse sido previsto, e que o caso de força é o evento não previsível e que, se fosse previsto, não poderia ser evitado.
Que a enchente da maré era inevitável é uma verdade insofismável. As marés enchem e vazam nos mares e oceanos do planeta Terra e assim será enquanto a força de atracção do nosso satélite Lua se fizer sentir, em ciclos pendulares e inexoravelmente a cada 6 horas. Posto isto, a inevitabilidade das marés é uma realidade mas não a sua imprevisiblidade, que pode ser calculada com muita antecedência e elevadíssimo grau de precisão, estando as respectivas tabelas publicadas e sendo mesmo de acesso fácil e gratuito a sua obtenção ou consulta.
Também é inevitável o fenómeno de sucção gerado por uma qualquer apreciável corrente de massa de água contra um batelão ou qualquer outra embarcação de alguma dimensão e fundo chato mesmo quando imobilizada. Que isso seja imprevisível é que já não é correcto afirmar-se, pois o fenómeno é conhecido e está devidamente estudado por quem se dedica às actividades náuticas. Os arguidos podiam e deviam ter-se informado dos potenciais perigos que corriam os alunos a seu cargo ao praticarem actividades de canoagem não muito longe do batelão ali acostado.
Posto isto, nunca se poderá afirmar que a morte de X. aconteceu devido a caso de força maior ou caso fortuito. As condições para o acidente já lá estavam todas quando a actividade se iniciou. A embarcação estava ali acostada, era grande e de fundo chato e a corrente gerada pela maré intensificar-se-ia inultrapassavelmente com o decurso do tempo. Só não o viu quem não quis e não o previu quem descurou cuidar de se informar e tomar as medidas adequadas a evitá-lo.
Neste mesmo sentido veja-se o Ac. do STJ de 29 de Novembro de 2005, inwww.dgsi.pt, onde se expendeu: “1. Quem no seu interesse de qualquer natureza organiza um evento desportivo a que o público assista obriga-se a garantir-lhes a segurança por via de adequadas medidas de precaução. 2. O facto de os regulamentos da modalidade desportiva de hóquei em patins não exigirem a colocação de redes de protecção fora da zona de enfiamento das balizas não dispensa o organizador do evento desportivo de tomar as precauções necessárias para evitar que as bolas movimentadas no ring pelos jogadores atinjam as pessoas nas bancadas. 3. Com idênticos efeitos jurídicos, o caso fortuito é caracterizado como o evento não previsível mas evitável se tivesse sido previsto, e o caso de força maior como não previsível e inevitável se previsto tivesse sido. 4. O facto de uma bola impulsionada pelo stick de um jogador na direcção da baliza adversária haver embatido na trave ou no poste e tomado a direcção de uma bancada e atingido lá uma pessoa não é caso fortuito porque a lesão podia ter sido evitada pela existência no respectivo enfiamento de meios materiais adequados de barragem. 5. O clube organizador do evento desportivo e responsável pelo funcionamento do pavilhão de jogos é obrigado a indemnizar a pessoa lesada nos termos gerais da responsabilidade civil.”
Face ao exposto, não se verificou no caso concreto da morte da X. uma situação de força maior ou caso fortuito, pelo que afastada fica a possibilidade dos arguidos beneficiarem por essa via de causa da exclusão da ilicitude.
A Meritíssima Juiz a quo não se pronunciou nem se tinha que pronunciar sobre tal questão, que apenas teria de apreciar se a mesma se patenteasse como possível ou se estivesse numa situação de fronteira.
Assim, não há, nesta parte, qualquer nulidade da sentença, improcedendo a pretensão dos recorrentes.
4.5. Por último, alegam os recorrentes que a condenação do Externato no montante de € 100.000,00 (cem mil euros), a título de indemnização por danos morais sofridos pelos assistentes, não pode ter lugar porque os arguidos não praticaram qualquer crime, mas caso subsista a condenação, por responsabilidade objectiva pelo risco, a Companhia de Seguros F. não pode ser absolvida, porquanto a actividade desenvolvida na Praia de Olho de Boi é uma actividade lectiva de complemento curricular e a canoagem não é uma actividade que revista especial perigosidade, e como tal não está excluída do âmbito da apólice celebrada, devendo a chamada Companhia de Seguros responder até ao capital seguro (dez mil contos), pois a assim não ser violam-se os artigos 497º, 499º, 507º nº 1 do Código Civil.
No que respeita ao pedido de indemnização civil expendeu-se na sentença revidenda o seguinte:
“Peticionam os demandantes que o demandado cível seja condenado no pagamento de indemnização no valor de Esc. 90.000.000$00 (contravalor em € 448.918,11) sendo a título de danos patrimoniais a quantia de Esc. 60.000.000$00 (contravalor em € 299.278,74), Esc. 20.000.000$00 (contravalor em € 99.759,58) a título de danos não patrimoniais pelo sofrimento causado pela morte da sua filha e Esc. 10.000.000$00 (contravalor em € 49.879,79) pela lesão do direito à vida, tudo acrescido de juros desde a citação até efectivo e integral pagamento.
Dispõe o art. 129º do C.P. que a indemnização por perdas e danos emergentes de um crime é regulada pela lei civil. Ora, provada a responsabilidade penal pelo crime de homicídio pelos arguidos que actuavam por conta do Externato resulta a responsabilidade desta instituição pelos causados por estes no exercício de funções.
Foi determinada a intervenção da Companhia de Seguros F. como assistente da demandada.
Porém, apurou-se que a apólice de seguro celebrada exclui, as actividades especialmente perigosas realizadas, das coberturas do contrato de seguro.
Ora, no caso a actividade de canoagem, é potencialmente perigosa, ademais o local onde a mesma foi realizada, como aliás qualquer desporto náutico, pelo que se afigura estar a mesma excluída da apólice de seguro contratada, impondo-se a absolvição da Companhia de Seguros demandada.
Quanto à responsabilidade do Externato, importa ponderar a aplicação do disposto no art. 500º do Código Civil, que estabelece a responsabilidade objectiva nas relações entre comitente e comissário, onde aquele é responsável ainda que actue sem culpa. Contudo, tal responsabilidade só existe quando o comissário actue com culpa.
Porém, o comitente pode responder ainda que inexista culpa do comissário se resultar que actuou com culpa na escolha do comissário, nas instruções que a este tenham sido dadas ou na fiscalização do exercício da comissão.
Neste caso verifica-se a responsabilidade por factos ilícitos.
Efectivamente, no caso dos autos, não estamos no âmbito da responsabilidade civil objectiva, mas sim por factos ilícitos, estatuída no art. 483º do Código Civil, importando ter em conta não só a norma referida como também o art. 562º e segs, do Código Civil, a fim de aferir dos pressupostos e quantitativos da eventual atribuição de uma indemnização por perdas e danos.
O instituto da responsabilidade civil extracontratual por factos ilícitos exige o preenchimento de certos requisitos, ínsitos no art. 483º, que não são substancialmente divergentes dos requisitos da responsabilidade objectiva, com excepção para o elementos subjectivo, culpa ou censurabilidade do facto ilícito. São eles (cfr. Almeida Costa – “Direito das Obrigações”, 5ª ed., pág. 446):
a) a existência de um facto voluntário do agente – “um facto dominável ou controlável pela vontade, um comportamento ou uma forma de conduta humana”, que pode ser um comportamento afirmativo (acção) ou negativo (omissão), onde se incluem, “as figuras da vontade presumida e da vontade ficta ou mesmo da vontade que se esconde por dentro da negligência consciente ou inconsciente mais não são do que formas de reajustamento da vontade normativa, ao sentido do dever ser”;
b) que esse facto seja ilícito – isto é, que se traduza na violação de um direito alheio ou de uma disposição legal destinada a proteger interesses alheios;
c) que exista um nexo de imputação do facto ao lesante ou, por outras palavras, que exista “dolo ou mera culpa”;
d) que da violação do direito subjectivo ou da lei sobrevenha um dano, pois que a responsabilidade é “obrigação nascida de um prejuízo e tem por objecto a reparação deste, e ainda
e) que haja um nexo de causalidade entre esse dano e o facto praticado pelo agente, de modo a que possa afirmar-se, à luz do direito, que o dano/prejuízo é resultante da violação (cf. também art. 563° do Código Civil, o qual, ao colocar a solução do problema do nexo de causalidade na probabilidade de não ter havido prejuízo se não fosse a lesão, mostra que se aceitou a doutrina mais generalizada entre os autores: a doutrina da causalidade adequada).
No caso dos autos mostram-se preenchidos todos os pressupostos elencados, pois o Demandado não emitiu quaisquer ordens para o desenvolvimento da actividade agendada, através do seu Director, não cuidou de garantir que os docentes que realizariam a actividade tinham as necessárias capacidades e conhecimentos técnicos para o efeito. Circunstância que lhe era ilícita, atento o dever de garantir a segurança dos alunos e o exercício efectivo do dever de vigilância. Com tal omissão – que juridicamente assume a qualificação de facto – e da qual veio a resultar a perda da vida de uma das suas alunas, por afogamento - estão apurados todos os pressupostos da responsabilidade civil subjectiva – facto, ilícito, culposo e causador de danos (art. 483º do C.C.).
Isto é, que no caso sub iudice verifica-se verdadeiramente um nexo de imputação do facto lesivo ao demandado, em termos subjectivos, isto é, a título de “dolo ou mera culpa”, enquanto juízo normativo de reprovação ou censura.
Podendo e devendo fazer coisa diferente, o agente fez o que não devia, o que o direito lhe proibia ou não fez o que o direito lhe impunha.
A culpa traduz-se “num juízo de reprovabilidade da conduta do agente, que assenta no vínculo existente entre o facto e a vontade deste” e é apreciada, nos termos do art. 487°, n° 2 do Código Civil, “na falta de outro critério legal, pela diligência de um bom pai de família em face das circunstâncias de cada caso”, sendo no caso tal manifestação de vontade manifestada através da conduta dos titulares dos órgãos do estabelecimento de ensino,
Ainda que a este propósito e tendo em conta o conceito de negligência com referência para o dever de cuidado que impende sobre o agente, se deva acrescentar também que, diferentemente do que sucede no domínio da responsabilidade penal (cf. art. 15° do Código Penal), em sede cível, já não interessa tanto averiguar se, na situação concreta, tal cuidado foi aplicado ou podia ser aplicado pelo agente, pois que o conceito de culpa para efeitos da responsabilidade civil é primacialmente abstracto, ainda que se deva reportar também às circunstâncias de cada caso.
Deixam-se assim claramente de fora ponderações relativas à capacidade concreta do agente, numa perspectiva de dever subjectivo de cuidado.
Por conseguinte, trazendo-se à colação as ideias de previsibilidade, capacidade e evitabilidade, fulcrais na compreensão e análise da categoria da negligência, como forma de culpa, enquanto defeito de atitude interna, objecto de censura legal, tais ideias não têm que se referir ao sujeito concreto, na medida em que não está em causa a diligência normal do causador do dano, mas antes a diligência e prudência que um homem normal teria em face do condicionalismo exterior próprio do caso concreto.
Assim, a omissão de conduta pelos órgãos representantes da pessoa colectiva, no caso, o Director Pedagógico do Externato, concorreu de forma determinante para a verificação do resultado. Tivesse ele encetado a conduta a que estava obrigado, teria evitado o resultado. Não o fazendo, veio a resultar a morte de X..
Pelo exposto, definidos os pressupostos da responsabilidade civil e subsumida a conduta do demandado aos mesmos, por forca da aplicação da regra do art. 483° do Código Civil – o demandado é responsável pelos danos de natureza patrimonial e não patrimonial que causou, maxime o direito à vida da vítima, verificando-se o nexo de causalidade (adequada) entre o facto do agente e os danos verificados, atendendo ao disposto no art. 563° do Código Civil, na medida em que com as normas por si infringidas pretendia o legislador prever e evitar os eventos danosos que se produziram, estando ademais também demonstrada a culpa do agente, na modalidade, pelo menos, de negligência (cf. arts. 483°, n° l e 487° do Código Civil) -, em conjugação com os arts. 562° e segs. do Código Civil, cumpre tão-só agora determinar quais os danos a indemnizar e o montante da indemnização.
No caso sub iudice, está provado que os demandantes eram pais da vítima mortal, que tinha 10 anos de idade, mais, está ainda provado que os demandantes sofreram com a morte da filha, morte que é qualificada médico-legalmente como violenta.
Está, pois, em causa, não apenas a dedução de pedidos indemnizatórios por danos patrimoniais como por danos não patrimoniais.
Começando pelos primeiros, não olvidando que o dano patrimonial mede-se, em princípio, por uma diferença: a diferença entre a situação real actual do lesado e a situação (hipotética) em que ele se encontraria, se não fosse a lesão, no mesmo momento. Assim, de acordo com o art. 562° do Código Civil, o qual acolheu aquela teoria da diferença, a indemnização deve procurar reconstituir a situação natural ou, quando arbitrada em dinheiro, ter como medida a diferença entre a situação patrimonial do lesado na data mais recente que puder ser atendida pelo Tribunal e a que teria nessa data se não tivessem existido danos (cf. Art. 566°, n°s l e 2, do Código Civil).
Quanto aos danos patrimoniais peticionados nada se provou, pelo que se impõe a absolvição da demandada do pedido de indemnização deduzido.
Já no que concerne aos danos não patrimoniais, que consistem naqueles que, sendo insusceptíveis de avaliação pecuniária, porquanto atingem bens que não fazem parte do património do lesado, serão ressarcidos mediante uma obrigação pecuniária imposta ao lesante que, na realidade, será mais uma compensação do que uma indemnização stricto sensu.
No nosso ordenamento jurídico admite-se expressamente a indemnização por danos não patrimoniais, embora com um limite, pois só são indemnizáveis os danos “que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito (cf. art. 496°, n° l, do Código Civil), assim se afastando a ressarcibilidade pelos simples incómodos ou pequenas contrariedades, bem como os sofrimentos e desgostos que derivem de uma sensibilidade fora do comum.
No que diz respeito à gravidade do dano, esta há-de aferir-se por um padrão objectivo, muito embora devam ser tidas em conta as circunstâncias do caso concreto, sendo a sua apreciação feita em função da tutela do direito, isto é, o dano deverá ser tão grave que justifique uma satisfação de ordem pecuniária ao lesado.
Ultrapassado este limite, o quantum indemnizatóno há-de obedecer a juízos de equidade, tendo em conta as circunstâncias particulares do caso, devendo ser considerados os factores contidos no art. 494° do Código Civil - no caso aplicáveis, por forca da remissão do art. 496°, n° 3 do mesmo código -, referenciados a valorações éticas como a boa ponderação, o senso prático e a justa medida das coisas. E tudo, sem esquecer a dupla vertente compensatória e sancionatória da indemnização por danos morais que, no caso vertente, é tanto mais premente quanto maior é a negligência do demandado e mais grave o grau de violação do dever jurídico que sobre si impendia que visava tutelar o bem jurídico afectado.
Quanto à peticionada indemnização pelo dano da morte, sendo certo que, independentemente da querela que rodeia a questão de saber se tal dano não integra directamente a esfera patrimonial da vítima, não se transmitindo depois por via hereditária, ou se integra directamente a esfera patrimonial da vítima, transmitindo-se por via sucessória normal, desde o Ac. STJ de 17/3/71, para uniformização de jurisprudência, é jurisprudencialmente pacífica a tese da ressarcibilidade em termos gerais do dano morte”, não se descortinando qualquer razão para abandonar essa orientação.
Na verdade, assumindo-se a vida como o valor e bem jurídico supremo e absoluto na nossa ordem jurídica, mal se compreenderia que todos os outros danos fossem ressarcíveis, incluindo o seu sofrimento anterior à morte, e não fosse possível a indemnização pelo valor da vida da vítima enquanto ser.
Nesta medida, tem-se entendido doutrinária e jurisprudencialmente que do art. 496°, n°s 2 e 3, resultam 3 danos não patrimoniais indemnizáveis. São eles: (a) o dano pela perda do direito à vida; (b) o dano sofrido pelos familiares da vítima com a sua morte; e (c) o dano sofrido pela vítima antes de morrer, variando este em função de factores de diversa ordem, como sejam o tempo decorrido entre o acidente e a morte, se a vítima estava consciente ou em coma, se teve dores ou não e qual a sua intensidade, se teve ou não consciência de que ia morrer, etc.
É manifesta a impossibilidade de reparação natural do dano morte, ao que acresce uma certa incompatibilidade de correspondência económica entre o dano e a sua expressão monetária por se estar em planos valorativos diferentes: por um lado, o plano dos valores (alguns, como o direito à vida, tendencialmente absolutos) e, por outro lado, o plano material da expressão monetária.
Não olvidando esta dificuldade inultrapassável e com apelo para o critério que nos é apontado pelo legislador e que já enunciámos, a saber: a equidade, importa ainda atender, por razões de justiça relativa, aos padrões geralmente adoptados na jurisprudência, importando obviamente ter sempre em atenção as circunstâncias especiais de cada caso, bem como as datas em que as decisões foram proferidas e o consequente decurso do tempo relativamente à decisão confrontada.
Ora, a este propósito, para obviar às divergências de soluções e, simultaneamente, encontrar um valor indemnizatório razoável, o Ac. do STJ, de 28/10/92, refere estar a firmar-se uma corrente segundo a qual o “valor” da perda de uma vida nunca deve ser inferior ao custo de um automóvel médio no nosso mercado. Trata-se apenas de um valor referencial, ponto de partida que tem em conta que o veículo automóvel é nos nossos dias uma necessidade premente e tradução de status social, sendo assim um bem por todos procurado.
Para além deste possível ponto de referência, que desde já se esclarece consideramos redutor, há que abandonar as soluções miserabilistas, que atribuem à indemnização pelo dano morte um valor quase simbólico ou de esmola, sem contudo, passar a um estádio de “enriquecimento despropositado” do lesado, ao mesmo tempo que se deve ter em conta a integração de Portugal na União Europeia, a adesão ao Euro e a respectiva taxa de paridade fixa. Deve, pois, fazer-se um esforço de aproximação aos montantes indemnizatórios arbitrados na Europa comunitária.
Pelo exposto, atendendo ao valor absoluto da vida humana, considerando que se tratava da vida de uma criança com dez anos de idade, com esperança média de vida da ordem dos 70 anos para além da idade que já havia atingido.
Nestes termos, atendendo-se ao elevado grau de culpabilidade do agente (cf. art. 494°, ex vi do art. 496°, n° 3, ambos do Código Civil), temos por razoável, adequada e equitativa, a quantia única de € 50.000,00 a título de indemnização pelo dano morte a atribuir conjuntamente aos pais daquela, enquanto seus únicos herdeiros.
No que se refere à dor sofrida pelos próprios demandantes cíveis na qualidade de pais, que persiste ainda, volvidos nove anos sobre os factos, perda essa que ocorreu numa situação violenta e inesperada. Acresce o facto de, a morte de uma filho ultrapassar largamente a dor da perda de qualquer outro familiar ou ente querido, pelo facto de ser anti-natural, já que os pais têm, em regra, interiorizada a ideia de que serão os primeiros a falecer, não contando nunca com um evento trágico ocorrido aos 10 anos de idade como o que sucedeu.
Ora, no caso sub iudice, relembrando os factos provados, os quais sempre se poderiam inferir apelando para a natureza das coisas e para a normalidade das situações atentos os estreitos laços familiares e, consequentemente, sentimentais, que unia os demandantes à vítima, tendo aliás ficado provado que sofreram dor com a morte da sua filha que naturalmente amavam, especialmente naquelas circunstâncias em que a mesma sobreveio.
Nestes termos, e aqui ponderando a já referida idade da vítima, reconhecendo-se que a separação dos demandantes do seu ente querido foi precipitada de forma verdadeiramente brutal pelo evento ocorrido, entendemos ser equitativa, também por adequada e razoável, tendo em vista a experiência humana em afectividade e sentimentalismo mas relembrando sempre que “não há dinheiro que pague uma vida humana e a dor decorrente dessa perda”, a quantia global de € 50.000,00.
São ainda peticionados juros à taxa legal desde a citação do demandado.
Com efeito, a este propósito rege o art. 805°, n° 3, do Código Civil, pelo que os juros são devidos à taxa legal, apenas desde a notificação do pedido de indemnização civil deduzido.
No caso vertente, cumpre ainda acrescentar a este propósito, por outro lado, que não afastamos a condenação nos respectivos juros moratórios desde aquela notificação e não condenamos em juros moratórios apenas a partir da fixação dos montantes indemnizatórios na presente sentença, desde logo porque não se operou qualquer actualização dos montantes indemnizatórios em função de qualquer correcção monetária, atento o disposto no art. 566°, n° 3 do Código Civil, sendo verdade que o afastamento da regra do art. 805°, n° 3, por parte da maior parte da jurisprudência só se verifica nesta circunstância.
Nesta conformidade, deve ser julgado parcialmente procedente o pedido de indemnização civil deduzido, condenando-se a demandada cível Externato, a pagar aos demandantes a quantia de € 50.000,00 a título de indemnização pela perda do direito à vida e € 50.000,00 pelo sofrimento dos progenitores pela perda da sua filha, absolvendo-se do demais peticionado. Sobre esta quantia vencem-se juros de mora à taxa legal desde a data da notificação do pedido de indemnização civil à demandada e até efectivo pagamento.
Vai a Companhia de Seguros absolvida pois atentas as cláusulas contratuais que excluem a responsabilidade pela realização de actividades perigosas, como acima se referiu”.
E bem andou a Mmª Juíza a quo.
Também, nesta parte, concordamos integralmente com a posição defendida na sentença recorrida, ao enquadrar a situação sub judice no exercício de uma actividade perigosa.
Efectivamente, na esteira do ensinamento do Professor Almeida Costa - cfr. “Direito das Obrigações”, 5ª Edição, pág. 473 -, o Supremo Tribunal de Justiça tem entendido que “actividade perigosa, para os efeitos do art. 493º, nº 2 do CC, é aquela que, por força da sua natureza ou da natureza dos meios utilizados, tem ínsita ou envolve uma probabilidade maior de causar danos do que a verificada nas restantes actividades em geral. Trata-se de matéria a apreciar, em cada caso, segundo as circunstâncias”, como consta do Sumário do Acórdão de 15.01.2004, proferido no Processo nº 03B3074, acessível em www.dgsi.pt.
A apreciação casuística das actividades que podem ser enquadradas na definição legal e consideradas como actividades perigosas, levou já à consideração de que podem designar-se como tal actividades tão díspares quanto a transfusão de sangue (Acórdão de 13.03.2007, proferido na Revista nº 96/07); a condução de energia em alta tensão (Acórdão de 25.03.2004, proferido na Revista nº 521/04); a exploração comercial duma piscina aberta ao público (Acórdão de 08.03.2005, proferido na Revista nº 4412/04); a actividade desenvolvida na descarga de toros de madeira, retirando-os da caixa de carga de um veículo pesado de mercadorias, com o emprego de um empilhador (ou pá carregadora) a tal destinado (Acórdão de 20.03.2003, proferido na Revista nº 442/03); uma máquina pesada que procede à abertura de caboucos junto à parede do prédio contíguo, que veio a ruir (Acórdão de 03.06.2003, proferido na Revista nº 1577/03); a operação de abertura de valas e remoção de terras, com utilização de retroescavadora e pá carregadora, para instalação de uma conduta de água (Acórdão de 02.02.2006, proferido na Revista nº 4042/05); o uso de máquinas perfuradoras em subsolo de cidade atravessado por cablagem e canalizações várias (Acórdão de 21.11.2006, proferido na Revista nº 3419/06); e a manobra de içamento de uma embarcação (iate) através da utilização de uma grua (Acórdão de 6.11.2007, publicado in www.dgsi.pt.).
Como facilmente decorre dos exemplos que antecedem, também a prática de canoagem por crianças (a X. tinha 10 anos de idade) inexperientes (a X. era a primeira vez que estava a andar de canoa) efectuada em praia fluvial situada na barra do Tejo, sujeita à proximidade da corrente das marés e de embarcações de grande porte (o batelão tinha 60 metros de comprimento e 24 de largura), desacompanhada de barco de apoio ou de quaisquer outros adequados meios de salvamento, estando o grupo de cerca de cinquenta alunos a ser apenas vigiado por uma professora que não sabia nadar e por um professor que por razões de saúde não podia nadar, sendo que ambos não estavam informados das correctas medidas de segurança (prevenção) e de socorro a empreender em caso de acidente e que também não tinham domínio, nomeadamente visual, sobre todas as actividades e passos dados pelas crianças e adolescentes a seu cargo, constitui uma actividade perigosa, nos termos e para os efeitos do art. 493º, nº 2 do Código Civil.
No mais, remete-se para as considerações tecidas a propósito na sentença recorrida, improcedendo as conclusões 61ª a 65ª das alegações de recurso.
5. A lei adjectiva instituiu a possibilidade de rejeição dos recursos em duas vertentes diversas, admitida que esta, no nosso processo penal a cindibilidade do recurso, princípio acolhido nos arts. 403° n° 1, 410° n° 1 e 412° n° 2: rejeição formal que se prende com a insatisfação dos requisitos prescritos no art. 412° n° 2 e a rejeição substantiva que ocorre quando a manifesta a improcedência do recurso. A manifesta improcedência verifica-se quando, atendendo à factualidade apurada, a letra da lei e a jurisprudência dos tribunais superiores é patente a sem razão dos recorrentes. As pretensões dos arguidos e do demandado são, pelo que se expôs, substancialmente improcedentes.
III – Decisão
Em face do exposto e ao abrigo do artº 420°, n° 1, do CPP, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em rejeitar, liminarmente, os recursos, por manifesta improcedência, substantiva:
- Negando provimento aos recursos interpostos pelos arguidos, e pelo demandado cível Externato L., confirmando-se, integralmente a decisão recorrida; e
- Condenando os recorrentes no pagamento das custas dos recursos e, nos termos do artº 420°, n° 4 CPP, ainda em 4 (quatro) UC's cada um deles; - com taxa de justiça que se fixa em 6 (seis) UC's.
Notifique.