CRIME DE CONDUÇÃO DO VEÍCULO EM ESTADO DE EMBRIAGUEZ
SUSPENSÃO PROVISÓRIA DO PROCESSO
INJUNÇÃO
PRESTAÇÃO DE TRABALHO A FAVOR DA COMUNIDADE
Sumário

O cumprimento da “prestação de trabalho socialmente útil” no âmbito da injunção aplicada para a suspensão provisória do processo, deve ser descontada na pena de multa em que o arguido venha a ser condenado na sequência do prosseguimento do processo.

Texto Integral

Proc. n.º 341/12.4PFPRT.P1

Acordam em Conferência no Tribunal da Relação do Porto

Relatório
Nos presentes autos, o arguido B… foi condenado pela prática, em autoria material, de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, previsto e punível pelo artigo 292.º, n.º1, do Código Penal, na pena de 90 (noventa) dias de multa, à taxa diária de 6€ (seis euros), o que perfaz o montante global de 540€ (quinhentos e quarenta euros); bem como, nos termos do estabelecido no artigo 69.º, n.º1, alínea a), do Código Penal, na proibição de conduzir veículos com motor, por um período de 4 (quatro) meses.
Inconformado, veio interpor o presente recurso, alegando, que nestes autos lhe foi aplicada uma medida de suspensão provisória do processo, tendo-lhe sido imposta, nomeadamente, a injunção de prestação de 70 horas de trabalho socialmente útil e a frequência do curso "Taxa.zero" dinamizada pela DGRS.
Porém, o Tribunal a quo, condenou-o na pena de multa de 90 dias, mas não procedeu ao desconto das horas de trabalho prestadas a favor da comunidade, bem como ao desconto do dia de detenção, nos termos do art.º 80.° n.º 2, do Código Penal, não obstante a detenção ter sido inferior a um período de 24 horas.
Pretende, pois, o recorrente, que à pena de multa de 90 dias em que foi condenado, sejam descontadas as horas de trabalho comunitário prestadas, bem como, o dia da detenção.
Vejamos o teor da decisão recorrida.

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Decisão recorrida
Arguido
B…, profissão: Gestor de Produto, filho(a) de C… e de D…, estado civil: Casado (regime: Desconhecido), nascido(a) em …-..-1963, freguesia de … [Coimbra], nacional de Portugal, BI - ……., domicílio: Rua …, Nº .., ….-… Porto.
Pelo arguido foi dito que desejava prestar declarações, tendo confessado os factos que lhe são imputados nos autos.
O arguido foi, então, questionado, pelo M.mo Juiz, se fazia tal confissão de livre vontade e fora de qualquer coação, bem como se propunha efetuar uma confissão integral e sem reservas, ao que respondeu afirmativamente.
As suas declarações foram gravadas pelo sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso neste Tribunal.
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Nesta altura, pedida a palavra pela Digna Procuradora Adjunta, por esta foi dito prescindir da testemunha da acusação.
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Terminada a produção de prova (cf., ainda, o artigo 344.º, n.º 2, alíneas a) e b), do Código de Processo Penal), o M.mo Juiz de Direito concedeu a palavra, sucessivamente, à Digna Procuradora Adjunta e à ilustre mandataria para, em alegações orais, exporem as conclusões de facto e de direito que hajam extraído da prova produzida.
Findas as alegações, foi dada a oportunidade ao arguido de dizer algo que ainda não tivesse dito e que entendesse ser útil para a sua defesa, após o que o M.mo Juiz de Direito passou a proferir a seguinte.

SENTENÇA
A fim de ser julgado em processo comum, com intervenção do Tribunal Singular, o Ministério Público deduziu acusação contra o arguido, B…, divorciado, gestor de qualidade (de baixa médica desde ../../2014), nascido a .. de … de 1963, filho de C… e de D…, natural da freguesia de …, concelho de Portugal, titular do BI n.º …….., residente na Rua …, n.º .., …, Porto, e, atualmente, a desenvolver tratamento terapêutico, no âmbito de um internamento, na E…, sita na Rua …, n.º …, …,
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imputando-lhe a prática, em autoria material, de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, previsto e punível pelas disposições conjugadas dos artigos 292.º, n.º 1 e 69.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal, pelos factos que constantes da acusação de fls. 180-182, que aqui se dão por inteiramente reproduzidos.
A fls. 261, o arguido apresentou a respetiva contestação, oferecendo o merecimento dos autos.
Após o despacho que designou dia para julgamento, não sobrevieram nulidades, mantendo-se o processo válido.
A audiência de discussão e julgamento decorreu, com observância do pertinente formalismo legal.
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FUNDAMENTAÇÃO

MATÉRIA DE FACTO PROVADA:
No dia 18 de maio de 2012, pelas 04h30, na Rua …, no Porto, o arguido, B…, conduzia o veículo automóvel, ligeiro de passageiros, da marca Kía, modelo …, com a matrícula ..-..-GJ;
Intercetado pela PSP, na sequência de uma operação de fiscalização, e submetido a exame quantitativo de pesquisa de álcool no ar expirado, mediante a utilização do aparelho DRAGER, modelo Alcotest711 O MKIII P, registou uma taxa de álcool no sangue de 1,56 g/l, a que corresponde, após dedução do erro máximo admissível (EMA), uma TAS compreendida entre os valores de 1,435 g/l e 1,482 g/l;
Na ocasião, o arguido declarou não pretender a realização de contraprova;
O arguido, ao conduzir o veículo nas condições supraditas, sabia perfeitamente que não o podia fazer, em virtude de, em momento anterior, ter ingerido bebidas alcoólicas em quantidade e qualidade adequadas a determinar a referida taxa de alcoolemia;
Agiu de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo ser a sua conduta proibida e punida por lei;
Mostra-se arrependido;
O arguido, à data dos factos, consumia produtos estupefacientes e ingeria bebidas alcoólicas em excesso;
É divorciado e tem um filho, de 19 anos de idade, que vive com a mãe;
É gestor de qualidade, encontra-se de baixa médica desde 17 de julho de 2014 e recebe o montante de 680 Euros mensais;
Está internado numa clínica, desde 17 de agosto de 2015, para desintoxicação alcoólica e de estupefacientes;
Desde que se encontra a fazer o citado tratamento, não consome bebidas alcoólicas nem produtos estupefacientes;
Na esfera desse tratamento, o arguido despende 480€ mensais;
Vive, sozinho, numa casa própria do seu pai, não pagando nenhum montante por tal facto (tirante as despesas de água e eletricidade);
Não tem veículo motorizado;
O arguido tem a frequência do curso de Engenharia de Produção Animal;
Do certificado de registo criminal do arguido consta que lhe foram impostas as subsecutivas condenações:
I - por Sentença, de 08/05/2009, do Tribunal Judicial da Comarca de Montemor-O-Velho, foi condenado, pela prática, em 24/02/2008, de um crime de furto (simples), na pena de 70 dias de multa, à taxa diária de 15 C; e
II - por Acórdão, de 09/04/2010, da 3.ª Vara Criminal de Lisboa, foi condenado, pela prática, em 05/01/2009, de um crime de abuso de confiança, na pena de 1 ano e 6 meses de prisão, que foi suspensa, na atinente execução, pelo período de 1 ano e 6 meses.
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MATÉRIA DE FACTO NÃO PROVADA
Não se provaram outros factos.
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MOTIVAÇÃO DOS FACTOS PROVADOS
A factualidade positiva resultou da convicção do Tribunal, formada com base no conjunto da prova produzida, sendo certo que as declarações prestadas foram objeto, nos termos legais, de gravação magnetofónica.
Considerámos, concretamente, as declarações prestadas pelo arguido, que confessou, de forma integral e sem reservas, os factos que lhe eram imputados e prestou esclarecimentos nos termos dados como assentes.
Valorizámos ainda os seguintes documentos: o talão de fls. 19-20, atinente ao teste, feito ao arguido, para pesquisa de álcool no ar expirado; a declaração de fls. 13, no âmbito da qual o arguido declarou não pretender contraprova; e as declarações de ff. 198 e 215 e 262, que certificam que o arguido se encontra, na E…, desde 17 de agosto de 2015, a efetuar um tratamento de desintoxicação alcoólica e de estupefacientes.
No tocante às condições pessoais e económicas do arguido, aceitou o Tribunal as respetivas declarações.
No que tange aos antecedentes criminais, baseámo-nos no certificado de registo criminal do arguido.
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DECISÃO
Pelo exposto, julgo a acusação totalmente procedente e, em consequência, decido:
I - Condenar o arguido, B…, pela prática, em autoria material, de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, previsto e punível pelo artigo 292.º, n.º1, do Código Penal, na pena de 90 (noventa) dias de multa, à taxa diária de 6 € (seis euros), o que perfaz o montante global de 540€ (quinhentos e quarenta euros);
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II - Condeno igualmente o arguido, nos termos do estabelecido no artigo 69.º, n.º1, alínea a), do Código Penal, na proibição de conduzir veículos com motor, por um período de 4 (quatro) meses. Devendo ele, no prazo de dez (10) dias após o trânsito em julgado da sentença, entregar na Secretaria do Tribunal ou num posto policial, que a remeterá àquela, a respetiva carta de condução, sob pena de incorrer no crime de desobediência, previsto e punível pelo artigo 348.º, n.º 1, alínea b), do Código Penal - cf., ainda, os artigos 69.º, n.º3, do Código Penal, e 500.º, n.º2, do Código de Processo Penal.
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Inconformado com esta decisão, dela veio o arguido B… interpor o presente recurso, alegando, que nestes autos lhe foi aplicada uma medida de suspensão provisória do processo, tendo-lhe sido imposta, nomeadamente, a injunção de prestação de 70 horas de trabalho socialmente útil e a frequência do curso "Taxa.zero" dinamizada pela DGRS.
Porém, o Tribunal a quo, condenou-o na pena de multa de 90 dias, mas não procedeu ao desconto das horas de trabalho prestadas a favor da comunidade, bem como ao desconto do dia de detenção, nos termos do art.º 80.° n.º 2, do Código Penal, não obstante a detenção ter sido inferior a um período de 24 horas.
Pretende, pois, o recorrente, que à pena de multa de 90 dias em que foi condenado, sejam descontadas as horas de trabalho comunitário prestadas, bem como, o dia da detenção, invocando, neste sentido, o Ac. TRP de 22.04.2015, in www.dgsi.pt.
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O MP em 1ª Instancia e o Sr. PGA, junto desta Relação, são de parecer que o recurso deve improceder.

Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
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1ª Questão
A detenção a que o arguido foi sujeito nos autos, deve ser descontada no cumprimento da pena? Mesmo que a sua duração seja inferior a 24 horas?

Sabemos que o arguido foi detido para fiscalização, no dia 18 de Maio de 2012, pelas 4 horas e 30 minutos e foi libertado pelas 5 horas e 35 minutos (cf. fls, 18), sendo por isso, a sua detenção pelo período de uma hora e cinco minutos.
Sobre esta questão, dispõe o art.º 80.º n.º 2, do Código Penal, que se for aplicada pena de multa, a detenção, a prisão preventiva e a obrigação de permanência na habitação são descontadas à razão de um dia de privação de liberdade por pelo menos um dia de multa.
Ora, desde já nos parece que a melhor interpretação da lei (art.ºs 80.º, do CP e 479.º, do CPP) conduzirá à conclusão de que, nestas situações, haverá lugar a um dia de desconto (neste sentido, cfr. Acs. Ac. TRP: 17.05.2006, 27-9-2006, 18-10-2006, 20-12-2006; Ac. TRC 19-11-2008, 19-2-2014; Ac. TRL 21-9-2011; 29-10-2002, 23-10-2007, 11-12-2008, 21-9-2011; Ac. TRE 19-3-2013, todos disponíveis em www.dgsi.pt.)
Efectivamente, dispõe o n.º 1 do citado art.º 80.º do CP, que a detenção, a prisão preventiva e a obrigação de permanência na habitação sofridas pelo arguido são descontadas por inteiro no cumprimento da pena de prisão, ainda que tenha sido aplicada em processo diferente daquele em que vier a ser condenado, quando o facto por que for condenado tenha sido praticado anteriormente à decisão final do processo no âmbito do qual as medidas foram aplicadas.
O Prof. Figueiredo Dias (cfr. As Consequências Jurídicas do Crime, págs. 297, § 434), refere que o instituto do desconto assenta numa ideia básica segundo a qual privações de liberdade de qualquer tipo que o agente tenha sofrido em razão de facto ou factos que integram ou deveriam integrar o objecto de um processo penal devem, por imperativos de justiça, ser imputadas ou descontadas na pena a que, naquele processo, o agente venha a ser condenado. Esta ideia vale relativamente às frequentes privações de liberdade que têm lugar antes do trânsito em julgado da decisão do processo: prisões preventivas sobretudo (CPP, art.ºs 202.º e segs.), mas também meras detenções (CPP, art.ºs 254.º e segs.).
Também, Pinto de Albuquerque, entende que devem ser descontados na pena de prisão todos os períodos de detenção (Comentário do Código Penal, págs. 250).
Esta ideia resulta do texto da lei, no seguimento do que já se havia sido dito na exposição de motivos do projecto de revisão do Código Penal, daí surgindo a Proposta de Lei n.º 98/X, de 7 de Setembro de 2006, geradora da Lei n.º 59/2007, de 4 de Setembro, onde se referiu que todas as medidas privativas da liberdade sofridas antes da condenação são descontadas na pena de prisão, nelas se incluindo a simples detenção, a prisão preventiva e a obrigação de permanência na habitação (cfr. Acórdão de Uniformização de Jurisprudência n.º 9/2011, publicado no Diário da República, I Série, de 23/11/2011).
No caso concreto, como dissemos, o arguido foi sujeito a uma operação de fiscalização, tudo durante um curto período de tempo, que decorreu entre as 04h 30 e as 05h 35. Porém, atento o que se dispõe no art.º 254.º, al.ª a), do CPP, a mesma só pode ser havida como detenção, pois, qualquer das situações de detenção previstas no art. 254º, n.º 1, als. a) e b), do Cód. Proc. Pen., está contemplada no desconto previsto no art. 80º, n.º 1, do Cód. Penal.
Assim sendo, resta apenas saber se o período de tempo em que o arguido esteve detido deve ser descontado por inteiro, ou seja, um dia, no tempo de prisão que tem para cumprir, apesar desse tempo ser inferior.
Ora, o citado n.º 1, do art.º 80.º, manda descontar por inteiro a detenção sofrida, mesmo que o seu tempo de duração tenha sido inferior á unidade diária (24 horas), pois o desconto estabelecido tem de ser visto como um benefício para os condenados, pelo que deve contar-se como um dia a hora (4,30 h - 5,35 h) em que o arguido esteve privado da sua liberdade, e descontado no cumprimento de pena aplicada.
Por outro lado, o artigo 479.º do Código de Processo Penal, que regula a contagem do tempo de prisão, não faz qualquer referência expressa à contagem do tempo objecto de desconto, pelo que temos de proceder à contagem do tempo de detenção a descontar segundo as regras aqui previstas.
De facto, não obstante a lei não prever o tempo de prisão contado em horas, tal não leva à conclusão de que a detenção por tempo inferior a 24 horas, não possa ser descontada, pois trata-se sempre de uma privação da liberdade, cujo direito está consagrado na Constituição da República (art. 27º da CRP), e nem se diga que conflitua com o Acórdão de Uniformização de Jurisprudência n.º 10/2009, publicado no Diário da República, I Série, de 24/6/2009, pois a situação é muito distinta.
Assim, concordamos com a corrente maioritária da jurisprudência, que manda descontar um dia no período inferir a 24 horas em que o arguido esteve privado da sua liberdade, pelo que procede esta questão.
2ª Questão
Desconto, ou não, do número de horas de trabalho prestadas no decurso da suspensão provisória do processo na pena de multa em que o arguido foi condenado.

Resulta dos presentes autos, que em sede de inquérito foi aplicada ao arguido a suspensão provisória do processo, pelo período de 8 meses, mediante a injunção de prestação, de 70 horas de trabalho socialmente útil e a injunção de frequentar a actividade taxa.zero junto da DGRSP.
Igualmente, resulta da informação de fls. 72 e 73 prestada pela DGRSP que o arguido cumpriu 42,5 horas de trabalho para a "ASSOCIAÇÃO F…" e 3 horas de trabalho para a "ASSOCIAÇÃO G…", pelo que, o arguido completou no âmbito da suspensão provisória do processo 45,5 horas da injunção de 70 horas de trabalho que concordou realizar.
Assim, pretende-se saber se este tempo já cumprido, pode ser descontado na pena de multa em que foi condenado.

Esta questão tem sido objecto de controvérsia na jurisprudência, verificando-se duas correntes distintas nos nossos Tribunais, sobre as quais já nos pronunciamos no Ac. desta Relação proferido em 3-6-2016, proc. n.º 293/14.6PFPRT.P1.
Sabemos que na suspensão provisória do processo existe a faculdade de o Ministério Público, verificados os pressupostos legais e com a concordância do juiz de instrução, não acusar e suster o andamento do processo por período não superior a dois anos, aplicando-se ao arguido as injunções ou regras de conduta tipificadas na lei.
Trata-se de uma forma consensual de resolução do conflito criminal, que visa alcançar a ressocialização do agente evitando a condenação e a audiência de julgamento e, deste modo, obviar ao seu efeito estigmatizante para si e facilitar a sua reintegração social.
Assim, de acordo com o artigo 282º, nº 4, do Código de Processo Penal, em caso de incumprimento das injunções e regras de conduta, o processo prossegue.
Ora, no citado acórdão, dissemos que concordamos com a posição que entende que a suspensão provisória do processo pretende evitar o julgamento, mas não a sanção acessória quando esta possa equivaler, materialmente, à imposição de uma injunção ou regra de conduta.
Assim, as injunções são ordens dadas ao arguido para que cumpra determinadas obrigações, de facere ou de non facere, pelo que, neste ponto, se assemelham a uma sanção penal, com o mesmo objectivo de realização do interesse público, realizado através de uma pena, mas a que não está ligada a censura ético-jurídica da pena nem a correspondente comprovação da culpa (cf. Costa Andrade, Jornadas de Direito Processual Penal - O Novo Código de Processo Penal, 1988, pág. 353), sendo que a concordância do juiz de instrução na suspensão provisória do processo, confere às injunções uma natureza que as aproxima das sanções penais e como tal devem ser consideradas (cfr. ainda Costa Andrade, consenso e oportunidade, Jornadas de Direito Processual Penal, o Novo Código de Processo Penal, pág.353).
Por outro lado, o princípio “ne bis in idem” que está consagrado no n.º 5 do art. 29º da Constituição da República Portuguesa, diz: “ninguém pode ser julgado mais do que uma vez pela prática do mesmo crime”.
Em anotação a este artigo os Profs. Vital Moreira e Gomes Canotilho, consideram que a Constituição, “... proíbe rigorosamente o duplo julgamento e não a dupla penalização, mas é óbvio que a proibição do duplo julgamento pretende evitar tanto a condenação de alguém que já tenha sido definitivamente absolvido pela prática da infracção, como a aplicação renovada de sanções jurídico-penais pela prática do «mesmo crime».”
Por isso, o principio ne bis in idem tem de garantir ao indivíduo estabilidade da sua situação jurídica em relação a uma determinada infracção, que foi definitivamente fixada e que não será alterada por decisão posterior, impedindo a realização de uma segunda acção punitiva pelos mesmos factos, e garantindo ao indivíduo a protecção da sua pessoa contra os ataques à sua esfera jurídica decorrentes da repetição de uma acção punitiva.
Assim, a cumulação, no mesmo processo e na sequência da mesma conduta, da injunção e da pena, com a consequente aplicação de duas medidas (a injunção e a pena) materialmente idênticas e tendo por base a mesma conduta criminosa, tem de levar o juiz a procurar a compressão material do principio ne bis in idem, no sentido de saber se a lei oferece uma resposta para que se obste a que um condenado, pela prática do mesmo facto, cumpra uma punição por duas vezes, assegurando-se que um efeito já sofrido pelo delinquente deve ser tido em conta na sentença, tal como se encontra na previsão dos arts. 80º a 82º do CP, onde se abrange não apenas a prisão preventiva mas outros efeitos já sofridos pelo mesmo facto (cfr. Eduardo Correia, Actas das Sessões da Comissão Revisora do CP, II, p. 166).
Esta protecção constitucional abrange, assim, o duplo julgamento, mas também a “aplicação renovada de sanções jurídico-penais pela prática do «mesmo crime», que seria exactamente o que aconteceria com o não desconto das injunções já compridas pelo arguido, seja ao nível da proibição de condução, seja ao nível de prestações pecuniárias.
A suspensão provisória do processo é, como já dissemos, uma solução de consenso na resolução de questões penais, com a qual se pretende, além do mais, uma maior celeridade na resolução dos conflitos, uma rápida reintegração social do arguido e uma melhor satisfação dos interesses da vítima.
Porém, mesmo uma distinta natureza jurídica da pena e da injunção não pode, por si só, constituir impedimento ao pretendido desconto.
Da mesma forma, a pena de multa imposta agora ao arguido na sentença recorrida, teve por objecto os mesmos factos que constituíram o objecto da injunção que lhe foi imposta na suspensão provisória do processo, sendo que os efeitos práticos de uma e de outra, projectados na sua vida quotidiana são os mesmos, e o cumprimento feito da mesma forma, apenas constituindo uma alteração à tramitação normal que conduziria ao julgamento.
Ora, repetimos, o que se evita com a suspensão provisória do processo é o julgamento, mas não a sanção propriamente dita, se esta poder equivaler à imposição de uma injunção ou regra de conduta (já não será assim, por exemplo, quanto à injunção da frequência da acção de formação, pois não há qualquer base legal de equivalência com a pena de multa, ou outra).
Assim, mesmo admitindo a tal distinta natureza jurídica da injunção e da pena, a questão fulcral é que, caso sejam cumpridas, são-no da mesma forma, exigindo do arguido a mesma conduta, isto é, a injunção cumprida pela arguido teve em vista o mesmo facto e foi cumprida da mesma forma.
Por isso, no caso em análise, vimos que o facto é o mesmo (é a este facto criminoso que se liga tanto a injunção como a pena), a que se faz corresponder cumulativamente uma injunção e uma pena.
O sistema processual-penal, que consagra e regula a suspensão provisória do processo, pressupõe que esta acautele, suficientemente, a protecção dos bens jurídicos, pelo que as finalidades preventivas “da punição” se consideram abstractamente garantidas através da aplicação de injunções. E essas finalidades preventivas são, então, de considerar como concretamente asseguradas, sempre que as injunções aplicadas se mostrem cumpridas.
Por isso, a injunção serve finalidades de prevenção, finalidades essas que são também comuns às penas.
Assim, se a detenção, a prisão preventiva e a obrigação de permanência na habitação servem finalidades de medida de coacção, portanto de natureza cautelar, que não as finalidades da pena, e a lei determina que se proceda ao seu desconto (das medidas de coacção no cumprimento da pena), desconto imposto pela mera decorrência da identidade fáctica de que decorre a privação da liberdade, não se justifica a exclusão do desconto nestes casos em que é de reconhecer tanto a identidade material das medidas como as suas finalidades.
Convém dizer que o desconto das injunções parcialmente cumpridas, pode ainda apoiar-se no artigo 69º, nº 6 do Código Penal, onde não se incluiu como não contando para efeitos de proibição, o tempo já cumprido em sede de suspensão provisória de processo, o que leva a concluir que o legislador não quis, expressa e intencionalmente, incluir as injunções parcialmente cumpridas, como não contando, para efeitos da contagem do prazo de proibição de sanção acessória.
Por isso, não poderemos deixar de considerar como uma renovada sanção jurídico-penal, o não desconto das injunções já cumpridas, ou parcialmente cumpridas, sob pena de violação do princípio constitucional non bis in idem.
Finalmente, diremos que resulta ainda do artº 9º do Código Civil que a interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada (nº 1), não podendo, porém, ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso (nº 2); na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados (nº 3).
Só quando razões ponderosas, baseadas noutros princípios interpretativos, conduzem à conclusão de que não é o sentido mais natural e directo da letra que deve ser acolhido, deve o intérprete preteri-lo.
Este n.º 3 propõe um legislador sábio, racional e justo, que consagra as soluções mais acertadas, mais correctas, justas ou razoáveis, e que sabe exprimir-se por forma correcta.
Baptista Machado, Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, Almedina, Coimbra, 1996, págs. 188 e ss., refere que Manuel de Andrade, em caso de dúvida, propõe a procura de um certo ponto de equilíbrio, nos seguintes termos: "Dentre os dois sentidos, cada um deles o mais razoável sob um dos aspectos considerados, deve preferir-se aquele que menos se distanciar da razoabilidade sob o outro aspecto".
Também Figueiredo Dias, in Direito Processual Penal, Primeiro Volume, Coimbra Editora, L.da, -1974, p. 95, refere: " Nas suas linhas essenciais, portanto, o problema da interpretação da lei não ganha, em direito processual penal, autonomia: trata-se aí, como em geral, da necessidade de uma actividade - prévia em relação à aplicação do direito e que, por isso mesmo, em nada contende com o carácter não subsuntivo desta operação - tendente a descortinar o conteúdo de sentido ínsito em um certo texto legal. Só convirá aqui relembrar dois pontos já devidamente acentuados: é o primeiro o da relevância que, para uma interpretação axiológica e teleológica nos domínios da nossa disciplina, assume a consideração do fim do processo; é o segundo o da necessidade de, por ser o direito processual penal verdadeiro «direito constitucional aplicado», se tomar na devida conta o principio da interpretação conforme à Constituição."
Na duvida, os direitos devem prevalecer sobre restrições – in dubio pro libertate (Jorge Miranda, Manual de Direito Constitucional, 4.º, 308).
Francesco Ferrara, Interpretação e Aplicação das Leis, 1978, pág. 127 e segs., refere que: «...As palavras podem ser vagas, equívocas ou deficientes e não oferecem nenhuma garantia de espelharem com fidelidade e inteireza o pensamento: o sentido literal é apenas o conteúdo possível da lei; para se poder dizer que ele corresponde à mens legis, é preciso sujeitá-lo a critica e a controlo».
Também no Ac. STJ de 27-9-1995, DR, IA, de 14-12-95, pág. 7878, se diz: «O que se pretende com a interpretação juridica não é compreender, conhecer a norma em si, mas sim obter dela ou através dela o critério exigido pela problemática e adequada decisão justificativa do caso. O que significa que é o caso e não a norma o prius problemático- intencional e metódico».
Por tudo isto, entendemos que a interpretação da lei mais correcta, impõe um critério de justiça material, que leva à equivalência de ambas as prestações, pois a injunção e a pena concreta decorrem da prática do mesmo crime, e sendo proibido o duplo julgamento, como forma de evitar a aplicação renovada de sanções jurídico-penais pela prática do «mesmo crime», tem de proceder o recurso do arguido.

Assim, tem de proceder o recurso interposto pelo arguido.

Pelo exposto, julga-se procedente o recurso interposto pelo arguido, e, consequentemente, revoga-se a decisão recorrida, e ordena-se que seja substituída por outra que proceda ao desconto do trabalho socialmente útil prestado pelo arguido durante a suspensão provisória do processo, bem como de um dia de detenção na multa em que foi condenado.

Sem custas.

Porto, 25–01-2017
Donas Botto
José Carreto (com declaração de voto)
Francisco Marcolino
____
Declaração de voto
Voto vencido quanto ao desconto na pena de multa, em que o arguido foi condenado, do período de tempo em que cumpriu trabalho a favor da comunidade, que havia aceite como injunção no âmbito da suspensão provisória do processo.
Aceitando o desconto da proibição de conduzir cumprida pelo arguido, como injunção, na pena acessória de proibição de conduzir em que vem, posteriormente, a ser condenado, por essencialmente se tratar de uma injunção obrigatória imposta (tal como a pena) por lei (cf. nosso ac.RP 25/5/2015 www.dgsi.pt “ I- A não repetição prevista no artº 282º 4 CPP, é restrita às prestações de natureza pecuniária. II- O cumprimento da injunção da proibição de conduzir veículos a motor no decurso da suspensão provisória do processo, deve ser descontado na pena acessória de proibição de conduzir em que o arguido venha a ser condenado tratando-se de crime para o qual esteja legalmente prevista essa pena acessória, na sequência do prosseguimento do processo, por incumprimento das injunções ou regras de conduta. III – Tal injunção, porque imposta obrigatoriamente por lei (artº 281º3 CPP – redacção da Lei 20/2013) mantém a natureza de pena acessória imposta pela norma punitiva e não a de “medida funcionalmente equivalente” dependente da consensualização da injunção. IV – O desconto da injunção cumprida é essencial para evitar a violação do principio ne bis in idem, que visa também evitar a aplicação de duas penas pelo mesmo facto, do principio da presunção de inocência do arguido, a quem, foi imposta por força da lei uma pena sem julgamento nem declaração de culpa. V- Através do desconto é restabelecida a harmonia do sistema jurídico e preenchida a lacuna, até à vigência da Lei 20/2013 inexistente, e nascida com a imposição legal do artº 281º3 CPP, a preencher através da norma que o intérprete criaria se tivesse de legislar dentro do espirito do sistema (evitar que o arguido sofra duas vezes a mesma pena pelo mesmo crime).”, já não aceito, como justo, o desconto de outro tipo de injunções desde logo não equivalentes, como expressei no ac. RP 7/7/2016 www.dgsi.pt em cujo sumário se pode ler “A entrega/pagamento de quantia a instituição de solidariedade social no âmbito da suspensão provisória do processo não deve ser descontada no montante da pena de multa em que o arguido venha a ser condenado, porque: i) foi voluntariamente aceite, ii) contraria frontalmente o art. 282.º n.º 4 do CPP, iii) não constituir sanção penal previstas no tipo legal, iv) poder ser imposta para além da condenação numa pena (vg. indemnização, condição da suspensão da execução da prisão) e v) uma quantia entregue a terceiro não compensa o montante que deve ser entregue ao Estado a título de multa.”, e onde podem ser aquilatadas as demais razões ali aduzidas.
Nessa sequência, sobre este ponto específico, discordo da decisão que fez vencimento (conforme com o ac. RP 22/4/2015 www.dgsi.pt (Vaz Patto) “ II - Deve proceder-se ao desconto, na pena de multa, de acordo com os critérios decorrentes dos artigos 48º, nº 2, e 58º, nº 3, do Código Penal, da prestação de trabalho a favor da comunidade cumprida como injunção no âmbito da suspensão provisória do processo”, aderindo à decisão do ac. RP 15/12/2016, www.dgsi.pt (Airisa Caldinho) “Não há lugar a desconto na pena de multa, em que foi condenado na sequência do prosseguimento do processo, das horas de trabalho prestadas a favor da comunidade, no âmbito da suspensão provisória do processo, em cumprimento de injunção por si aceite.”

José Carreto