COMPRA E VENDA
COISA DEFEITUOSA
DANOS NÃO PATRIMONIAIS
Sumário

I - O dano não patrimonial atinge gravidade merecedora da tutela do direito quando ultrapassa o nível das contrariedades ou incómodos;
II - Para definição desse limite deve atender-se aos valores decorrentes do modo de vida colectivo padrão vigente;
III - Uma situação que implique o abandono não desejado do domicílio constitui dano não patrimonial.
R.F.

Texto Integral

ACORDAM OS JUÍZES DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA:
I – Relatório
            A1 e mulher A2 intentaram acção declarativa de condenação sob a forma de processo ordinário contra R. pedindo a condenação deste a pagar-lhes a quantia de € 23.942,23 referente ao que despenderam com a reparação de defeitos (substituição de canalização de águas e instalação eléctrica) de imóvel construído pelo R. e, ainda, € 10.000 a título de danos não patrimoniais, consistentes na necessidade de irem viver para outra casa durante o decurso das obras e no agravamento de problemas de asma de seu filho menor.
            O R. contestou por impugnação.
            A final foi proferida sentença que condenou o R. no pagamento das despesas relativas à substituição da canalização de águas, a liquidar, e absolveu-o do demais pedido (substituição de instalação eléctrica e danos morais).
            Inconformados, apelaram os AA concluindo, em síntese, pela ocorrência de erro na decisão da matéria de facto e erro de julgamento na parte da absolvição do pedido..
            Houve contra-alegação onde se propugnou pela manutenção do decidido.

II – Questões a Resolver
            Consabidamente, a delimitação objectiva do recurso emerge do teor das conclusões do recorrente, enquanto constituam corolário lógico-jurídico correspectivo da fundamentação expressa na alegação, sem embargo das questões de que o tribunal ad quem possa ou deva conhecer ex officio[1].
            De outra via, como meio impugnatório de decisões judiciais, o recurso visa tão só suscitar a reapreciação do decidido, não comportando, assim, ius novarum, i.e., a criação de decisão sobre matéria nova não submetida à apreciação do tribunal a quo[2].
            Ademais, também o tribunal de recurso não está adstrito à apreciação de todos os argumentos produzidos em alegação, mas apenas – e com liberdade no respeitante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito – de todas as “questões” suscitadas, e que, por respeitarem aos elementos da causa, definidos em função das pretensões e causa de pedir aduzidas, se configurem como relevantes para conhecimento do respectivo objecto, exceptuadas as que resultem prejudicadas pela solução dada a outras[3].
            Assim, em face do que se acaba de expor e das conclusões apresentadas, são as seguintes as questões a resolver pelo tribunal:
            - se ocorreu erro na decisão da matéria de facto, e das suas eventuais consequências na discussão do aspecto jurídico da causa;
            -  se ocorrem danos morais indemnizáveis.

III – Fundamentos de Facto
            Segundo se depreende das suas alegações e conclusões os recorrentes discordam das respostas dadas aos quesitos 13, 14, 19, 21, 22 e 23.
            São os seguintes o teor e as respostas dos referidos quesitos:
Quesito 13:
     [As infiltrações] Provocaram o aparecimento de água nas tomadas eléctricas e no quadro eléctrico em consequência da água que escorria pelas paredes?
Resposta: Provado o que consta da resposta aos quesitos 7º e 8º [… apareceram … escorrimento de água … no quadro eléctrico].
Quesito 14:
     Tornando possível a ocorrência de um curto circuito e incêndio?
Resposta: Provado que o escorrimento de água junto do quadro eléctrico tornava possível a ocorrência de um curto circuito e incêndio.
Quesito 19:
     E suportaram € 3.176,36 para substituir a instalação eléctrica?
Resposta: Não Provado.
Quesito 21:
     O filho dos AA sofre de asma?
Resposta: Provado que o filhos dos AA sofre de reactividade brônquica (dificuldade respiratória, vulgo asma).
Quesito 22:
     As infiltrações determinaram o agravamento dos referidos problemas?
Resposta: Não Provado.
Quesito 23:
     Para realização das obras os AA e o filho tiveram de viver para a casa dos pais da Autora mulher?
Resposta: Provado.

            É manifesto que os recorrentes a título de impugnação da decisão sobre a matéria de facto confundiram duas realidades distintas. Com efeito uma coisa é a discordância relativamente aos factos que foram dados como demonstrados – essa sim do campo da impugnação da matéria de facto – e outra as considerações sobre as ilações e conclusões a retirar desses factos – que já não respeitam à impugnação da decisão sobre a matéria de facto mas antes à discussão do aspecto jurídico da causa.
            Neste momento iremos apenas analisar da correcção das respostas dadas aos quesitos em causa, deixando para a fundamentação de direito as consequências dos factos apurados.
            No que respeita aos quesitos 13 e 14 as respostas dadas apenas excepcionaram, relativamente ao neles perguntado[4] o aparecimento de água nas tomadas eléctricas. E esse facto não pode, efectivamente e face à prova produzida, ser dado como adquirido. Com feito as testemunhas J…, quando descreveram o que viram no apartamento dos AA apenas se referiram ao escorrimento de água sobre o quadro eléctrico e quando directamente instados sobre as tomadas só o António Silva respondeu afirmativamente, mas de modo muito genérico e evasivo (as restantes afirmaram ‘não constatei nas tomadas’ e ‘muito concretamente no quadro eléctrico’). A testemunha D afirmou a possibilidade, em face das infiltrações existentes, a possibilidade de inserção de água nas tubagens da instalação eléctrica, mas não era isso que se perguntava nos quesitos, até porque tal facto não foi alegado.
            Quanto ao preço da substituição da instalação eléctrica desde logo haverá de afirmar a irrelevância da factura apresentada depois do encerramento da discussão em 1ª instância, por não ser caso de aplicação dos artigos 524º e 706º do CPC. Com efeito a necessidade de prova do referido preço resultava da própria propositura da acção, não tendo surgido posteriormente, nem, tão pouco, se verificou qualquer impossibilidade de atempada junção.
            E a prova produzida relativamente ao preço das reparações (quesito 19) foi no sentido de deixar totalmente indemonstrado o pagamento de qualquer preço. E isso porque tendo sido apresentados como testemunhas os pretensos autores das reparações (…) estes prestaram depoimento no sentido de afirmar desconhecer qual o valor pago pelas mesmas (em termos tais que, como referiu o Mmº juiz a quo na audiência de julgamento, quase se punha a dúvida se os trabalhos teriam mesmo sido realizados por eles).
            Quanto à doença do filho dos AA (quesito 21) deu-se como provado aquilo que é referido na declaração médica apresentada, não se vendo que outra coisa poderiam os AA querer que fosse dado como demonstrado. Mas já não se deu como adquirido que a mesma se tivesse agravado em consequência da situação de infiltrações verificada no apartamento (quesito 22), nem se poderia dar em face depoimento prestado pela testemunha A, avô da criança, que inculcou a ideia de que os problemas de saúde do seu neto se mantiveram estabilizados quer antes, quer durante, quer depois das ocorrências dos autos.
            Por último, a retirada dos AA para casa de familiares (quesito 24) obteve resposta positiva, pelo que se não vislumbra o sentido da impugnação (se ela se refere à duração da ausência ou às suas condições o certo é que se trata de circunstâncias não alegadas)
            Não se encontra, pelo exposto, razão para censurar a decisão da matéria de facto.

            Assim, e porque nada há a alterar, a factualidade relevante é a fixada em 1ª instância (fls 359-361), para a qual se remete nos termos do artº 713º, nº 6, do CPC.

IV – Fundamentos de Direito
            Fixados os factos relevantes importa, agora, analisar se eles permitem, como defendem os recorrentes, responsabilizar o R. pelos custos da substituição da instalação eléctrica e por danos morais.
            No que concerne à instalação eléctrica apenas ficou demonstrado que escorria água sobre o quadro eléctrico, havendo perigo de curto circuito e incêndio. Tal situação implica imperiosamente, e em termos de experiência comum de vida, a necessidade de desligar a corrente e justifica a impossibilidade de continuar a habitar a casa; mas não já a necessidade de substituição de toda a instalação eléctrica (até porque a água seca)[5]. Pelo que nada há a censurar à decisão de 1ª instância que considerou indemonstrada a necessidade de substituição da instalação eléctrica.
            Relativamente à retirada dos AA para a casa de familiares em face da situação em que se encontrava o seu apartamento e até que no mesmo fossem efectuadas as reparações afigura-se-nos passível de crítica a posição assumida na sentença recorrida de que se trata de incómodo ou contrariedade.
            No plano dos princípios afigura-se-nos ser consensual o entendimento, sintetizado no acórdão do STL de 24MAI2007 (proc. 07A1187), de que
 “Os danos não patrimoniais podem consistir em sofrimento ou dor, física ou moral, provocados por ofensas à integridade física ou moral duma pessoa, podendo concretizar-se, por exemplo, em dores físicas, desgostos por perda de capacidades físicas ou intelectuais, vexames, sentimentos de vergonha ou desgosto decorrentes de má imagem perante outrem, estados de angústia, etc..
 A avaliação da sua gravidade tem de aferir-se segundo um padrão objectivo, e não á luz de factores subjectivos (A. VARELA, “Obrigações em Geral”, I, 9ª ed., 628), sendo, nessa linha, orientação consolidada na jurisprudência, “com algum apoio na lei”, que as simples contrariedades ou incómodos apresentam “um nível de gravidade objectiva insuficiente para os efeitos do n.º 1 do art. 496º” (ac. STJ, 11/5/98, Proc. 98A1262 ITIJ).
Assim sendo, o passo seguinte consistirá em proceder á valoração dos factos provados, como consequências da conduta do lesante, servindo como linha de fronteira a separação entre aquelas que se situam ao nível das contrariedades e incómodos irrelevantes para efeitos indemnizatórios e as que se apresentam num patamar de gravidade superior e suficiente para reclamar compensação.

Depois, como se tem entendido, dano grave não terá que ser considerado apenas aquele que é “exorbitante ou excepcional”, mas também aquele que “sai da mediania, que ultrapassa as fronteiras da banalidade.”

            O difícil, porém, é a concretização prática desses princípios, designadamente no que diz respeito ao traçar da fronteira entre contrariedade e incómodos e o patamar de gravidade superior que integra já dano não patrimonial.
            Se é certo que tal distinção deve ser efectuada segundo um padrão objectivo, não é menos certo que o que se encontra na doutrina e jurisprudência são posições baseadas na casuística.
            Em nosso modo de ver, para encontrar o limite distintivo do dano moral deve partir-se dos valores estruturantes da vida em sociedade vigentes em cada momento, do modo de vida colectivo padrão.
            Esse padrão varia ao longo da história; é uma evidência que o padrão de década de 60 do século XX (que foi o pensado pelo legislador do CCiv) não é o actual.
            Nessa altura a sociedade portuguesa era uma sociedade de cariz rural, fechada, incutida de valores de ordem moral – como a honestidade, a honra, a verdade, a solidariedade vicinal, o respeito pelos outros e pelos dos compromissos assumidos – em que as pessoas se definiam mais pelo ser do que pelo ter, e que tinha incutida, mormente por via do regime político vigente, uma ideia de resignação (paciência ou conformação com que se sofrem os males).
            Neste tipo de sociedade fazia sentido considerar-se como dano patrimonial considerável o “que, no seu mínimo espelha a intensidade duma dor, duma angústia, dum desgosto, dum sofrimento moral que, segundo as regras da experiência e do bom senso, se torna inexigível em termos de resignação” – ac. RC de 5/6/79, CJ IV-3-892.
            Mas não nos parece que tal afirmação seja sustentável na actualidade em que o padrão de modo de vida se alterou substancialmente, não sendo, seguramente, a resignação um dos seus atributos.
            Com efeito a sociedade contemporânea é uma sociedade urbana, cosmopolita, aberta, globalizada, complexa, em que relevam sobremaneira os aspectos formais da aparência, em que os valores de solidariedade interpessoal e de probidade se esbatem, em detrimento de valores materiais, centrada no sucesso e na comodidade pessoal.
            Nessa consideração haverá situações que, há três dezenas de anos atrás, seriam consideradas meros incómodos (importunas, enfadonhas, molestas, nocivas) ou contrariedades (dificuldades, contratempos), mas que hoje são socialmente assumidas como importantes interferências na esfera das comodidades e direitos dos indivíduos.

            Nessa perspectiva, e centrando-nos, agora, na situação concreta dos autos, afigura-se-nos ser de considerar como de gravidade relevante uma situação que implica o abandono do domicílio. O abandono não desejado do domicílio é, em si mesma, uma situação que surge como ofensiva de relevantes valores sociais (inclusive com consagração constitucional – artº 34º da Constituição da República), que deve ser considerado como dano não patrimonial.
            Na quantificação desse dano haverá, no entanto de considerar o défice de alegação dos AA na caracterização da extensão do dano, como seja a duração temporal da ausência, as condições em que ficaram alojados, os transtornos que isso trouxe ao seu quotidiano, etc., que não permite se fixe o quantitativo indemnizatório nos valores peticionados.
            Considerando que apenas se provou o facto fundamental da imposição de abandono temporário do domicílio, sem qualquer outra caracterização, tem-se por equitativa uma indemnização de € 2.500.

V – Conclusões
            Do exposto podem extrair-se as seguintes conclusões:
I - O dano não patrimonial atinge gravidade merecedora da tutela do direito quando ultrapassa o nível das contrariedades ou incómodos;
II - Para definição desse limite deve atender-se aos valores decorrentes do modo de vida colectivo padrão vigente;
III - Uma situação que implique o abandono não desejado do domicílio constitui dano não patrimonial.

V – Decisão
            Termos em que, na parcial procedência da apelação, se condena o R. a pagar aos AA, a título de indemnização por danos morais, a quantia de € 2.500 (dois mil e quinhentos euros), no mais (condenação em liquidação, absolvição de despesas por substituição de instalação eléctrica e de indemnização por agravamento de doença) se mantendo a sentença recorrida.
            Custas pelo apelado.
                  Lisboa, 2008ABR15
                 (Rijo Ferreira)
                 (Afonso Henrique)
                (Rui Vouga)
_________________________________
[1] - Cf. artº 684º, nº 3, e 690º CPC, bem como os acórdãos do STJ de 21OUT93 (CJ-STJ, 3/93, 81) e 23MAI96 (CJ-STJ, 2/96, 86).
[2] - Cf. acórdãos do STJ de 15ABR93 (CJ-STJ, 2/93, 62) e da RL de 2NOV95 (CJ, 5/95, 98). Cf., ainda, Amâncio Ferreira, Manual dos recursos em Processo Civil, 5ª ed., 2004, pg. 141.
[3] - Cfr artigos 713º, nº 2,, 660º, nº 2, e 664º do CPC, acórdão do STJ de 11JAN2000 (BMJ, 493, 385) e Rodrigues Bastos, Notas ao Código de Processo Civil, III, 247.
[4] - sendo que apenas destes o tribunal pode conhecer, o que parece ter sido esquecido pelos recorrentes que desenvolvem a sua alegação no pressuposto de factos não alegados.
[5] - se bem que a testemunha A tenha justificado a necessidade de substituição com o recalcinamento dos disjuntores e a secagem dos condutores por sobreaquecimento daquele derivado o certo é que se trata de matéria não alegada.