1. O facto de as partes terem intitulado um determinado contrato como de “prestação de serviços” não obsta a que o mesmo seja qualificado como “subarrendamento” se a este tipo de contrato corresponder o conteúdo das declarações.
2. É de qualificar como subarrendamento de prédio urbano aquele cujo objecto essencial é integrado pela cedência da fruição de uma fracção autónoma, mediante o pagamento de contraprestação pecuniária mensal.
3. A tal não obsta o facto de o cedente se obrigar à conservação das partes comuns ou à conservação e reparação de aparelhos de ar condicionado, o que, na sua essência, corresponde a obrigações do senhorio.
4. Decretada a resolução extrajudicial desse contrato, por notificação avulsa do subarrendatário, nos termos do art. 1083º, nº 3, do CC, o documento em que o mesmo foi exarado, em conjugação com a referida notificação, constitui título executivo para obter a entrega judicial da fracção, nos termos do art. 15º, nº 1, al. e), do NRAU.
5. Por falta do sinalagma, à entrega da fracção, fundada na falta de pagamento das sub-rendas, o subarrendatário não pode opor a excepção de não cumprimento do contrato relacionada com o eventual incumprimento da obrigação do sublocador de proceder à conservação das partes comuns ou mesmo à conservação ou reparação dos aparelhos de ar condicionado.
(A.S.A.G.)
J…
visando obter a entrega coerciva da fracção autónoma de um prédio cedida ao abrigo de um contrato que qualifica de “subarrendamento”, alegando que o executado deixou de pagar as sub-rendas que foram acordadas e que, por tal motivo, procedeu à resolução extrajudicial do contrato por notificação avulsa.
Foi deduzida oposição à execução, alegando o executado que não existe qualquer contrato de subarrendamento, devendo o acordo celebrado entre as partes ser qualificado de “contrato de prestação de serviço”.
Alegou ainda que deixou de efectuar o pagamento das quantias acordadas em tal contrato pelo facto de a exequente não ter cumprido a sua obrigação de efectuar a conservação das partes comuns do prédio e a conservação e manutenção dos equipamentos existentes na fracção. Com efeito, o elevador, o quadro eléctrico, os aparelhos de ar condicionado, a iluminação e os computadores não funcionam em condições e existem infiltrações de água em várias zonas, portas que não fecham e janelas que não vedam.
A exequente contestou, reafirmando a existência de um verdadeiro “contrato de sublocação”, não obstante as partes o terem qualificado como “prestação de serviço”. Uma vez que o executado deixou de efectuar o pagamento das sub-rendas acordadas e que foi emitida declaração de resolução extrajudicial do contrato, nos termos do NRAU, deve ser julgada improcedente a oposição e prosseguir a execução com entrega de imóvel.
Na fase saneador foi julgada improcedente a oposição.
Apelou o executado e concluiu que:
a) Não se mostra possível qualificar como de arrendamento a prazo o contrato, uma vez que foi fixado o período contratual de um ano renovável por igual período até oito anos;
b) No contrato refere-se que a exequente era arrendatária da fracção, não podendo celebrar com terceiros contrato de arrendamento;
c) Não podia considerar-se que foi fixada pelas partes a obrigação de pagamento de uma renda, pois que tal qualificação foi expressamente negada pelo executado na sua oposição.
Houve contra-alegações.
Colhidos os vistos, cumpre decidir.
II – Factos essenciais a considerar:
1. O executado e a exequente celebraram em 1-7-05 um contrato que denominaram "Contrato de Prestação de Serviços";
2. Em tal documento, a exequente intitula-se “arrendatária com autorização para ceder em regime de prestação de serviços” e nele se refere que o ora executado estava “a constituir uma sociedade de que será titular de, pelo menos, 25% do capital social e para a qual, logo que esteja registada, este contrato será transferido no exacto estado em que se encontrar …”, tendo ficado consignado que era “celebrado o presente contrato de prestação de serviços que as partes aceitam e se obrigam a cumprir …”;
3. Nos termos da cláusula 1ª, a exequente obrigou-se a autorizar o executado a “utilizar a fracção de que será arrendatária sita na Av…., e a prestar-lhe os serviços de conservação das partes comuns”;
4. Pela cláusula 2ª, o acordo foi “celebrado pelo prazo de um ano, sendo automaticamente renovável por iguais períodos de um ano até 8 anos de vigência, se a exequente não o denunciar com a antecedência mínima de 3 meses relativamente ao termo do contrato”;
5. Na cláusula 3ª ficou exarado que “o preço devido pelos serviços prestados pela exequente será de € 2.750 mensais, acrescidos de IVA à taxa legal, até que a situação de obras do Metro na Av. ….volte à normalidade” e “a partir do mês imediatamente a seguir à resolução da situação acima referida, o valor da renda passará a ser de € 3.500, acrescido de IVA à taxa legal e com correcção monetária (inflação) retractiva a Março de 2004”;
6. E na cláusula 4ª estipulou-se que a exequente “é responsável pelas despesas de conservação e manutenção dos equipamentos (identificados no Anexo I ao presente contrato e que deste faz parte integrante) instalados no local integrado na presente prestação de serviços”;
7. Em tal Anexo identificaram-se 15 aparelhos de ar condicionado, focos de iluminação, armações de iluminação e apliques de parede, referindo-se no final que “toda a instalação eléctrica está preparada para ligar computadores e outras máquinas. Existência de base central de rede (faltando a central) de computadores e respectivas fichas distribuídas pelas instalações, estando igualmente instaladas fichas de ligação telefónica”;
8. Mais se acordou que o executado não poderia fazer obras na fracção em causa, sem prévia autorização da exequente e que se obrigava a suportar os encargos com a água, luz, gás e telefone, a liquidar os encargos, a obter licenças e autorizações necessárias ao exercício da sua actividade e a manter a fracção em causa em bom estado de conservação, ficando responsável por todos os danos causados ao mesmo por si, por pessoas ao seu serviço ou pelos seus clientes;
9. O executado não procedeu ao pagamento das quantias acordadas referentes aos meses de Março a Setembro de 2006.
10. Por solicitação da exequente, em 13-10-06 foi efectuada pessoalmente ao executado, através de solicitador de execução, a comunicação com o teor de fls. 10 e 11, sob a indicação de que se reportava à “resolução de contrato de subarrendamento” e ao “pagamento das rendas em mora”;
11. Invocando-se em tal comunicação a falta de pagamento das “rendas dos meses de Julho, Agosto e Setembro de 2006”, a A. comunicou ao executado a “resolução do contrato de arrendamento, com efeitos imediatos” e pediu a “desocupação da fracção até ao limite de três meses contados da data de notificação da presente comunicação”;
12. Na sequência de tal comunicação o executado remeteu à exequente a carta de fls. 32 a 37 datada de 26-10-06, onde, além do mais, nega a existência de contrato de subarrendamento.
III – Decidindo:
1. A principal questão que se suscita respeita à verificação ou não das condições de exequibilidade do título apresentado pela exequente.
Uma vez que a exequibilidade depende da existência entre as partes de um contrato de locação (ainda que na modalidade de subarrendamento) e da falta de pagamento de rendas por parte do (sub)locatário, importa verificar se, apesar de as partes terem identificado o contrato como “prestação de serviços”, o mesmo deve ser qualificado como subarrendamento e se, consequentemente, deve ser qualificada como sub-renda a prestação mensal periódica que nele fixada a cargo do executado.
Do teor das alegações decorre ainda que o executado pretende justificar a falta de pagamento das quantias mensais acordadas com o facto de a exequente ter deixado de cumprir obrigações relacionadas com a conservação e manutenção de partes comuns e dos equipamentos, pelo que importa verificar ainda se, pressuposta a existência de um contrato de subarrendamento, é legítima a invocação da excepção de não cumprimento do contrato como causa impeditiva da resolução contratual declarada e da execução do despejo com base no título executivo apresentado.
2. Quanto à questão da qualificação jurídica do contrato:
2.1. Qualquer acção executiva pressupõe a apresentação de um documento a que a lei reconheça força executiva. Quando fundada em títulos executivos extrajudiciais, a obrigação exequenda deve encontrar neles a certeza e segurança necessárias, dispensando a definição do litígio através de acção declarativa.
A necessária sustentação da pretensão num documento com força executiva leva a que não devam ser subvalorizados aspectos de natureza formal de que depende a existência de um título executivo (exequibilidade extrínseca e intrínseca). Mas, desta asserção não decorre que devam ser sobrevalorizados aspectos de ordem formal ao ponto de as partes serem escusadamente remetidas para uma discussão no âmbito da acção declarativa, apesar de o essencial da relação jurídica de crédito não sofrer qualquer contestação.
Fundando-se a execução em documento particular, assinado pelo devedor, e cumpridos os requisitos da validade formal do negócio nele configurado, nos termos do art. 46º, nº 1, al. c), do CPC, importante é que o mesmo seja constitutivo ou recognitivo de uma obrigação.
2.2. No caso concreto, a exequente apresentou um contrato que celebrou com o executado, advogado de profissão, que as partes intitularam de “prestação de serviços”. Por via de tal acordo, cedeu ao executado a fruição de uma fracção autónoma de que é arrendatária, mediante uma contrapartida monetária mensal, comprometendo-se a efectuar a conservação das partes comuns e a manutenção e conservação de equipamentos que se encontravam na fracção.
A mera leitura do clausulado torna manifesta a falta de correspondência entre conteúdo contratual e o nomen iuris atribuído pelas partes. Não obstante o facto de a qualificação surgir tanto nos considerandos como no clausulado, não consegue ocultar o desfasamento entre o núcleo central dos direitos e obrigações atribuídos a cada uma das partes e o cerne do contrato de prestação de serviços genericamente enunciado pelo art. 1154º do CC. Analisado globalmente o conteúdo essencial do contrato, sem conceder excessivo relevo a aspectos periféricos ou circunstanciais, todo o documento nos remete para as regras do subarrendamento de prédio urbano.
2.3. Desconhece-se o que terá motivado as partes a agirem do modo referido.
Embora o executado se insurja contra o facto de o Mº Juiz a quo ter imputado a “razões de conveniência” a aludida desconexão entre a realidade e o que formalmente figura no documento, também ele se negou a explanar os reais motivos que presidiram à não assunção da verdadeira natureza jurídica do contrato que indubitavelmente teve como objectivo fundamental a cedência da fracção para o exercício de uma actividade ligada à advocacia e à edição de revistas.
É verdade que certas cláusulas do acordo não respeitam integralmente o regime do contrato de subarrendamento de prédios urbanos que na ocasião vigorava, como acontece com a indicação de que teria a duração de um ano, renovável ou com a previsão de uma cláusula penal para a denúncia declarada pelo executado antes do prazo previsto.
Todavia, a constatação do desrespeito de algumas regras imperativas não obsta a que se assuma a referida qualificação contratual, já que a invalidade parcial do clausulado, por via do que se dispunha no art. 51º do RAU, não afecta necessariamente em todo o contrato, integrando-se as lacunas daí resultantes com recurso ao regime legal supletivo, como sucede quanto ao prazo de duração contratual mínimo de 5 anos, nos termos do art. 98º, nº 2, do RAU, ou quanto ao período mínimo da renovação, nos termos do art. 100º.
Por detrás de algum clausulado atípico, é incontornável o relevo que apresenta a cedência da fruição da fracção, em confronto com a real insignificância dos “serviços” que a exequente se obrigou a prestar e que, em boa verdade, não são mais do que obrigações típicas de qualquer locador ou sublocador. A contrapartida monetária convencionada só ganha significado em face do verdadeiro objectivo projectado pelas partes e que consistia na cedência do uso de uma fracção autónoma de um prédio sito na zona central de Lisboa, e não como sinalagma dos serviços que a exequente se comprometeu a prestar e que têm uma natureza indiscutivelmente acessória.
A real qualificação jurídica que se esconde por detrás da armadura formal manifesta-se ainda mais com a previsão do aumento da contraprestação de € 2.750 para € 3.500 pelo simples facto de terminarem as obras do Metropolitano, o que, como é óbvio, não apresenta qualquer conexão com os pretensos “serviços” que a exequente prestaria, antes com o valor intrínseco do uso da fracção.
Nem sequer passa despercebido o facto de, a par da duração contratual de um ano, ter sido prevista a sua renovação até 8 anos, em claro paralelismo com o regime que, para o arrendamento urbano (e para o subarrendamento), decorria do art. 99º, nº 2, do RAU, que na ocasião vigorava.
Por fim, até a falta de coerência interna relativamente à qualificação da contraprestação monetária aponta para o mesmo resultado, pois que, dentro da mesma cláusula, tanto se alude à fixação de “preço” (próprio de um contrato de prestação de serviço), sobre que recaía IVA, como a uma “renda”, deixando, assim, a descoberto (tal como o felino do adágio popular) a verdadeira natureza do contrato que quiseram outorgar.
2.4. O princípio da liberdade contratual revela uma enorme abertura à outorga de contratos típicos ou atípicos ou até à junção num só contrato de cláusulas típicas de diversos contratos.
Tal acontece em situações de confluência entre a prestação de serviço e a locação, sendo frequentes as situações em que, a par da cedência de um determinado espaço, o cedente se obriga a realizar serviços complementares que transmudam a qualificação para um contrato atípico ou para a união ou coligação de contratos. É o que sucede com os chamados “Centros Comerciais”, com as “Clínicas Médicas” ou, com mais proximidade relativamente a profissões liberais ou actividades editoriais, com os “Centros de Escritórios”.
Em qualquer das referidas situações, com especial destaque para a última, a cedência de um espaço para nele ser exercida uma actividade (advocacia, medicina, contabilidade, engenharia, etc.) pode surgir acompanhada da prestação de serviços complementares de vigilância, recepção, limpeza, apetrechamento técnico ou tecnológico, promoção externa ou de publicidade, etc.
Nada disto se verifica no caso presente.
A exequente limitou-se a subarrendar ao executado a totalidade de uma fracção localizada num prédio constituído em propriedade horizontal, sendo os “serviços” insusceptíveis de determinar a modificação da natureza jurídica do contrato.
Não pode o executado, que é advogado, brandir em seu proveito com a qualificação formal, num caso em que inequivocamente as obrigações que a exequente se comprometeu a cumprir não se apresentam como sinalagma da quantia mensal acordada, antes como obrigações típicas de qualquer locador (ou sublocador) de bens imóveis equipados ou não com móveis ou outros equipamentos (veja-se o actual art. 1065º do CC).
3. O facto de estarmos no âmbito de uma acção executiva não perturba a necessidade de se proceder à verdadeira qualificação jurídica do contrato.
Nos termos do art. 46º, nº 1, al. c), do CPC, podem servir de base à execução documentos particulares, assinados pelo devedor, que importem constituição ou reconhecimento de obrigação de entrega de coisa, nele se enquadrando a execução para entrega do locado referente a contratos de arrendamento urbano de duração limitada, nos termos do art. 101º do anterior RAU.
Com o NRAU, o legislador, num trajecto que se caracteriza pela sucessiva e paulatina ampliação dos títulos executivos e pela correspondente redução dos casos de instauração de acção declarativa, veio alargar ainda mais a exequibilidade dos documentos particulares, permitindo o acesso imediato à execução do despejo em situações fundadas na falta de pagamento das rendas (art. 1083º, nº 3, do CC), sem embargo da possibilidade de o executado suscitar na oposição os meios de defesa pertinentes, nos termos do art. 816º do CPC.
3.1. A defesa do executado assenta fundamentalmente na afirmação de que estamos perante um contrato de prestação de serviço que não possibilitaria à exequente o recurso ao meio expedito de entrega de imóveis introduzido pelo NRAU.
Aderindo à qualificação jurídica do contrato assumida na decisão recorrida e ponderando o que, acerca do contrato de subarrendamento, da sua resolução e da execução do despejo, decorre do actual regime do RNAU, deve manter-se a decisão que julgou improcedente a oposição.
Com efeito, em face da falta de pagamento das prestações mensais por prazo superior a 3 meses, a exequente procedeu à resolução do contrato, nos termos do art. 1084º, nº 1, com referência ao art. 1083º, nº 3, do CC. Tal resolução foi declarada mediante notificação avulsa, realizada por solicitador de execução, com respeito pelo formalismo imposto pelo art. 9º, nº 7, do NRAU.
O contrato celebrado, na qualificação assumida, acompanhado da referida notificação avulsa, integra título executivo susceptível de sustentar uma acção executiva para entrega de coisa imóvel locado, nos termos do art. 15º, nº 1, al. e) do NRAU, sem necessidade de se instaurar acção declarativa.
Não está em causa neste processo analisar a legitimidade substantiva da exequente para outorgar com o executado o contrato que qualificámos como de subarrendamento. Trata-se de questão que apenas releva nas relações entre a exequente, como arrendatária, e o proprietário da fracção.
3.2. O executado pretende justificar o não pagamento da contraprestação pelo facto de a exequente não estar a cumprir as obrigações assumidas - excepção de não cumprimento do contrato regulada nos arts. 428º e segs. do CC.
Todavia, tal incumprimento, ainda que comprovado, não pode servir de justificação ao incumprimento da obrigação de pagamento da contraprestação.
Na verdade, não existe sinalagma entre a obrigação de pagamento da renda e o cumprimento de obrigações acessórias do senhorio no que concerne ao locado ou a partes comuns do edifício (cfr. o Ac. da Rel. de Lisboa, de 9-5-96, CJ, tomo III, pág. 87, Ac. da Rel. de Coimbra, de 29-10-96, CJ, tomo IV, pág. 45, e os Acs. da Rel. do Porto, de 11-4-94, CJ, tomo II, pág. 209, e de 24-10-89, CJ, tomo IV, pág. 223).
Por isso, ainda que existisse, o alegado incumprimento não seria impeditivo da eficácia da resolução entretanto despoletada.
Aliás, a alegação do incumprimento como causa de justificada recusa de pagamento das contraprestações revela uma manifesta incongruência na argumentação, pois que as diversas situações que invoca não encontram justificação num contrato típico de prestação de serviços, antes correspondem às obrigações típicas de qualquer senhorio que arrenda ou subarrenda prédios urbanos.
IV – Face ao exposto, acorda-se em julgar improcedente a apelação, confirmando-se o despacho saneador-sentença recorrido.
Custas a cargo do apelante.
Notifique.
Lisboa, 15-4-08
António Santos Abrantes Geraldes
Manuel Tomé Soares Gomes
Maria do Rosário Oliveira Morgado