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ARRENDAMENTO
USUFRUTO
CADUCIDADE
Sumário
I. A morte do usufrutuário, que outorgou o contrato de arrendamento de prédio urbano, determina a caducidade do contrato, nos termos da alínea c) do art. 1051.º do Código Civil. II. A circunstância do usufruto ter sido constituído em simultâneo e sucessivamente a favor de duas pessoas não impede a caducidade. III. A omissão da qualidade de usufrutuário, na celebração do contrato, não obsta à caducidade. IV. Compete ao usufrutuário, no caso do usufruto vitalício simultâneo e sucessivo, provar a data em que o arrendatário tomou conhecimento do facto que determinou a caducidade do contrato de arrendamento. V. Sendo incerta a data a partir da qual o arrendatário tomou conhecimento da caducidade do arrendamento, para poder exercer o direito conferido pelo art. 66.º, n.º 2, do RAU, não procede a pretensão, traduzida no pedido de restituição do prédio. O.G.
Texto Integral
Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa:
I. RELATÓRIO
I instaurou, em 27 de Setembro de 2004, no 3.º Juízo Cível da Comarca de Lisboa, contra A, acção declarativa, sob a forma de processo sumário, pedindo que lhe fosse reconhecida a qualidade de usufrutuária do 1.º andar esquerdo do prédio urbano sito na Rua Vieira Lusitano, e se condene o Réu a restituir-lhe o andar.
Para tanto, alegou, em síntese, que, juntamente com o seu marido, J, já falecido, adquiriram, por compra, o usufruto simultâneo e sucessivo do referido prédio, vindo J, por contrato de 1 de Novembro de 1966, a arrendar ao Réu o 1.º andar esquerdo, com destino a habitação; J faleceu no dia 4 de Janeiro de 2002, caducando o contrato de arrendamento; apesar de instado, o R. tem recusado a restituição do andar, não possuindo título que justifique a sua ocupação.
Contestou o R., por excepção e impugnação, alegando, designadamente, que o falecido outorgara o contrato de arrendamento, na qualidade de senhorio, identificando-se como proprietário. Depois de deduzir reconvenção, por benfeitorias, no valor de € 6 302,05, concluiu pela improcedência da acção.
A A. respondeu à contestação.
Tentada a conciliação e frustrada a mesma, veio, em 29 de Novembro de 2007, a ser proferido despacho saneador – sentença, nos termos do qual foi a acção julgada improcedente e não se conheceu da reconvenção.
Inconformada, recorreu a Autora, que, tendo alegado, formulou as seguintes conclusões: a) No caso de usufruto simultâneo e sucessivo, o contrato de arrendamento caduca por morte do senhorio/usufrutuário. b) A caducidade prevista na alínea c) do n.º 1 do art. 1051.º do CC opera a partir da cessação dos poderes daquele que deu o prédio de arrendamento. c) A interpretação feita na sentença recorrida da disposição citada é contrária ao espírito da Lei. d) A acção de reivindicação de propriedade é o meio processual idóneo ao pedido de reconhecimento do direito de propriedade e entrega do imóvel quando o réu não dispõe de título para o ocupar.
Pretende, com o provimento do recurso, a revogação da sentença recorrida na parte em que absolveu o R. do pedido de restituição do imóvel reivindicado.
O R. não contra-alegou.
Cumpre apreciar e decidir.
Neste recurso, está essencialmente em causa a caducidade do contrato de arrendamento, para habitação, por morte do usufrutuário que celebrou o contrato.
II. FUNDAMENTAÇÃO
2.1. Estão provados os seguintes factos:
1. Foi inscrito a favor de J e da Autora o usufruto vitalício, simultâneo e sucessivo, do prédio urbano sito na Rua Vieira Lusitano, n.º s, em Lisboa.
2. J faleceu no dia 4 de Janeiro de 2002, no estado de casado com a A.
3. No dia 1 de Novembro de 1966, J, como senhorio, e o R., como inquilino, celebraram o acordo de fls. 5, ajustando o arrendamento, para habitação, do 1.º andar esquerdo do referido prédio, por seis meses e mediante a renda mensal de 1 000$00.
4. Com a data de 6 de Maio de 2002, a Associação Lisbonense de Proprietários, procuradora da A., remeteu, ao R., a carta de fls. 7, comunicando-lhe que “o usufrutuário do imóvel, (…) J…, faleceu” e, “assim sendo, o contrato de arrendamento (…) caducou ao abrigo do artigo 1051.º, n.º 1, alínea c), do Código Civil”, bem como para comparecer, “a fim de assinar novo contrato de arrendamento (…) ”.
5. Com a data de 8 de Maio de 2002, o R. remeteu à A. a carta de fls. 54, da qual consta que, do contrato, “nada resulta que este (José Maia Pinheiro) fosse, ao tempo, usufrutuário”, declarando ainda a necessidade que lhe facultassem uma certidão do registo do imóvel.
6. Com a data de 29 de Maio de 2002, a A. remeteu ao mandatário do Réu a carta de fls. 8, esclarecendo que a caducidade do contrato de arrendamento “verifica-se por força do disposto na alínea c) do artigo 1051.º do Código Civil” e que “o facto de o senhorio não fazer referência no contrato de arrendamento que é usufrutuário do imóvel, não obsta à caducidade”.
2.2. Delimitada a matéria de facto relevante, que não vem impugnada, interessa agora conhecer do objecto da apelação, circunscrito pelas respectivas conclusões, e cujas questões jurídicas emergentes foram já postas em destaque.
A sentença recorrida, considerando que o usufruto se extingue apenas com a morte da outra usufrutuária, a ora Apelante, concluiu que o contrato de arrendamento, celebrado por J, como senhorio, não caducou por sua morte.
A Apelante, por seu turno, continua a insistir que, no caso de usufruto simultâneo e sucessivo, o contrato de arrendamento caduca por morte do senhorio/usufrutuário.
Definidos os termos da discussão dos autos, que posição tomar?
Começa-se por realçar ser inquestionável que a morte do usufrutuário, que outorgou o contrato de arrendamento de prédio urbano, determina a caducidade daquele contrato, nos termos da alínea c) do art. 1051.º do Código Civil (CC).
A caducidade opera ope legis, não necessitando, para produzir efeitos, de qualquer declaração.
Com a caducidade do contrato de arrendamento extingue-se a respectiva relação jurídica.
Todavia, tratando-se de contrato de arrendamento para habitação, que caduque por força da referida alínea c) do art. 1051.º do CC, o arrendatário tem direito a um novo arrendamento nos termos do art. 90.º do Regime do Arrendamento Urbano (RAU), aprovado pelo DL n.º 321-B/90, de 15 de Outubro, como decorre do disposto no n.º 2 do art. 66.º do RAU, aplicável no caso dos autos, na medida em que o circunstancialismo factual é anterior a 28 de Junho de 2006, data da entrada em vigor do Novo Regime do Arrendamento Urbano (NRAU), aprovado pela Lei n.º 6/2006, de 27 de Fevereiro, e que revogou o RAU (art. 60.º).
O direito ao novo arrendamento deve, então, ser exercido mediante declaração escrita enviada ao senhorio nos 30 dias subsequentes à caducidade do contrato anterior (art. 94.º, n.º 1, do RAU).
Regime algo semelhante, obstando até à caducidade, existia antes da vigência do RAU, ao admitir-se que o inquilino, no prazo de 180 dias após o conhecimento da verificação dos factos previstos na alínea c) do n.º 1 do art. 1051.º do CC, comunicasse ao senhorio, por notificação judicial, que pretendia manter a sua posição contratual (art. 1051.º, n.º 2, do CC). Cumprida em tempo oportuno essa formalidade legal, o contrato de arrendamento não caducaria, quando tivesse cessado o direito ou findado os poderes legais de administração com base nos quais o contrato fora celebrado, como seria o caso, por exemplo, da morte do usufrutuário, que, como tal, outorgara o contrato.
Comparando os dois regimes jurídicos que se sucederam, não se detectam diferenças substanciais na tutela legal do interesse do arrendatário, surpreendendo-se apenas algumas alterações de forma, que não tocam na essência do direito reconhecido ao arrendatário. Salvaguardou-se, desse modo, a desejada estabilidade da relação locatícia, particularmente relevante no âmbito do sector da habitação, dada a sua repercussão social.
Essa perspectiva, no caso presente, não pode, de modo algum, ser desprezada, dado o desconhecimento da qualidade de usufrutuário do locador (o contrato de arrendamento constante de fls. 5, para além da omissão daquela qualidade, identifica até o locador como “proprietário”) por parte do arrendatário, sendo certo ainda que o contrato foi celebrado a 1 de Novembro de 1966.
Ao contrário do que se entendeu na sentença recorrida, não pode deixar de se considerar que o contrato de arrendamento para habitação caducou, por efeito da morte de José Maia Pinheiro, usufrutuário que o outorgara, nos termos da alínea c) do art. 1051.º do CC.
A circunstância do usufruto ter sido constituído em simultâneo e sucessivamente a favor do referido José Pinheiro e da Apelante não impede a verificação da caducidade.
A norma legal é expressa no sentido do contrato de locação caducar, quando “cesse o direito” com base no qual “o contrato foi celebrado”. Por outro lado, da mesma forma que o proprietário não deve ficar sujeito ao modo como o usufrutuário entendeu exercer a fruição do prédio urbano, também o outro usufrutuário não deve suportar os efeitos da fruição realizada pelo anterior usufrutuário (A. PAIS DE SOUSA, Extinção do Arrendamento Urbano, 1980, pág. 310).
Diferente seria se, em vez de simultâneo e sucessivo, o usufruto vitalício fosse sucessivo, por efeito de uma alienação. Nesta situação, o contrato apenas caducaria no termo normal do usufruto (acórdão da Relação de Lisboa, de 27 de Abril de 1995, Colectânea de Jurisprudência, Ano XX, t. 2, pág. 126).
Contudo, uma outra questão se coloca, resultante da circunstância do senhorio ter omitido a qualidade de usufrutuário, sendo certo que no contrato de arrendamento, celebrado em 1 de Novembro de 1966, figura como “proprietário”.
Essa circunstância não impede que a caducidade possa operar, por efeito da morte do usufrutuário.
O conhecimento da qualidade de usufrutuário, pelo arrendatário, não constitui condição para que a morte do usufrutuário acarrete a caducidade do contrato. A lei, neste caso específico, faz depender a caducidade apenas da extinção do direito com base na qual o contrato foi celebrado, sendo certo que, por morte do usufrutuário se extingue o respectivo direito real [art. 1476.º, n.º 1, alínea a), do CC], cessando o direito de fruição do prédio pelo usufrutuário, facultado pelo art. 1446.º do CC.
Nessa situação, o arrendatário ficaria com o direito a ser ressarcido dos respectivos danos, nomeadamente nos termos do art. 1032.º do CC.
Mas, embora sem prejuízo da caducidade do contrato, também se defende outra solução, que passa por facultar ao arrendatário o exercício do direito ao novo arrendamento, nos trinta dias subsequentes ao conhecimento da caducidade.
Na verdade, como se referiu, o sentido duradouro da lei insere-se num quadro que tem pretendido garantir a estabilidade da posição do arrendatário. Ora, concedendo-se legalmente a faculdade do exercício do direito a um novo arrendamento, tal ficaria esvaziada, se o arrendatário, não conhecendo a qualidade de usufrutuário do senhorio, não tivesse cumprido as formalidades legais exigíveis para a efectivação do direito ao novo arrendamento, por caducidade nos termos da alínea c) do art. 1051.º do CC.
Esta solução foi sufragada, designadamente, pelo acórdão, de 23 de Março de 1999, do Supremo Tribunal de Justiça [Colectânea de Jurisprudência, (STJ), Ano VII, t. 2, pág. 28], que recolheu também o apoio da Doutrina (ARAGÃO SEIA, Arrendamento Urbano, 2002, 6.ª edição, pág. 459).
Como também se entendeu ainda no mesmo acórdão, compete ao proprietário pleno do prédio arrendado ou ao seu usufrutuário, no caso do usufruto vitalício simultâneo e sucessivo, provar a data em que o arrendatário tomou conhecimento do facto que determinou a caducidade do contrato de arrendamento, por efeito da regra da distribuição do ónus da prova consagrada no art. 342.º, n.º 1, do CC.
Efectivamente, aquele que invoca o direito à restituição do prédio, por caducidade do contrato de arrendamento, tem de demonstrar que se extinguiram os efeitos jurídicos do contrato de arrendamento, designadamente o direito a um novo arrendamento, nos termos previstos no art. 66.º, n.º 2, do RAU., de modo a fazer valer o seu direito, como o da restituição do prédio.
Ora, da materialidade apurada nos autos, não se consegue retirar uma conclusão, inteiramente segura, quanto à data a partir da qual o arrendatário tomou conhecimento da caducidade do contrato, nos termos da alínea c) do art. 1051.º do CC. Com efeito, quando o arrendatário remeteu à Apelante a carta de 8 de Maio de 2002, ainda o mesmo não estava ciente de que o referido José Maia Pinheiro, ao tempo do contrato de arrendamento, fosse usufrutuário, sendo certo que se identificara, no respectivo documento formal (fls. 5), como “proprietário”. Por sua vez, a carta da Apelante, de 29 de Maio de 2002, também não se apresenta suficientemente esclarecedora, depois do desconhecimento manifestado pelo arrendatário.
Neste contexto, e com o melindre inerente às questões que envolvem o arrendamento para a habitação, importava que a Apelante clarificasse a situação junto do arrendatário, para que este, como os autos deixam supor, exercesse formalmente a faculdade concedida pela n.º 2 do art. 66.º do RAU.
Essa clarificação era exigida pela aplicação do princípio da boa fé, cuja premência é manifesta, depois do usufrutuário J se ter identificado como proprietário do andar arrendado.
Nesta decorrência, sendo incerta a data a partir da qual o arrendatário tomou conhecimento da caducidade do arrendamento, para poder exercer o direito conferido pelo art. 66.º, n.º 2, do RAU, não pode proceder a pretensão da Apelante, traduzida no pedido de restituição do prédio, não obstante a caducidade do contrato de arrendamento celebrado em 1 de Novembro de 1966.
Assim sendo, o recurso improcede.
2.3. Em conclusão, pode extrair-se de mais relevante:
I. A morte do usufrutuário, que outorgou o contrato de arrendamento de prédio urbano, determina a caducidade do contrato, nos termos da alínea c) do art. 1051.º do Código Civil.
II. A circunstância do usufruto ter sido constituído em simultâneo e sucessivamente a favor de duas pessoas não impede a caducidade.
III. A omissão da qualidade de usufrutuário, na celebração do contrato, não obsta à caducidade.
IV. Compete ao usufrutuário, no caso do usufruto vitalício simultâneo e sucessivo, provar a data em que o arrendatário tomou conhecimento do facto que determinou a caducidade do contrato de arrendamento.
V. Sendo incerta a data a partir da qual o arrendatário tomou conhecimento da caducidade do arrendamento, para poder exercer o direito conferido pelo art. 66.º, n.º 2, do RAU, não procede a pretensão, traduzida no pedido de restituição do prédio.
Nestes termos, improcedendo o recurso, é de confirmar a decisão recorrida, ainda que por uma motivação distinta da expressa na sentença.
2.4. A Apelante, ao ficar vencida por decaimento, é responsável pelo pagamento das custas, em conformidade com a regra da causalidade, consagrada no art. 446.º, n.º s 1 e 2, do Código de Processo Civil.
III. DECISÃO
Pelo exposto, decide-se:
1) Negar provimento ao recurso, confirmando a decisão recorrida.
2) Condenar a Apelante (Autora) no pagamento das custas.
Lisboa, 17 de Abril de 2008
(Olindo dos Santos Geraldes)
(Fátima Galante)
(Ferreira Lopes)