TRESPASSE
ESTABELECIMENTO COMERCIAL
CESSÃO DE QUOTA
COMPRA E VENDA
DAÇÃO EM CUMPRIMENTO
DESPEJO
Sumário

I - É da essência do contrato de compra e venda a transmissão do direito de propriedade ou de outro direito, mediante o pagamento de um preço. Há aqui uma correspectividade de duas prestações: o direito de propriedade ou de outro direito, por um lado; e o preço, em dinheiro, pelo outro.
II – Se a transmissão da titularidade do estabelecimento comercial não teve como correspectivo o pagamento de qualquer quantia em dinheiro, o vínculo de reciprocidade, sinalagma, não se estabeleceu entre o direito de propriedade sobre o estabelecimento comercial e o preço, mas entre a entrega desse estabelecimento comercial e a participação no capital social.
III - Não existindo obrigação de entrega do preço, falta um requisito essencial para que se possa classificar este negócio jurídico como contrato de compra e venda. Acresce que a obrigação de entrada através do trespasse, que é uma entrada em espécie, emerge do contrato de sociedade e não de um contrato de compra e venda.
IV - A dação em cumprimento consiste na realização de uma prestação diferente da que é devida, com o objectivo de extinguir de imediato a obrigação, sendo essencial à dação que haja uma prestação diferente da que for devida e que essa prestação (diferente da devida) tenha por fim extinguir imediatamente a obrigação.
V - A prestação que o devedor realiza não coincide com aquela a que estava vinculado e, por isso, só produz a sua exoneração em conformidade com o estipulado no n.º 1 do art.º 762.º Código Civil se o credor der o seu acordo à realização de prestação diferente.
FG

Texto Integral

R e outros, vieram interpor recurso da sentença proferida na acção que intentaram contra M e outros.
Na p.i., os autores, ora apelantes, pedem que seja declarado que «têm o direito de haver para si o direito ao arrendamento de que os quatro primeiros Réus eram titulares sobre o prédio urbano da Rua Santa Joana Princesa, e todos os RR. condenados a reconhecer esse direito que os autores declaram pretender exercer e tornar eficaz, com as legais consequências de desocupação do locado de pessoas e bens e sua entrega livre e devoluto aos Autores”.
Para o efeito, os Autores alegam que: - por escritura pública de 22.06.2006, os quatro primeiros Réus constituíram a sociedade comercial por quotas, aqui 5.ª Ré, denominada Externato, Lda., sendo o respectivo capital social de € 10.000,00, repartido em quatro quotas, cada uma do valor nominal de € 2.500,00, e cada uma subscrita e realizada por cada um dos referido quatro sócios; que a realização de cada quota foi efectuada em espécie, mediante a transmissão para sociedade, aqui 5.ª Ré, da quota-parte de que cada um dos outorgantes era titular no estabelecimento de ensino particular denominado “Externato”, a funcionar nos prédios urbanos sitos na Av. Santa Joana Princesa, em Lisboa, quota-parte essa a que cada um dos 1.º, 2.º, 3.º e 4.º Réus atribuíram o valor de € 8.081,50, ou seja, no valor global de realização das quatro quotas de € 32.326,00; do referido estabelecimento comercial fazia parte integrante o direito ao arrendamento do prédio urbano situado na Av. Santa Joana Princesa, em Lisboa, de que os Autores são donos e legítimos possuidores; como os inquilinos aqui 1.º, 2.º, 3.º e 4.º Réus não comunicaram aos senhorios o projecto de venda (trespasse), nem as cláusulas do respectivo contrato, nos termos do art.º 116.º do RAU, os Autores dispõem de direito de preferência, que
exercem através desta acção.

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Contestaram os Réus, dizendo que os factos alegados pelos Autores não consubstanciaram um trespasse por venda ou dação em cumprimento por parte dos 1.º a 4.º Réus à sociedade 5.ª Ré, e que, em consequência, os Autores não têm o reclamado direito de preferência.
Na sua essência, os Réus sustentam que nas situações em que o estabelecimento comercial é entregue para realização de capital social em estrito cumprimento pelos sócios da obrigação de entrada originariamente assim convencionado no acto de constituição de sociedade, não há qualquer venda ou dação em cumprimento.
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A acção foi decidida no saneador, tendo a 1.ª instância logo julgado provados os seguintes factos:
1. Por escritura pública de 22.06.2006, lavrada no Cartório Notarial do notário privado P, sito em Lisboa, – 1.º e 2.º, os quatro primeiros Réus constituíram a sociedade comercial por quotas, aqui 5.ª Ré, denominada Externato, Lda.
2. O capital da sociedade é de € 10.000,00 (dez mil euros) repartido em quatro quotas, cada uma do valor nominal de € 2.500,00 (dois mil e quinhentos euros), sendo cada uma subscrita e realizada por cada um dos quatro sócios, os aqui 1.º, 2.º, 3.º e 4.º Réus.
3. A realização de cada quota foi efectuada em espécie, mediante a transmissão para sociedade, aqui quinta Ré, da quota-parte de que cada um dos outorgantes era titular no estabelecimento de ensino particular denominado “Externato”, a funcionar nos prédios urbanos sitos na Av. Santa Joana Princesa, em Lisboa, quota-parte essa a que cada um dos 1.º, 2.º, 3.º e 4.º Réus atribuíram o valor de € 8.081,50 (oito mil e oitenta e um euros e cinquenta cêntimos), ou seja no valor global de realização das quatro quotas de € 32.326,00 (trinta e dois mil trezentos e vinte e seis euros).
4. Por escritura pública de 26.11.1958, o anterior proprietário do prédio, Dr. A, deu de arrendamento para colégio (estabelecimento de ensino particular) à sociedade comercial por quotas An, Lda., o prédio urbano situado em Lisboa, na Av. Santa Joana Princesa.
5. A dita sociedade locatária An, Lda., dissolveu-se por escritura de 18.09.1961, tendo o estabelecimento comercial instalado no locado sido adjudicado em comum e partes iguais aos ex-sócios, os quais tiveram como sucessores os ora quatro primeiros Réus.
6. Do estabelecimento comercial referido em 3. fazia parte integrante o direito ao arrendamento do prédio urbano situado na Av. Santa Joana Princesa, em Lisboa.
7. A transmissão para a sociedade, aqui 5.ª Ré, da titularidade do estabelecimento comercial, embora abrangendo outros bens e valores, abrangeu o direito ao arrendamento.
8. A realização das quotas abrangeu ainda a transmissão do direito ao arrendamento do prédio sito na Av. Santa Joana Princesa, em Lisboa.
9. Os ora 1.º, 2.º, 3.º e 4.º Réus não comunicaram previamente aos aqui Autores, o projecto da transmissão, nem as cláusulas do respectivo contrato.
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Os AA./apelantes apresentaram as seguintes conclusões de recurso:
1. Estando assentes no direito português os contornos da figura jurídica do trespasse, como transmissão onerosa de um estabelecimento comercial na sua feição de universalidade jurídica, e sendo o direito de trespasse um bem penhorável, pode a realização de participações sociais na constituição de uma sociedade ser feita por trespasse de um estabelecimento comercial que esteja na titularidade do sócio fundador para a sociedade.
2. A norma do art.° 116.° n.° 1 do RAU refere-se apenas às formas de venda ou de dação em pagamento que o trespasse deve assumir para viabilizar a existência e o exercício do direito de preferência.
3. A referência feita à venda e à dação em pagamento não é taxativa, mas meramente exemplificativa.
4. Destinou-se primordialmente a exigir que o trespasse fosse de natureza onerosa, com a inerente existência de reciprocidade de vantagens entre as partes.
5. E destinou-se acessoriamente a por termo à querela histórica doutrinal sobre se a preferência poderia ser exercida no caso de o trespasse se efectuar por via de dação em pagamento.
6. A onerosidade do negócio é o fundamento da preferência estabelecida no n.° 1 do art.° 116.° do RAU, constituindo a referência à venda e à dação em pagamento o modo indirecto de se exigir que o trespasse fosse de natureza onerosa, mas sempre no pressuposto de o negócio jurídico assumir as conotações de um sinalagma. É que aquelas duas figuras são as mais correntes no mundo negocial dos actos onerosos.
7. Acessória mas pertinentemente se dirá que a entrada em espécie por parte de um sócio de uma sociedade é sempre referenciada a valores pecuniários (valor das participações sociais) e por isso no "iter" negocial entre os sócios, a realização em espécie é sempre um sucedâneo da realização em dinheiro dessa participação. Por isso,
8. A operação de transmissão do estabelecimento comercial para a sociedade se desdobra conceitualmente em três sub-operações: venda do trespasse do estabelecimento pelos inquilinos a favor da sociedade ré, pagamento do preço de € 32.326,00 pela sociedade aos inquilinos e pagamento por estes à sociedade de € 32.326,00 em realização das quotas sociais subscritas.
9. A sentença apelada violou assim, por erro de interpretação e aplicação, a norma do n.° 1 do art.° 116.° do RAU.
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Como se retira dos factos provados os quatro primeiros Réus constituíram a sociedade comercial por quotas, aqui 5.ª Ré, denominada Externato, Lda., com o capital social de € 10.000,00, repartido em quatro quotas, cada uma do valor nominal de € 2.500,00 e cada uma subscrita e realizada por cada um dos quatro sócios, os aqui 1.º, 2.º, 3.º e 4.º Réus.
A realização de cada quota foi efectuada em espécie, mediante a transmissão para a sociedade, aqui quinta Ré, da quota-parte de que cada um dos outorgantes era titular no estabelecimento de ensino particular denominado “Externato”, a funcionar nos prédios urbanos sitos na Av. Santa Joana Princesa, em Lisboa, quota-parte essa a que cada um dos 1.º, 2.º, 3.º e 4.º Réus atribuíram o valor de € 8.081,50 (oito mil e oitenta e um euros e cinquenta cêntimos), ou seja no valor global de realização das quatro quotas de € 32.326,00 (trinta e dois mil trezentos e vinte e seis euros).
Defendendo que: «A operação de transmissão do estabelecimento comercial para a sociedade se desdobra conceitualmente em três sub-operações: venda do trespasse do estabelecimento pelos inquilinos a favor da sociedade ré, pagamento do preço de € 32.326,00 pela sociedade aos inquilinos e pagamento por estes à sociedade de € 32.326,00 em realização das quotas sociais subscritas», os apelantes sustentam que se mostram verificados os pressupostos do art.º 116.º do RAU e, consequentemente, reclamam para si o direito de preferência a que se refere aquele preceito que, no seu n.º 1 dispõe: No trespasse por venda ou dação em cumprimento do estabelecimento comercial, o senhorio do prédio arrendado tem direito de preferência.
O negócio subjacente à questão que é colocada no recurso, é tido por corrente.
Com efeito, tratando da matéria respeitante aos contratos indirectos e, mais precisamente, versando a questão do relacionamento entre o tipo de referência e o fim indirecto, Pedro Pais de Vasconcelos, na sua obra Contratos Atípicos, dá como exemplo o contrato de cessão de quotas de sociedade comercial com o fim de trespasse de estabelecimento fazendo notar que «é correntíssimo, na prática, que a transmissão de um estabelecimento comercial seja feita através da cessão da totalidade das quotas, ou da venda da totalidade das acções, da sociedade que é titular desse estabelecimento».
Continuando, diz o mesmo autor: «A generalidade dos estabelecimentos comerciais com alguma importância económica pertence a sociedades comerciais e não a comerciantes individuais. A maior parte dos estabelecimentos de pequena dimensão pertence a sociedades por quotas e a generalidade das sociedades por quotas, no comércio, tem apenas um estabelecimento. Esta circunstância, que é corrente, permite que, para transmitir o estabelecimento, as partes se limitem a transmitir as quotas da sociedade a que pertence (…) a cessão das quotas, em caso como estes, tem vantagens sobre o trespasse. Evita a ruptura de relações jurídicas característica trespasse, com todos os problemas acarretados pela substituição do trespassante pelo trespassário na titularidade de direitos, obrigações e relações jurídicas, evita as questões atinentes à determinação concreta do âmbito material e jurídico do trespasse, evita o direito de preferência do senhorio, se as instalações forem arrendadas, e é menos dispendioso em termos fiscais e emolumentares».
Debruçando-se sobre a tese sustentada pelos apelantes, designadamente, no que se refere às três sub operações que vislumbram no negócio celebrado pelos apelados, refere, e bem, a 1.ª instância: «Segundo o disposto no art.º 874.º Código Civil, compra e venda é o contrato pelo qual se transmite a propriedade de uma coisa, ou outro direito, mediante um preço.
É da essência deste contrato a transmissão do direito de propriedade ou de outro direito, mediante o pagamento de um preço. Há aqui uma correspectividade de duas prestações: o direito de propriedade ou de outro direito, por um lado; e o preço, em dinheiro, pelo outro.
No caso dos autos, a transmissão da titularidade do estabelecimento comercial não teve como correspectivo o pagamento de qualquer quantia em dinheiro. O vínculo de reciprocidade, sinalagma, não se estabeleceu entre o direito de propriedade sobre o estabelecimento comercial e o preço, mas entre a entrega desse estabelecimento comercial e a participação no capital social. Não existindo obrigação de entrega do preço, falta um requisito essencial para que se possa classificar este negócio jurídico como contrato de compra e venda.
Acresce que a obrigação de entrada através do trespasse, que é uma entrada em espécie, emerge do contrato de sociedade e não de um contrato de compra e venda.
Resta apreciar se, como sustentado em alternativa pelos Autores, houve dação em cumprimento.
A dação em cumprimento está prevista no art.º 837.º do Código Civil, onde se estabelece que a prestação de coisa diversa da que for devida, embora de valor superior, só exonera o devedor se o credor der o seu assentimento.
A dação em cumprimento consiste na realização de uma prestação diferente da que é devida, com o objectivo de extinguir de imediato a obrigação.
Como refere o Prof. Antunes Varela, in Das Obrigações em Geral, vol. II, 5.ª edição, pág. 170, essencial à dação é que haja uma prestação diferente da que for devida; e que essa prestação (diferente da devida) tenha por fim extinguir imediatamente a obrigação. A prestação que o devedor realiza não coincide com aquela a que estava vinculado e, por isso, só produz a sua exoneração em conformidade com o estipulado no n.º 1 do art.º 762.º Código Civil se o credor der o seu acordo à realização de prestação diferente.
Ora, a transmissão do estabelecimento comercial através de trespasse, em cumprimento das obrigações de entradas dos quatro sócios, ora 1.º a 4.º Réus, não correspondeu à realização de prestação diversa da devida, o que é a nota típica daquele modo de extinção da obrigação.
As entradas dos 1.º a 4.º Réus para realização do capital social da 5.ª Ré foi logo estabelecida, no contrato de constituição de sociedade, em espécie e concretamente, através da transmissão do estabelecimento comercial a favor da sociedade.
Os Réus satisfizeram as prestações a que se vincularam, não tendo substituído as prestações originárias por quaisquer outras diferentes».
Afigura-se-nos correcta a análise feita na sentença apelada, daí que acordem os juízes da secção cível em negar provimento à apelação e, consequentemente, confirmem a sentença recorrida.
Custas pelos apelantes.
Lisboa, 22.04.2008
Maria Alexandrina Branquinho
Eurico Reis
Ana Grácio