Ups... Isto não correu muito bem. Por favor experimente outra vez.
INQUÉRITO
NULIDADE INSANÁVEL
Sumário
I-O despacho de arquivamento nos termos do artº 277º, do CPP, não sendo precedido da realização das necessárias diligências de investigação é legalmente inadmissível. II- Não resultando a inexistência do crime denunciada do simples confronto dos factos descritos na participação com a lei, impunha-se ao Ministério Público que investigasse a existência do ilícito que vinha denunciado. III- Neste caso, a prolação de despacho de Arquivamento, sem a realização de qualquer diligência de investigação, é legalmente inadmissível, por registar a nulidade insanável, por falta de inquérito, a que alude a alínea a) do artº 119º do C.P.P., e que é de conhecimento oficioso.
Texto Integral
Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação de Lisboa.
I.RELATÓRIO.
1.No Processo de Inquérito nº 109/06.7PGOER que corre termos nos Serviços do Ministério Público de Oeiras, 1ª secção, na sequência de despacho de arquivamento do Ministério Público, foi requerida a abertura de Instrução pelas Assistentes M…eR… , vindo a Mmª Juiz de Instrução a declarar nulo o inquérito, por nulidade insanável de omissão de inquérito, prevista no artº 119º, al. d), do CPP, determinando a remessa dos autos aos Serviços do Ministério Público para efeitos de investigação em Inquérito.
2.Neste despacho de fls. 196 a 203, a Mmª Juiz de Instrução, consignou, de mais relevante, o seguinte: “Do confronto do primeiro pedido efectuado pelas assistentes com a queixa de fls. 8 a 14, as diligências de investigação empreendidas pelo Ministério Público e o despacho final de arquivamento constata-se existir a nulidade insanável de omissão de inquérito, prevista no artº 119º, al. d), do Código de Processo Penal, cuja apreciação se impõe neste momento, uma vez que a mesma deve ser declarada oficiosamente em qualquer fase do procedimento. (…). Queixa: As assistentes apresentaram uma queixa contra O…, alegando, em síntese, que o denunciado efectuou obras de alteamento de um muro de suporte de terras que separa as respectivas moradias e que, em virtude dos materiais e técnicas utilizadas, provocaram a derrocada do muro em 3 de Fevereiro de 2006 sobre partes da moradia das assistentes, originando estragos de montante avultado. As assistentes relataram ainda que O… foi alertado por diversas pessoas sobre a fragilidade do muro e da sua possível derrocada. Avisos que o mesmo não considerou, afirmando que era um problema seu. Concluíram as assistentes que o denunciado quis o resultado ocorrido ou assumiu o risco da sua produção. Diligências de investigação: O Ministério Público deu abertura ao inquérito e levou a cabo as seguintes diligências: solicitou à Câmara Municipal de… (CM…) que informasse se a obra de construção e/ou modificação do muro em questão foi licenciada e, em caso afirmativo, pediu a remessa do processo de licenciamento com indicação do técnico responsável pela obra; perante a resposta da parte da CM… de que “O proprietário da Fracção que confina com a Fracção A do Condomínio dos Pinheiros” solicitou à Câmara “obras de beneficiação”, onde está incluído o muro para rebocar. O processo é o 119/04. Está deferido o pedido”.(…) Informou depois que as obras em questão não careciam de licença e por isso não foi exigível qualquer técnico responsável, o Ministério Público proferiu despacho de arquivamento. Despacho de arquivamento. O Ministério Público equacionou a possibilidade de integração dos factos descritos na queixa em dois ilícitos: no crime de dano e no crime de infracção das regras da construção. Em ambos os casos concluiu que a aludida factualidade não integra nenhum dos tipos legais referidos, razão pela qual arquivou os autos ao abrigo do artigo 277º, nº 1, do CPP. Da fundamentação que precedeu tal conclusão retira-se, em síntese, que no entender do Ministério Público nunca poderia ter havido dolo na actuação do denunciado, uma vez que, segundo juízos de normalidade, não é configurável que a pessoa gaste dinheiro na construção de um muro colocando como realidade possível a sua destruição e conformando-se com ela, tendo em conta que tal acto iria provocar estragos em propriedade alheia, pelos quais seria responsável, e nas sua própria propriedade. Pelo que, quando muito, o denunciado actuou com negligência, sendo certo que o crime de dano não é criminalmente punido na modalidade de negligência. Relativamente ao crime de infracção de regras de construção, o Ministério Público entendeu que tal ilícito nunca poderia ser assacado ao denunciado uma vez que o mesmo não procedeu à alteração do muro em questão no âmbito de uma actividade profissional por si desenvolvida, (…) e a obra não carecia de licença e, por isso, não tinha indicado um técnico responsável. Da sequência processual exposta decorre com evidência que relativamente à alegada prática pelo então denunciado O…, agora arguido por força do artº 57º, nº 1 do CPP, de um crime de dano, pelo menos, com dolo eventual, o Ministério Público não empreendeu qualquer diligência de investigação, porque as diligências probatórias levadas a cabo e acima expostas, pela sua natureza, destinavam-se à averiguação do crime de infracção de regras de construção. Pelo que, o despacho do Ministério Público assumiu claramente uma natureza liminar, ou seja, conclui que os factos descritos na queixa não integravam qualquer ilícito penal, razão pela qual não deveria ter lugar uma investigação criminal (…) o certo é que para chegar à conclusão que formulou teve de conjugar os factos denunciados com juízos de normalidade, ou seja, empreendeu ainda que sumariamente uma análise probatória e não apenas um confronto dos factos com a lei. (…). Em segundo lugar no plano subjectivo, as assistentes na queixa alegaram que o arguido, pelo menos, assumiu o risco da derrocada do muro e consequentes estragos, ou seja, imputaram ao arguido a prática do crime de dano, pelo menos, a título de dolo eventual e apresentaram várias razões, designadamente as chamadas de atenção dirigidas ao arguido e a sua postura face ás mesmas, para sustentar esta tese. E, por último, o raciocínio empreendido pelo Ministério Público assente em juízos de normalidade não é absoluto (…). Não é absoluto porque a possibilidade do arguido ter colocado a hipótese do que veio efectivamente a acontecer e se ter conformado com a mesma não é ocorrência impossível, pois o dolo eventual revela uma postura de indiferença relativamente ao resultado danoso que é bastante comum quando se pretende, a todo custo, empreender uma determinada acção, como parece ter sucedido com o arguido, em face da relatada insistência em prosseguir com as obras apesar das alegadas advertências. (…) Pelo que, qualquer despacho de arquivamento a proferir nos presentes autos, a propósito de tal ilícito, quer se estribe no nº 1 do artigo 277º do CPP, quer no seu nº 2, terá de ser precedido da realização das necessárias diligências de investigação. Não tendo existido qualquer diligência de investigação e sendo a decisão de arquivamento legalmente inadmissível em virtude de tal omissão torna-se evidente que a situação dos autos assume a configuração mais grave da nulidade insanável de omissão de inquérito, prevista no artigo 119º, al. d), do CPP, pois verifica-se uma efectiva “falta absoluta de actos de inquérito”
3.O Ministério Público veio interpor recurso deste despacho, formulando as seguintes conclusões: (transcrição). “1.Ao receber uma queixa, impõe-se ao Ministério Público que, no âmbito do inquérito naquela originada, proceda à análise crítica da matéria factual denunciada para efeitos de determinação sobre a existência de factos passíveis de integrar ilícito de natureza criminal, em ordem a decidir o arquivamento dos autos nos termos do disposto no artº 277º nº 1 do CPP, ou a dar seguimento ao procedimento criminal nos termos do artº 262º do mesmo Código, bem como para gizar os moldes da investigação que, neste caso, se imponha levar a cabo. 2.Esta análise crítica não está vinculada aos termos em que a denúncia é formulada pelo queixoso, em especial no que respeita ao elemento subjectivo do agente denunciado, e pode constituir uma interpretação da ocorrência fundada em critérios de razoabilidade e de normalidade. 3.Apesar das assistentes - entendendo que o denunciado incorreu na prática de um crime de dano qualificado com dolo eventual ao assumir a construção relativa ao alteamento de um muro que dá acesso à sua casa e que acabou por ruir e cair para cima da residência daquelas causando avultados prejuízos quando tinha sido previamente advertido para a perigosidade daquela obra- pretenderem que se leve a cabo uma série de diligências de investigação, não está o Ministério Público vinculado à mesma interpretação dos factos nem à sua qualificação jurídica, tal como não está obrigado à realização dos actos solicitados. 4.Assim, e entendendo o Ministério Público que não é credível que alguém assuma uma obra de alteamento de um muro junto da sua residência, aí investindo dinheiro, admitindo como possível que este venha a cair e a soterrar a casa vizinha ao até a causar o aluimento das terras que sustentam sua própria residência, apenas se admite que o denunciado tenha agido de forma negligente. 5.Com base na apreciação crítica que fez dos factos denunciados, entendeu o Ministério Público que os mesmos eram passíveis de integrar um crime de infracção às regras de construção, previsto e punido pelo artº 277º do CP (motivo pelo qual, e nos termos do artº 262º do CPP, fez investigação em tal sentido, acabando por concluir pela sua inadmissibilidade), e não um crime de dano (motivo pelo qual, e em obediência ao artº 277º nº 1 do CPP, determinou o arquivamento do processo sem investigação relativa a tal hipótese de integração penal). 6.Na medida em que a queixa apresentada pelas assistentes deu origem a um processo de inquérito, conforme determina o artigo 262º do CPP, e que no âmbito deste foi feita investigação levada a cabo pelo Ministério Público e concordante com a integração jurídico penal feita dos factos, não podem nunca enfermar os autos da nulidade de falta de inquérito a que alude o artº 119º al.d) do Código de Processo Penal. 7.Entendendo a Mmª Juiz de Instrução Criminal que a factualidade denunciada tem um enquadramento jurídico penal diferente daquele que foi perfilhado pelo Ministério Público, e que o apuramento da verdade se impõe por tal circunstância, sendo certo que não foi invocada pelas assistentes a nulidade de insuficiência de inquérito a que alude o artigo 120º, nº 2 al. d), compete-lhe então proceder às diligências de investigação que repute essenciais, em conformidade com o disposto no artº 289º nº 1 do Código de Processo Penal”. Termina pedindo que seja revogada a douta decisão recorrida, proferindo-se outra a determinar o andamento da Instrução.
4.Este recurso foi admitido pelo despacho de fls.226.
5.As assistentes não ofereceram qualquer resposta.
Neste Tribunal, o Exmº Procurador-Geral-Adjunto emitiu o douto parecer que consta de fls. 233 a 240, concluindo pela procedência do recurso, entendendo não ocorrer a nulidade insanável de falta de inquérito, nos termos do artº 119º, al. d) do CPP, por não existir ausência total ou absoluta do inquérito já que teve lugar a apresentação de queixe com prova documental suficiente para se produzir despacho de arquivamento.
6.Cumprido o artº 417º, nº 2, do C.P.P., não foi produzida qualquer resposta.
7.Foram colhidos os Vistos legais e procedeu-se à Conferência.
*
II-FUNDAMENTAÇÃO.
O objecto do recurso, tal como se mostra delimitado pelas conclusões, reporta-se essencialmente á questão de saber se ocorre a nulidade insanável, por omissão de inquérito prevista no artº 119º, al. d) do CPP.
8.Resulta dos autos, com interesse, as seguintes ocorrências processuais:
8.1.As assistentes apresentaram uma queixa contra O…, alegando, em síntese, que o denunciado efectuou obras de alteamento de um muro de suporte de terras que separa as respectivas moradias e que, em virtude dos materiais e técnicas utilizadas, provocaram a derrocada do muro em 3 de Fevereiro de 2006 sobre partes da moradia das assistentes, originando estragos de montante avultado.
As assistentes relataram ainda que O… foi alertado por diversas pessoas sobre a fragilidade do muro e da sua possível derrocada. Avisos que o mesmo não considerou, afirmando que era um problema seu. Concluíram as assistentes que o denunciado quis o resultado ocorrido ou assumiu o risco da sua produção.
8.2.O Ministério Público limitou-se a requisitar à Câmara Municipal de … informação que obteve -crf. fls. 54, 57, 58 e 60- que pela sua natureza apenas relevam para o apuramento do crime de infracção das regras de construção.
8.3. De seguida, sem a realização de outras diligências, foi proferido despacho de arquivamento pelo Ministério Público, no âmbito do qual equacionou a possibilidade de integração dos factos em dois ilícitos: no crime de dano e no crime de infracção das regras da construção, concluindo, em ambos os casos que a aludida factualidade não integra nenhum dos tipos legais referidos[1], arquivando os autos ao abrigo do artigo 277º, nº 1, do CPP.
No que tange ao crime de dano considerou que a matéria da denúncia não integra tal ilícito uma vez que, segundo juízos de normalidade, não é configurável que a pessoa gaste dinheiro na construção de um muro colocando como realidade possível a sua destruição e se conforme com ela, tendo em conta que tal acto iria provocar estragos em propriedade alheia, pelos quais seria responsável, e na sua própria propriedade, concluindo que, quando muito, o denunciado actuou com negligência, não punível à luz do artº 212º, do Código Penal, pelo que inexiste a prática deste crime invocado pelas queixosas.
Quanto ao crime de infracção de regras de construção, o Ministério Público entendeu que tal ilícito nunca poderia ser assacado ao denunciado uma vez que o mesmo não procedeu à alteração do muro em questão no âmbito de uma actividade profissional por si desenvolvida, e a obra não carecia de licença e, por isso, não tinha indicado um técnico responsável.
8.4. As queixosas, notificadas do despacho de arquivamento, vieram requerer a sua constituição como assistentes e a abertura da instrução, defendendo verificar-se um crime de dano pelo menos com dolo eventual e um crime de infracção de regras de construção por pessoa a identificar responsável pelo planeamento, direcção e execução do muro.
8.5. Sobre o requerimento de instrução, a Mmª Juiz de Instrução proferiu o despacho ora recorrido (fls. 196 e segs.) em que declarou existir nulidade insanável de omissão de inquérito e inadmissibilidade legal de instrução contra desconhecido, com o qual se não conforma o Ministério Público, intentado o presente recurso.
9. O Ministério Público apresenta a seguinte linha de argumentação.
-O Ministério Público, da análise crítica dos factos descritos na participação, concluiu pela inexistência de crime de dano, na medida em que quando muito poderiam configurar uma actuação negligente, pelo que a continuidade do inquérito significava a prossecução de diligências inúteis, impondo-se, por isso, o arquivamento do inquérito.
-A falta de inquérito a que alude o artº 119º, al. d) do CPP apenas respeita aos casos de omissão total desta fase processual, e não àqueles casos em que a estratégia de investigação obedece aos critérios que o MºPº entende adequados em face do enquadramento jurídico que faz da factualidade denunciada.
-O entendimento do juiz de instrução de que no inquérito não foram realizadas as diligências necessárias ao apuramento dos factos na perspectiva do seu enquadramento penal ao nível do crime de dano, apenas poderia levar á conclusão da nulidade de insuficiência de inquérito prevista no artº 120º, nº 2, al. d) do CPP, dependente de arguição.
-Entendendo o Juiz de Instrução que a factualidade denunciada tem um enquadramento jurídico diferente daquele que foi perfilhado pelo Ministério Público e que o apuramento da verdade se impõe, competia-lhe então, em sede de instrução, proceder às diligências de investigação que repute essenciais, em conformidade com o disposto no artº 289º, nº 1 do CPP, não sendo nunca caso de declarar nulo o Inquérito.
Vejamos:
A questão resume-se, então, em saber se estamos ou não perante a nulidade insanável de falta de inquérito.
Nos termos do artigo 119º, al. d), do CPP constitui nulidade insanável, que deve ser oficiosamente declarada em qualquer fase do procedimento “a falta de inquérito ou de instrução, nos casos em que a lei determinar a sua obrigatoriedade”.
No processo comum, havendo a notícia de um crime a abertura de inquérito é sempre obrigatória. Assim o determina o nº 2 do artº 262º do CPP dispondo que “ressalvadas as excepções previstas neste código, a notícia de um crime dá sempre lugar á abertura de inquérito” (sublinhado nosso).
Assim, o Ministério Público abrirá inquérito sempre que tiver a notícia de um crime e só o não fará “ressalvadas as excepções previstas neste código”, como sejam os casos em que o MºPº optar pela submissão do indiciado a julgamento em processo sumário, ou nos casos em que o procedimento depender de queixa ou participação e estas se não tiverem verificado (arts. 49º e 50º, do CPP).
Importa esclarecer que a expressão “notícia de um crime” tem o significado de notícia de factos que objectivamente preenchem os elementos constitutivos de algum tipo de ilícito criminal. Como é bom de ver, a “notícia de um crime” para o ser tem de conter factos que podem integrar em abstracto um ilícito criminal.
Para aferir se os factos participados objectivamente preenchem os elementos constitutivos de algum tipo de ilícito, basta o simples confronto dos mesmos com a lei.
Se, feito este confronto, os factos manifestamente não configuram qualquer crime, o MºPº procede pura e simplesmente ao arquivamento da denúncia.
Contudo, a situação dos autos é bem diversa.
Em primeiro lugar, o Ministério Público, em face do teor da queixa considerou que resultava a “notícia de um crime”, ou seja, que os factos participados integravam em abstracto um ilícito criminal, tanto assim que equacionou a possibilidade de os factos poderem integrar ou um crime de dano ou um crime de infracção das regras de construção. E não restam dúvidas que os factos ali descritos podem efectivamente integrar, em abstracto, a tipicidade objectiva do crime de dano, p. e p. pelo artº 212º do Código Penal.
E porque assim o entendeu, abriu o inquérito, nos termos do artº 262º, nº 2, do C.P.P.
Contudo, no decurso do inquérito, no que tange ao crime de dano, pelo menos com dolo eventual, conforme foi indicado pelas queixosas, não empreendeu qualquer diligência de investigação e proferiu despacho de arquivamento nos termos do artº 277º, nº 1, do CPP, com fundamento na inexistência de crime.
Nesse despacho, o Ministério Público conclui pela inexistência de crime analisando tão só os factos participados, entendendo que os mesmos configuram quando muito uma actuação negligente, uma vez que, “segundo juízos de normalidade, não é configurável que uma pessoa gaste dinheiro na construção de um muro colocando como realidade possível a sua destruição e conformando-se com ela, tendo em conta que tal acto iria provocar estragos em propriedade alheia, pelos quais seria responsável, e a sua própria propriedade”.
Nestes termos, ao concluir que os factos da queixa não integravam qualquer ilícito penal e por isso não havia que proceder a qualquer diligência probatória, deu ao despacho de arquivamento uma natureza liminar, que substancialmente não tem.
A verdade é que não estamos perante um arquivamento em que a invocada inexistência de crime, afastando o dolo, pudesse decorrer do simples confronto dos factos participados com a lei. E tanto assim, conforme se anota e muito bem no despacho recorrido, o Ministério Público para chegar á conclusão que formulou teve de conjugar os factos denunciados com juízos de normalidade, ou seja, “empreendeu ainda que sumariamente uma análise probatória e não apenas um confronto dos factos com a lei”.
A verdade é que, em face dos factos descritos na participação- em que vem alegado que o participado, pelo menos assumiu o risco da derrocada do muro e consequentes estragos, imputando-lhe a prática de um crime de dano, pelo menos a título de dolo eventual e apresentaram para tanto várias razões, como sejam as chamadas de atenção que lhe foram dirigidas e a sua postura face ás mesmas, indicando prova para sustentar a sua tese – só mediante a realização de diligências de prova se poderá concluir pelo elemento subjectivo, ou seja, pela existência ou não de ilícito criminal.
E a necessidade de diligências de investigação vem bem evidenciado no despacho recorrido quando aí se afirma que “…o raciocínio empreendido pelo Ministério Público assente em juízos de normalidade não é absoluto (…). Não é absoluto porque a possibilidade do arguido ter colocado a hipótese do que veio efectivamente a acontecer e se ter conformado com a mesma não é ocorrência impossível, pois o dolo eventual revela uma postura de indiferença relativamente ao resultado danoso que é bastante comum quando se pretende, a todo custo, empreender uma determinada acção, como parece ter sucedido com o arguido, em face da relatada insistência em prosseguir com as obras apesar das alegadas advertências. Tudo isto demonstra que o dolo, no caso concreto, não é um elemento do crime que o Ministério Público pudesse afastar pela simples leitura da queixa, ou seja, que resultasse do mero confronto dos factos com a lei. Antes precisa de ser averiguado, e se bem que a comprovação do mesmo depare com muitas dificuldades (…) é possível aferi-lo a partir de factos instrumentais”.
Chegados aqui, impõe-se dizer uma coisa muito simples: o inquérito é uma fase eminentemente investigatória, durante a qual se procede às diligências necessárias para o apuramento de um facto passado. È o artº 262º, nº 1, do do CPP que define o âmbito e finalidade do Inquérito como o conjunto de diligências que visam investigar a existência de um crime, determinar os seus agentes e a responsabilidade deles e descobrir as provas, em ordem á decisão sobre a acusação.
Ora, nesta fase, o que se pede á entidade a quem foi conferida a direcção do inquérito é que investigue os factos, para a partir deles concluir pela acusação ou arquivamento, e para a partir dos factos indiciados, as partes poderem reagir ao arquivamento ou ao despacho de acusação.
Ora, o que acontece, in casu, é que, não resultando a inexistência de crime do simples confronto dos factos descritos na participação com a lei, impunha-se que se investigasse a existência do ilícito que vinha denunciado.
O Ministério Público, como vimos, durante o inquérito não levou a cabo qualquer diligência, donde o despacho de arquivamento nos termos do artº 277º, do CPP, não sendo precedido da realização das necessárias diligências de investigação é legalmente inadmissível. O despacho de arquivamento assenta, necessariamente, na prova recolhida, procedendo o Ministério Público ao arquivamento, logo que tiver recolhido prova bastante de se não ter verificado a prática de um crime ou porque não foram obtidos indícios suficientes da prática de crime ou de quem foi o seu agente (cfr.artº 277º, nº 1 e 2, do CPP).
Temos assim de concluir que o despacho de arquivamento proferido nestes autos pelo Ministério Público é legalmente inadmissível, por registar a nulidade de omissão de inquéritopor absoluta falta de actos de inquérito.
E do que se trata é efectivamente da nulidade insanável por falta de inquérito, prevista no artº 119º, al. d), do CPP, porque se verifica a falta total e absoluta de actos de inquérito.
E a Instrução que foi requerida pelas assistentes em nada vem ultrapassar a oportunidade do conhecimento da nulidade. Basta atentar que a nulidade ocorrida é por si insanável, e com boa razão, na medida em que inquina irremediavelmente todas as fases processuais.
Por outro lado, nunca esta fase processual facultativa poderia substituir as diligências de inquérito, face á sua finalidade específica. Como sabemos, a instrução visa a comprovação judicial da decisão de arquivamento ou de acusação, traduzindo-se essencialmente numa actividade de comprovação da acusação em ordem à decisão sobre se a causa deve ou não ser submetida a julgamento (artº 286º,CPP).
Daí que não colhe o argumento do Mº Pº de que se Juiz de instrução entende que a factualidade denunciada tem um enquadramento jurídico diferente daquele que foi perfilhado pelo Ministério Público deveria então, em sede de instrução, proceder às diligências de investigação que repute essenciais, em conformidade com o disposto no artº 289º, nº 1 do CPP.
Admitir como válida esta argumentação seria estar a confundir dois momentos processuais que têm finalidades distintas e que se complementam e não se substituem.
Por último, é de referir que o MºPº como entidade competente para dirigir o inquérito é ele quem determina a estratégia de investigação e é soberano na promoção das diligências que entenda necessárias ou convenientes à realização das suas finalidades (artº 267º). Contudo, essa decisão é sindicável, desde logo a montante, como neste caso, através do conhecimento oficioso de nulidade insanável por omissão de inquérito, prevista no artº 119º, al. d), do C.P.P.
Termos em que se conclui que, com a prolação do despacho de arquivamento proferido pelo MºPº, sem que se tenha efectuado qualquer diligência de investigação no inquérito e relativa ao crime denunciado, ocorre a nulidade insanável, por falta de inquérito, a que alude a al. d) do artº 119º do CPP, e que é de conhecimento oficioso.
Assim se conclui pela confirmação do despacho recorrido que decidiu com acerto, fazendo uma correcta aplicação das disposições legais aplicáveis.
Improcede, assim, o recurso.
III-Decisão.
Nestes termos, e com os fundamentos acima expostos, acordam os Juízes da 3ª secção deste Tribunal da Relação em negar provimento ao recurso, mantendo-se a decisão recorrida.
Sem tributação atenta a qualidade do recorrente.
Notifique.
*
Elaborado, revisto e assinado pela relatora Conceição Gonçalves e assinado pelos Desembargadores Margarida Ramos de Almeida e Rodrigues Simão.
Lisboa, 14/05/2008.
____________________________________________________ [1] A propósito do crime de infracção de regras de construção, embora fora do objecto deste recurso, sempre se anota que embora não sendo o arguido o profissional executante do muro, importaria apurar se não existiria um profissional que executara o alteamento do muro e, existindo, se não deveria ser identificado e investigado. Por outro lado, da documentação obtida da CM… não parece resultar que as obras de alteamento do muro estivessem contempladas como obras de conservação, essas sim autorizadas.