ABUSO DE DIREITO
REIVINDICAÇÃO
ARRENDAMENTO
INDEMNIZAÇÃO
Sumário

I - Não pode falar-se de abuso de direito quando o titular do mesmo desconhece que o tem e o pode exercer.
II - Uma ocupante, que continua a fazer crer ao proprietário do imóvel que o falecido arrendatário está vivo, sabe que não está a actuar em conformidade com a lei.
III - O comportamento por parte do proprietário/senhorio, que desconhece que o arrendatário faleceu, não pode justificar uma expectativa de não exercício do direito de reivindicação do imóvel.
FG

Texto Integral

Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa:
A e outros propuseram contra M acção declarativa de condenação, com processo comum e forma ordinária. Alegaram, em síntese, que: são donos, por o terem comprado, de dado prédio urbano; a loja desse prédio havia sido dada de arrendamento, para habitação, a indivíduo já falecido; o contrato de arrendamento caducou; a ré ocupa a referida loja, sem qualquer título, e recusa-se a entregá-lo; tal conduta causa prejuízos patrimoniais aos autores. Concluíram, pedindo que a ré seja condenada a ver reconhecido o direito de propriedade dos autores, a restituir-lhes a loja livre e devoluta de pessoas e bens e a pagar-lhes a indemnização devida pela ocupação da loja, a liquidar em execução de sentença.
A ré contestou, alegando viver na loja desde 1971, juntamente com o seu tio arrendatário enquanto este foi vivo, pelo que tem direito a aí residir nos termos do artigo 90º nº 1-a) do RAU. Mais invocou que vem depositando o valor da renda, nomeadamente, actualizada e que os autores conhecem a situação desde data anterior à aquisição do imóvel. Conclui pela sua absolvição do pedido e pela condenação dos autores a ver reconhecido o direito ao arrendamento da ré.
Foi admitida a intervenção principal provocada de D, marido da ré, que não apresentou contestação.
O processo foi objecto de saneamento e condensação.
Realizou-se audiência de discussão e julgamento.
Foi proferida sentença que - considerando não ter a ré a qualidade de arrendatária e ser abusivo o exercício pelos autores do seu direito de reivindicar a loja – declarou os autores titulares do direito de propriedade sobre o prédio em causa, absolveu a ré do restante pedido e absolveu os autores do pedido reconvencional.

De tal sentença apelaram os autores, formulando as seguintes conclusões:
a) Os recorrentes intentaram uma acção de reivindicação da propriedade, com processo comum na forma ordinária, contra Maria, através da qual pretendiam o reconhecimento do seu direito de propriedade relativo ao n.º 11 (loja), do prédio urbano sito na Travessa, em Lisboa, e, em consequência que:
- A ré visse reconhecido o direito de propriedade dos ora autores;
- A ré fosse condenada a restituir aos autores a referida loja inteiramente livre e devoluta de pessoas e bens;
- A ré fosse condenada em indemnização devida pela ocupação da loja, a liquidar em execução de sentença;
- A ré fosse condenada em custas, procuradoria e o mais legal (Petição Inicial);
b) Os recorrentes são donos e legítimos proprietários do prédio urbano sito na Travessa, na freguesia de Santa Maria de Belém, concelho de Lisboa, inscrito na respectiva matriz predial urbana sob o artigo 553º e descrito sob o n.º 1776 – Santa Maria de Belém, da 3.ª Conservatória do Registo Predial de Lisboa, em virtude de o terem comprado a Maria M;
c) Conclui a sentença, e bem, que os autores se apresentam como proprietários do prédio sito na Travessa, na freguesia de Santa Maria de Belém, concelho de Lisboa, onde se insere a loja reivindicada. Assim, dispõem do poder de gozo de modo pleno e exclusivo dos direitos de uso, fruição e disposição das coisas que lhes pertencem (artigo 1305.º do Código Civil), o que implica que a ninguém seja permitido, sem mais, exercer qualquer desses poderes sobre a coisa que não lhe pertença;
d) Por contrato celebrado em 7 de Julho de 1934, foi dado de arrendamento a S o gozo do imóvel n.º 11 (loja) do identificado prédio urbano;
e) Destinando-se o locado a habitação do inquilino;
f) O dito arrendatário, S, veio a falecer, em 4 de Abril de 1979, na sua última residência habitual, sita na Estrada de Mem-Martins, em Sintra;
g) Por óbito do inquilino, o arrendamento não se transmitiu a qualquer herdeiro, uma vez que o falecido arrendatário era viúvo, vivia sozinho, e nunca ninguém comunicou a ocorrência e, muito menos, solicitou à senhoria que o arrendamento se lhe transmitisse;
h) Os recorrentes, após a compra do citado imóvel, confrontaram-se com o facto de a recorrida e seu marido, D, ocuparem, indevidamente, o prédio em causa;
i) A vendedora do imóvel reiterou que a recorrida era ocupante e que nunca lhe emitiu qualquer recibo de renda, pois os recibos de renda eram todos emitidos em nome do falecido arrendatário, que a, então, senhoria e proprietária supunha vivo;
j) Os recorrentes, desde que tiveram conhecimento da ocorrência - morte do arrendatário - não cobraram renda, uma vez que o contrato de arrendamento tinha caducado, nem emitiram, consequentemente, qualquer recibo de renda;
l) O contrato de arrendamento caducou, pois, por morte do mencionado S, nos termos do disposto no artigo 1051.º, n.º 1, alínea d), do Código Civil, ex vi do art. 66.º, n.º 1, do D.L. n.º 321-B/90, de 15 de Outubro;
m) Não se verificando, neste caso, as excepções previstas no artigo 1052.º do Código Civil, quer aquelas previstas no artigo 85.º, n.º 1, do D.L. n.º 1, do D.L. n.º 321-B/90, de 15 de Outubro;
n) Impunha-se que o Tribunal apreciasse se a recorrida dispunha de algum título que pudesse opor aos titulares do direito de propriedade, acarretando-lhes a inerente restrição ao poder de gozo pleno e exclusivo do bem objecto desse direito;
o) A recorrida arrogou-se titular do direito a ocupar a loja em causa por lhe assistir direito a novo arrendamento, nos termos do disposto no artigo 90.º, n.º 1, alínea a) do Regime do Arrendamento Urbano;
p) Conforme decorre da sentença, resultou assente que a loja inserida no prédio em causa foi dada em arrendamento, para habitação, a S, o qual veio a falecer em 04.04.1979;
q) Consequentemente, caducou o contrato de arrendamento, nos termos do disposto no artigo 1051.º, n.º 1, alínea d) do Código Civil, em vigor à data do evento mencionado;
r) O direito a novo arrendamento não estava previsto na legislação vigente, a qual versava apenas o direito à transmissão do arrendamento por morte do arrendatário, artigo 1111.º do Código Civil;
s) Conforme decorre da sentença, compulsados os factos assentes, não obstante a data de falecimento do arrendatário e o facto de a ré ocupar a loja desde há mais de 30 anos, logo se alcança que não está assente que a ré tenha ocupado a loja em período coincidente com o arrendatário (não consta que este tenha vivido, até à sua morte, na loja); não consta ainda que a ré seja parente ou afim na linha recta do arrendatário (cfr. alíneas P e Q dos factos assentes);
t) Logo, não assiste à recorrida o direito à transmissão do arrendamento;
u) Aliás, nos termos do artigo 90.º do Regime do Arrendamento Urbano, o direito a novo arrendamento conjugado com o disposto no artigo 76.º do RAU, quando o contrato caduca por morte do arrendatário, assiste às pessoas que convivam com o arrendatário em economia comum, há mais de cinco anos, considerando-se sempre como vivendo em economia comum os seus parentes ou afins na linha recta ou até ao 3.º grau na linha colateral - n.º 2;
v) Uma vez que a ré não é parente ou afim na linha recta, nem até ao 3.º grau da linha colateral do arrendatário, nem constando que partilhasse a sua vivência pessoal, familiar e moral com o mesmo, também não lhe assistiria o direito ao novo arrendamento, agora previsto na legislação mencionada (Sentença);
x) Mais, a recorrida não era locadora do imóvel em causa na data em que ocorreu o óbito do arrendatário e se verificou a consequente caducidade do contrato de arrendamento;
z) Logo, não podemos aplicar o regime do artigo 1056.º do Código Civil, segundo o qual, não obstante a caducidade do arrendamento, se o locatário se mantiver no gozo da coisa pelo lapso de um ano, sem oposição do locador, o contrato considera-se renovado nas condições do artigo 1054.º do Código Civil;
a’) Em suma: O contrato de arrendamento caducou por morte do mencionado S, nos termos do disposto no artigo 1051.º, n.º 1, alínea d) do Código Civil, ex vi do artigo 66.º, n.º 1 do DL n.º 321-B/90, de 15 de Outubro, não se verificando neste caso as excepções previstas no artigo 1052.º do Código Civil, quer aquelas previstas no artigo 85.º, n.º 1 do DL n.º 321-B/90, de 15 de Outubro;
b’) Em face do exposto, e conforme decidiu a sentença, e bem, não existe fundamento jurídico donde resulte a qualidade de arrendatária da ré ou o direito a obter dos autores tal qualidade, pelo que claudica integralmente o pedido formulado pela ré;
c’) Entendeu o Tribunal a quo apreciar oficiosamente se os recorrentes não estariam a incorrer numa situação de abuso de direito ao solicitar judicialmente a entrega do seu imóvel;
d’) É pacífico na Jurisprudência que a reivindicação de imóvel pelo proprietário não configura, em caso algum, uma situação de abuso de direito;
e’) Não constitui abuso de direito de propriedade o facto de os recorrentes exigirem a restituição do imóvel que lhes pertence e cuja ocupação pela recorrida se não mostra titulada, pois tal pretensão não excede os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social e económico do seu direito de proprietários – artigo 334.º do Código Civil;
f’) Daí que, face ao preceituado no artigo 334.º do Código Civil, se não possa sequer falar de abuso de direito no caso em apreço;
g’) Motivo pelo qual falhará a sentença no que diz respeito à apreciação desta questão, a qual oficiosamente a Mma. Juíza do Tribunal a quo pretendeu equacionar. O exercício do direito de reivindicação pelos recorrentes não se pode afigurar ilegítimo como refere a sentença;
h’) Os recorrentes, ao pedirem a condenação da recorrida na entrega do questionado imóvel, mais não fizeram que exercer o seu direito de propriedade para o único fim reconhecido no artigo 1311.º do Código Civil;
i’) Face à matéria de facto assente, não se vê que os recorrentes tenham excedido manifestamente (como o exige o citado artigo 334.º) os seus poderes de proprietários do dito imóvel, dado que, como se salienta no Acórdão do STJ de 16.06.1986 (252.º-469) não choca de maneira clamorosa o sentimento de justiça que o proprietário de um prédio o reivindique daqueles que sem título o possuem;
j’) De resto, a recorrida não provou que deu conhecimento à então proprietária, ou aos recorrentes que o falecido arrendatário tivesse falecido, não obstante ter sido convidada a esclarecer a situação. Nunca lhes enviou qualquer certidão de óbito;
l’) Nunca pediu que os recibos fossem emitidos em seu nome, bem como as cartas de actualização de renda, tendo a carta para exercício do direito de preferência na aquisição do imóvel sido endereçada ao arrendatário, que, na convicção da senhoria, estaria vivo;
m’) Nunca a então senhoria levantou qualquer importância a título de rendas depositada na Caixa Geral de Depósitos;
n’) Não pode, pois, considerar-se ilegítimo o exercício pelos recorrentes do direito de peticionarem, através da presente, a entrega pela recorrida do mencionado imóvel;
o’) O contrário é que seria ilegítimo, já que validaria a situação de facto da recorrida, ao contrário do que a lei prescreve, considerando-se ilícita em face da inexistência de qualquer título que a justifique (vd. Ac. do STJ de 30.03.1973 in Rev. Tribs., Ano 91.º, pág. 221);
p’) De qualquer maneira, a decisão da Mma. Juíza do Tribunal a quo - improcedência da acção e consequente impedimento do reconhecimento do direito dos Recorrentes a verem aquela (recorrida) condenada a entregar-lhes o imóvel mercê do funcionamento obstaculizador do instituto do abuso de direito – estaria de antemão votada ao insucesso, visto que o apontado instituto não se destina a fazer extinguir o direito que a lei confere a outrem;
q’) Antes se destina, e tão-só, a manter o seu exercício dentro de moldes e limites equilibrados e racionais em conformidade com a boa fé e os bons costumes ou com o fim económico e social desse direito; não podendo, por isso, requerer-se que o direito não seja reconhecido ao titular, ou seja, que este seja inteiramente despojado dele;
r’) Deste modo, mesmo que se verificasse (e não se verifica, como intentámos mostrar), na situação concreta dos autos, o invocado abuso de direito, o reconhecido direito dos recorrentes de pedirem à recorrida a restituição ou entrega do imóvel de que aqueles são proprietários não podia ser-lhes negado com base no suposto abuso. A existir este, os recorrentes apenas poderiam impetrar o ressarcimento dos danos sofridos ou a sofrer com tal entrega nos termos da responsabilidade civil por abuso de direito (vd., neste sentido, Vaz Serra, Bol. n.º 85, 305/306, nota 114; Antunes Varela e P. de Lima, Código Civil Anotado, I, pág. 217; Acs. do STJ de 30.03.1973, 20.11.1973 e 17.12.1974, Bols. 231, pág. 155 e 242, pág. 257; Ac. da Rel. de Lisboa, de 14.06.1972 em Rev. Tribs., Ano 90.º, pág. 326 e respectiva anotação a págs. 331 e Ac. da Rel. de Coimbra de 19.07.83, CJ, Ano VIII, tomo 4, pág. 47);
s’) Neste sentido, citemos os seguintes Acórdãos:
- Não integra abuso de direito a reivindicação, pelo proprietário do imóvel, de partes deste, ocupadas por quem as está a possuir sem título (STJ, 21-1-1986: BMJ, 353.º -475).
- Não constitui abuso do direito de propriedade o facto de senhorio exigir a restituição do andar que lhe pertence e cuja ocupação por outrem se não mostra titulada, pois tal pretensão não excede os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social e económico do seu direito de proprietário – artigo 334.º do Código Civil (STJ, 5-1-1984: BMJ, 333.º-406).
- I- A acção de reivindicação de um estabelecimento industrial e comercial procede, demonstrada que sejam a titularidade dos autores sobre esse estabelecimento e a sua detenção pelos réus com base num contrato de cessão de exploração do mesmo estabelecimento, nulo por falta de forma. II- O abuso de direito não se destina a fazer extinguir o direito que a lei confere a outrem, nem impede a entrega da coisa reivindicada no seu proprietário (RP, 30.04.1987: CJ, 1987, 2.º -241).
- A figura do abuso de direito, consagrada no art. 334.º do Código Civil, não é invocável quando se pretende impugnar, não os limites do exercício do direito mas a própria existência do direito (STA, 14.04.1988: BMJ, 376.º -462).
- No abuso de direito pode compreender-se (como sanção adequada à sua natureza), qualquer processo em que se consiga a paralisação do respectivo direito, mas o que não pode é suprimir-se o próprio direito a pretexto de que o seu uso é abusivo (RP, 20.04.1978:CJ, 1978, 2.º -680);
t’) Concluímos que a recorrida continuava a fazer crer aos proprietários do imóvel ocupado que o arrendatário S se encontrava vivo;
u’) Não existe nenhuma prova material ou algum comportamento por parte da então proprietária, ou dos recorrentes que possa justificar uma expectativa de não exercício do direito de reivindicação por parte dos proprietários do imóvel, pois se assim fosse o aviso de recepção da carta para exercício do direito de preferência, endereçada ao arrendatário, não teria vindo assinado;
v’) O período de tempo que decorreu entre o conhecimento da morte do arrendatário por parte dos recorrentes e a data de entrada da presente acção de reivindicação no tribunal competente foi inferior a 12 meses;
x’) Não se pode afirmar que a senhoria, que até desconhecia que o arrendatário, S tinha falecido, tivesse praticado actos dos quais tivesse resultado a expectativa para a recorrida de que o seu direito não ia ser exercido;
z’) Para existir um abuso de direito, conforme afirma Galvão Telles (Obrigações, 3ª. ed., 6), exige-se no entanto um abuso manifesto, isto é, que o sujeito ultrapasse de forma evidente ou inequívoca os limites referidos no artigo 334.º do Código Civil. O abuso de direito equivale à falta de direito, gerando as mesmas consequências jurídicas que se produzam quando uma pessoa pratica um acto que não tem direito de realizar;
a’’) Conforme nos ensina a Jurisprudência: O abuso do direito pressupõe excesso ou desrespeito dos limites axiológico-materiais, não existindo tal abuso quando não se verificar excesso manifesto dos limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico do direito (STJ, 19.01.1978:BMJ, 273.º-211, com anotações de Vaz Serra em RLJ, 111.º - 202);
b’’) No caso sub judice, não se verifica uma situação de manifesto excesso no exercício de um direito em relação à sua função social;
c’’) Os recorrentes intentaram uma acção de reivindicação de propriedade;
d’’) A reivindicação é o meio idóneo para defender qualquer direito real de gozo, em quaisquer circunstâncias (António Menezes Cordeiro, Direitos Reais, 1979, 849);
e’’) Nas acções de reivindicação (art. 1311.º do Código Civil) incumbe ao autor demonstrar que tem o direito de propriedade sobre a coisa reivindicada e que esse direito se encontra na posse ou detenção de outrem. Provados esses requisitos, a restituição da coisa será uma consequência directa, a não ser que o seu ou seus detentores demonstrem possuir direito real ou obrigacional, que servirá de obstáculo ao exercício pleno da propriedade, direito que consubstancia uma excepção peremptória, nos termos do art. 493.º, n.º 3, do Código de Processo Civil (STJ, 2.12.1986: BMJ, 362.º- 537);
f’’) Demonstrado pelos recorrentes o seu direito de propriedade, reconhecido na sentença, a recorrida só pode evitar a restituição da coisa desde que demonstre que tem sobre ela outro qualquer direito real que justifique a sua posse ou que a detém por virtude de direito pessoal bastante, o que não se verificou nos presentes autos, conforme se constata da prova produzida e da sentença;
g’’) Reconhecido o direito de propriedade dos autores, o pedido da consequente restituição, como manifestação da sequela do direito real, só poderá ser recusado nos casos previstos na lei, de acordo com o disposto nos n.ºs 1 e 2 do artigo 1311.º do Código Civil, isto é, e em síntese: se os réus provarem factos constitutivos de posse ou detenção legitimada e duradoura, ou de qualquer direito sobre o imóvel, oponível ao direito dos autores (RE, 19.03.1992: BMJ, 415.º- 741);
h’’) A recorrida não provou ter qualquer título ou direito sobre o imóvel em causa, como decorre, e bem, da sentença: (…) Em face do exposto, não existe fundamento jurídico donde resulte a qualidade de arrendatária da R. ou o direito a obter dos AA tal qualidade, pelo que claudica integralmente o pedido formulado pela R.;
i’’) É pacífico na Jurisprudência que a reivindicação de imóvel pelo proprietário não configura, em caso algum, uma situação de abuso de direito. Neste sentido, a título ilustrativo, como já tivemos oportunidade de referir, citem-se os seguintes Acórdãos: STJ, 21-1-1986: BMJ, 353.º -475; STJ, 5-1-1984: BMJ, 333.º-406, RP, 30.04.1987: CJ, 1987, 2.º -241; STA, 14.04.1988: BMJ, 376.º -462; RP, 20.04.1978:CJ, 1978, 2.º -680;
j’’) Em conclusão, ainda que se admitisse a possibilidade de utilizar o instituto do abuso de direito na presente situação, o que só admitimos por dever de patrocínio, o exercício do direito de reivindicação por parte dos recorrentes teria que ser exercido em termos clamorosamente ofensivos da justiça, com manifesto excesso dos limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim económico e social;
l’’) Não resultou provado que a anterior proprietária tivesse tido conhecimento do óbito do arrendatário e convicção que este tivesse falecido, antes pelo contrário (factos assentes D, E, F e sentença);
m’’) Não se verifica um manifesto excesso dos limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim económico e social pelo exercício do direito de reivindicação por parte dos recorrentes;
n’’) Uma ocupante, como a recorrida, que continua a fazer crer que o falecido arrendatário está vivo (assinatura do aviso de recepção da carta recebida para exercício do direito de preferência), sabe que não está a actuar em conformidade com a Lei;
o’’) Decorre inclusive dos autos que a recorrida se alegava familiar (sobrinha) do falecido arrendatário (Contestação) e ficou provado que não existe qualquer vínculo de parentesco ou afinidade desta com o falecido arrendatário, Salvador Simões Pipa, susceptível de dar azo a uma transmissão de um contrato de arrendamento;
p’’) Ora, no caso em apreço, não se vê, considerando a matéria de facto assente, que os recorrentes estejam a exercer o seu direito com abuso de direito, pois não choca de maneira clamorosa o sentimento de justiça que os proprietários de um imóvel o reivindiquem daquela que sem título o possui (recorrida);
q’’) Recordemos que a recorrida tem mentido e prestado falsas declarações ao Tribunal, a saber:
- Nesta data reside na Travessa, 11, 1400-123 Lisboa;
- Conforme se pode constatar pela certidão de casamento (junta aos autos), a recorrida residia na Rua de Santo, em Lisboa, em 1964;
- De igual forma se pode constatar pela certidão de nascimento do único filho do casal (junta aos autos), António, a recorrida residia na Rua de Santo, em Lisboa, em 1965;
- A Recorrida requereu a junção aos presentes autos de um atestado, emitido pela Junta de Freguesia de Santa Maria de Belém, em Fevereiro de 2006 (junta aos autos), a atestar que reside na Travessa 11-r/c há 50 anos;
r’’) Inclusive, aproveitando-se da confusão de ter residido numa Rua (Rua de Santo António a Belém, em Lisboa), com um nome parecido com a da morada actual (Travessa de Santo António a Belém, em Lisboa), pertencentes ambas as moradas à mesma Junta de Freguesia de Santa Maria de Belém;
s’’) A recorrida não olhou aos meios para fazer valer os seus interesses, nem mesmo perante um Tribunal;
t’’) Inclusive, aproveitando-se da confusão de ter residido numa Rua (Rua de Santo António a Belém, em Lisboa), com um nome parecido com a da morada actual (Travessa de Santo António a Belém, em Lisboa), pertencentes ambas as moradas à mesma Junta de Freguesia de Santa Maria de Belém;
u’’) Também, não podemos deixar de referir que:
- A recorrida, Maria, requereu junto dos Serviços de Solidariedade e Segurança Social - Centro Distrital de Lisboa, a concessão de apoio judiciário a pessoa singular;
- O serviço competente da Solidariedade Social, por despacho proferido em 04.12.2002 pelo CDSSS - Lisboa, deferiu na modalidade de dispensa total de taxa de justiça e demais encargos com o processo, nomeação e pagamento de honorários de patrono;
- Os recorrentes tomaram posteriormente conhecimento que as declarações da recorrida não corresponderam à verdade, uma vez que a mesma declarou ter como único bem a propriedade de um automóvel ligeiro de passageiros de marca Renault 9 GTC Super, com a matrícula JB;
- Efectivamente, a recorrida omitiu a verdade;
- A recorrida, casada no regime de comunhão geral de bens, é proprietária de um prédio destinado a habitação, sito na Rua do Senadinho, Alenquer, é proprietária de adegas sitas em Alenquer, e é proprietária de vários prédios rústicos sitos nas imediações dos imóveis já identificados;
- Os recorrentes não se tinham oposto ao apoio judiciário concedido à recorrida, mas face à informação obtida consideraram ser seu dever dar conhecimento da verdade ao Tribunal, através do seu requerimento de 12.12.2005, o qual não mereceu qualquer tipo de despacho;
- Os Recorrentes, através de requerimento de 25.09.2006, e uma vez que resulta de documentos juntos aos autos, indiciada a prática de crimes de falsas declarações, crime de natureza público, requereram que fosse dada vista nos autos ao Ministério Público para a instauração do competente procedimento criminal;
v’’) Exposto o carácter da ocupante, é fácil concluir que o exercício da acção de reivindicação por parte dos Recorrentes não excede manifestamente os limites do princípio da boa fé e da tutela da confiança;
x’’) Conforme resulta de prova documental junta aos autos (certidões e fotos) e de prova testemunhal apresentada por ambas as partes, a recorrida e o marido são proprietários de um prédio destinado a habitação, sito na Rua do Senadinho, Alenquer, são proprietários de adegas sitas em Alenquer, e são proprietários de vários prédios rústicos sitos nas imediações dos imóveis já identificados;
z’’) Sublinhe-se que a recorrida ocupa uma casa sem condições de habitabilidade, o que não se verifica com a sua casa de Alenquer;
a’’’) Não compete aos recorrentes suportarem mais prejuízos patrimoniais e morais decorrentes da ilegítima ocupação da recorrida;
b’’’) A recorrida não só não apresentou nenhum título justificativo de um direito que exerce de forma abusiva, acarretando prejuízos patrimoniais e morais aos recorrentes, bem como não ousou contestar que toda a correspondência trocada com os senhorios foi feita em nome do falecido arrendatário, S;
c’’’) A recorrida não só não apresentou nenhum título justificativo de um direito que exerce de forma abusiva, acarretando prejuízos patrimoniais e morais aos recorrentes, bem como não ousou contestar que nunca foi emitido um recibo de renda em nome da recorrida;
d’’’) A recorrida assinou avisos de recepção em nome do falecido arrendatário, S para fazer crer à então senhoria que o arrendatário não tinha falecido, assim legitimando a sua permanência no imóvel em causa;
e’’’) Os recorrentes provaram a inexistência de qualquer vínculo familiar entre o falecido arrendatário e a recorrida (conforme era explicitado na contestação), os recorridos não apresentaram qualquer título ou prova que legitimasse a ocupação do imóvel em causa (conclui a sentença que não existe fundamento jurídico donde resulte a qualidade de arrendatária da ré ou o direito a obter dos autores tal qualidade, pelo que claudica integralmente o pedido formulado pela ré e, não obstante, foram absolvidos do pedido contra eles formulado;
f’’’) A recorrida tem as chaves do locado que se recusa a entregar;
g’’’) A recorrida detém a posse do andar em causa, o que faz sem título;
h’’’) A ocupação do imóvel em causa pela recorrida tem impedido os recorrentes de o utilizarem, facto que lhes tem causado prejuízos patrimoniais e morais;
i’’’) A ocupação do imóvel pela recorrida tem impedido os recorrentes de alienarem um conjunto de cinco prédios urbanos, facto que lhes tem causado um prejuízo patrimonial significativo (depoimentos das testemunhas);
j’’’) A fundamentação do abuso de direito por parte dos recorrentes em obter a entrega da coisa da recorrida não deve proceder, não pode ficar prejudicado o pedido relativo a indemnização formulado pelos autores por via do uso indevido da loja pela recorrida, com o consequente empobrecimento por parte dos recorrentes, legítimos proprietários do imóvel em causa;
l’’’) Deve a sentença ser revogada e substituída por outra que julgue a acção procedente.

Nas contra-alegações foram formuladas as seguintes conclusões:
a) Os recorridos têm a legitima expectativa de ver protegido o seu Direito à Habitação;
b) Os recorrentes sempre souberam da ocupação do imóvel em causa por parte dos recorridos;
c) Os recorridos sempre reconheceram o direito de propriedade dos recorrentes;
d) Os recorridos são pessoas de saúde débil e de avançada idade, não reunindo condições para procurar nova habitação e muito menos suportar as novas rendas;
e) É verdade que os recorridos são proprietários de um imóvel, mas que não reúne as condições mínimas de habitabilidade;
f) Em face do tempo decorrido, agem os recorrentes em claro abuso de direito;
g) O prejuízo causado aos recorridos é muito superior e insuportável em comparação com o sofrido pelos recorrentes;
h) Para os recorrentes apenas se trata de uma questão de empobrecimento pela não transacção do imóvel, enquanto que para os recorridos é uma questão de viverem o resto dos seus dias convictos de que o podem fazer em paz e livres do problemas que não se adaptam à sua idade;
i) Deve o presente Recurso de Apelação ser julgado improcedente, devendo ser mantida a decisão proferida pela Meritíssima Juíza do Tribunal a quo.

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São os seguintes os factos que a 1ª instância deu como provados:
1. O prédio urbano sito na Travessa de Santo António, na freguesia de Santa Maria de Belém, concelho de Lisboa, inscrito na respectiva matriz predial urbana sob o artigo 553º, encontra-se descrito sob o n.º, na 3.ª Conservatória do Registo Predial de Lisboa, apresentando registo de aquisição a favor dos autores pela Ap.
2. Por contrato celebrado em 7 de Julho de 1924, foi dado de arrendamento a S o gozo do imóvel n.º 11 (loja) do identificado prédio urbano, destinando-se o locado a habitação do inquilino;
3. A ré ocupa o prédio em causa.
4. A vendedora do imóvel aos autores nunca emitiu qualquer recibo em nome da ré.
5. Os recibos de renda eram emitidos em nome do falecido arrendatário que, a então senhoria e proprietária, pelo menos até ao início de 1993, supunha vivo.
6. Os autores, desde que tiveram conhecimento da ocorrência - morte do arrendatário - não cobraram renda, nem emitiram qualquer recibo de renda.
7. A ocupação do imóvel em causa pelos réus tem impedido os autores de o transaccionarem.
8. Em 02.03.1993, a ré foi notificada pela vendedora do imóvel para fornecer as provas necessárias ao vínculo familiar existente entre si e o arrendatário.
9. O que se repetiu em 28.05.93.
10. A ré efectuou o depósito de fls. 60 (a quantia de 2.120$00, em 07.05.2001, a favor de Maria, na conta n.º e o depósito de fls. 61 (€5,60, em 03.01.2003, a favor de F, na conta n.º ).
11. A renda foi sendo actualizada, pelo menos até 1998, mediante missiva endereçada a S.
12. O réu sofre de cardiomiopatia, hipertensão arterial, doença pulmonar obstrutiva crónica e artrose múltipla; a ré sofre de hipertensão arterial, hipercolesterolémia, artroses periféricas.
13. A ré, desde há cerca de 30 anos, ocupa o locado, fazendo dele a sede da sua vida familiar e social e da sua economia doméstica.
14. S faleceu em 04.04.1979, no estado de viúvo de Maria (doc. de fls. 137).
15. A, filho de S e de Maria, contraiu matrimónio com M, filha de António e de E (fls. 144 a 146).
16. A ré, nascida em 19.09.1931, é filha de António e de B (fls. 29).
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I - Não obstante a extensão das alegações de recurso (88 folhas) e das respectivas conclusões, a questão essencial que de facto se coloca é a de saber se os autores, ao reivindicar a loja em causa, actuaram de forma abusiva.

O artigo 334º do Cód. Civ. dispõe que é ilegítimo o exercício de um direito quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.
No segmento desta norma que alude aos “limites impostos pela boa fé” está compreendida a proibição de venire contra factum proprium e a Verwirkung ou supressio.
“Estruturalmente, o venire postula duas condutas da mesma pessoa, lícitas em si, mas diferidas no tempo. Só que a primeira – o factum proprium – é contraditada pela segunda – o venire.” “O venire é positivo quando se traduza numa acção contrária ao que o factum proprium deixaria esperar; será negativo caso redunde numa omissão contrária ao mesmo factum.” – Menezes Cordeiro, Litigância de Má Fé Abuso do Direito de Acção e Culpa “In Agendo”, Almedina, Coimbra, 2006:50.
Nesta situação, “a tutela da confiança, apoiada na boa fé, ocorre perante quatro proposições. Assim:
Uma situação de confiança conforme com o sistema e traduzida na boa fé subjectiva e ética, própria da pessoa que, sem violar os deveres de cuidado que ao caso caibam, ignore estar a lesar posições alheias;
Uma justificação para essa confiança, expressa na presença de elementos objectivos capazes de, em abstracto, provocar uma crença plausível;
Um investimento de confiança consistente em, da parte do sujeito, ter havido um assentar efectivo de actividades jurídicas sobre a crença consubstanciada;
4ª A imputação da situação de confiança criada à pessoa que vai ser atingida pela protecção dada ao confiante: tal pessoa, por acção ou omissão, terá dado lugar à entrega do confiante em causa ou ao factor objectivo que a tanto conduziu” – autor e obra citados, pág. 52.
Na Alemanha utiliza-se a expressão Verwirkung para traduzir as situações em que se veda “o exercício de um direito subjectivo ou de um pretensão, quando o seu titular, por não os ter exercido durante muito tempo, criou na contraparte uma fundada expectativa de que já não seriam exercidos (revelando-se, portanto, um posterior exercício manifestamente desleal e intolerável)” (Coutinho de Abreu, Do abuso do direito, Almedina, Coimbra, 1999:59/60).
Menezes Cordeiro prefere o termo latino supressio para “a situação do direito que não tenha sido, em certas circunstâncias, exercido durante um determinado lapso de tempo, não possa mais sê-lo por, de outra forma, se contrariar a boa fé” (Da boa fé no direito civil, II, Almedina, Coimbra, 1984: 797).
Nas palavras deste último autor, “a realidade social da supressio, que o Direito procura orientar, está na ruptura das expectativas de continuidade da auto-apresentação praticada pela pessoa que, tendo criado, no espaço jurídico, uma imagem de não-exercício, rompe, de súbito, o estado gerado” (obra citada, pág. 813).
Como esclarece, a diferenciação da supressio em face do venire contra factum proprium está na ausência do factum: apenas abstenção. “Haverá, então, que exigir um decurso significativo de tempo, acompanhado de outras circunstâncias – por exemplo: um conhecimento do direito e da possibilidade de o exercer – para que se possa falar em confiança justificada de que ele não mais seria exercido” (Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil Português, I, Parte Geral, Tomo I, 2000:260).
Baptista Machado refere, por sua vez, que “nas situações em que a Verwirkung opera combinam-se as seguintes circunstâncias:
a) o titular de um direito deixa passar longo tempo sem o exercer;
b) com base neste decurso do tempo e ainda com base numa particular conduta do dito titular ou noutras circunstâncias, a contraparte chega à convicção justificada de que o direito já não será exercido;
c) movida por esta confiança essa contraparte orientou em conformidade a sua vida, tomou medidas ou adoptou programas de acção na base daquela confiança, pelo que o exercício tardio e inesperado do direito em causa lhe acarretará agora uma desvantagem maior do que o seu exercício atempado” («Tutela da confiança e Venire contra factum proprium», Obras dispersas, Vol. I, Braga, 1991:421).

Na factualidade que foi considerada provada, não encontramos qualquer realidade que possa traduzir-se no factum proprium. Com efeito:
- a anterior e os actuais proprietários nunca emitiram qualquer recibo de renda em nome da ré;
- ao contrário do que a Sra. Juiz escreveu na sentença, não se provou que a anterior proprietária tenha recebido rendas da ré (o ponto 10. da matéria de facto não permite tal afirmação, como adiante melhor se explicará);
- os autores não cobraram renda desde que tiveram conhecimento da morte do arrendatário;
- as cartas para actualização de renda enviadas pela anterior proprietária foram dirigidas ao arrendatário;
- as únicas cartas remetidas à ré visaram obter elementos documentais sobre a situação.

Será, então, que se verifica a supressio?
Provou-se que o arrendatário S faleceu no dia 4.4.79, no estado de viúvo. E que a anterior proprietária, Maria, que o vendeu aos autores em 28.5.01 (cfr. a respectiva escritura pública junta a fls. 7 a 10), supunha que o arrendatário estava vivo pelo menos até ao início de 1993.
Não há, assim, dúvidas de que, até esse momento, não se demonstraram quaisquer factos que pudessem indiciar que a proprietária tinha consciência de ter o direito de reivindicar a loja em causa. Com efeito, desconhece-se se a proprietária sabia que o arrendatário não habitava a loja (é hipótese possível que o arrendatário tenha deixado de viver no locado em data anterior ao seu falecimento e que a proprietária disso soubesse, desconhecendo, porém, o seu posterior falecimento) e se a proprietária sabia que a ré e o marido a habitavam.
O conhecimento por parte da anterior proprietária de que a ré habitava a loja só pode concluir-se com certeza a partir de 2.3.93, data de uma carta que o Dr., advogado, remeteu à ré, para a morada dos autos, na qual, depois de referir que “Tendo-me V.Exa. informado de que é sobrinha do primitivo arrendatário da casa que ocupa, Sr. S, e com vista à prova do vínculo familiar que refere”, solicita o envio de certidão de nascimento e fotocópia do bilhete de identidade da ré, certidão de nascimento e de óbito de S e certidão de nascimento do pai ou mãe da ré “(aquele que for irmão de S)”.
Ainda assim, o conhecimento dessa situação não permite concluir que a anterior proprietária tinha consciência de poder reivindicar da ré a loja por ela ocupada.
Desconhece-se se, na sequência da referida carta, a ré enviou algum dos documentos pedidos. Podemos, apenas, presumir com segurança que não terá remetido certidão do assento de óbito de S, porquanto, em carta datada de 28.5.93, o já referido advogado, lhe pedia novamente tal documento, “com a urgência possível”, referindo-se-lhe como “certidão de óbito de seu tio, Sr. S”.
Ainda que se possa admitir como possível que a expressão “de seu tio” significasse que tinha sido constatado tal parentesco, não há elementos seguros que permitam essa conclusão, dado ser natural que a expressão tivesse sido utilizada por referência à informação que a própria ré havia anteriormente prestado. Mas, mesmo que pudesse concluir-se com segurança que a proprietária tinha ficado ciente da ligação familiar da ré com o arrendatário, faltaria demonstrar o conhecimento de outros elementos relativos à co-vivência entre ambos e do falecimento do arrendatário para que se pudesse afirmar ter a proprietária consciência do seu direito de reivindicar.
É que, ao contrário do que se afirma na sentença recorrida, não se demonstrou que a anterior proprietária soubesse que o arrendatário tinha falecido. Perguntando o quesito 1º se os recibos de renda eram emitidos em nome do falecido arrendatário, que a então senhoria e proprietária supunha vivo, foi-lhe dada a resposta constante do ponto 5. da matéria de facto. Ora, da circunstância de se não ter provado que, para além de inícios de 1993, a anterior proprietária supusesse que o arrendatário estava vivo, não se pode ter por demonstrado que ela soubesse que ele tinha falecido. Aliás, a utilização da expressão “pelo menos” na resposta restritiva que foi dada ao quesito significa, até, que a não prova relativamente ao período posterior ao início de 1993 resulta de dúvidas sobre a suposição. Por outro lado, as cartas dirigidas à ré e acima mencionadas não permitem afirmar que a anterior proprietária tinha a certeza do falecimento do arrendatário. Tais cartas permitem apenas e com segurança afirmar que ela admitia como hipótese aquele falecimento e que, por via da certidão de óbito, o pretendia confirmar.
Resultou provado que a anterior proprietária nunca emitiu um recibo de renda em nome da ré e que os recibos eram emitidos em nome do arrendatário. Desconhece-se até quando estes recibos terão sido emitidos, dado que nem um foi junto aos autos. Também os autores nunca emitiram recibos de renda.
Tendo a ré alegado que sempre efectuara o depósito do valor da renda e que, desde há pelo menos dez anos, o fazia na conta nº da Caixa Geral de Depósitos, apenas logrou provar o que consta do ponto 10. da matéria de facto.
A admitir que a conta nº da Caixa Geral de Depósitos é, efectivamente, da titularidade da anterior proprietária (o talão de depósito em numerário que constitui fls. 60 acha-se preenchido pela pessoa depositante), não pode concluir-se que o crédito da quantia de 2.120$00 naquela conta, na data de 7.5.01 (caso o Banco tenha creditado a conta na mesma data do depósito), tenha chegado imediatamente ao conhecimento da anterior proprietária. Com efeito, seria necessário saber quando consultou aquela os movimentos da sua conta ou quando recebeu o respectivo extracto. Acresce que em nenhum desses casos é dado a conhecer ao titular da conta a identidade do depositante e a que realidade respeita a quantia depositada, pelo que seria necessário demonstrar quando se inteirou a mesma da origem da quantia creditada na sua conta bancária. Importa, ainda salientar que a anterior proprietária vendeu o prédio aos autores por escritura pública de 28.5.01.
Ao alegado pagamento da renda da loja pela ré e eventual correspectivo recebimento pela anterior proprietária não pode, assim, ser atribuído significado minimamente concludente.
No que toca ao depósito de fls. 61, verifica-se ter sido feito à ordem do Tribunal de Lisboa, por motivo de recusa de recebimento da renda e em momento posterior à citação para esta acção, sendo certo que se demonstrou que os autores não cobraram rendas.
À circunstância de a renda da loja ter sido actualizada, pelo menos até 1998, através de cartas endereçadas ao arrendatário, desacompanhada da certeza de que a anterior proprietária tinha conhecimento do falecimento do arrendatário, não pode ser atribuído significado no sentido do reconhecimento da qualidade de arrendatária da ré, de anuência ou consentimento à ocupação da loja.
Em suma:
não é possível afirmar que a anterior proprietária sabia ser titular do direito de reivindicar a loja;
não faz sentido atribuir significado ao não exercício de um direito cujo titular desconhece ter;
não houve qualquer conduta da anterior proprietária que – conjugado com aquele não exercício - pudesse alicerçar a convicção da ré de que a loja não seria objecto de reivindicação.

Havemos, pois, de concluir que, ao reivindicar a loja em causa, os autores não excederam manifestamente os limites impostos pela boa fé, impondo-se a procedência do seu pedido reivindicatório, de acordo com a análise dos respectivos pressupostos constante da sentença recorrida.

II - A questão que, consequentemente, importa agora analisar é a da indemnização peticionada pelos autores pela ocupação ilícita que a ré vem fazendo da loja.
A este propósito, alegaram os autores que a ocupação do imóvel os tem impedido de o utilizar, “o que lhes causa um prejuízo patrimonial, ainda não quantificável, pelo que os ora Autores deverão ser indemnizados em montante a liquidar em execução de sentença”.
No quesito 3º perguntava-se: “A ocupação do imóvel em causa pelos RR tem impedido os AA de o utilizarem, causando-lhe um prejuízo patrimonial?”. E tal quesito mereceu a resposta que corresponde ao ponto 7. da matéria de facto.
Ora, tal facto é insuficiente para se concluir pela existência de dano, pressuposto essencial da obrigação de indemnização, ainda que a liquidar em incidente posterior.
Com efeito, haveriam os autores de ter alegado consistentemente os seus prejuízos, explicando que haviam comprado o prédio para o revender (a título de investimento financeiro, como referiram as testemunhas em cujos depoimentos o tribunal se baseou) e que o teriam podido, em concreto, alienar caso não estivesse ocupado pela ré (no fundo que receberam propostas de compra de valor superior ao preço que eles próprios pagaram, propostas que só não se concretizaram pelo invocado motivo, como referiram as testemunhas em cujos depoimentos o tribunal se alicerçou). Tendo optado por alegar, conclusivamente, a existência de prejuízos patrimoniais, os autores não lograram demonstrar um dos requisitos essenciais do seu direito a indemnização (artigo 483º nº 1 do Cód. Civ.).
E, sem a prova de que sofreram danos, não há que relegar para ulterior liquidação a fixação do respectivo montante indemnizatório (artigo 661º nº 2 do Cód. Proc. Civ.). Neste sentido, e a título meramente exemplificativo, Ac. STJ de 7.12.05, in http://www.dgsi.pt.JSTJ000 Proc. nº 05A3397 e Ac. STJ de 24.10.06, in http://JSTJ000 Proc. nº 06A1858.
Improcede, pois, o pedido de condenação no pagamento de indemnização.
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Por todo o exposto, acordamos em julgar parcialmente procedente a apelação e, consequentemente:
A) Revogamos a decisão recorrida na parte em que absolve a ré do pedido de restituição da loja, condenando-a e ao interveniente a restituírem-na de imediato aos autores, livre de pessoas e bens;
B) Mantemos, no mais a decisão recorrida.
Custas da acção, em ambas as instâncias, por autores e ré/interveniente, na proporção de 3/10 para os primeiros e 7/10 para os segundos.
Lisboa, 15 de Maio de 2008
Maria da Graça Araújo
José Eduardo Sapateiro
Maria Teresa Soares