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SEQUESTRO
BEM JURÍDICO PROTEGIDO
Sumário
1.O bem jurídico protegido pelo tipo legal do crime de sequestro é a liberdade de locomoção ou seja a liberdade física de mudar de lugar, de se deslocar de um sítio para outro. 2. Não perdendo de vista o princípio da intervenção mínima do Direito Penal, a conduta dos arguidos que, no contexto factual concreto dos autos, impediram o ofendido de retirar e circular com o carro, não é susceptível de preencher o crime de sequestro já que lhe não foi retirado o poder de se movimentar e de abandonar o local por outros meios, o que, no caso, era possível.
Texto Integral
Acordam, em conferência, na 5ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:
1. No processo de inquérito n.º 471/02.0 GDSNT do 3º Juízo Criminal de Sintra foi proferido despacho que, no seguimento da instrução realizada a requerimento do assistente (A), perante a decisão de arquivamento do inquérito do MºPº, veio a pronunciar os arguidos (B) e (C) pelo crime de sequestro p.p. pelo art.º 158º, n.º1 CP.
No requerimento de abertura de instrução, o assistente requerera que os arguidos fossem pronunciados pelo crime de sequestro.
Inconformado com a decisão de pronúncia, interpôs recurso o MºP, recurso que motivou com as conclusões: A) Em suma, o que é alegado pelo assistente e que está em causa nos presentes autos, é a circunstância de alegadamente o ofendido, ora assistente, ter ficado com o veículo de sua propriedade, imobilizado entre dois veículos conduzidos pelos ora arguidos, estando impedido de circular livremente na via pública, durante mais de meia hora; B) Comete o crime de sequestro, previsto e punível pelo artigo 158º, n.º 1, do Código Penal quem detiver, prender, mantiver presa ou detida outra pessoa ou de qualquer forma a privar da liberdade; C) O bem jurídico protegido é a liberdade de locomoção, ou seja, a liberdade física de mudar de lugar, a possibilidade de se deslocar de um local para outro, ou dito de outra forma, a conduta pelo tipo de sequestro consiste me privar outra pessoa da liberdade de se deslocar, da liberdade de mudar de lugar;[1] D) De forma diversa do que sucede no crime de coacção, onde poderá existir o objectivo de afectação da liberdade de movimentos, impedindo alguém de dirigir-se para determinado local ou constrangendo a abandonar determinado local, já, diferentemente, no crime de sequestro não se trata de uma mera restrição da liberdade de movimentos, mas da sua (total) privação;[2] E) O assistente poderia ter saído do local sem ser através da utilização do veículo de sua pertença, nomeadamente, apeado, pelo que, em nossa opinião, não se pode falar em privação total de movimentos. F) Assim, em termos teóricos, poder-se-ia equacionar se não estaríamos antes perante a eventual prática de um crime de coacção; G) Porém, entende-se que, também relativamente a este ilícito, não se encontra suficientemente indiciada a sua prática; H) Perfilha-se entendimento, segundo o qual não existem indícios suficientes nos autos que permitam imputar aos ora arguidos a prática do ilícito sequestro. Nestes termos, por tudo o que fica exposto, deverá revogar-se a decisão instrutória recorrida, devendo ser proferido despacho de não pronúncia em relação aos arguidos. É este o entendimento que perfilhamos.
O assistente respondeu ao recurso pugnando pela sua improcedência .
Admitido o recurso e remetido a esta Relação, foi emitido parecer pela Exm.ª Magistrada do MºPº secundando a posição do MºPº na 1ª instância.
2. O objecto do recurso reporta-se unicamente à determinação, perante os factos indiciados recolhidos no inquérito e instrução, se estará preenchido o crime de sequestro pelo qual os arguidos foram pronunciados.
2.1.
Resulta dos autos que :
O Ministério Público proferiu despacho de arquivamento, por considerar, em síntese, que não foram recolhidos indícios suficientes da prática, pelos arguidos (C) e (B), dos crimes de entrada em lugar vedado ao público, dano, furto e ameaça.
O assistente requereu a abertura de instrução, solicitando, a final, a pronúncia dos arguidos, pela prática de um crime de sequestro, p. e p. pelo artigo 158º nº 1 do CP, invocando, para tanto, a prova indiciária carreada para os autos, e excepcionando a nulidade do inquérito, por insuficiência, ao abrigo do disposto no artigo 120º nºs 2 al. d) e nº 3 al. c) do CP.
É o seguinte o teor do despacho recorrido : (…) “Vejamos, pois, se os elementos indiciários constantes dos autos, apreciados à luz das regras da experiência comum, justificam a sujeição dos arguidos a julgamento pela prática do crime que lhes é imputado pelo assistente ou, ao invés, não suportam, por insuficientes, a sua futura e provável condenação em sede de julgamento. Ora, apreciada a prova indiciária carreada até este momento, à luz das regras da experiência comum e do juízo de razoabilidade que deve reger a sua avaliação, é de concluir pela suficiência dos indícios. Com efeito, e pese embora a versão apresentada pelos arguidos, a verdade é que resulta, desde logo, dos depoimentos prestados pela testemunha (PG), quer em fase de inquérito quer na presente fase instrutória, a comprovação de que o assistente foi impedido de se movimentar, retirando o seu veiculo automóvel do local onde estava, pois que o mesmo estava bloqueado por dois veículos automóveis, pertença dos arguidos. No que diz respeito ao carácter deliberado desse bloqueio a referida testemunha, com conhecimento directo dos factos pois encontrava-se no local à data da sua ocorrência, afirmou expressamente, quando questionado, que “ouviu” o Sr. (A) (assistente) pedir ao referido indivíduo para retirar os veículos pois queria retirar o seu carro dali, ao que aquele se recusou, de forma bastante agressiva. Esclareceu ainda, quando lhe foi perguntado a razão de tal atitude, que tal se deveu, a seu ver, ao facto dos arguidos não quererem que os trabalhos continuassem, por considerarem que o caminho em causa não poderia ser fechado, tendo inclusive referido ter ouvido o arguido usar expressões como “no” e “stop”. Ora, perante o contexto de conflito aberto, originado por trabalhos que o assistente se encontrava a desenvolver no local dos factos, contra a vontade dos arguidos, entre outros moradores do local – o que está claramente patenteado nos autos e resultou, de certo modo das declarações dos próprios arguidos – a tese do carácter fortuito desse bloqueio não merece, em nosso entender, credibilidade. Tudo indica, ao invés, que foi intenção deliberada dos arguidos impedir a continuação dos trabalhos, coarctando ao assistente a possibilidade de se movimentar. É verdade que, conforme sustentado pelo Mº.Pº nas Doutas alegações, o assistente tinha ou teve a possibilidade de sair do local, de forma apeada. Sucede, contudo, que o crime de sequestro tutela a liberdade de locomoção ou ambulatória, sendo que a privação da liberdade pode ser provocada “de qualquer forma” (crime de execução não vinculada). E a verdade é que, na apreciação casuística dos factos à luz da norma penal tipificadora e do bem que a mesma pretende tutelar, o que é decisivo é a adequação do meio, no caso concreto, para afectar, de forma penalmente relevante, a liberdade que qualquer cidadão tem de se deslocar de um local para o outro, ou seja, a sua liberdade ambulatória. A essa luz, parece-nos que impedir deliberadamente uma pessoa, que se deslocou até determinado local na sua viatura automóvel, de sair do local para onde se deslocou, negando-lhe a possibilidade de o fazer por esse meio, bloqueando o seu carro com duas viaturas, durante meia hora, apesar dos pedidos efectuados pelo ofendido, que só veio a conseguir sair do local no seu automóvel mais tarde, com a intervenção da GNR, é uma forma adequada de afectar, de forma relevante, o bem protegido pela norma penal em causa. Sobretudo considerando, mais uma vez, o clima de conflito aberto existente, entre arguidos, por um lado, e assistente, por outro. É que, na verdade, o assistente viu a sua liberdade de locomoção manietada por força da actuação deliberada dos arguidos. Também por essa razão considero que se justifica, no plano de direito, a sua sujeição a julgamento. Pelo exposto, decido pronunciar os arguidos (C) e (B) pela prática, em co-autoria material, de um crime de sequestro, p. e p. pelo artigo 158º nº 1 do CP, pelas razões de facto e de direito invocadas no RAI, para as quais expressamente se remete – artigo 307º nº 1 do CPP. Sem custas. Notifique.”
3.
A instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento (art.º 286º CPP).
Tal decisão partirá da análise crítica dos indícios constantes do inquérito e da instrução realizada, com base nos elementos probatórios recolhidos.
Nesta fase processual, o que importa é definir quais os juízos indiciários que se podem, desde já, formular sendo certo que, para esse efeito, bastarão juízos de avaliação diferentes dos necessários em sede de julgamento.
Com base nos elementos probatórios recolhidos ao longo do inquérito e da instrução será que tal avaliação permite concluir que existe o grau de "possibilidade razoável" de aplicação aos arguidos de uma sanção penal em sede de julgamento, perspectiva configurada para a apreciação da suficiência de indícios (art.º 283º do C.P.P.) ?.
Nos termos do art. 308º, n.º 1, do C.P.P., “Se, até ao encerramento da instrução, tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança o juiz, por despacho, pronuncia o arguido pelos factos respectivos; caso contrário, profere despacho de não pronúncia”.
Por sua vez, o art.283, n.º 2, do mesmo diploma – aplicável “ex vi” do disposto no n.º 2 do predito art. 308º - estatui que “Consideram-se suficientes os indícios sempre que deles resultar uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou uma medida de segurança”.
"Indiciação suficiente" é, no dizer do acórdão do S.T.J. de 10/12/92, no processo n.º 427747, a verificação suficiente de um conjunto de factos que, relacionados e conjugados, componham a convicção de que, com a discussão ampla em julgamento, se poderão vir a provar - com um juízo de certeza e não de mera probabilidade - os elementos constitutivos da infracção por que os agentes virão a responder.
Ou como refere Figueiredo Dias, in “Direito Processual Penal”, pág. 133, “os indícios só são suficientes e a prova bastante quando, já em face deles, seja de considerar altamente possível a futura condenação do acusado ou quando esta seja mais provável do que a sua absolvição”.
Vejamos o que resulta indiciariamente provado nos autos, construindo aqui a base indiciária resultante do processo e sobre a qual assentará necessariamente uma decisão de pronúncia e/ou não pronúncia e que não se mostra feita, pelo menos de forma clara na decisão de pronúncia que não contém a descrição autónoma do elenco de factos imputados aos arguidos e que constituiriam o objecto do processo em fase de julgamento :
No dia 25.09.2002, pelas 17h30, na Travessa das Rolas, Alto do Rodízio, Colares, o veículo automóvel conduzido pelo assistente foi bloqueado por dois jipes (um Land Rover matrícula (QI-XX-XX) e outro Range Rover de matrícula (XX-XX-JE), conduzidos respectivamente pela arguida (C) e pelo arguido (B), que fizeram parar, um dos veículos atrás e o outro à frente do carro do assistente, impedindo-o de fazer circular e deslocar do local, durante cerca de meia hora, o carro que este conduzia.
Apenas mediante a intervenção da patrulha da GNR é que os arguidos retiraram os seus carros permitindo a passagem do veículo do assistente e da retro-escavadora, que o acompanhava no local, para realizar trabalhos na Travessa das Rolas, no sentido de ser fechado tal caminho.
Os arguidos agiram com intenção de impedir o assistente de circular no local com o seu carro e de impedirem a realização ou continuação de trabalhos no local numcontexto de conflito aberto, originado por trabalhos que o assistente se encontrava a desenvolver no local dos factos, contra a vontade dos arguidos e de outros moradores do local por considerarem que o caminho em causa não poderia ser fechado, como o assistente pretendia levar a cabo.
Comete o crime de sequestro, previsto e punível pelo artigo 158º, n.º 1, do Código Penal quem “detiver, prender, mantiver presa ou detida outra pessoa ou de qualquer forma a privar da liberdade”.
Conforme refere o recorrente citando Taipas de Carvalho “O bem jurídico protegido é a liberdade de locomoção, ou seja, a liberdade física de mudar de lugar, a possibilidade de se deslocar de um local para outro, ou dito de outra forma, a conduta pelo tipo de sequestro consiste me privar outra pessoa da liberdade de se deslocar, da liberdade de mudar de lugar.[3] “Mais se dirá que e, diferentemente do que sucede no crime de coacção, onde poderá existir o objectivo de afectação da liberdade de movimentos, impedindo alguém de dirigir-se para determinado local ou constrangendo a abandonar determinado local, já, diferentemente, no crime de sequestro não se trata de uma mera restrição da liberdade de movimentos, mas da sua (total) privação.[4]
Também de acordo com o mesmo Autor “ O tipo de crime de sequestro não visa a tutela da liberdade de permanecer em determinado lugar ou da liberdade de aceder ou dirigir-se a determinado lugar; o constranger alguém a que abandone determinado lugar ou o impedir alguém de se dirigir a determinado lugar não é subsumível ao tipo de sequestro mas sim so tipo de coacção (constrangimento ou impedimento estes que obviamente poderão ou não justificar-se …) “.
Efectivamente não resulta indiciado que o assistente tivesse sido impedido de sair do local de outra forma, que não através da utilização do veículo que conduzia, nomeadamente apeado, ou que, no circunstancialismo concreto em que se verificaram os factos, o bloqueio do seu veículo se tivesse traduzido na prática na impossibilidade de o fazer pelo que não se pode falar em privação total de movimentos.
A constrição dos seus movimentos produzida pela actuação dos arguidos determinou o assistente a uma omissão, fazendo-o suportar uma certa forma de inactividade, diferente da que adoptaria caso se pudesse ter livremente autodeterminado, em lugar de ter sido determinado em função da actuação dos arguidos.
No caso foi impedido de circular livremente usando o seu carro, mas não foi privado da liberdade, tal como ela é tutelada pelo tipo legal do crime de sequestro.
Impedir alguém de circular de automóvel sem lhe retirar a liberdade física de se movimentar ou de o fazer de modo diferente do pretendido, não integra o referido crime.
O assistente não foi privado da liberdade de se movimentar; foi privado da possibilidade de circular com o veículo.
Sendo o bem jurídico protegido pelo tipo legal, a liberdade de locomoção ou seja a liberdade física ou corpórea de mudar de lugar, de se deslocar de um sítio para outro mas, não perdendo de vista o princípio da intervenção mínima do Direito Penal, não poderemos deixar de concluir que a conduta dos arguidos nessa perspectiva não atinge de forma suficientemente consistente os valores fundamentais tutelados pela norma por forma a merecer a intervenção do Direito Penal.
Questão idêntica poderá colocar-se na perspectiva do eventual preenchimento do crime de coacção, p.p. pelo art.º 154º CP.
O bem jurídico protegido por este é a liberdade de decisão e de acção ou de omissão. No caso, está indiciariamente provado, nomeadamente pelo depoimento da testemunha referida no despacho de pronúncia, que o assistente foi constrangido pelos arguidos a não circular com o seu veículo com total liberdade de movimentos, compatível com a sua vontade livre.
Haverá que apurar se houve violência exercida voluntariamente pelos arguidos como forma de produzir tal constrangimento e que se revista das características essenciais que justifiquem a necessidade de intervenção do Direito Penal que apenas é chamado se foram atingidos, de forma minimamente relevante, os interesses jurídicos protegidos pela norma.
O uso dos veículos automóveis pelos dois arguidos, da forma como foram usados, constitui ostentação de força e superioridade físicas, adequadas a constrangerem o ofendido a abster-se de circular com o seu carro, eliminando a capacidade de decisão e de acção ou de resistência da vítima sendo susceptível de integrar a violência numa perspectiva ampla do conceito.
Como tal, a factualidade indiciariamente apurada e descrita no requerimento de abertura de instrução é susceptível de configurar o crime de coacção p.p. pelo art.º 154º CP.
4.
Pelo exposto, acordam os juízes nesta secção em negar provimento ao recurso mantendo a decisão recorrida de pronúncia, pelos factos dela constantes mas pelo crime de coacção supra mencionado.
Sem custas.
Lisboa, 27/05/08
Texto elaborado, revisto e assinado pela relatora Filomena Lima e assinado pela Juíza Desembargada Adjunta Ana Sampaio Sebastião.
________________________________________________ [1] Américo Taipa de Carvalho, in Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, tomo I, Coimbra Editora, 1999, pág. 406. [2] Ob. cit. pág. 407. [3] Américo Taipa de Carvalho, in Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, tomo I, Coimbra Editora, 1999, pág. 406. [4] Ob. cit. pág. 407.