DIREITO DE TAPAGEM
ABUSO DE DIREITO
Sumário

I – O art.1356º, do C.Civil, indica alguns meios de vedação, mas apenas a título exemplificativo, já que, apesar de se referir aos muros, às valas e às sebes, prevê qualquer outro modo de tapar o prédio, podendo ser, designadamente, tabiques de madeira, vedações de arame, grades de ferro ou chapas metálicas.

II – A distância a ter em consideração, nos termos do art.1360º, nº1, do C.Civil, é apenas a de metro e meio, não havendo que atender à distância de 3 metros referida no alvará de loteamento, que apenas visa regular restrições por motivos de ordem estética e urbanística.

III – A colocação pelos réus de uma chapa com 6 metros de altura, por 5 metros de largura, no seu terreno, mesmo em frente à varanda dos autores, sita no prédio vizinho, abrangendo-a por completo em toda a altura e largura, para alegadamente impedir a constituição de servidão de vistas, implica exercício do direito de propriedade em termos clamorosamente ofensivos do sentimento jurídico socialmente dominante, traduzindo excesso manifesto dos limites impostos pela boa fé e pelo fim social ou económico desse direito, o que torna ilegítimo o seu exercício, por abusivo, nos termos do art.334º, do C.Civil, a justificar a condenação dos réus na remoção da referida chapa.
(RN)

Texto Integral

TEXTO INTEGRAL:



Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa:

1 – Relatório.
No Tribunal Judicial da Comarca de Almada, A… e esposa M… instauraram acção com processo ordinário contra Ma… e esposa O…, alegando que autores e réus adquiriram, por compra, terrenos destinados à construção de moradias, que efectivamente construíram em terrenos contíguos.
Mais alegam que os réus vedaram toda a sua propriedade, construindo um muro com um metro de altura, que dista 1,75 metros da moradia dos autores, composta de rés do chão e 1º andar, onde foi aberta uma varanda, que dista 1,65 metros daquele muro.
Alegam, ainda, que, posteriormente, os réus colocaram sobre o referido muro uma rede com um metro de altura e, mais tarde, na divisória entre a propriedade dos autores e dos réus, uma chapa metálica com 2 metros de altura, e, ainda, uma outra chapa com 6 metros de altura por 5 de largo, mesmo em frente à varanda dos autores, ancorando-a na sua propriedade.
Alegam, também, que esta chapa impede os autores de receberem em sua casa a luz do sol e de respirarem ar puro, o que lhes causou danos materiais e morais, que avaliam no montante global de € 52.875,00.
Concluem, assim, que deverão os réus retirar imediatamente e à sua própria custa as chapas metálicas em causa, devolvendo aos autores a luz do sol e o ar puro que são parte integrante da propriedade dos mesmos, bem como, pagar aos autores uma indemnização pelos danos causados, no valor total de € 52.875,00.
Os réus contestaram, alegando que, nos termos do loteamento, os interessados só poderiam abrir janelas para o terreno contíguo estando a edificação a, pelo menos, 3 metros do limite lateral do lote, e que os autores construíram a varanda sem o consentimento dos réus.
Mais alegam que colocaram a chapa em frente àquela varanda movidos por estado de necessidade de impedirem a constituição de servidão de vistas para o seu lote, o que reduziria o seu valor.
Concluem, deste modo, pela improcedência da acção.
Os autores replicaram, concluindo como na petição e ampliando a causa de pedir e o pedido, pretendendo ver declarada a aquisição de vistas com fundamento em usucapião.
Os réus pronunciaram-se pela improcedência da referida ampliação, a qual foi admitida no despacho saneador.
Neste, procedeu-se ainda à selecção da matéria de facto relevante considerada assente e da que passou a constituir a base instrutória da causa.
Realizada a audiência de discussão e julgamento, foi, após decisão da matéria de facto, proferida sentença, julgando a acção improcedente.
Inconformados, os autores interpuseram recurso de apelação daquela sentença.
Produzidas as alegações e colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
2 – Fundamentos.
2.1. Na sentença recorrida consideraram-se provados os seguintes factos:
Em escritura pública celebrada a 17.07.1980, Mar… e marido, J…, declararam vender ao R., casado no regime da comunhão geral de bens com O…, que declarou comprar, pelo preço, já recebido, de esc.: 60.000$00, 3/255,55 avos indivisos, do prédio rústico situado no…, freguesia da…, concelho de…, descrito na Conservatória do Registo Predial de…, sob o nº…, e inscrito na matriz predial rústica sob o artigo … da Secção …(alínea A) dos factos assentes).
Na mesma escritura, Mar… e marido, J…, declararam vender ao A., casado no regime da comunhão geral de bens com a A., que declarou comprar, pelo preço, já recebido, de esc.: 20.000$00, 1/255,55 avos indivisos, do mesmo prédio aludido em A) (alínea B) dos factos assentes).
As aquisições aludidas em A) e B) destinavam-se à construção de moradias, que os AA. e os RR. efectuaram entre 1980 e 1982 (alínea C) dos factos assentes).
Está inscrita, sob G-8, Ap…., a aquisição, pelos AA., por divisão, do lote …, sito na…, …, …, o qual confronta a Norte com o lote…, a Sul com o lote…, a Nascente com o lote…, e a Poente com a Rua…, constituindo terreno para construção com a área de 315,33 m2, descrito na … Conservatória do Registo Predial de …sob o nº…., da freguesia da …(alínea D) dos factos assentes).
Pelo Av. 1 à descrição aludida em D), Ap…., foi consignado que o prédio é urbano, sendo composto por casa de rés-do-chão, com sótão, anexo e logradouro, com a área coberta de 71,20 m2, correspondendo 26,24 m2 ao anexo, e com a área descoberta de 217,89 m2, correspondendo ao artigo …da matriz predial urbana (alínea E) dos factos assentes).
Está inscrito na matriz predial urbana da freguesia da…, concelho de …, sob o artigo…, o lote…do prédio sito na Rua…, zona …, …, na…, descrito como moradia unifamiliar com anexo, em alvenaria, coberta a telha, composto por rés-do-chão, com 3 divisões, cozinha, casa-de-banho e corredor, por sótão para arrumos, amplo, e por anexo para garagem, constando como titular inscrito o A. (alínea F) dos factos assentes).
No ano de 1982 os RR. vedaram o seu terreno, incluindo junto à Estrada (Rua …) e junto da extrema do terreno dos AA. (alínea G) dos factos assentes).
A referida vedação e parede divisória foi construída em tijolo, coberto por cimento, e tem 1m de altura (alínea H) dos factos assentes).
A largura do muro é de 7 a 10 cm (alínea I) dos factos assentes).
Na moradia foi aberta uma varanda interior do lado esquerdo (quando se está voltado no sentido da Rua do …., ou entrada), que fica ao nível do piso superior da moradia (alínea J) dos factos assentes).
Depois da construção da parede divisória, a toda a volta do terreno dos RR., incluindo sobre a parede divisória, os RR. colocaram uma rede com 1m de altura, perfazendo o muro e a rede 2m (alínea K) dos factos assentes).
Os RR. colocaram, a toda a altura da mesma rede, e junto a esta, uma chapa metálica com 2m de altura (alínea L) dos factos assentes).
Os RR. colocaram uma chapa com 6m de altura por 5m de largura, mesmo em frente à varanda dos AA. (alínea M) dos factos assentes).
A chapa atinge a altura do tecto da varanda referida em J), abrangendo-a por completo em toda a altura e largura (alínea N) dos factos assentes).
Está inscrita, sob G-1, Ap…., a aquisição, a favor dos RR., por divisão, do lote…, sito na Rua…, …, …, o qual confronta a Norte com o lote 17, a Sul com o lote …, a Nascente com o lote …e a Poente com a Rua…, constituindo terreno para construção com a área de 355,81 m2, descrito na …Conservatória do Registo Predial de…, sob o nº…, da freguesia da…, e que foi desanexado do nº…, da freguesia da …(alínea O) dos factos assentes).
A varanda dista 1,60m do muro dos Réus (resposta ao artigo 2º da base instrutória).
Os Réus utilizam o terreno em volta da sua moradia (resposta ao artigo 5º da base instrutória).
Os muros que dividem e circundam os terrenos na zona têm, em regra, 1m de altura (resposta ao artigo 10º da base instrutória).
Os Autores deslocaram-se por diversas vezes à Câmara Municipal de …e ao escritório da sua mandatária (resposta ao artigo 16º da base instrutória).
Os AA. gastaram € 375,00 com a pintura das paredes interiores do lado da casa voltado para a chapa (resposta ao artigo 18º da base instrutória).
A casa dos AA. tinha uma escada exterior para o piso superior (resposta ao artigo 22º da base instrutória).
A parede da casa dos AA. está hoje a 1,60 m do muro dos RR. (resposta ao artigo 23º da base instrutória).
Antes, com a escada exterior, a casa ficava mais próxima do muro (resposta ao artigo 24º da base instrutória).
Os RR. sempre disseram que não concederiam autorização para a legalização da janela (resposta ao artigo 25º da base instrutória).
Acrescentando que não se oporiam à colocação de vidro fosco ou martelado, que impedisse as vistas para o terreno vizinho (resposta ao artigo 26º da base instrutória).
Ao tempo da construção da varanda os RR. viviam na Bélgica (resposta ao artigo 27º da base instrutória).
Quando chegaram e se depararam com a varanda, os RR. protestaram quanto à sua localização (resposta ao artigo 28º da base instrutória).
Os RR. colocaram a chapa para impedirem a constituição de servidão de vistas para o seu terreno, reduzindo o seu valor (resposta ao artigo 30º da base instrutória).
2.2. Os recorrentes rematam as suas alegações com as seguintes conclusões:
1ª - A decisão da matéria de facto deve ser alterada nos pontos concretamente indicados pelos apelantes e em conformidade com a prova documental constante dos autos e dos factos assentes.
2ª - A douta decisão sob recurso é nula porque se apresenta em contradição com os fundamentos invocados – art.668º, nº1, al.c), do CC.
3ª - Ainda porque não especifica os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão – art.668º, nº1, al.b), do CC.
4ª - Tal decisão viola os arts.9º, 12º, 1305º, 1360º e 1362º, do CC, e, ainda, os arts.65º, nº1 e 66º, nº1, da CRP.
Nestes termos, deve o presente recurso ser julgado procedente por provado e, em consequência, a douta sentença ser declarada nula e substituída por outra que condene os apelados à remoção da chapa e ao pagamento de uma indemnização nos termos peticionados.
Posteriormente, os recorrentes completaram aquelas conclusões nos seguintes termos:
1° - A douta decisão é nula, pois, está em contradição com factos considerados provados, constantes do processo, de documentos nele existentes e factos que
constam como fundamento da decisão, nomeadamente, relativos :
- à distancia da parede , da varanda e da janela da moradia dos Apelantes com o muro (1,60 m + 0,85 m ) = 2,45 m;
-à data de construção e conclusão da moradia ( 1982 );
- à altura dos muros na zona que é de l m;
- à proximidade entre moradias na zona e em concreto entre a construção dos apelados e as construções e lotes de outros vizinhos;
- ao consequente alcance de vistas por parte de tais vizinhos e transeuntes sobre a propriedade dos Apelados , idêntico ou superior aquele que os Apelantes alcançam
sobre a propriedade dos Apelados - Art° 668°, n° 1 , C) do CC;
- à existência de prejuízos para os Apelantes e nexo de causalidade entre estes e a colocação da chapa - 668°, n°l , c) CC.
2° - Tal decisão pronuncia-se sobre questões de que não pode tomar conhecimento e não se pronuncia sobre outras devendo fazê-lo ( violando as regras da interpretação legal , da aplicação da lei no tempo , das leis que regulam os limites do direito de propriedade, da própria Constituição da República Portuguesa e até do Plano
Director Municipal de …( PDM… )- Art° 668°, n° l d) CC :
a) - No âmbito da Interpretação legal e de acordo com o Art. 9° do CC , a douta decisão, deveria ter atendido à unidade do sistema jurídico : neste contexto, e atendendo a que as distancias entre parede, varanda, e janela da moradia dos Apelantes e o muro em causa, é superior a 1.50 cm, a douta sentença, deveria pronunciar-se sobre tais factos, os quais caem sob a alçada_do Art0 1360° do CC, aplicável ao presente caso e não soba alçada do Art° 1362 do CC, só aplicável a casos em que a distância é inferior a 1.50;
b) - O mesmo art° 9° do CC, manda atender às circunstâncias (inclusive económicas e sociais) em que a lei foi elaborada e às condições específicas do tempo em que é aplicada: no caso vertente, teria que ser tido em conta, o facto de a construção dos
Apelantes em causa, estar integrada num aglomerado de construções de génese ilegal, de princípios dos anos 80, levadas a cabo por pessoas de baixa condição económica e social;
c) - Neste contexto, e atendendo a que nos termos do Art° 12°, n° l do CC « a lei, só dispõe para o futuro ...» , a disposição do Art. 52° do Alvará n° 307/94 , que alude a 3
m de distância entre propriedades confinantes , invocada nos autos pelos Apelados nos
autos e em que a sentença sob recurso se baseia, não é aplicável ao caso vertente, (desde logo porque os Apelantes não dispõem de espaço, nem de condições económicas,
que lhes permitam fazer obras por forma a alterar o que existe);
c) - Consistindo tal disposição do alvará citado, numa NORMA JURÍDICA que REGULA O INTERESSE PÚBLICO e NÃO qualquer INTERESSE PARTICULAR ACTUAL dos Apelados, sendo que não regula seguramente qualquer direito dos Apelados a colocar ou manter a chapa sobre o muro, consistindo tal acto dos Apelados num claro ABUSO DO SEU DIREITO DE PROPRIEDADE - Art° 334° do CC;
d) - O processo de legalização da moradia dos Apelantes, integrou-se no conjunto dos processos de legalização tendo sido conduzido pela Comissão de Urbanização que para o efeito se constituiu na altura na zona, tendo sido sujeita às devidas regras de
publicidade e de Fiscalização ;
e) - Se não obstante, os Apelados, que também estiveram representados pela mesma comissão, se pretendiam opor-se á legalização da construção dos Apelantes, tal oposição teria de ter lugar, através da impugnação do acto de aprovação da Licença de construção n° …de 31 de Julho de 1995 e de Utilização de Edificação n° …de 26 de Outubro de 1998 e da instauração das competentes acções, o que os Apelados não fizeram;
f) - A colocação e manutenção da chapa sobre o muro, representa uma aberração estética que chama à atenção de vizinhos, transeuntes e turistas que choca com a paisagem da zona com seus muros de l m de altura e ofende a paisagem da zona, direitos, liberdades e garantias dos Apelantes e preceitos constitucionais em vigor;
g) - Dispõe o Art° 65° n° l da CRP « Todos têm direito a uma habitação de dimensão adequada , para si e para a sua família ...»;
h) - E o Art° 66, n° l do mesmo diploma legal: « Todos têm direito a um ambiente de vida humano e ecologicamente equilibrado e o dever de o defender »;
i) - As autoridades camarárias basearam a sua decisão de legalização da construção dos Apelantes na conjugação criteriosa e ponderada de todos os preceitos supra que são os que informam a unidade do sistema jurídico a que alude o art0 9° do CC;
j) - 0 próprio plano Director Municipal de …regulado pela Resolução do Conselho de Ministros n° …no qual se inclui a …( Art0 8° al h) ), prevê concretamente, sob a rubrica Alterações e Ampliações no Artº 77°, n° l al e) e no caso concreto da localidade da…, a possibilidade de « aproveitamento do sótão para fins habitacionais ou arrecadação ».
3º - A douta decisão faz, por outro lado, errada interpretação das normas jurídicas que constituem o seu fundamento, quer quanto aos direitos de personalidade, quer quanto à colisão de direitos, quer quanto à figura do abuso de direito:
a) - Direitos da personalidade: são direitos da personalidade, os direitos humanos, também designados como direitos, liberdades e garantias da pessoa humana e do cidadão. Fazem parte de tais direitos, o direito dos indivíduos, a uma habitação de dimensão adequada, para si e para a sua família, devendo tal habitação, dispor de condições de higiene e de salubridade -Art° 65° da CRP;
b) - Pertence igualmente à mesma categoria de direitos, o direito individual dos cidadãos, o direito a um ambiente de vida humano, sadio e ecologicamente equilibrado, existindo um dever funcional de defesa de tal direito -Art°66, n° l da CRP;
c) - O direito das habitações à exposição continuada aos raios solares, e à iluminação e ventilação naturais, pertence pois, à esfera dos direitos da personalidade de seus titulares e só pode ser condicionado no caso vertente nos termos das restrições e limites legais, impostos ao direito de propriedade, previstos inclusive nos Artigos 1305°, 1360° e 334° do CC;
d) - Que no caso se traduzem no direito dos Apelados a construírem, se assim o entenderem, na sua propriedade que confina com os Apelantes, respeitando as distâncias
legais, a altura dos muros na zona, etc;
e) - Não existindo como referido, qualquer direito dos AA à colocação da chapa sobre o muro, não estamos perante um caso colisão de direitos para efeitos do art.332° do CC , mas de puro ABUSO de DIREITO da parte dos Apelados - Art° 334° do CC;
f) - A questão da Colisão de Direitos poderia ser suscitada se estivéssemos perante um caso de distância entre a moradia e o muro de menos de 1,50;
g) - Nesse caso poderíamos falar em colisão de direitos, sendo mesmo assim ainda o direito dos Apelantes, um direito superior ao dos Apelados (já que estes dispõem de
área mais que suficiente para construir se a isso estivessem dispostos ....);
h) - O que os Apelados demonstram não acontecer, sendo manifesto, que a colocação da chapa decorre de pura birra e de maldade extrema dos Apelados;
i) - Pelo que também nesse ponto, a douta decisão deveria ter decidido diversamente e em sentido mais favorável para os Apelantes.
4º - Prejuízos e nexo de causalidade: Constam dos autos juntos pelo Apelantes com a PI, dois documentos de 1999, que mostram diligência dos Apelantes, anteriores a essa data na CM… por causa da chapa; sendo manifesto que os Apelantes
demandaram o tribunal e contrataram a mandatária por causa da chapa; assim, existem
prejuízos e existe nexo de causalidade entre estes e a chapa:
a) - Qualquer pessoa colocada na posição dos Apelantes, que são pessoas de sensibilidade e conhecimentos médios normais dos seus direitos, se sentiria ansiosa e desgostosa por ser obrigada a encarar um artefacto como a chapa em causa: primeiro, porque é manifesto que tal chapa é uma aberração estética, dá nas vistas, suscita comentários; segundo, porque os Apelados nem sequer têm o direito de construir sobre o muro, devendo observar os limites legais; menos direitos terão de colocar a chapa.
2.3. São as seguintes as questões que importa apreciar no presente recurso:
1ª – saber se a decisão do tribunal de 1ª instância sobre a matéria de facto pode, no caso, ser alterada pela Relação, nos termos do art.712º, nº1, do C.P.C.;
2ª – saber se a sentença recorrida é nula, nos termos das als.b), c) e d), do nº1, do art.668º, do mesmo Código;
3ª – saber se a matéria de facto considerada provada justifica a condenação dos recorridos na remoção da chapa em causa e no pagamento da indemnização peticionada.
2.3.1. No que respeita à 1ª questão, não invocam os recorrentes, nas conclusões das suas alegações de recurso, qualquer das als. a), b) ou c), do nº1, do art.712º, do C.P.C., onde se encontram previstos, precisamente, os casos em que a decisão de facto pode ser modificada. Sendo que, por nossa parte, não vemos que, no caso, se verifique qualquer das condições aí aludidas.
Assim, do processo não constam todos os elementos de prova que serviram de base à decisão de facto, já que, foi produzida prova oralmente perante o tribunal de 1ª instância, não tendo ocorrido gravação dos depoimentos prestados (cfr. a al.a)). Por outro lado, os elementos fornecidos pelo processo não impõem decisão diversa, insusceptível de ser destruída por quaisquer outras provas, como seria o caso de aquele tribunal ter desprezado a força probatória de documento que fizesse prova plena de determinado facto e na sentença se tivesse admitido facto oposto, caso em que incumbiria à Relação fazer prevalecer a força probatória do documento (cfr. a al.b)). Por último, os recorrentes não apresentaram documento novo superveniente (cfr. a al.c)).
Haverá, deste modo, que concluir que, no caso, a decisão do tribunal de 1ª instância sobre a matéria de facto não pode ser alterada pela Relação, nos termos do citado art.712º, nº1, por não se verificar qualquer dos requisitos a que aludem as als. a), b) e c), daquele nº1.
2.3.2. Nos termos do art.668º, nº1, al.b), do C.P.C., a sentença é nula quando não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão. Assim, o que a lei considera nulidade é a falta absoluta de motivação, entendendo-se como tal a ausência total de fundamentos de direito e de facto (cfr. Alberto dos Reis, Código de Processo Civil, Anotado, vol.V, pág.140). Ora, é manifesto que na sentença recorrida se indicam os factos tidos como provados e se apontam os fundamentos jurídicos da decisão. Logo, não há que falar em falta de motivação geradora de nulidade.
De harmonia com o disposto na al.c), do nº1, do mesmo artigo, a sentença é igualmente nula quando os fundamentos estejam em oposição com a decisão. O que se compreende, pois que, então, a sentença enferma de vício lógico que a compromete, na medida em que os fundamentos invocados pelo juiz conduziriam logicamente, não ao resultado expresso na decisão, mas a resultado oposto (cfr. Alberto dos Reis, ob.cit., pág.142). No caso dos autos, porém, não se vê que a decisão brigue com os fundamentos, nem os recorrentes, aliás, concretizam o vício lógico em questão, antes parecendo apontar para um erro de julgamento, que, como é bom de ver, não justifica a arguição da nulidade em causa.
Por força da al.d), do nº1, ainda do mesmo artigo, a sentença é nula quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento. Assim, a nulidade da 1ª parte daquela al.d) resulta da infracção do dever imposto na 1ª parte, do nº2, do art.660º, do C.P.C., qual seja, o de resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, exceptuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras. Mas o que importa é que o tribunal decida a questão posta, não lhe incumbindo apreciar todos os fundamentos ou razões em que elas se apoiam para sustentar a sua pretensão. Já a nulidade da 2ª parte da mesma al.d) visa hipótese inversa, estando em correlação com a 2ª parte do citado nº2, do art.660º, que proíbe ao juiz que se ocupe de questões não suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso. Todavia, mais uma vez, os recorrentes confundem eventual erro de julgamento com nulidade. É que, no fundo, o que pretendem é que a decisão recorrida seja substituída por outra que, reconhecendo terem os réus abusado do seu direito de propriedade, os condene na remoção da chapa e no pagamento de uma indemnização. Para o efeito, há que invocar o eventual erro de julgamento, que é espécie diversa da omissão de pronúncia ou da pronúncia indevida, já que é fundamento de revogação da sentença e não de arguição daquelas nulidades, que, no caso, se não verificam. Na verdade, na sentença recorrida considerou-se que os autores não provaram, como lhes competia, factos que indiciem qualquer conduta abusiva por parte dos réus. Mais se considerou que não alegaram factos no sentido da aquisição de servidão de vistas. E, ainda, que não lograram provar os factos dos quais poderia emergir para os réus a obrigação de indemnizar os autores. Foram, assim, resolvidas todas as questões que as partes submeteram à apreciação do tribunal, não se vendo que este se tenha ocupado de questões não suscitadas por elas.
Haverá, pois, que concluir que a sentença recorrida não é nula, nos termos das als. b), c) e d), do nº1, do art.668º, do C.P.C..
2.3.3. Na petição inicial formularam os autores o pedido de condenação dos réus a retirarem as «chapas» metálicas em causa e a pagarem uma indemnização pelos danos causados. Na parte final das suas alegações de recurso, a fls.306, referem que devem os réus ser condenados a removerem a «chapa» e a pagarem uma indemnização nos termos peticionados. Parece, pois, que limitaram o seu recurso à questão da remoção da chapa com 6 metros de altura, por 5 metros de largura, colocada mesmo em frente à sua varanda (cfr. a al.M da matéria de facto assente). Seja como for, sempre se dirá que, em relação à chapa metálica com 2 metros de altura, colocada pelos réus junto ao muro divisório e respectiva rede (als. G, H, K e L da matéria de facto assente), nada impedia que a mesma aí fosse colocada pelos réus, no exercício do seu direito de tapagem ou de vedação, o qual constitui uma das faculdades inerentes ao direito de propriedade, nos termos do disposto no art.1356º, do C.Civil. Sendo que, este artigo indica alguns meios de vedação, mas apenas a título exemplificativo, já que, apesar de se referir aos muros, às valas e às sebes, prevê qualquer outro modo de tapar o prédio, podendo ser, designadamente, tabiques de madeira, vedações de arame, grades de ferro ou chapas metálicas (cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil, Anotado, vol.III, 2ª ed., págs.203 e 204).
No que respeita à chapa colocada pelos réus mesmo em frente à varanda dos autores, abrangendo-a por completo em toda a altura e largura (cfr. as als. M e N da matéria de facto assente), a mesma encontra-se assente sobre o aludido muro divisório e foi aí posta pelos réus para impedirem a constituição de servidão de vistas para o seu terreno (cfr. a resposta ao ponto 30º da base instrutória). Ou seja, aquela chapa não foi utilizada com o intuito de vedação ou tapagem do prédio, mas apenas para impedir a constituição daquela servidão. Isto porque, no entender dos réus, dispondo o alvará de loteamento que os afastamentos mínimos das construções aos limites do lote são de 3 metros, na parte lateral e frontal, tendo os autores aberto uma varanda na sua moradia, à distância de 1,60 metros do muro dos réus, em contravenção do disposto naquele alvará, esse facto poderia importar a constituição de servidão de vistas.
Vejamos.
Nos termos do disposto no art.1360º, nº1, do C.Civil, «O proprietário que no seu prédio levantar edifício ou outra construção não pode abrir nela janelas ou portas que deitem directamente sobre o prédio vizinho sem deixar entre este e cada uma das obras o intervalo de metro e meio». Acrescentando o nº2, do mesmo artigo, que «Igual restrição é aplicável às varandas, terraços, eirados ou obras semelhantes, quando sejam servidos de parapeitos de altura inferior a metro e meio em toda a sua extensão ou parte dela». Pretende-se, assim, evitar que o prédio vizinho seja facilmente objecto da indiscrição de estranhos e de devassa com o arremesso de objectos. Não são, pois, propriamente as vistas que interessam, até porque a distância de metro e meio não as impede, continuando o prédio vizinho a ver-se, praticamente, na mesma (cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, ob.cit., págs.212, 215 e 223).
É certo que por força do disposto no art.1362º, nº1, do C.Civil, «A existência de janelas, portas, varandas, terraços, eirados ou obras semelhantes, em contravenção do disposto na lei, pode importar, nos termos gerais, a constituição de servidão de vistas por usucapião». E que, de harmonia com o disposto no nº2, do mesmo artigo, «Constituída a servidão de vistas, por usucapião ou outro título, ao proprietário vizinho só é permitido levantar edifício ou outra construção no seu prédio desde que deixe entre o novo edifício ou construção e as obras mencionadas no nº1 o espaço mínimo de metro e meio, correspondente à extensão destas obras». Note-se, mais uma vez, que o objecto da restrição não é propriamente a vista sobre o prédio vizinho, mas a existência da porta, da janela, da varanda, do terraço, do eirado ou de obra semelhante que deite sobre o prédio nas condições previstas no art.1360º. Assim, abrindo-se uma varanda fora das condições prescritas naquele artigo, isto é, que deite directamente sobre o prédio vizinho sem deixar entre este e aquela o intervalo de metro e meio, se servida de parapeito de altura inferior a metro e meio em toda a sua extensão ou parte dela, o proprietário pode adquirir a denominada servidão de vistas. Contudo, é igualmente certo que não foi isso que se passou no caso dos autos, desde logo porque se apurou que a varanda dista 1,60 metros do muro dos réus (cfr. a resposta ao ponto 2º da base instrutória). Sendo que, a distância a ter em consideração é a de 1,50 metros prevista naquela art.1360º e não os 3 metros referidos no alvará de loteamento, porquanto, tal alvará não tem em vista regular os conflitos de interesses entre vizinhos mediante restrições de direito privado, que estão previstas, na generalidade, nos arts.1344º e segs. do Código Civil, mas sim regular restrições por motivos de ordem estética e urbanística.
Significativo nesse sentido é o teor da informação prestada, em 2/5/07, pelo Município de…, a solicitação do Tribunal, constante do ofício junto a fls.193 e 194 dos autos, onde se refere que, em caso de incumprimento dos afastamentos mínimos previstos no alvará de loteamento (no caso, 3 metros), os Serviços solicitam a apresentação das respectivas declarações dos proprietários dos lotes confinantes, autorizando a sua implantação para efeitos de licenciamento das construções. Mais se refere que, no processo em causa não consta a declaração do proprietário do lote confinante a Sul, mas que foi considerada, para efeitos de licenciamento da construção, a verificação do cumprimento do disposto no art.1360º, do C.Civil, ou seja, 1,50 metros. Refere-se, por último, que foi incluído no respectivo alvará de licença de construção nº432/95 um condicionamento, nos termos do qual o requerente deverá proceder a obras de regularização no caso do vizinho, a Sul, proceder judicialmente e haver decisão do tribunal sobre esta matéria e nesse sentido.
Verifica-se, pois, que a obra foi licenciada, por respeitar o disposto no citado art.1360º, tendo-se deixado ao critério dos particulares a solução da questão do incumprimento dos afastamentos mínimos previstos no alvará de loteamento. Não há, assim, que falar em constituição de servidão de vistas por usucapião, porquanto, por um lado, o aludido incumprimento não é susceptível de a gerar, e, por outro, a varanda não foi aberta em contravenção do disposto naquele artigo.
Acresce que, se os réus entendiam que havia que impedir a constituição daquela servidão, poderiam reagir contra a violação do seu direito, através de uma acção negatória de servidão, ou até, se fosse caso disso, mediante embargo de obra nova. O que não se justifica, de modo nenhum, é a colocação da chapa mesmo em frente à varanda dos autores, abrangendo-a por completo em toda a sua altura e largura. E não se invoque o estado de necessidade, ou, inclusivamente, a acção directa ou a legítima defesa, pois que é manifesto não se verificarem os respectivos requisitos (cfr. os arts.336º, 337º e 339º, do C.Civil). Do que se trata, a nosso ver, é de um caso de abuso de direito (cfr. o art.334º, do C.Civil), algo semelhante ao que vem relatado em Pires de Lima e Antunes Varela, ob.cit., pág.204, onde se alude a uma situação de abuso do direito no caso de o proprietário não ter nenhum interesse sério na vedação do prédio e procurar apenas fazer sombra na horta do vizinho ou prejudicar de outro modo as culturas do prédio contíguo. Note-se que, nos termos do art.1305º, do C.Civil, o proprietário goza de modo pleno e exclusivo dos direitos de uso, fruição e disposição das coisas que lhe pertencem, mas dentro dos limites da lei e com observância das restrições por ela imposta. O que revela um espírito muito diferente do que anima os clássicos postulados do individualismo, traduzindo uma outra concepção da propriedade. Refira-se, ainda, que, como nota Antunes Varela, in BMJ, 161º, o art.334º, do C.Civil, constitui um manancial inesgotável de soluções através das quais a jurisprudência pode cortar cerces muitos abusos, harmonizando os poderes do proprietário com as concepções actuais e futuras acerca da propriedade.
A concepção adoptada do abuso de direito no citado art.334º é a objectiva, pois que não é necessária a consciência de se excederem, com o seu exercício, os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico do direito, bastando que se excedam esses limites. Exige-se, ainda, que o excesso cometido seja manifesto. Ora, a nosso ver, os réus, ao colocarem a chapa em questão no referido local do seu prédio, exerceram o seu direito de propriedade em termos clamorosamente ofensivos do sentimento jurídico socialmente dominante, excedendo manifestamente os limites impostos pela boa fé e pelo fim social ou económico desse direito. O que, nos termos do mencionado art.334º, torna ilegítimo o seu exercício, com as consequências inerentes a todo o acto ilegítimo, no caso, a remoção da questionada chapa.
No que respeita à obrigação de indemnizar a que o abuso do direito pode dar lugar, constata-se que, como se refere na sentença recorrida, os autores apenas lograram provar que se deslocaram por diversas vezes à Câmara Municipal de… e ao escritório da sua mandatária, bem como, que gastaram € 375,00 com a pintura das paredes do lado da casa voltada para a chapa, não tendo demonstrado que a colocação desta foi a causa de tais gastos (cfr. a resposta restritiva dada ao ponto 16º e a resposta negativa dada ao ponto 19º). Acresce que, também não se provou a existência de danos não patrimoniais (cfr. as respostas negativas dadas aos pontos 12º e 21º). O que vale por dizer que não se verificam, no caso dos autos, os vários pressupostos que condicionam a obrigação de indemnizar imposta ao lesante, sejam os danos ou o nexo de causalidade entre o facto e os danos (cfr. o art.483º, do C.Civil).
Haverá, assim, que concluir que a matéria de facto considerada provada apenas justifica a condenação dos réus na remoção da chapa em causa.
Procedem, pois, parcialmente, as conclusões da alegação dos recorrentes, pelo que, não poderá manter-se a sentença recorrida.
3 – Decisão.
Pelo exposto, concede-se parcial provimento ao recurso e revoga-se a sentença apelada, julgando-se a acção parcialmente procedente e condenando-se os réus a retirarem imediatamente, à sua custa, a chapa com 6 metros de altura e 5 metros de largura, que colocaram em frente à varanda dos autores.
Custas pelos autores-apelantes e pelos réus-apelados, na proporção de dois terços para os primeiros e de um terço para os segundos, em ambas as instâncias.

Lisboa, 27/5/08
Roque Nogueira
Abrantes Geraldes
Tomé Gomes