Ups... Isto não correu muito bem. Por favor experimente outra vez.
CONTRATO DE CONTA CORRENTE
FACTURA COMERCIAL
Sumário
1- Não se deve confundir o contrato de conta corrente com o simples processo de escrituração ou forma contabilística vulgarmente apelidado de sistema diagráfico de escrita. 2- A mera circunstância de se elaborar uma conta corrente onde se lançam os movimentos dos créditos e dos débitos resultantes das transacções existentes, não significa a existência de um contrato de conta corrente, no sentido técnico-jurídico de estipulação, ou seja, acordo de vontades no sentido de lançarem a débito e a crédito os valores que reciprocamente tivessem de entregar uma à outra e de se exigir apenas o saldo final a apurar. R.G.
Texto Integral
Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa
1-Relatório:
A autora, C, SA, instaurou procedimento de injunção, posteriormente convolado para acção declarativa sob a forma de processo ordinário, contra a ré, F, Lda., pedindo que esta seja condenada a pagar-lhe a quantia de € 329.536,68, sendo € 316.883,07 de capital e € 11.808,11 de juros de mora à taxa de 9,25% ao ano, desde 14.07.2005, alegando, em síntese, o “fornecimento de bens ou serviços” e o “não pagamento parcial e o total de facturas.
Contestou a Ré, confirmando a existência e o recebimento das facturas, emitidas no âmbito do contrato celebrado entre as partes, de cessão de exploração e fornecimento de um posto de combustível, mas impugnando os valores apostos nas mesmas.
Houve réplica da Autora, onde sustenta, que não foi celebrado qualquer contrato de conta corrente entre as partes e que nestes autos não reclama os valores constantes do acordo de pagamento de 29.11.2004, nem considera o valor da garantia bancária por o mesmo ter sido imputado a dívida distinta da reclamada nestes autos.
Cada uma das partes peticionou que a contraparte seja condenada como litigante de má fé, em multa e indemnização.
Prosseguiram os autos, tendo vindo a ser proferida sentença, a qual julgou a acção procedente, condenando a Ré a pagar à Autora a quantia de € 316.883,07, acrescida de juros de mora, à taxa aplicável aos créditos comerciais, desde a data de vencimento de cada uma das facturas em causa nos autos e até integral pagamento e improcedentes os pedidos de condenação de cada uma das partes como litigantes de má fé.
Inconformada recorreu a ré, concluindo nas suas alegações, em síntese:
-A douta sentença recorrida não fez correcta aplicação do direito no tocante à qualificação jurídica do contrato de conta corrente.
-Tendo sido dado como provado, quer a existência de um contrato de cessão de exploração e fornecimento, quer a existência de uma conta corrente contabilística e de acordo com as provas carreadas para o processo por parte da Apelante, deveria ser dada como provada a existência de um contrato de conta corrente.
- Nunca foi comunicado à Apelante, qualquer fecho de contas por força da entrega do posto de combustíveis que esta vinha a explorar em Vila Franca de Xira.
- Assim, a Ré e ora Apelante "F, Lda.", não pode ser obrigada ao pagamento da quantia reclamada pela Apelada.
- A douta sentença recorrida violou os princípios da descoberta da verdade material, pois ateve-se a um princípio de direito formal, invocando somente o art. 344º.do Código Comercial, sem valorar convenientemente quer a prova documental carreada pela Apelante para os autos, quer as testemunhas que apresentou.
Contra-alegou a autora, concluindo, em síntese:
- O contrato de conta corrente e o processo de escrituração contabilística designado por conta-corrente são realidades distintas.
- O que resultou provado nos autos foi tão só que, entre a autora e a ré existia uma mera conta-corrente contabilística, elaborada nos termos do Plano Oficial de Contabilidade, contendo os lançamentos dos créditos e dos débitos resultantes das operações e transacções existentes entre ambas e, exprimindo o resultado desses movimentos, nenhuma censura merecendo a sentença recorrida.
Foram colhidos os vistos.
2- Cumpre apreciar e decidir:
As alegações de recurso delimitam o seu objecto, conforme resulta do teor das disposições conjugadas dos artigos 660º, 664º, 684º e 690º, todos do CPC.
A questão a dirimir consiste em aquilatar sobre a existência ou não de um contrato de conta corrente entre a autora e ré.
A matéria de facto delineada na 1ª.instância foi a seguinte:
2.1.1. Entre a Autora e a Ré existiram relações comerciais desde 08.04.1999 até 13.02.2006 (al. A).
2.1.2. Tais relações emergiram de um Contrato de Cessão de Exploração e Fornecimento de um Posto de Abastecimento de Combustíveis sito na Estrada Nacional 10, em Vila Franca de Xira (al. B).
2.1.3. Em 08.04.1999 entre a Autora e a Ré foi celebrado o Contrato de Cessão de Exploração e Fornecimento documentado a fls. 13 a 24 destes autos (al. C).
2.1.4. Em 14.04.1999, entre a Autora e a Ré, foi celebrado o Contrato de Adesão do Estabelecimento ao Sistema de Cartões C documentado a fls. 25 a 29 destes autos (al. D).
2.1.5. Em 06.04.2000 foi celebrado entre a Autora e a Ré um aditamento ao Contrato de Cessão de Exploração e Fornecimento nos termos documentados a fls. 30 a 37 dos autos, que consistiu na adesão da Ré ao programa promocional denominado “C…”, nos exactos termos aí referidos (al. E).
2.1.6. Por carta datada de 04.02.2003, a Autora comunicou à Ré, com referência ao contrato celebrado em 08.04.1999, que denunciava "... o mesmo para o termo da sua renovação em curso, ou seja para o dia 7 de Abril de 2003..." – cfr. doc. de fls. 38 (al. F).
2.1.7. Em 11.04.2003, a Autora e a Ré celebraram o Contrato de Cessão de Exploração e Fornecimento documentado a fls. 39 a 46 destes autos (al. G).
2.1.8. Em 11.04.2003, a Autora e a Ré celebraram um Aditamento ao Contrato de Cessão de Exploração e Fornecimento referido em 2.1.7., o qual encontra-se inserto a fls. 47 a 52 destes autos, tendo por objecto a adesão ao programa “C…” (al. H).
2.1.9. Em 05.04.1999, a Caixa prestou em nome e a pedido da Ré, e a favor da Autora, uma garantia bancária nos termos documentados a fls. 53, a qual destinou-se "... a garantir, até ao montante de Esc.: 6.000.000$00, o bom e pontual pagamento por parte da ORDENANTE, de todas as importâncias por aquela devidas decorrentes e ou relacionadas com quaisquer fornecimentos efectuados e a efectuar pela BENEFICIÁRIA e, sob qualquer forma, relacionados com os fornecimentos, incluindo juros de mora." (al. I).
2.1.10. Por carta de 07.03.2006, dirigida pela Autora à Caixa foi solicitado que aquela instituição bancária procedesse, no prazo de cinco dias, ao pagamento à Autora do valor da garantia bancária referida em 2.1.9., alegando que a Ré era naquela data devedora para com a C da quantia vencida de € 503.554,34 (al. J).
2.1.11. A Caixa, no seguimento da comunicação referida em 2.1.11., entregou à Autora a quantia de € 29.827,87 (al. K).
2.1.12. A Autora emitiu e enviou à Ré os documentos juntos a fls. 82 a 93, intitulados de facturas (al. L).
2.1.13. A Ré ficou obrigada por força dos contratos referidos em 2.1.3. e 2.1.7. a comprar à Autora combustíveis, tais como gasolinas, bem com os seus derivados, nomeadamente óleos, além de explorar uma loja de conveniência, ou seja, um mini supermercado (al. M).
2.1.14. A Ré ficou, também, obrigada a aderir ao sistema de cartões “STAR” que a “C, S.A.” possui, que não são mais do que cartões de crédito para aquisição de combustível ou outros produtos “C” e que é fornecido a alguns clientes (al. N).
2.1.15. Desde 13.02.2006, a Ré já não explora o posto de combustíveis identificado em 2.1.2. (al. O).
2.1.16. A Ré nunca assinou por escrito um documento onde constasse o fim das relações comerciais, nem qualquer auto de entrega das existências do minimercado (al. P).
2.1.17. A Autora forneceu à Ré os bens discriminados nas facturas juntas a fls. 82 a 93 (r. 1º).
2.1.18. A Ré procedeu ao pagamento parcial das facturas juntas a fls. 82 a 85, permanecendo em dívida:
- € 17.160,08 (dezassete mil cento e sessenta euros e oito cêntimos) do valor total da factura nº 5105752976 (doc. de fls. 82);
- € 30.707,79 (trinta mil setecentos e sete euros e setenta e nove cêntimos) do valor total da factura nº 5105756030 (doc. de fls. 83);
- € 23.739,47 (vinte e três mil setecentos e trinta e nove euros e quarenta e sete cêntimos) do valor total da factura nº 5106750261 (doc. fls. 84);
- € 6.078,48 (seis mil setenta e oito euros e quarenta e oito cêntimos) do valor total da factura nº 5106750689 (doc. de fls. 85) (r. 2º).
2.1.19. A Ré não procedeu ao pagamento do valor total das facturas juntas a fls. 86 a 93 (r. 3º).
2.1.20. Antes de terem terminado as relações comerciais entre Autora e Ré, as vendas no âmbito do sistema de cartões “Star” representavam cerca de 40% do volume de vendas de combustíveis no posto referido em 2.1.2., então explorado pela Ré (r. 4º).
2.1.21. Existia uma conta-corrente contabilística entre a Autora e a Ré, elaborada nos termos do POC (Plano Oficial de Contabilidade), contendo os lançamentos dos créditos e dos débitos resultantes das operações e transacções existentes entre elas, e exprimindo o resultado desses movimentos (r. 10º).
2.1.22. O facto referido em 2.1.21. verificou-se enquanto a Ré explorou o posto de combustíveis referido em 2.1.2. (r. 11º).
2.1.23. Os fornecimentos de combustíveis eram feitos à consignação, com uma leitura semanal à quarta-feira e uma última no último dia de cada mês e pagamentos, por domiciliação bancária, primeiro no prazo de vinte e quatro horas a contar da leitura e, depois, no prazo de sete dias a contar da leitura (r. 14º).
2.1.24. A Ré só estava obrigada a pagar os combustíveis à Autora depois de os ter vendido a terceiros e, com excepção dos “Cartões do Sistema C”, ter recebido os respectivos preços (r. 15º).
2.1.25. No que respeita aos "CARTÕES DO SISTEMA C", e uma vez que as vendas eram efectuadas em nome e por conta da C, o valor dos respectivos combustíveis era depois pago pela Autora à Ré, no prazo de quinze dias seguintes à data do encerramento da facturação, deduzido da comissão de Esc. 02$80, por litro (r. 16º).
2.1.26. A Ré não devolveu à Autora as facturas de fls. 82 a 93 (r. 17º).
2.1.27. Nos presentes autos a Autora reclamou o pagamento da dívida da Ré para com ela, excluídos os valores constantes do acordo de pagamentos de 29.12.2004 (r. 18º).
2.1.28. E no pedido deduzido nestes autos não está considerado o valor da garantia bancária por o mesmo ter sido imputado a dívida distinta da reclamada nestes autos; o valor da garantia bancária foi imputado à dívida resultante de quatro facturas, sendo que uma delas é a que tem o nº 5106750689, junta a fls. 85, no que respeita ao remanescente dessa factura não referido em 2.1.18. como estando em dívida (r. 19º).
2.1.29. Aquando da entrega e restituição do posto de abastecimento de combustíveis à Autora, a Ré recusou-se a assinar qualquer documento (r. 20º).
Vejamos:
Insurge-se a apelante relativamente ao desfecho da acção, dado que em seu entender, não foi feita uma correcta qualificação jurídica do contrato de conta corrente.
Para tanto, invocou não ter sido valorada convenientemente quer a prova documental, quer a testemunhal que apresentou.
Ora, a apelante não impugnou em sede recursiva a decisão respeitante à matéria de facto, o que significa que a questão de direito em apreço tem que se cingir aos factos efectivamente assentes e não a uma hipotética realidade não fundamentada nem materializada nos autos.
Com efeito, resulta dos factos que as relações entre as partes emergiram de um acordo denominado Contrato de Cessão de Exploração e Fornecimento de um Posto de Abastecimento de Combustíveis.
Existia uma conta-corrente contabilística entre a autora e a ré, elaborada nos termos do POC (Plano Oficial de Contabilidade), contendo os lançamentos dos créditos e dos débitos resultantes das operações e transacções existentes entre elas, e exprimindo o resultado desses movimentos.
Os fornecimentos de combustíveis eram feitos à consignação, com uma leitura semanal à quarta-feira e uma última no último dia de cada mês e pagamentos, por domiciliação bancária, primeiro no prazo de vinte e quatro horas a contar da leitura e, depois, no prazo de sete dias a contar da leitura.
A ré só estava obrigada a pagar os combustíveis à autora depois de os ter vendido a terceiros e, com excepção dos cartões do sistema C, ter recebido os respectivos preços.
Em relação aos cartões, o valor dos respectivos combustíveis era pago pela autora à ré, no prazo de quinze dias seguintes à data do encerramento da facturação, deduzido da comissão.
Ora, ponderando tais elementos de facto não conseguimos descortinar, como o pretende a recorrente, a existência de um contrato de conta-corrente.
Tal contrato como é definido nos termos do art. 344º. do Código Comercial, pressupõe que duas pessoas tenham de entregar valores uma à outra; que se obriguem a transformar os seus créditos em «deve» e «há-de haver»; que apenas o saldo final resultante da liquidação seja exigível.
Implica isto que se extraia da matéria factual que as partes tenham estipulado, ainda que de forma meramente consensual, na medida em que este tipo de contrato não está sujeito a forma específica, lançar a débito e crédito os valores que forem entregando mutuamente, obrigando-se a exigir somente o saldo final, pois, só este tem individualidade.
O que os factos evidenciam é a existência da chamada conta-corrente contabilística.
Como escreveu Correia das Neves, in Manual dos Juros, 3ª. ed., pág. 220, não se deve confundir o contrato de conta corrente com o simples processo de escrituração ou forma contabilística vulgarmente apelidado de sistema diagráfico de escrita.
A mera circunstância de se elaborar uma conta corrente onde se lançam os movimentos dos créditos e dos débitos resultantes das transacções existentes, não significa a existência de um contrato de conta corrente, no sentido técnico-jurídico de estipulação, ou seja, acordo de vontades no sentido de lançarem a débito e a crédito os valores que reciprocamente tivessem de entregar uma à outra e de se exigir apenas o saldo final a apurar.
Como se alude no AC. do TRL. de 26-4-2007, in http://www., «A existência, nas sociedades comerciais de conta-corrente contabilística é prática corrente e obedece mesmo à boa técnica contabilística, atento o teor do POC (Plano Oficial de Contabilidade). Isso porém nada tem a ver com o contrato de conta corrente, regulado no art. 344º. do C. Comercial. Antes de mais, para se concluir pela sua verificação, necessário é provar-se que se está perante um contrato, ou seja, um acordo vinculativo, assente sobre duas ou mais declarações de vontade contrapostas mas perfeitamente harmonizáveis entre si, que visem estabelecer uma composição unitária de interesses».
Ora, da análise dos factos não resulta qualquer indício que permita inferir que fosse vontade das partes, a materialização de qualquer contrato de conta corrente.
Efectivamente, a ré comprava à autora combustíveis e a autora fornecia-lhe os produtos que comercializava, mediante os respectivos pagamentos.
Havia múltiplos contratos de compra e venda inerentes a cada um dos respectivos fornecimentos, sendo o preço pago nos prazos estipulados.
A ré apenas procedeu ao pagamento parcial de algumas facturas e noutras não liquidou qualquer montante.
Podendo as quantias ser reclamadas isoladamente, desde logo se afastaria a exigência apenas de um saldo final, como é uma das características essenciais do contrato de conta corrente.
O facto de se celebrarem reciprocamente transacções e estas serem escrituradas em conta corrente não implica necessariamente a existência de um contrato de conta corrente (cfr. Ac. RC. de 23-2-94, in BMJ nº. 434, pág. 697).
O que existia no caso vertente era uma técnica contabilística, as chamadas contas de «Devedores» e «Credores».
Assim, nem as partes convencionaram nenhum contrato de conta corrente nem quiseram que entre si vigorasse tal tipo de contrato.
Destarte, nenhum reparo nos merece a sentença recorrida, a qual se limitou a enquadrar juridicamente os factos, decaindo na totalidade as conclusões do recurso apresentado.
3- Decisão:
Nos termos expostos, acorda-se em julgar improcedente a apelação, mantendo-se a sentença proferida.
Custas a cargo da apelante.
Lisboa, 5-6-2008
Maria do Rosário Gonçalves
Maria José Simões
José Augusto Ramos